Escatologia xiita e espiritualidade política: notas sobre Foucault e o Irã

July 27, 2017 | Autor: Mauricio Pelegrini | Categoria: Iranian Studies, Politics, Islamic Studies, Michel Foucault, Iranian History
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ESCATOLOGIA XIITA E ESPIRITUALIDADE POLÍTICA: NOTAS SOBRE FOUCAULT E O IRÃ

Mauricio Aparecido Pelegrini História Cultural – Unicamp [email protected]

Que sentido, para os homens que habitam [o Irã], procurar, ao preço mesmo de suas vidas, essa coisa cuja possibilidade esquecemos desde o Renascimento e as grandes crises do cristianismo: uma espiritualidade política? Já escuto os franceses rindo, mas sei que não têm razão (FOUCAULT, 2010b, p. 236).

Com essa afirmação, Michel Foucault encerrava o primeiro de seus textos sobre a Revolução Iraniana publicado na França, no periódico Le Nouvel Observateur, dando início a uma série de mal-entendidos e a uma grande controvérsia a respeito de sua avaliação da Revolução. Em 1978, a convite do jornal italiano Corriere della Sera, Foucault realizou duas viagens ao Irã, onde presenciou os acontecimentos revolucionários que depuseram o xá Reza Pahlavi e terminaram por instaurar um governo islâmico de cunho teocrático. Seus artigos não se limitaram à mera descrição dos eventos, mas procuraram entender o movimento das forças em disputa, suas raízes sociais e históricas. Durante o período das revoltas, eram traduzidos imediatamente para a língua persa e lidos pelos manifestantes. Contra a interpretação corrente, de que se tratava de uma revolução de cunho pré-moderno, de uma sociedade atrasada resistindo a um projeto de modernização, Foucault mostrava como a própria “modernidade” trazida pelo xá era já um projeto ultrapassado, um arcaísmo (cf. FOUCAULT, 2010b, p. 219223). Além disso, como poucos foram capazes de perceber naquele momento, Foucault enxergava no Islã não apenas uma religião, mas um modo de vida que, como tal, entrava definitivamente em cena no jogo político, subvertendo a partir de então as forças estratégicas mundiais, alterando definitivamente o papel do Oriente Médio nas relações internacionais. A importância histórica da Revolução Iraniana não se deverá, talvez, à sua conformidade a um movimento “revolucionário” reconhecido, mas, antes, à possibilidade que terá de subverter os dados políticos do Oriente Médio, logo o equilíbrio estratégico mundial. Sua singularidade, que constituiu, até aqui, sua força, arrisca-se de fazer, em seguida, seu poder de expansão. É bem, com efeito, como movimento “islâmico”, que pode incendiar toda a região, reverter os regimes mais

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instáveis e inquietar os mais sólidos. O Islã – que não é simplesmente uma religião, mas um modo de vida, uma dependência a uma história e a uma civilização – arrisca-se de se constituir em um gigantesco paiol de pólvora, à escala de centena de milhões de homens. Desde ontem, todo Estado muçulmano pode ser revolucionado a partir do interior, de suas tradições seculares (FOUCAULT, 2010b, p. 273, grifos meus).

Dentre os diversos temas abordados por Foucault em suas reportagens iranianas, destaca-se assim a espiritualidade política, fato que não passou despercebido à maior parte dos comentadores que até agora abordaram esses textos. Em suas entrevistas nas ruas, com os manifestantes, não ouvia como clamor coletivo a “revolução”, mas sim o “governo islâmico”. É preciso considerar que 90% dos muçulmanos no Irã seguem a vertente xiita do islamismo, que possui características bastante particulares, especialmente em relação à vertente majoritária do Islã, o sunismo – de fato, é o Irã o único país do mundo em que o xiismo é a religião oficial, sendo em todos os outros países muçulmanos uma pequena minoria. Após a morte do profeta Mohammad, em 632, seu genro e irmão adotivo, Ali, casado com Fatima, foi preterido à sucessão do califado e da liderança dos muçulmanos, apesar de, como creem os xiitas, Mohammad tê-lo nomeado seu sucessor pouco antes de sua morte. Ali, ainda um jovem de 32 anos, esperou com paciência sua vez de se tornar califa, tendo com Fatima dois filhos homens, Hassan e Hussein, únicos descendentes homens do Profeta. Em 656, Ali finalmente é eleito califa, enfrentando, contudo, diversas rebeliões durante seu reinado, e em 661 é assassinado. Para os xiitas – xiismo é, literalmente, “o partido de Ali” – Ali é o primeiro imã, ou seja, o guia da comunidade muçulmana, o intermediário entre Deus e os homens. Os imãs não são eleitos, mas nomeados pelo seu antecessor, sendo considerados os mais dignos espiritual e fisicamente ao comando, além de serem a única e verdadeira linhagem de Mohammad, que lhes transmitiu os segredos esotéricos passados de imã a imã (cf. RICHARD, 1991). Com o assassinato de Ali, seu filho mais velho, Hassan, não se opôs à retomada do califado pela dinastia omíada, mas após sua morte, seu irmão Hussein não aceitou a liderança de Yazid, considerado ímpio, amante dos banquetes e do vinho. Em Karbala, pequena localidade no deserto, no mês de muharran, as tropas dos dois rivais lutaram, culminando com o massacre de Hussein e seus aliados. “O martírio de Hussein tornouse o protótipo de toda luta por justiça, de todo sofrimento. O coração do xiismo se

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encontra aí, nesse suplício que é ao mesmo tempo revolta e signo de esperança” (RICHARD, 1991, p. 47). Desde Hussein, todos os imãs sofreram uma morte trágica, de acordo com o mito xiita, sendo em geral assassinados por ordem do califa, dando início a uma dinastia de perseguidos, que marcam o xiismo como uma religião de minorias subjugadas por um poder injusto. A partir de uma suposta profecia de Mohammad, após Hussein só haveria outros nove imãs, totalizando doze. “O Nono será o Ressurreitor; ele preencherá a Terra de paz e justiça como ela hoje está preenchida de violência e tirania” (idem, p. 60). O décimo segundo imã, que possui o mesmo nome do Profeta, é o Mahdi, que restaurará a justiça e a verdade no mundo. Da existência histórica deste imã, quase nada se sabe, mas a sua mitologia aponta que desapareceu misteriosamente, comunicando-se com os homens por meio de quatro intermediários; após a morte destes, escondeu-se definitivamente, no que os xiitas chamam Grande Ocultação, era que vige desde então e que só terminará com o final dos tempos, quando este imã escondido retornará ao mundo. Como força presente no mundo, porém oculta, o imamado anima os fiéis xiitas, quase sempre vivendo em situação de perseguição religiosa, a continuar lutando contra toda forma de governo injusta. Nenhum governo é legítimo, posto que o verdadeiro líder dos xiitas é o imã escondido. O fato que o imã seja “presente” mas oculto torna ilegítima toda pretensão absoluta à autoridade sobre os homens, pois o soberano que se coloca em posição de comando usurpa a única autoridade existente. (...) Posto que o imã é presente-ausente e que ninguém está apto a se colocar como representante de sua vontade, é preciso aceitar que a autoridade política está sempre submetida a uma certa relatividade (idem, p. 65).

Tal é o sentido da escatologia xiita: toda forma de governo é provisória, pois que é apenas um momento na espera do retorno do Mahdi. Os fiéis xiitas podem adotar duas formas distintas de espera: a resignação e submissão, ou a insatisfação e recusa da situação presente. É com o segundo ânimo que Foucault encontra os iranianos durante as suas viagens, e somente a partir desse quadro religioso é que se pode compreender o que, para eles, o brado de “governo islâmico” poderia significar. O Islã xiita, com efeito, apresenta um certo número de traços suscetíveis de darem à vontade de um “governo islâmico” uma coloração particular. Ausência de hierarquia no clero, independência dos religiosos uns com os outros, mas dependência (mesmo financeira) com respeito àqueles que os escutam, importância da autoridade puramente espiritual, papel ao mesmo tempo de eco e de guia que deve representar o clero para sustentar sua influência – eis a organização. E, em relação à doutrina, é o princípio de que a verdade não foi acabada pelo selo do último profeta: após Maomé começa

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um outro ciclo de revelações, inacabado, dos imãs que, através de suas palavras, seu exemplo e seu martírio também, carregam uma luz, sempre a mesma e sempre mutável; é ela que permite iluminar, do interior, a lei, a qual não foi feita somente para ser conservada, mas para libertar, ao longo do tempo, o sentido espiritual que ela recepta. Mesmo invisível antes de seu retorno prometido, o décimo segundo imã não está radical e fatalmente ausente: são os próprios homens que o fazem voltar, à medida que mais os ilumina a verdade com a qual despertam (FOUCAULT, 2010b, p. 232-233).

Após quase um século de ditadura Pahlavi, a insustentabilidade do governo só poderia ser questionada sob o viés da escatologia xiita. Pouco antes da chegada de Foucault a Teerã, em setembro de 1978, o exército promoveu o massacre de milhares de manifestantes, no evento que ficou conhecido como “Sexta-Feira Negra”. A partir daí, a cada quarenta dias, marcando o período de luto pelos mortos, novas manifestações aconteciam, espalhando-se desde as mesquitas pela cidade inteira, unindo todos os grupos opositores, religiosos e não religiosos (cf. ABRAHAMIAN, 2009). A queda do xá era um desejo de vários grupos sociais, que se uniram em torno do mesmo objetivo, e também da mesma linguagem comum, o xiismo. “Na aurora da história, a Pérsia inventou o Estado e confiou receitas ao Islã: seus administradores serviram de quadros ao califado. Mas, desse mesmo Irã, ela fez derivar uma religião que deu a seu povo fontes indefinidas para resistir ao poder do Estado” (FOUCAULT, 2010b, p. 236). Em 1978, Foucault proferiu no Collège de France o curso Segurança, Território, População, em que procurou analisar a emergência da governamentalidade moderna e da razão de Estado. A partir da noção de governo, procurou compreender a especificidade da razão governamental no Estado moderno. Com isso, deslocou a análise do Estado ocidental para o paradigma da governamentalidade; mais do que o domínio sobre um território, o governo se dá sobre uma população, e este modelo já estava presente no pastorado cristão. O pastorado, dessa forma, é uma das linhas de proveniência da governamentalidade ocidental. Para Foucault, a relação entre religião e política, nas sociedades ocidentais modernas, não estava primordialmente na relação entre Igreja e Estado, mas sim entre o pastorado e o governo (cf. FOUCAULT, 2008, p. 253). É esta a experiência que marca o Ocidente a partir do século XVI, em que o governo, embora esteja calcado no modelo religioso do pastorado, desloca-se e separase de qualquer possibilidade religiosa. A governamentalização ocidental, a partir do Renascimento, retira da política a espiritualidade que até então poderia ser uma das

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formas de resistência e contestação, possibilidade esta que Foucault pretende enxergar no islamismo xiita durante as revoltas no Irã. Mas o pastorado como modelo de governo não se exerceu de maneira hegemônica. Assim como todo exercício de poder supõe a possibilidade da resistência, o pastorado engendrou contracondutas, “movimentos que têm como objetivo outra conduta, isto é: querer ser conduzido de outro modo, por outros condutores e por outros pastores, para outros objetivos e para outras formas de salvação, por meio de outros procedimentos e de outros métodos” (idem, p. 256-257, grifos meus). Foucault identifica cinco formas de contraconduta, de resistências ao poder pastoral: o ascetismo, as comunidades, a mística, a escritura, e a crença escatológica. Sobre esta última, afirma: Outra maneira de desqualificar o papel do pastor é afirmar que os tempos se consumaram ou estão se consumando, que Deus vai voltar ou está voltando para reunir seu rebanho. Ele será o verdadeiro pastor. Por conseguinte, já que ele é o verdadeiro pastor que vem para reunir seu rebanho, ele pode dispensar os pastores, os pastores da história e do tempo, e cabe agora a ele fazer as distinções, cabe a ele dar de comer ao rebanho, cabe a ele guiá-lo (idem, p. 282).

A escatologia desqualifica a autoridade do condutor, ou seja, do pastor. A crença na certeza da volta do Redentor impede a formação de uma autoridade hegemônica; toda autoridade pode ser contestada, posto que é apenas uma liderança provisória, assumindo temporariamente o papel que, de direito, pertence unicamente ao messias vindouro. Assim, uma autoridade considerada injusta pode ser imediatamente questionada, já que esta não dispõe de nenhuma justificativa extraterrena para o seu exercício. Do mesmo modo que existiram contracondutas de contestação do poder pastoral, a governamentalidade moderna deu forma às suas próprias contracondutas, oposições à razão de Estado que se apoiam na própria governamentalização. A primeira delas, de acordo com Foucault, é a prevalência da sociedade civil sobre o Estado: No fundo, a razão de Estado, como vocês se lembram, havia posto como primeira lei, lei de bronze da governamentalidade moderna e, ao mesmo tempo, da ciência histórica, que agora o homem deve viver um tempo indefinido. Governos sempre haverá, o Estado sempre estará aí e não esperem por uma parada. A nova historicidade da razão de Estado excluía o Império dos últimos tempos, excluía o reino da escatologia. Contra esse tema que foi formulado no fim do século XVI e que ainda permanece hoje em dia, vamos ver se desenvolverem contracondutas que terão precisamente por

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princípio afirmar que virá o tempo em que o tempo terminará, que têm [terão] por princípio colocar a possibilidade de uma escatologia, de um tempo último, de uma suspensão ou de um acabamento do tempo histórico e do tempo político, o momento, por assim dizer, em que governamentalidade indefinida do Estado será detida e parada por o quê? Pois bem, pela emergência de algo que será a própria sociedade. (...) Escatologia revolucionária que não parou de atormentar os séculos XIX e XX. Primeira forma de contraconduta: a afirmação de uma escatologia em que a sociedade civil prevalecerá sobre o Estado (idem, p. 478).

Outra forma de contraconduta é a desobediência da própria população: Agora vamos ver se desenvolverem contracondutas, reinvindicações na forma da contraconduta, que terão como sentido o seguinte: deve haver um momento em que a população, rompendo com todos os vínculos de obediência, terá efetivamente o direito, não em termos jurídicos, mas em termos de direitos essenciais e fundamentais, de romper todos os vínculos de obediência que ela pode ter com o Estado e, erguendo-se contra ele, dizer doravante: é minha lei, é a lei das minhas exigências, é a lei da minha própria natureza de população, é a lei das minhas necessidades fundamentais que deve substituir essas regras da obediência. Escatologia, por conseguinte, que vai tomar a forma do direito absoluto à revolta, à sedição, à ruptura de todos os vínculos de obediência – o direito à própria revolução. Segunda grande forma de contraconduta (idem, p. 479).

São duas grandes formas de escatologia que afirmam a possibilidade de não ser conduzido desta forma, de afirmar um desejo de outra forma de governo, outra forma de se conduzir e de ser conduzido. No mesmo ano de 1978, Foucault também proferiu uma pequena palestra intitulada O que é a crítica, em que afirma que, à toda forma de governo, e especialmente da governamentalização, não se pode deixar de opor a questão como não ser governado? Por crítica pode-se entender a “arte de não ser governado dessa maneira”, localizando-se aí uma questão perpétua: “como não ser governado desse modo, por isso, em nome desses princípios, em vista desses objetivos e por meio desses procedimentos, não desse jeito, não para isso, não por eles” (FOUCAULT, 1990, p. 38). Percebe-se o horizonte das preocupações teóricas de Foucault quando de sua chegada ao Irã. É, portanto, mais ou menos com os mesmos termos – contracondutas, resistência às formas de governo presentes – que Foucault descreve a experiência dos iranianos insurgentes: Levantando-se, os iranianos se diziam – e é, talvez, isso a alma do levante: precisamos mudar, certamente, de regime e livrar-nos desse homem, precisamos mudar esse pessoal corrompido, precisamos mudar tudo no país,

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a organização política, o sistema econômico, a política estrangeira. Mas, sobretudo, precisamos mudar a nós mesmos. É preciso que nossa eternidade, Deus etc. sejam completamente mudadas, e só haverá revolução real na condição dessa mudança radical em nossa experiência. Creio que foi aí que o Islã representou um papel (...) O xiismo é, justamente, uma forma do Islã que, com seu ensinamento e seu conteúdo esotérico, distingue entre o que é a simples obediência externa ao código e o que é a vida espiritual profunda; quando digo que eles procuravam, através do Islã, uma mudança em sua subjetividade, é absolutamente compatível com o fato de que a prática islâmica tradicional já estava lá e lhes assegurava sua identidade; nessa maneira que tiveram de viver a religião islâmica como força revolucionária, havia outra coisa que não a vontade de obedecer mais fielmente à lei; havia a vontade de renovar toda sua existência, reatando com uma experiência espiritual que pensam achar no coração mesmo do Islã xiita (FOUCAULT, 2010b, p. 264-265, grifos meus).

O movimento revolucionário iraniano, na interpretação de Foucault, não seria apenas o último soluço de uma sociedade arcaica e resistente aos esforços de modernização de um ditador esclarecido, mas, ao contrário, um movimento de contraconduta à governamentalização; arcaico seria o projeto do xá. E é retomando a forma da espiritualidade política, ausente no mundo ocidental desde o Renascimento, que, a partir da escatologia da religião xiita, os iranianos puderam se levantar contra a forma de governo que não desejavam mais. Após a deposição do xá Reza Pahlavi, o movimento revolucionário, unido até então sob a única bandeira do não ao regime do xá, dispersou-se. A política, até então em greve (cf. FOUCAULT, 2010b, p. 242), retornou ao jogo das disputas pelo poder do Estado. Em março de 1979, um referendo proclamou quase por unanimidade a instauração de um governo islâmico teocrático, tendo por chefe máximo o aiatolá Khomeini. Tal desdobramento não foi antecipado por Foucault, também porque, apesar de calcar-se no islamismo xiita, não foi sem subvertê-lo quase por completo que Khomeini alçou-se ao poder. Associando a subjugação da classe clerical – o próprio aitaolá viveu décadas no exílio – ao martírio de Hussein e, por extensão, os clérigos xiitas ao imamado, pôde-se conceber uma forma de governo cuja autoridade máxima seria um religioso, forma impensável em qualquer teologia xiita até então.

A metáfora é ousada (...), não só porque relaciona Yazid à figura do Xá, mas porque relaciona a família do imame martirizado à classe clerical. Como se o imamado estivesse, no presente, a cargo dos clérigos, como esteve, na origem, a cargo da casa do profeta. Ora, essa tese, que sub-repticiamente se

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insinua com a ponte metafórica de Khomeini, não é teologicamente indiscutível. No xiismo duodecimal, (...) depois da Grande Ocultação, a linhagem dos imames foi suspensa até o retorno do mahdi. Esta ocultação, em geral, justificou o quietismo político da grande maioria dos líderes religiosos, como o próprio grão-aiatolá Borujerdi, para mencionar o exemplo mais ilustre, de quem Khomeini era discípulo. Outro ponto importante a ser ressaltado neste discurso de Khomeini é que o ataque desleal, injusto, tirânico e anti-islâmico das forças governamentais e o martírio dos desprotegidos concerne unicamente ao clero, como representante do islã. Todo o jogo de oposição, entre resistência e injustiça, se reduz ao jogo entre o poder clerical e o poder do monarca. A multidão, seja como comunidade de fiéis, seja como povo iraniano, no seu discurso e na sua metáfora, fica à margem do campo de forças (FARHI NETO, 2012, p. 90).

Os desdobramentos da Revolução Iraniana não devem invalidar as interpretações de Foucault acerca do movimento revolucionário; de fato, apesar de muitas opiniões contrárias, Foucault enxergou no movimento mais do que muitos de seus contemporâneos. Mais importante do que insistir nos seus supostos “erros” em relação à Revolução, talvez seja compreender os conceitos que mobilizou em sua interpretação e, dessa forma, apontar que a espiritualidade política permite observar possibilidades políticas de afirmação da subjetividade como resistência à governamentalidade contemporânea. Como aponta Chevallier, “a espiritualidade política deveria ser pensada como uma irrupção, um rasgo do tempo, que não pode se instalar na história para obter uma forma institucional precisa. Se ela se instala, torna-se simplesmente política, quer seja na política dos mulás, ou na política dos liberais pró-americanos da época” (Chevallier, 2004, p. 80). A espiritualidade política só pode ser pensada como inquietação, irrupção, ruptura, movimento. Surge na história, mas dela se separa, como acontecimento. Pensar a espiritualidade política significa, primordialmente, questionar a própria possibilidade da política. As insurreições pertencem à história. Mas, de certa forma, lhe escapam. O movimento com que um só homem, um grupo, uma minoria ou todo um povo diz: “Não obedeço mais”, e joga na cara de um poder que ele considera injusto o risco de uma vida – esse movimento me parece irredutível (FOUCAULT, 2010a, p. 77).

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REFERÊNCIAS

ABRAHAMIAN, Ervand. The crowd in the Iranian Revolution. Radical History Review, New York, n. 105, p. 13-38, fall 2009. ARJOMAND, Said Amir. The turban for the crown: the Islamic Revolution in Iran. New York: Oxford University Press, 1988. CHEVALLIER, Philippe. La spiritualité politique – Michel Foucault et l’Iran. Projet, Paris, n. 281, p. 78-82, 2004. Disponível em: . Acesso em: 04 set. 2013. FARHI NETO, Leon. Espiritualidade política: a partir de Foucault e de Spinoza. Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012. FOUCAULT, Michel. Qu’est-ce que la critique? [Critique et Aufklärung] Séance du 27 mai 1978. Bulletin de la Société Française de Philosophie, Paris, v. 84, n. 2, avril-juin 1990. __________. Segurança, Território, População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008. __________. Ditos e Escritos V: Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a. __________. Ditos e Escritos VI: Repensar a política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010b. RICHARD, Yann. L’islam chi’ite: croyances et ideologies. Paris: Fayard, 1991. SENELLART, Michel. Situação do Curso. In: FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

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