Escapar de uma caixa? (Pró-vocação sobre a Filosofia no Brasil Atual)

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Escapar de uma caixa?12

A filosofia da libertação, ao contrário da ética discursiva, deve articular-se à ação, à práxis, para desafiar o Poder. Neste caso a filosofia é um momento da "tomada de consciência" (a "conscientização" de Paulo Freire) do oprimido, de e em sua práxis, que descreve, e com isso critica os "mecanismos" da racionalidade cínica.

Filosofar no Brasil é o mesmo que filosofar na Alemanha? Esta é uma pergunta que pode parecer estranha, mas diz respeito à nossa imediata realidade brasileira, a atual situação da filosofia no Brasil. Esta reflexão visa uma análise da situação, tendo como pano de fundo o conceito de cinismo. Aqui apontei uma possibilidade: pretender filosofar no Brasil como se filosofa na Alemanha seria uma postura cínica. Mas será necessária uma construção conceitual para mostrar algumas implicações desta reflexão, bem como alguns detalhes que normalmente fogem à percepção de muitos filósofos e filósofas, mas sobretudo, de quem começa a estudar filosofia e é empurrado, empurrada numa caixa que talvez não consiga mais sair. Então esta é uma reflexão sobre o fazer filosófico no Brasil, abordando a dimensão epistemológica, ética e política. Escapar de uma caixa é talvez um título não comum para um capítulo de um livro de filosofia, mas a intenção é de uma forma talvez não tão comum à filosofia que quase sempre se propõe hermética, exercitar uma outra possibilidade filosófica, ao mesmo tempo que se discute sobre o fazer filosófico em geral. Conceituar a caixa, sua forma e conteúdo, analisando-a tendo como pressuposto o capítulo apresentado por Enrique Dussel e aqui traduzido: Do cético ao cínico. O conceito de caixa pretende ser metafórico, o que nos remeteria à influência de textos como: A Metáfora Viva, de Paul Ricoeur e Humanismo do Outro Homem, de Emmanuel Lévinas, mas não tomarei aqui, os conteúdos destes para a reflexão, dando-os, também como pressupostos metodológicos, além do método analético dusseliano, a partir do qual me coloco na condição de exterioridade, num processo de conscientização e portanto, crítica ao poder hegemônico. Para responder a nosso tema gerador 3: “Filosofar no Brasil é o mesmo que filosofar na Alemanha?” Precisaremos recorrer a alguns recursos filosóficos outros que o 1

Este texto foi publicado pela editora Nova Harmonia, no livro: Subjetividade e Ética na América Latina e a potencialidade da práxis de libertação, que você pode adquirir aqui: https://goo.gl/XIY8Fj 2 Esta reflexão toma como ponto de partida o instrumental metodológico filosófico propiciado por Enrique Dussel, o método analético. Para uma maior compreensão do que seja este método, sugiro a leitura de sua obra Método para uma filosofia da libertação: superação analética da dialética hegeliana. 3 Conceito de Paulo Freire.

conceito-racional-objetivo-cartesiano, que é hegemônico em toda a filosofia moderna e contemporânea. O conceito de caixa, qual aqui expressamos, é quase um não-conceito, conforme explicitarei. Falarei do material que a compõe, qual seu formato e então, será possível vislumbrar um caminho de resposta. Para enfatizar: esse não se pretende como um texto de filosofia séria, legítima, sistemática, autêntica, original, tal como cobram que seja um texto de filosofia latino-americana 4. Trata-se apenas de um olhar, dentre infinitos possíveis, para nossa realidade filosófica brasileira, problematizando-a e apontando caminhos factíveis5 de resoluções. Talvez, e só talvez, acho que um texto de filosofia tupiniquim que não pretende um Rapport – reportar-se, mas trata-se, como propõe Almeida (2011) 6, de um falar com, ao mesmo tempo, sem pedir permissão, ou se submeter à autoridade - de filosofias eurocêntricas. 1. O que é a caixa? A filosofia é algo concebido, geralmente, como uma forma de conhecimento hermético, difícil, abstrata, que não trata da realidade concreta, sem utilidade. Por sua vez, quem se dedica à filosofia, recebe adjetivações peculiares, inerentes a essa natureza abstrata – no sentido de estar descolada da realidade - qual se mostra a filosofia. Por que isso ocorre? Tem razão de sê-lo? Para responder, começarei com uma reflexão que é recorrente na filosofia latino-americana: a filosofia praticada aqui, qual seu caráter? Roberto Gomes cita: De fato, cumprindo seu destino e sua vocação, o pensamento brasileiro, mais do que criativo, é assimilativo das idéias alheias, e, ao invés de abrir rumos novos, limita-se a assimilar e a incorporar o que vem de fora. Daí a história da Filosofia no Brasil ser, em geral, uma história da penetração do pensamento alheio nos recessos de nossa vida especulativa, ser, em suma, a narrativa do grau de compreensão, da nossa capacidade de assimilação nas diferentes épocas e do nosso quociente de sensibilidade espiritual (GOMES, 1994, p. 56 cita VITA, Luís Washington. Escorço de Filosofia no Brasil. Coimbra, Atlântida, 1969, p.9)

Assim, iniciamos o caminho para compreendermos algumas causas dessa realidade da filosofia no Brasil. A filosofia, sempre tratou de problemas de seu lugar, de sua época, de seu tempo-espaçopara utilizar uma categoria europeia-. Por um acaso, como diz Zea, presenciamos os gregos questionando-se se fazem filosofia? Da mesma forma, os modernos não se perguntaram. Mas, os eurocêntricos, em seu cinismo, tentaram nos quitar a possibilidade de fazer filosofia. Penso que seja 4

Leopoldo Zea, Roberto Gomes e Danilo Di Manno de Almeida nos textos aqui citados discutem essas exigências para a filosofia, bem como algumas das complexidades que surgem a partir delas. 5 O conceito de factibilidade ética que Dussel assume a partir de Franz Hinkelammert em sua ética da libertação. 6 Este texto está tão presente nesta reflexão, seja sua forma, como conteúdo, que não faremos citações para não cairmos no risco de cansar a você leitor, leitora.

necessário, aqui, explicar como funciona o eurocentrismo, a fim de precisar o que falamos: ...consiste exatamente em constituir como universalidade abstrata humana em geral momentos da particularidade européia, a primeira particularidade de fato mundial (quer dizer, a primeira universalidade humana concreta). A cultura, a civilização, a filosofia, a subjetividade, etc. moderno-européias foram tomadas como a cultura, a civilização, a filosofia, a subjetividade, etc. sem mais (humano, universal, abstrata). (DUSSEL, 2002b, p. 69)

Não é apenas aparência, ou boato que a filosofia feita no Brasil, pareça viagem, ou muito abstrata, o que ocorre é que em geral, ela é viagem, se entendermos por viagem, que toma como ponto de partida do filosofar uma realidade alheia, como se sua fosse. O que você provavelmente não percebeu na citação anterior, do que diz Luís Washington é algo muito peculiar, que abordo agora: perceba que ele assume como natural dos brasileiros, inclusive como tarefa criativa e de nosso quociente e sensibilidade espiritual, a tarefa de bem assimilar e incorporar o que vem de fora. Sobre isso: O simples fato da questão (como ser original) nunca ter sido proposta revela que, nas camadas profundas da criação (as que envolvem a escolha dos instrumentos expressivos) sempre reconhecemos como natural a nossa inevitável dependência. (GOMES, 1994, p. 59. cita CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. Revista Argumento, São Paulo, 1:6-24, out, 1973)

A filosofia brasileira constituiu uma caixa ao aceitar essa situação de dependência, encobrindo a possibilidade de alteridade, ocupando o lugar da academia, que é o lugar da filosofia, por excelência 7, condenando este espaço, que a princípio deveria produzir conhecimento filosófico que problematizasse a realidade. Isso é, fazendo o que a filosofia sempre fez, mas em nossas terras, tem tomado o caminho da repetição e assimilação das ideias eurocêntricas. É difícil encontrar um filósofo ou uma filósofa que assuma isso. Pois assumir, implica uma responsabilidade que a maioria dos que estão ocupando a academia brasileira não podem – ou não querem – assumir. Significaria, em última instância, uma autocrítica e a tarefa de reaprender filosofia, pois não por culpa deles e delas, provavelmente foram ensinados que a única filosofia é a filosofia eurocêntrica, que nasceu em Atenas 8. Curioso que Aristóteles não era ateniense, nem grego, nem europeu, mas só por estar em Atenas, foi capaz de filosofar? Então parece que o problema é geográfico e não de naturalidade, ou de língua, como defendia Heidegger9. 7

Isso em nosso país, na atual conjuntura. O que não nega a necessidade e presença da filosofia em meio aos movimentos sociais e populares, por exemplo. O que se quer ressaltar com essa afirmação é que o fazer filosófico concentra-se e têm sua maior possibilidade, na universidade. 8 Como se a Grécia Antiga participasse da Europa, que é posterior, desde sempre?! Visão ideológica de história. 9 Na verdade, sabemos, hoje que sua célebre defesa de que só é possível filosofar em grego e alemão, deve-se a uma luta histórica dos alemães pelo reconhecimento de sua língua, que fora até proibida em muitas partes da Europa, por ser bárbara.

Pode parecer vitimismo ou discurso ressentido ou a busca de culpados, não é. É a consciência crítica e o grito por reconhecimento de nossa situação de opressão, de colonização, de encobrimento. É a memória de nossos ancestrais, que desde a invasão europeia gritam a violência desse encobrimento. Seria esse, o momento de domínio dos povos ameríndios, um momento necessário do processo histórico, dado que o ser humano, é, por natureza, predador? Será que é apenas um processo de evolução? Tomando a máxima heraclitiana, de que a guerra é a origem de tudo 10, é natural e legítimo que os povos mais fortes vençam, dominem e subsumam aos mais fracos? Esta linha argumentativa é cínica ou ingênua. Pois não se trata apenas de um desenvolvimento histórico, no caso da América Latina, por exemplo, houve o momento de discussão da Europa sobre o processo de colonização. Houve debates, filosóficos, inclusive, sobre a legitimidade da invasão, dada a violência que se percebia na época. A Junta de Valladollid 11é emblemática, neste caso, onde Guines de Sepúlveda e Bartolomé de las Casas debateram se os seres encontrados aqui eram humanos, com alma, ou selvagens que deveriam ser dominados. Vejamos um dos argumentos de Sepúlveda: Será sempre justo e conforme o direito natural que tais gentes se submetam ao império de príncipes e nações mais cultas e humanas para que por sua virtude e pela prudência de suas leis deponham a barbárie e reduzam à vida mais humana e ao culto da virtude. (DUSSEL, 2008, p. 166 cita SEPÚLVEDA, J. Guinés de. Tratado sobre as justas causas das guerras contra os índios. México: FCE, 1951, p. 251)

É possível percebermos que Sepúlveda, importante filósofo da época, estava protegendo valores e crenças daquela cultura, que estavam sendo fiel à Igreja, que era coerente com sua moral. Não. Absolutamente. Ele está sendo cínico, pois os interesses da invasão e do domínio, nos moldes que foram feitos estavam bem claros. Para nos ajudar a entendê-los, ouçamos Las Casas, que se utilizando da metáfora bíblica “ovelhas” para referir-se aos indígenas, narra como estava sendo a colonização: Logo que as conheceram como lobos e tigres e leões crudelíssimos de muitos dias com fome, se lançaram sobre elas. E nestes quarenta anos outra coisa não fizeram que despedaçá-las, matálas, angustiá-las, afligí-las, atormentá-las e destruí-las, por estranhas e novas e várias e nunca outras tais vistas nem lidas nem ouvidas maneiras de crueldade. (DUSSEL, 2007, p.201 cita LAS CASAS, Bartolomé. Brevísima relacción de la destruición de las índias. Obras Escogidas I-V, BAE, Madrid: 1957-1958. Encontrei uma ótima coluna de jornal que explica bem isso: CICERO, Antonio. A filosofia e a língua alemã. Caderno: Ilustrada. Jornal: Folha de São Paulo, maio de 2007. Acesso em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0505200726.htm , último acesso em outubro, 2015. 10 Emmanuel Lévinas faz uma belíssima reflexão sobre a filosofia heraclitiana e a dialética de forma geral, já na introdução de sua obra Totalidade e Infinito, qual recomendo vivamente a leitura. 11 Este debate ocorreu em 1550 e 1551, início da modernidade (que se inicia em 1492) e inaugura uma tradição crítica do colonialismo dentro da Europa, tendo como seu iniciador Bartolomé de las Casas, que denuncia com riqueza de detalhes a injustiça da invasão e saque europeus, colocando-se ao lado dos indígenas.

Se não houvesse um processo de discussão crítica tal como este, talvez seria possível acreditar que são apenas homens de seu tempo. Nesta obra, Las Casas mostra como que os europeus estavam cegos pelo ouro, prata e toda a riqueza que pudessem tirar daqui. Não eram valores que estavam sendo defendidos, mas com todo o cinismo por trás desse tipo de argumentação, estava a ambição, a ganância. Este cinismo, na época, chegou a tal ponto que outro acadêmico, Francisco de Vitoria, diz: Os espanhóis têm direito a recorrer aquelas províncias e permanecer alí, sem que os bárbaros os possam proibir, mas sem danos a algum deles. É lícito aos espanhóis comercializar com eles, mas sem prejuízo a sua pátria, importando os produtos que carecem e extraindo dali ouro e prata ou outras coisas que eles abundam (...) inclusive se nasce filho de algum espanhol e estes quiserem ser cidadãos do país, não parece que se lhes possa impedir de habitar na cidade ou de gozar do acomodo e direitos dos demais cidadãos. (Ibid.p.208 cita VITORIA, Francisco de. Obras de Francisco de Vitoria. BAC: Madrid, 1960, 2, p.705; 3,p.708; 5,p.710)

Este texto lido fora de seu contexto, parece muito justo e legítimo. A não ser que nos lembremos que Vitoria está em 1539 e ninguém viria à ameríndia a passeio ou tour turístico, como nos lembra Dussel. Vinham para a colonização, para explorar e dominar as populações que aqui estavam, que estavam sendo massacradas, aniquiladas pela ganância eurocêntrica. Não tinham nenhuma possibilidade de reação e o sr. Vitoria bem sabia disso. Acaso, será que Guines de Sepulveda ou Vitoria aceitariam que fosse o contrário? Que os indígenas pudessem da mesma forma, ter seu direito de ir e vir garantido na Europa? Parece-me muito racional presumir que não. Enfim, poderia aqui citar vários escritos de Montaigne (como crítico), Descartes, Locke, Hume... mas já que temos Kant como o grande responsável por uma revolução na filosofia moderna, a revolução copernicana, leiamos um trecho sobre o que ele pensa sobre os negros:

...Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um negro tenha demonstrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma concha, ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas palavras, tornam-se objeto de adoração e invocação nos esconjuros. Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores,

que se deve dispersá-los a pauladas...(KANT, Immanuel.)1213

Este tipo de afirmação na filosofia é mais comum que se possa imaginar. Na filosofia moderna, nos toca diretamente. Pois, a partir de 1492, o encobrimento do Outro, se dá às custas do máximo de riquezas que lhes pôde ser tirado, do extermínio de povos 14, e de todo o mal causado a nossos ancestrais, mas também, podemos perceber ainda hoje mecanismos e instituições que perpetuam este encobrimento, impedindo que possamos ser quem somos e constituirmos nossas identidades de forma crítica. Esta caixa, portanto, é aquilo que contêm 15 (compreende) em seu interior toda a diversidade, toda a alteridade e dá forma única a tudo o que se pretenda cultura em geral, filosofia em particular. Uma pessoa culta, portanto, é aquela que entende, conhece e reproduz a cultura eurocêntrica. O mesmo ocorre com a filosofia. Cultura é apenas a eurocêntrica. As outras são outras coisas, ou quando muito, culturas menores. Com Dussel (2007, p.11-14), desejo superar o helenocentrismo que ideologicamente restringe a filosofia política ao ocidente, atribuindo sua origem à Atenas. Quando na verdade a origem dos principais conceitos dos quais trata a filosofia grega são muito anteriores, já trabalhados em outras culturas. A palavra democracia, por exemplo não é de origem grega, mas egípcia. O mesmo ocorre com a palavra justiça, de origem semita. Quero também, superar o ocidentalismo, que ignora a importância do Império romano oriental de Bizâncio e Constantinopla, não historiciza a migração dos gregos, em 1453, para a Itália - por sofrerem a ocupação dos turcos- o que deu origem ao Renascimento. Importa ainda, como já mencionei, a superação do eurocentrismo, que ignora totalmente todas as teorias e histórias políticas dos outros povos, por vezes muito mais antigos e exitosas que as europeias, notadamente o Império Chinês, mas também os Astecas, Incas, Maias… É de extrema importância hoje, tematizar e superar certa secularização ideológica da política, que em geral, não analisa Não tive acesso ao texto físico a tempo, então, desculpo-me com você de trazer apenas esse que está em um site, sem paginação, mas conferi sua legitimidade. O título é: Observações Sobre o Sentimento do Belo e do Sublime - Ensaio Sobre as Doenças Mentais e você pode acessá-lo em: http://www.filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/170.txt , último acesso: outubro, 2015. 13 Um amigo, filósofo, kantiano, por quem tenho enorme carinho, criticou a postagem deste fragmento numa rede social, dizendo que o autor muda sua opinião posteriormente, citando dois textos: 1. Das diferentes raças humanas e 2. Determinação do conceito de uma raça humana. Ambos com tradução de Alexandre Hahn, presentes na revista filosófica Kant e-Prints, nas Série 2, v. 5, n. 5, jul.-dez., 2010 e Série 2, v. 7, n. 2, jul.dez., 2012 respectivamente. Li a ambos, inclusive todos os outros das duas edições da revista, mas infelizmente não consegui encontrar nada diferente. Com certeza ele evolui, mas suas considerações não deixam de ser racistas e eurocêntricas, a ponto de no texto mais recente apontado, afirmar que todo preto fede devido a um fenômeno biológico em sua pele. Limites de sua época e lugar? 12

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Estima-se que cerca de 70 milhões de indígenas tenham sido dizimados da América. No Brasil, de 1500 à 1957 a população indígena passou de 6 milhões para 120 mil, sendo que cerca de duas mil etnias foram extintas. 15 Aqui está uma crítica à ontologia fundamental, no sentido de pretender conter, compreender o ser das coisas, nega a alteridade a partir de seu processo racionalizador e redutivista.

adequadamente as Teologias Políticas presentes no Leviatã, no Contrato Social, no Capitalismo, etc... Enfim, nos interessa uma história com pretensão verdadeiramente mundial e crítica. Neste sentido, podemos perceber que esta caixa criada no Brasil – América Latina, Ásia e África e países periféricos da própria Europa – não permite que tematizemos, reflitamos, oficialmente sobre nossa origem e identidade. Quando queremos fazer isso, temos que nos marginalizar, pois nas grandes universidades não podemos sair dessa caixa que nos dá forma e dita o conteúdo que a compõe. Ficam, portanto, as pessoas que querem estudar filosofia, sobretudo as que querem cursar pósgraduação, condenadas a repetir o mesmo16, a não saírem da caixa, tendo muitas vezes que pesquisar algo que não querem, que não gostam, para o devido reconhecimento acadêmico e obtenção do título. Cabe aqui, para terminar de mostrar como se configura essa caixa, trazer um fato recente sobre o qual o filósofo brasileiro Euclides André Mance escreveu um pequeno texto que circulou nas redes sociais intitulado: “Sobre a Liberdade de Pensamento e o Direito ao Livre Filosofar”. Neste denuncia que um candidato ao doutorado em filosofia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) teve seu ingresso negado por não ter nenhum docente que pudesse orientar seu trabalho 17 sobre filosofia africana. Mance reflete sobre o porquê filosofias não europeias – e eu digo não eurocêntricas, o que restringe ainda mais – não encontram orientação nas universidades brasileiras. Mance aborda o conceito de lacunas filosóficas pois se não há professores que possam orientar, não haverá formação de professores que possam orientar no futuro. Lembremos que existe a possibilidade de orientação externa o que foi negada neste caso e em outros tantos nem se divulga a possibilidade. Com isso, o filósofo traz uma reflexão que em meu ver é central: em que medida, esse procedimento obscuro, subjetivo, que não permite que o pretenso doutorando escolha sua temática de pesquisa não lhe cercea o direito ao livre filosofar e à liberdade de pensamento? Mance nos lembra que no inciso IX do artigo 5º da constituição brasileira lemos: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Assim, entramos agora, numa temática qual iremos melhor desenvolver nas páginas seguintes, mas que Mance já nos ajuda a prenunciar aqui. Será que realmente o problema é a falta de professores doutores para orientar esta temática, ou que de alguma forma a universidade brasileira acabou se 16

Conceito muito importante para Lévinas e Dussel, que expressa “o eterno retorno do mesmo” na história concreta, realizando por exemplo, a conhecimento como reminiscência das verdades divinas, de forma ideológica, perpetuando o eurocentrismo. 17 Este é exatamente meu problema neste momento, pois não encontro professor doutor nos cursos de doutorado em filosofia no estado de São Paulo que queira orientar um projeto de pesquisa em Filosofia Latino-Americana. E ainda que eu vá estudar filosofia latino-americana, exige-se que eu me submeta a testes de suficiência de duas línguas eurocêntricas, leia-se (Alemão, Francês, Inglês, quando muito, o Grego), o que não terá a menor utilidade para o desenvolvimento de meu projeto, dado que todo o referencial teórico é em castelhano, espanhol e português, idiomas não aceitos. Mas querem convencer-me de que isso não é eurocentrismo.

fetichizando e notadamente, na área de filosofia – extensivamente todas as áreas – se prerrogou a função de dizer o que é filosofia ou não? E mais: o que tem importância à filosofia ou não. E me parece muito coerente pensar que esta é a verdadeira questão. Nesta sua breve história, a filosofia no Brasil, em suas instituições, quais sejam as principais: Ministério da Educação (Capes-CNPQ...), Agências Financiadoras, Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF), universidades, outras associações de filosofia, configurou um status filosófico que determina como deve ser a filosofia feita no Brasil, ou seja, que diz o que é a caixa e como entrar nela. 2. Fora da caixa? Quando morei em Curitiba, na década passada, conheci a expressão “fora da caixa” e ela me possibilitou chave hermenêutica importante. Pensar, ser, estar... fora da caixa, é não se apegar às convenções e se constituir em sua originalidade, alteridade. É possível, no Brasil, fazer filosofia fora da caixa? Consideremos que a principal ocupação para quem faz filosofia no Brasil é dar aula na educação básica, sobretudo no ensino médio da escola pública. A educação de forma geral dificilmente é problema filosófico. Tanto que grandes filósofos que se dedicam às temáticas da educação e do ensino de filosofia como Antônio Joaquim Severino, Marcos Lorieri, Silvio Gallo, Vitor Paro dentre tantos outros e outras, estão nas áreas de educação e não na de filosofia. Paulo Freire, dificilmente é visto como filósofo. Estes e tantos outros filósofos e filósofas conseguem fazer filosofia fora do status filosófico, às margens da filosofia. Também poderíamos aqui tematizar a burocratização para o enquadramento das revistas acadêmicas na área de filosofia, bem como os quesitos de avaliação para sua categorização, que seguem a mesma lógica da caixa. Seria esse o destino daqueles e daquelas que querem fazer filosofia no Brasil? Manter-se na caixa ou se marginalizar? Perceba que da questão anterior, decorre uma peculiaridade: fazer filosofia nesta caixa não é fazer filosofia. Aqui entramos no problema crucial deste texto. Em toda a história da filosofia, apesar da diversidade dos conceitos de filosofia, existe algo que é comum a qualquer fazer filosófico: Para falar sobre isso, precisamos nos remeter a pergunta que fizemos na introdução deste texto: “...filosofar no Brasil é o mesmo que filosofar na Alemanha?” E pode ser que agora a pergunta faça mais sentido. E a resposta precisa ser categórica: não. Por diversos motivos, mas o principal é que fazer filosofia sempre foi pensar partindo de seu lugar, de seu tempo. Desde antes da filosofia grega, o pensamento filosófico não fez outra coisa. Poderíamos aqui citar muitos exemplos, das filosofias africana e egípcias pré-gregas, das filosofias jônicas, dórias,

helênicas... toda a filosofia europeia, inclusive a eurocêntrica. A filosofia é uma razão que se expressa, como nos diz Roberto Gomes: Se nos despimos de todas as artificialidades que providenciamos para nossa instalação no real, verificamos que a questão sobre o estar permanece além de todas. Assim, desde o início a questão a respeito do que eu sou remete-se à pergunta: "Onde estou?" E onde estou? Num tempo, num lugar, entre coisas que me rodeiam, pessoas com quem falo. A consciência é primariamente este contato com a proximidade, com os contornos que imediatamente me chocam, exigem e perturbam. Estou em determinado lugar e, a partir dele, principio a ser. Antes estou, depois sou. (GOMES, 1994, p.19)

Dentro da própria filosofia eurocêntrica, lemos que “A Existência Precede a Essência” e todas as reflexões que tangem e se aproximam do existencialismo e da fenomenologia refletiram conceitos parecidos. O filosofar brasileiro que não se questiona sobre se filosofar na Europa ou no Brasil é o mesmo, corre sério risco de esquecer-se de onde está e iniciar seu filosofar de forma alienada, ou ideológica. Um filosofar alienado é possível? Defendemos que sim, pois seria justamente o filosofar que pretende, por ignorância de onde está, de quem é ou do que seja a filosofia, tematizar a reflexão de outros filósofos (sem mais), atentando-se seja à forma ou conteúdo da filosofia de outrem, como vimos mais acima, assume a função de filosofar por assimilação das ideias de outrem, ou ainda, como meta filosofia, analisando filosofias alheias quanto sua forma lógica. Por que são formas de filosofias alienadas? Justamente porque não partem de lugar algum, trata-se de filosofar que não está em parte alguma, sequer consideram o contexto em que surgiu a filosofia que se propõe estudar. Como se existisse um mundo das ideias à parte da realidade concreta, como se a filosofia estivesse acima, ou isenta de seu tempo e espaço – para utilizar uma categoria europeia – como bem nos lembra Gomes, o criador do que ficou conhecido por “mundo das ideias”, Platão, não pensava assim: Seu pensamento torna-se incompreensível se não levarmos em conta a íntima conexão que aí existe entre Política e Filosofia, sendo esta esclarecida por aquela, na medida em que reflete a seu respeito. O fracasso político na Sicília, as condições políticas perturbadoras, a morte de Sócrates o levaram ao postulado fundamental de seu idealismo: o mundo material deve ser modificado - quer dizer: negado - a partir das verdades obtidas na intuição das idéias. Assim, ao postular a reforma da cidade, o "mundo das idéias" mostra-se como o não-ser negador do vigente, a síntese de sua crítica a seu tempo. (Ibidem)

Nenhum filósofo ou filósofa pensou fora de sua época e lugar, mais ainda: é impossível bem compreender qualquer filosofia se não considerarmos este contexto no qual se origina cada uma delas. Mas por que então, hoje, seguindo a exigência de grande parte do status filosófico brasileiro, fazemos nós? Esse filosofar ingênuo, que queremos acreditar, vêm de uma tradição que não começa hoje, como

percebermos ao estudar Filosofia Latino-Americana, sobretudo um Enrique Dussel ou um Leopoldo Zea que mostram a história das ideias na América Latina, com detalhes, situando-nos os debates de Valladollid, do pós- primeiro colonialismo, a reflexão do século XIX- sobre a libertação mental -, a filosofia da libertação contra as ditaduras militares… Mas quais e quantos doutores em filosofia que estão na caixa leem a filosofia latino-americana? E estando no Brasil, conhecendo toda a nossa história de povo colonizado – compreendendo a violência da colonização e do atual domínio cultural, social e econômico - sabendo que a filosofia sempre foi pensar a partir de seu lugar, seu tempo, problematizando a realidade e apontando caminhos possíveis de alteração, a filosofia de aparência ingênua passa a ser filosofia injusta, filosofia defensora e justificadora do domínio cultural – social e econômico por extensão – que sofremos. Mance bem nos lembra a Declaração de Paris para a Filosofia18, que em suas páginas 12 e 13, diz: ...os problemas de que trata a filosofia são os da vida e da existência dos homens considerados universalmente, [...] que a atividade filosófica, que não subtrai nenhuma ideia à livre discussão, que se esforça em precisar as definições exatas das noções utilizadas, em verificar a validade dos raciocínios, em examinar com atenção os argumentos dos outros, permite a cada um aprender a pensar por si mesmo (...) O conhecimento das reflexões filosóficas das diferentes culturas, a comparação de seus aportes respectivos e a análise daquilo que os aproxima e daquilo que os opõe, devem ser perseguidos e sustentados pelas instituições de pesquisa e de ensino; A atividade filosófica, como prática livre da reflexão, não pode considerar alguma verdade como definitivamente alcançada, e incita a respeitar as convicções de cada um; mas ela não deve, em nenhum caso, sob pena de negar-se a si mesma, aceitar doutrinas que neguem a liberdade de outrem, injuriando a dignidade humana e engendrando a barbárie...

Levando em consideração esta complexidade, é necessário um resgate da filosofia, pensar nosso lugar, nosso tempo, inventando nossos conceitos e categorias com nossas formas. Há pouco, ouvi 19 dizer por exemplo, da possibilidade da não existência do inconsciente 20, ou quando vejo Euclides Mance pensando como superar o eurocentrismo, a modernidade e o capitalismo a partir das teorias de redes aplicadas à economia solidária e mesmo Enrique Dussel, Leopoldo Zea, as reflexões sobre ancestralidade africana, sobre interculturalidade, enfim, todos e todas pensando nossa realidade a partir de instrumentais teóricos próprios, que são constituídos a partir de nosso chão, nossos problemas. Mas que lugar estas reflexões ocupam no status filosófico brasileiro, na caixa? A marginalidade, a exterioridade. Esta é uma posição que permite a crítica e vislumbrar caminhos de soluções, além de 18

UNESCO. Philosophie et Démocratie dans le Monde — Une enquête de l'UNESCO. [Prefácio de Federico Mayor e Roger-Pol Droit]. Paris, Librairie Génerale Française , 1995. 19 Suze Piza e Beatriz Brambilla, no III Congresso Brasileiro de Filosofia da Libertação, em Salvador, 2015, problematizando que as teorias que abordam o conceito de inconsciente geralmente se remetem a arquétipos de culturas específicas, generalizando padrões de comportamentos, etc. 20 Que na maioria das vezes é pensado como instrumento de domínio e subsunção da alteridade, dado que geralmente recorre a arquétipos de gregos...

certa interpelação a quem está na caixa, mas estaríamos condenados e condenadas a isso? Neste sentido, parece que chegamos a outro problema central. A própria filosofia, em seu sentido mais peculiar, está marginalizada pela prática colonizada de parte dos filósofos e filósofas que compõem o status filosófico brasileiro. 3. O paradoxo da caixa? Uma solução proposta para este problema seria o de disputar espaço na caixa, infiltrando-nos e convivendo harmonicamente, afinal a princípio, há espaço para todos os filosofares, pois a filosofia injusta não seria, então, uma forma de filosofia alienada ou ideologia legitimadora do eurocentro, mas apenas mais uma forma de filosofar, qual deve ser respeitada. Ocorre que por trás desta justificativa, esconde-se o mito conciliador, acolhedor, pelo qual nós brasileiros somos mundialmente conhecidos. Esconde-se uma posição eclética, qual precisamos nos deter um pouco para explicitá-la e a desmistificar. O Ecletismo é o primeiro movimento filosófico brasileiro e resume-se, como prenunciado acima, em uma justaposição de ideias contrapostas. Seria uma conciliação de ideias contrárias. Este movimento teve seu apogeu no período de 1830-1870, marcando nossa cultura até hoje. Citando alguns importantes filósofos e historiadores brasileiros, nos dá a conhecer três características deste movimento: 1º - a desconfiança com os "sistemas", que seriam camisas-de-força do espírito; 2º - a crença de que a "verdade" poderia ser o resultado de um mosaico montado a partir de inúmeros pensadores, o que, além de livrar-nos dos perigos dos sistemas, permitiria um enriquecimento indefinido, aproveitando-se de cada sistema o "melhor" - daí a qualificação de "esclarecido"; dizia Cousin: "O que recomendo é um ecletismo ilustrado que, julgando com eqüidade e inclusive com benevolência todas as escolas, peça-lhes por empréstimo o que têm de verdadeiro e elimine que têm de falso"; 3º - finalmente, a crença tipicamente narcisista e imatura de que, assim agindo, estaríamos dando mostras de "espírito aberto", "esclarecido", não-dogmático mito que seria notável relacionar com aquele da natural "bondade" do brasileiro, ou com os mitos da "cordialidade", da "democracia racial", das "revoluções sem sangue". (Ibid. p.34)

Percebamos que nossa história política é cheia de exemplos “conciliatórios”, com estas características, poderíamos citar o processo de “independência” e a “redemocratização” pós-ditadura militar. Ambos com muitas aspas, pois justamente por conta de a prática conciliatória ser um mito que não resolve os problemas e vai postergando-os ad-infinitum, é que este mito da imparcialidade, como chama Roberto Gomes, mostra nossa imaturidade intelectual e dependência cultural de não nos posicionar frente a nossos problemas. Este assunto, por exemplo, na filosofia, causa mal estar e é

evitado, marginalizado é excluído como não problema e como não filosofia. Assim, permanece a pergunta: Entrar na caixa? Para entrar na caixa, seria necessário então, uma estratégia. Aceitar, por exemplo, fazer pósgraduação nos temas aceitos pelo status filosófico brasileiro e quando dentro, lutar para abrir espaços para filosofias que pensem nossa realidade. Mas para isso, é preciso uma posição cínica, apresentandose como legítimo candidato à caixa, submetendo-se à avaliação dos que decidem se você poderá ou não entrar na caixa. E aqui surge o problema central deste texto: o cinismo. Já disse que o status filosófico brasileiro, que constituiu e mantém a caixa, se construiu e se mantém a partir de uma posição cínica, injusta, ingênua ou ideológica que ignora, afasta, evita.... a tematização de uma filosofia brasileira. Agora, estou dizendo que talvez seja possível adentrar à caixa, para transformá-la, a partir de uma postura cínica, mas aqui, uma postura cínica contracultural. Chegamos a um paradoxo performático21? O paradoxo da caixa? Examinemos mais de perto. Qual é o conceito de cinismo que estamos operando? Agora será necessário precisá-lo. Em nosso texto base, o de Dussel, lemos que o cínico é o: “...que funda a "moral" do sistema vigente sobre a força irracional do poder (da "vontade-de-poder" diríamos desde Nietzsche), e que administra a Totalidade com a razão estratégica...” Assim, podemos ver claramente o papel dos burocratas e políticos que justificam este modelo de estado injusto e falido. Percebemos ainda, o papel dos filósofos e filósofas que mantém e legitimam o status filosófico atual em nosso país, que como descrevemos é injusto. Se utilizam de argumentações multiplas, uma razão estratégica, para administrar a totalidade, fundando-se, dentre outras coisas, numa vontade de poder. A partir da totalidade julgam qual filosofia pode ser feita e qual não pode. E é claro que tudo o que apresente a menor ameaça à totalidade, entendida aqui como status filosófico, é declaro como não filosofia e marginalizado. Podemos perceber que o cínico não aceita o diálogo, ainda que diga que o faça. Ele nega, sem ter lido, sem querer saber mais sobre. Não há ninguém que oriente filosofia africana! Ora, é claro que não há! Mas não é necessário que haja? Não é importante que tenhamos trabalhos de pós-graduação sobre filosofia africana? Por quê não há ninguém que oriente? Nada disso importa ao cínico que quer manter a totalidade. Nunca houve, não há e não queremos que haja. Essa é a posição completa – e não dita - da UNICAMP no caso. Por que a filosofia africana, como a filosofia latino-americana, trazem consigo um questionamento crítico à razão instrumental, ao eurocentrismo, ao colonialismo e mostrar o status filosófico atual como injusto, propondo mudanças, é propor mudança ao modelo de educação, aos currículos dos cursos de filosofia, à formação de professores e professoras de filosofia. É quebrar o status atual, propondo uma nova ordem. E quem o quer fazê-lo? 21

Que não é o mesmo que contradição performática, apontada por Apel.

Então, esta posição cínica dos que mantêm e legitimam o status filosófico brasileiro não se confunde com o cinismo filosófico de Antístenes, Diógenes ou Hiparquia, que de alguma forma, agiam subversivamente contra a cultura grega em formação, afirmando outros valores, outras formas de viver. Mas seria possível um cinismo de libertação, ou seja, uma posição cínica contracultural que pudesse entrar na caixa e subvertê-la? Para isso como vimos, seria necessário a princípio, aceitar trabalhar temas que não quiséssemos, para podermos ser aceitos no status filosófico e adentrando, ir subvertendo-o de forma que aos poucos fossemos subvertendo. Penso que sim. Mas não pensei ainda as consequências disso, tampouco a eticidade ou não de tal ação. E se assim for, de fato, se configura como o paradoxo da caixa. Usar de uma postura cínica para combater uma postura cínica. Mas seria possível dessa forma, desviciar a estrutura da caixa, por exemplo? E a ela dar outra forma? Penso que esta seria uma das principais dificuldades. Ou seria mais fácil que o filósofo ou a filósofa crítica que pretendem esta subversão fossem corrompidos e se moldassem a ela?! Não sei. Mas quero mostrar uma possibilidade diferente, com Dussel, que vai além dessa postura cínica negativa, contracultural, como chamarei aqui, para que não se confunda com o cinismo do status filosófico. 4. Rasgar a caixa A partir da filosofia da libertação de Dussel não seria possível fundamentar uma postura cínica qual vimos acima, mas esta propõe que invés de entrar na caixa para mudar sua forma, devemos rasgála. Vejamos com Dussel, como isso se daria: A filosofia da libertação confronta com as "artimanhas" de tal razão estratégica fundada no Poder. Isto determina a "arquitetônica" da filosofia da libertação. Em primeiro lugar, precisa descrever o que negará a razão cínica antes de tudo: ao Outro (a questão da "Proximidade"); em segundo lugar, descrever as categorias, necessárias para poder situar o processo de "totalização" que agora descrevemos como sob a dominação da razão cínica; "O Outro como inimigo"; "A aniquilação da distinção"; "A totalização da exterioridade; "A alienação”. Esta "arquitetônica" do discurso é radicalmente necessária como o a priori de toda outra reflexão filosófica posterior.

Neste texto, segui este processo. Mostrei que há uma caixa, o status filosófico brasileiro, que nega tudo o que está fora dela, nega a alteridade filosófica. Através de uma postura cínica as pessoas que mantêm e legitimam este status, formam e mantêm uma totalidade, e a partir de um projeto de poder negam qualquer alteridade, sendo assim, quem está marginalizado, marginalizada, deve moldarse à caixa, para dela participar. E no geral, a filosofia que se faz ainda hoje no Brasil, em grande parte,

é alienada, por não tratar dos problemas de nossa época e lugar, ignorando a realidade, tornando-se injusta. O rasgar a caixa, é a práxis de libertação que: ...só se inicia quando no interior do Sistema, dominado pela razão cínica, se manifesta o Outro, o rosto do Outro como alguém. Chamamos "consciência ética” à "ação pratica" que restabelece uma relação de comunicação (é uma autêntica Kommunikative Handeln) com o Outro. Apenas desde a manifestação, como revelação (Offenbarung, no sentido schellingiano) do Outro, se recebe, sem decisão previa, a "re-sponsabilidade" (Verantwortung) sobre o destino do oprimido negado à origem do movimento de totalização da razão cínica como cínica (como não-ética por excelência). Isto constitui a "re-sponsabilidade a priori", anterior a toda argumentação discursiva, a toda fundamentação ultima já toda possível Anwendung, que inicia o caminho da weberiana (ou de Hans Jonas) "responsabilidade a posteriori", como responsabilidade política ou pratica de atuar empiricamente para organizar instituições, efetuar ações, efeitos públicos, etc.

É necessário que o rosto do outro se manifeste (epifania) 22. É preciso que o Outro, as vítimas da sociedade atual, tenham interlocução acadêmica, filosófica 23. As filosofias brasileiras, quais reivindicamos, defendem relação com a realidade concreta, imediata, histórica, as filosofias de libertação24 e todas as outras filosofias que defendem que a filosofia deva ter uma utilidade 25 histórica, de dentro do sistema, provocando uma relação de comunicação com quem defende e legitima o status filosófico brasileiro atual, a totalidade, poderão abrir caminhos para um novo status filosófico brasileiro, que tenha como sua principal característica a alteridade – que é decolonial, de libertação -. Isso se faz necessário, porque estas filosofias tematizam, problematizam e apontam caminhos para resoluções de problemas da realidade brasileira, que sofre em sua desigualdade social, seu machismo, racismo, preconceitos... São filosofias que dialogam com as vítimas da sociedade atual, que elaboram conceitos para problematizar a negação de vida e apontar soluções possíveis. Esta é uma responsabilidade a priori da filosofia. Podemos encarar ainda, este processo do rasgar a caixa, como um primeiro momento da práxis de libertação. Seguido de um momento paralelo, que em intenção pode ser anterior, da composição de

22

Essa questão da manifestação do rosto do outro como epifania, ou revelação, além de Offenbarung Schellingiana é um conceito de Emmanuel Lévinas. Somos álteros. E o respeito à alteridade é respeitar o outro como infinitamente outro, sem a pretensão de colocar-se em seu lugar, de compreender o outro, de categorizá-lo… Supera a Ontologia por uma ética metafísica que é relação na proximidade, na complexidade do mistério que não se revela, se expressa provocando à relação, rompendo a totalidade a partir de seu rosto, de sua palavra. A categoria alteridade é uma das bases do pensamento de Enrique Dussel, qual ele materializa, pois o outro não é outro abstrato, mas a vítima da sociedade presente, aquele que tem sua corporalidade negada. Ver. “Ética da Libertação” de Dussel e “Totalidade e Infinito” de Emmanuel Lévinas. 23 Por que é preciso? Justamente porque a filosofia é um grande motor cultural, que como mostramos por ser feita de forma ingênua, alienada, injusta, impede que o status filosófico seja utilizado para auxiliar em produção de culturas de libertação. 24 As filosofias africanas, interculturais, etc. 25 E aqui assumir influências do utilitarismo, do comunitarismo, do pragmatismo…como faz Dussel na “Ética da Libertação”.

uma caixa amorfa26, em que caibam todos os filosofares (não cínicos 27). Com isso, defendo aqui, um status filosófico brasileiro que possibilidade multiplicidade metodológica e de conteúdo, mas que tenha como parâmetro principal de avaliação e admissão em seus programas, a relevância social. Assim sendo, o estudante, a estudante candidatos a uma vaga em um programa de pós-graduação em filosofia, deve mostrar suficiência nos idiomas quais sejam relevantes para sua pesquisa. Por exemplo, fui reprovado na UNIFESP em um processo seletivo logo na primeira etapa: proficiência em duas línguas eurocêntricas. Ora, pesquiso filosofia latino-americana e pretendia adentrar ao programa para pesquisar este campo. Nos últimos 10 anos tenho me dedicado ao espanhol e castelhano, na leitura, interpretação, tradução de textos destes idiomas. Mas não pude adentrar ao programa, pois não demonstrei a proficiência desejada no inglês e no italiano (das ofertas, os dois que mais conheço) e ainda que eu não fosse usar em nenhum momento estes dois idiomas, para ter meu ingresso aprovado no programa, teria que demonstrar isso. Poder-se-ia argumentar: mas é necessário ao filósofo, à filósofa, ao estudante de filosofia, um capital cultural amplo. E isso não poderia negar. Entretanto, qual capital cultural estão exigindo? O eurocêntrico. Para os programas de mestrado e doutorado em filosofia, não importa em nada o capital cultural brasileiro, hispânico, português, latino-americano. Além dessa questão do capital cultural exigido, critérios mais claros de seleção e valorização da práxis do estudante, deveriam entrar como quesitos. Sem dizer que a questão da orientação, é necessária uma postura de honestidade intelectual dos e das professoras selecionadoras e dizer: o tema é relevante, você mostrou as habilidades que entendemos como necessárias para desenvolver uma pesquisa, mas não temos ninguém no programa que possa orientar, contudo, temos uma lista de possíveis orientadoras, orientadores, além é claro, que você pode sugerir um/uma. Não há bulas, mas eis três pequenas ações, que revolucionariam a seleção dos processos de seleção de ingresso na pós-graduação em filosofia no Brasil e por consequência, os cursos e o status filosófico brasileiro. Estas reivindicações partem da realidade em geral, na qual estudantes de filosofia têm negada a possibilidade de estudarem oficialmente filosofias que tenham relação com sua realidade. E não podem, posteriormente desenvolver pesquisas que também o tenha. Neste texto, estamos fazendo uma crítica que se configura como um enfrentamento, ou como disse Dussel em nosso primeiro capítulo:

A filosofia da libertação, ao contrário da ética discursiva, deve articular-se à ação, à práxis, para desafiar o Poder. Neste caso a filosofia é um momento da "tomada de consciência" (a 26

Aqui entra uma discussão da filosofia política contemporânea de que as instituições sejam fluídas, justamente por estarem abertas às reivindicações sociais constantes. 27 Ou todos os filosofares que partam da realidade brasileira e não cumpram o papel cínico de legitimação e perpetuação de colonialismos culturais, como o faz o atual status.

"conscientização" de Paulo Freire) do oprimido, de e em sua práxis, que descreve, e com isso critica os "mecanismos" da racionalidade cínica.

É uma crítica portanto, da racionalidade cínica, de seus mecanismos, a partir da práxis, desafiando ao poder, à totalidade constituída, ao status filosófico brasileiro hegemônico 28. Aqui mostrase outra possibilidade de revolucionar a estrutura educacional, particularmente a área de filosofia, mas o sistema educacional como um todo 29. Trata-se de um movimento social que têm como uma de suas pautas objetivas a revolução do status filosófico no país. A filosofia da libertação já fala sobre desde a década de 1980, mas uma vez tentou um grupo de trabalho na ANPOF 30 e teve essa possibilidade negada e então criaram o GT Ética e Cidadania que não se configura, até onde conheço como um movimento social filosófico próximo aos moldes que estou propondo aqui. Não me parece ter sido intenção, em nenhum momento, inclusive da maioria que trabalha filosofia da libertação hoje, fazer essa disputa anti-hegemônica. O que têm restringindo a filosofia da libertação e filosofias latinoamericanas, africana e intercultural à marginalidade. Entretanto, dado o momento histórico do advento e crise de novos governos populares em toda a América Latina, da evidenciação de crise sistêmica do capitalismo e da modernidade como modelos econômico e de sociedade, precisamos de filosofias que pensem e criem conceitos que possibilitem que compreendamos e problematizemos essas realidades, pois pessoas estão morrendo, nossas instituições estão desmoralizadas dado seu desgaste radical e enquanto isso, quais são os temas que a filosofia tem tratado? Por que essa revolução seria importante? Justamente porque ela permitiria maior e mais qualificada produção de conhecimento que possibilitasse uma práxis política mais qualificada, em maior número. A questão portanto, é qualitativa e quantitativa. Qualitativa porque permitiria a filósofos e filósofas que estão na práxis, serem reconhecidas em seu fazer e terem dignidade e maior apoio para transformar a realidade. Em maior número porque o status filosófico estando a serviço da sociedade, permitiria aumento significativo das pesquisas e das práticas, portanto, que visam a transformação social. Ou como diz Dussel: …queremos indicar o exercício de outro tipo de filosofia, uma filosofia como serviço ou ação teórica solidaria (o "intelectual orgânico" de Gramsci?) da razão critica-discursiva em função da organização de um contra-poder atual ou futuro, como fruto da práxis dos oprimidos 28

Este conceito de hegemonia aqui evocado é o de Ernesto Laclau. Essa crítica, qual faço aqui, é já uma luta, pela revolução no status filosófico brasileiro, visando aderências que possam juntar-se aos que lutam por isso e transformar essa realidade injusta, conquistando assim, outro status, nos moldes quais estou descrevendo aqui, ou similares, que precisam, configurarse na luta, em consenso. 29 E se refletirmos a Ética da Libertação, a sociedade em geral. 30 Não sei se a intenção inicial era essa mesma, mas estou citando o evento justamente para debate posterior.

(mulheres nos sistemas machistas, raças discriminadas, miseráveis urbanos marginais, assalariados explorados, etnias indígenas, interesses nacionais, países capitalistas imolados de antemão pela destruição ecológica, etc.), em vista de chegar um dia a exercer o Poder na justiça, na nova ordem institucional que devera ser reformada, inovada ou fundada, pela práxis legítima e validamente justificada por uma filosofia da libertação.

A subserviência à razão cínica, qual vimos que Dussel aponta como consequência última da razão cética, inclusive, combatida pela ética do discurso de Karl Otto-Apel, dá lugar a outro tipo de filosofia, que em última instância, inevitavelmente chegará a exercer um status filosófico, como dissemos aqui, mas que deve evitar ao máximo que este seja também opressor, que permaneça a serviço, solidário e como ação crítica de libertação permanente, não legitimando nenhum modelo de sociedade, mas problematizando a todos, sempre, em relação com o povo, exercendo o poder na justiça. Rasgar a caixa, é portanto, um momento anárquico, é a negação da negação, mas não se configura ainda como práxis de libertação. Ela prescinde do segundo e concomitante momento que é o de construção da nova ordem, da afirmação da alteridade, da exterioridade negada. É a afirmação da continuidade histórica, da permanente revolução do outro, que vai irrompendo as totalidades e afirmando e construindo a nova ordem. Não poderia deixar de citar aqui a “primavera secundarista” que está ocorrendo no estado de São Paulo, agora, em novembro-dezembro de 2015. Crianças e Jovens, contrárias a um processo de reorganização

escolar

decretado

pelo

governador

do

estado,

Geraldo Alckmin,

ocupam

estrategicamente mais de 200 escolas trazendo à tona o processo histórico de sucateamento dessas escolas, de proposital deterioramento e corrupção do sistema educacional público, tendo em vista um processo de privatização. Ainda estamos em meio à luta, mas já conseguiram derrubar o secretário de Educação, seu chefe de gabinete e fizeram com que o governador voltasse atrás do decreto. Este foi apenas o primeiro momento, anárquico, agora o movimento já prenuncia que se articulará para o segundo, que é um projeto educacional para o estado e país. Vejo como um movimento natural e necessário esta rebeldia da juventude, dado que as negações de vida causadas pelo modelo de sociedade atual, de intensificação do neoliberalismo, as vitimiza, tirando quaisquer perspectivas de um futuro digno e até de um futuro qualquer, dado a crise hídrica e de meio ambiente. Este movimento iniciado e liderado pela juventude secundarista, mas apoiado também pelas comunidades, movimentos sociais, classe artística, é apenas um exemplo de como os movimentos sociais podem agir, como bloco social dos oprimidos. Falemos um pouco mais sobre isso.

5. Outra caixa Algumas vezes no texto citei o conceito povo, popular. Este conceito geralmente é visto com negatividade, dado os populismos ocorridos na América Latina. É necessário explicitá-lo, dado que dissemos acima que a filosofia deva ser um movimento social que construa um status filosófico brasileiro que retroalimente e inspire filosofias que estejam a serviço de seu povo. Dussel (2008) nos mostra a importância de que os movimentos sociais e populares que lutam por reivindicações particulares, sem perder sua particularidade, cada vez mais se unam e passem a fazer reivindicações hegemônicas. Mostra, a partir de conceitos de Ernesto Laclau e Boaventura de Sousa Santos, como este processo pode se dar. Propõe que os movimentos vão percebendo no desenrolar de suas lutas que as reivindicações particulares de outros movimentos também são importantes para a sua, por exemplo, o movimento feminista percebe que a mulher negra, pobre, é mais oprimida, que a branca rica. Por este motivo que a educação pública, gratuita, de qualidade é uma reivindicação hegemônica, importante a todos os movimentos sociais... As reivindicações hegemônicas ou hegemón analógico, como chama Dussel, não tiram, como observa Laclau, as identidades, prioridades e particularidades de nenhum movimento. Mas pautam o agir particular de cada um. Acrescento: imagina que todos os movimentos sociais atuem com agendas unificadas, possibilitando que militantes atuem em diversas causas, promovendo atos conjuntos, lutando juntos por pautas hegemônicas e particulares? Lembremos, com Dussel, que só há movimento social porque há negação da vida ou em sua dimensão material (e simbólica) ou na dimensão democrática. A mencionada primavera secundarista foi deflagrada por um ato autoritário do governador que não consultou os/as estudantes e as comunidades para fazer uma reforma educacional (democrática) e pelas más condições materiais da escola pública. Povo é a categoria que melhor define este conjunto de pessoas que defendem reivindicações gerais e específicas. O Povo é a consideração de todos e cada um em particular: Entendemos por povo, quando falamos em luta, a grande massa não remida [...], a que anseia grandes e sabias transformações de todas as ordens e está disposta a fazê-las, quando crê em algo e em alguém, sobretudo quando crê suficientemente em si mesma […] Nós chamamos povo, se de luta se trata, aos 600 mil cubanos que estão sem trabalho [...]; aos 500 mil trabalhadores do campo que habitam nos bohíos 31 miseráveis [...]; aos 400 mil trabalhadores industriais e braçais [...] cujos salários passam das mãos do patrão às do agiota [...]; aos 100 mil pequenos agricultores, que vivem e morrem trabalhando uma terra que não é sua, 31

Um tipo de cabana precária.

contemplando-a sempre tristemente como Moisés à tera prometida [...]; aos 30 mil mestres e professores [...]; aos 20 mil pequenos comerciantes cheios de dívidas [...]; aos 10 mil profissionais jovens […] desejosos de luta y cheios de esperança [...] Esse é o povo, o que sofre todas as opressões e é portanto capaz de pelejar com tudo, a coragem! (DUSSEL, 2008, p. 243 cita Fidel Castro: Cuando hablamos de lucha)32.

Na América Latina o sentido de povo é algo muito mais profundo que nas línguas românticas modernas. O povo, não é a composição de todas as pessoas, portanto. São aqueles que estão engajados e em luta por transformação social. Não é a multidão de A. Negri, nos adverte Dussel, mas o conjunto formado por cada pessoa, considerada em sua intersubjetividade, nos movimentos que adotam reivindicações hegemônicas. Aparece em momentos decisivos que cobram consciência crítica, não é portanto, o mesmo que o sujeito histórico substancial, fetichizado pelo marxismo em geral. É um ator construtor da história desde um novo fundamento, o exercício do poder constituído desde baixo. (DUSSEL, 2008, p.244). O povo constitui um bloco social dos oprimidos, como citamos acima, que conforme diz Dussel: ...não é uma pedra, considerando sua consistência, só é um conjunto integrável e desintegrável; pode ter contradições em seu seio (como propôs Mao Tsetung); aparece com força em um momento e desaparece quando cumpriu sua tarefa (se é que o consegue, e os povos também fracassam com frequência). É um “bloco social” porque procede desde os conflitos dos campos materiais (extinção ecológica, pobreza econômica, destruição da identidade cultural), e que lentamente passa ao primeiro umbral da sociedade civil, e daí ao segundo umbral da sociedade política. (DUSSEL, 2008, p.245)

A filosofia da libertação têm como tarefa intrínseca a que já apontamos, de fazer filosofia com e nos movimentos sociais e populares. A formação do bloco social não é frequente, talvez em nossos dias estamos presenciando algo similar com a formação da Frente Povo sem Medo, que está bem presente no movimento que chamamos de primavera secundarista aqui. Mas a baixa frequência do aparecimento do bloco social dos oprimidos que presenciamos, deve-se em grande parte, por falta de pessoas e teorias capazes de auxiliar que os movimentos particulares entendam a importância das reivindicações hegemônicas. E é aqui que entra o principal objetivo do que estamos chamando de outra caixa. É que o status filosófico brasileiro potencialize essas filosofias, que não são ideologias partidárias, ou de movimentos específicos. Mas que pensam a partir da realidade concreta, da negação de vida, 32

Tradução minha.

auxiliando na problematização e criação de categorias que permitam interpretar a realidade e construir outras possibilidades, superando problemas apontados. A filosofia como movimento cultural e social popular. De alguma forma, assumindo este papel, a filosofia passa a ser a pedagógica, conceito trabalhado por Enrique Dussel, uma dimensão do ser humano, junto à política e à erótica, de forma ética e antifetichista33. Referências ALMEIDA, Danilo Di Manno. Nós, os Não-Europeus, o Pensamento na América Latina e a NãoFilosofia. Um Possível Non-Rapport? Tradução para o português: Hugo Allan Matos, Paulo Cesar Correa. Revista Páginas de Filosofia, v. 3, n. 1-2, p. 111-134, jan/dez. 2011 DUSSEL, Enrique. Método para una Filosofía de la Liberación: superación analéctica de la dialéctica hegeliana. Ediciones Sígume: Salamanca, 1974. _______________. Estado de guerra permanente y razón cínica. Apresentação realizada na Universidade Autónoma de México-Iztapalapa em 13 de março de 2002. Publicada no site: Herramienta. Disponível em: http://www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-21/estado-deguerra-permanente-y-razon-cinica ________________. Ética da Libertação: na Idade da Globalização e da Exclusão. Trad. Ephraim Ferreira Alves e outros. 2ªed.Vozes: Petrópolis, 2002 (B). ________________. Política de la Liberación: Historia Mundial y Crítica. Trotta: Madrid, 2007. ________________. El Pueblo y El Poder Liberador. En: Los Movimientos Sociales del siglo XXI: Diálogos sobre el poder. Compilación: Ricardo Martínez Martínez. Ed. El perro y la Rana: Caracas, 2008. GOMES, Roberto. Crítica da Razão Tupiniquim. 11ªed. FTD: São Paulo, 1994. Coleção prazer em conhecer. MANCE, Euclides André. Desafios que a Filosofia da Libertação Enfrenta. Cadernos da FAFIMC. Viamão, N.15, janeiro/junho de 1996, p.95-142 _____________________. Uma Introdução Conceitual às Filosofias de Libertação. Revista LibertaçãoLiberación / Nova Fase - Curitiba, IFiL, Ano 1, N.1, 2000, p.25-80. ZEA, Leopoldo. Filosofia Latino-Americana. Tradução Nasser Kassem Hammad. Site Cinfil. Disponível em: http://www.cinfil.com.br/arquivos/Leopoldo_Zea_4.pdf _____________. El Pensamiento Latino Americano, 3ª ed., Ariel – Seix Barral, México, 1976 33

Este assunto, desenvolvi em minha dissertação de mestrado, anteriormente citada e em um artigo que

escrevi com Daniel Pansarelli, disponível na internet intitulado: Filosofia como Pedagógica.

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