Esclarecimento e Prática: Gestos Ostensivos nas Investigações Filosóficas e antes

June 6, 2017 | Autor: Marcelo Carvalho | Categoria: Wittgenstein
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  ESCLARECIMENTO E PRÁTICA GESTOS OSTENSIVOS NAS INVESTIGAÇÕES FILOSÓFICAS E ANTES MARCELO CARVALHO Universidade Federal de São Paulo [email protected]

I.1 “No Tractatus, análise lógica e definição ostensiva não eram claras para mim. Naquele tempo eu supunha que havia ‘uma conexão entre linguagem e realidade’”.1 Esse curioso comentário de Wittgenstein, anotado por Waismann em 1 de julho de 1932 como registro de uma conversa da qual também participou M. Schlick, se situa em meio ao debate de um artigo publicado por Rudolf Carnap um pouco antes, neste mesmo ano (“Die Physikalische Sprache als Universalsprache der Wissenschaft"2). Em maio de 1932 Wittgenstein teve acesso ao artigo, no qual Carnap defende o fisicalismo (abandonando sua perspectiva fenomenológica anterior) e constrói o projeto de uma sintaxe lógica da linguagem, chamada ali de “metalógica”. De imediato, em 6 de maio, Wittgenstein escreveu para Schlick reclamando do uso que Carnap teria feito de suas ideias. Ele deixa clara sua irritação e, de modo indireto, acusa Carnap de plagio3. Depois disto Schlick e Wittgenstein trocaram algumas cartas e tiveram o encontro registrado por Waismann. Em 10 de julho de 1932

                                                                                                                Ludwig Wittgenstein und der Wiener Kreis , 209-210. R. Carnap, Erkenntnis 2. Bd., 1931, p. 432-465. 3 J. Hintikka, “Ludwig’s apple tree”, p. 35-6 1 2

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Schlick escreveu a Carnap indicando correções em seu artigo que considerava adequadas no sentido de explicitar quais das idéias ali apresentadas tinham origem no trabalho de Wittgenstein.4 A carta de Schlick indica os seguintes pontos em que devem ser incluídos créditos a Wittgenstein: [1] alto da p. 433 (a natureza da filosofia); [2] fim da p. 435 e seguinte (definição ostensiva não nos conduz para fora da linguagem); [3] alto da p. 440 (o caráter das leis da natureza, nas quais as hipóteses são caracterizadas por sua forma lógica peculiar, que difere das proposições ordinárias); [4] além disso, passagens nas quais pseudo-problemas são eliminados por meio do “modo formal de linguagem” (p. 452, nota, p. 456), pois de fato esta é, enfim, a idéia básica de W[ittgenstein].5

As conversas que precedem essa carta sugerem que os pontos apontados por Schlick são um desdobramento de indicações feitas pelo próprio Wittgenstein que foram consideradas pertinentes e sistematizadas por Schlick. Esses registros deixam claro que o debate sobre definições ostensivas se situa no núcleo do trabalho de Wittgenstein no início dos anos 1930 e, mais do que isto, que ele entende que tem uma concepção nova e própria sobre o tema (e que estaria sendo apresentada por Carnap sem os devidos créditos). De fato, a problematização dos gestos ostensivos passou a ser um assunto frequente no trabalho de Wittgenstein a partir de 1930 e veio a ocupar uma posição central na argumentação que se estrutura no início das Investigações Filosóficas. Consideraremos aqui as primeiras formulações da concepção de Wittgenstein sobre gestos ostensivos e a maneira como elas se fazem presentes nas Investigações, explicitando o que se mantém destes

                                                                                                                4 5

Carta de Schlick para Carnap, 10 de julho de 1932; Cf. Hintikka 1996, p. 36. Cf. M. Nedo, Ludwig Wittgenstein: Ein biographisches Album, p. 300-1.

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trabalhos iniciais e quais os novos elementos que são característicos da fase madura de seu trabalho. A singularidade do tratamento dos gestos ostensivos nas Investigações se explicita pelo contraste com as formulações anteriores que Wittgenstein deu para o problema e apresenta uma perspectiva relevante a partir da qual se pode vislumbrar a novidade, singularidade e radicalidade das Investigações na obra de Wittgenstein e no contexto da filosofia contemporânea.   I.2 É muito curiosa a afirmação de Wittgenstein, em sua conversa com Schlick e Waismann, de que no Tractatus a análise lógica e as definições ostensivas não eram claras para ele. No caso das definições ostensivas, conceito que não aparece explicitado no Tractatus, o comentário é aceitável, mas incluir aí a análise lógica, tema central do livro, é algo que exige um exercício cuidadoso de explicação que deixe clara a contraposição destas concepções do início dos anos 1930 àquilo que estava presente em seu primeiro trabalho. Na medida em que os dois temas aparecem relacionados no registro de Waismann, entretanto, a compreensão das posições de Wittgenstein sobre as definições ostensivas oferece uma perspectiva inicial sobre os problemas que ele então identifica na concepção tractariana de análise. O ponto central da posição de Wittgenstein sobre definições ostensivas entre 1930 e 1933 é sumarizado no item 2 da carta de Schlick a Carnap: “as definições ostensivas não nos conduzem para fora da linguagem”. Nos termos do registro de Waismann, a definição ostensiva permanece “dentro” da linguagem.

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Quanto à definição ostensiva e sua permanência na linguagem a situação é completamente diferente. Neste caso não há nenhuma confrontação de um signo com a realidade.6

O texto do artigo de Carnap apresenta essa concepção em termos um pouco diferentes: Uma tradução é uma regra de conversão [eine Regel zur Umformung] para uma outra linguagem (por exemplo, “cheval”: “cavalo”). Uma definição é uma regra de conversão dentro da mesma língua; isso se aplica às chamadas definições nominais (...), bem como – o que normalmente é ignorado – às chamadas definições por meio de instruções [Definitionen durch Aufweisung] (por exemplo, "elefante": "animal do tipo de animal em tal e tal ponto do espaço-tempo").7

Carnap usa a expressão “Definição por meio de instruções” e não fala de “definição ostensiva”8, mas é clara a relação entre estes dois conceitos. A novidade proposta por Wittgenstein seria justamente aquilo que Carnap diz ser em geral ignorado: que também as definições ostensivas (as “Definitionen durch Aufweisung”) são regras de transformação no interior da própria linguagem. Definições ostensivas não relacionam, então, a linguagem com algo fora ou diferente dela, como se poderia supor. Elas não promovem uma confrontação do signo com a realidade, por meio da qual se pretenderia, por exemplo, que se constitua seu significado. Situá-las dentro da linguagem resulta em compreendê-las como não mais do que uma regra de transformação. Desta perspectiva, elas não poderiam ser apresentadas como a oportunidade privilegiada em que

                                                                                                               

Ludwig Wittgenstein und der Wiener Kreis, p. 209. R. Carnap, Erkenntnis 2. Bd., 1931, p. 435-6]. 8 Um dos primeiros registros do uso deste termo por Wittgenstein aparece em Nachlass [MS110, 43], onde ele aparece primeiro em inglês e depois em alemão, o que fortalece a hipótese de que sua origem seja o uso do termo por W. E. Johnson em Logic (de 1921-24). 6 7

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linguagem e realidade são confrontadas (e que marcaria o ponto final da análise). Não é difícil de compreender como esta concepção dissocia as definições ostensivas da fenomenologia (que está sendo abandonada por Carnap no artigo de 1931).9 Para Wittgenstein, no início dos anos 1930, fica claro que o Tractatus apresentava uma compreensão de análise equivocada ao supor que se poderia “confrontar” um signo com a realidade.10 A revisão desta concepção tem em seu núcleo a descrição de como operam os gestos ostensivos. I.3 O primeiro registro do uso do termo “definição ostensiva” [hinweisende Definition] por Wittgenstein aparece no MS107, um caderno de anotação de 1929-30, anterior à organização das Observações Filosóficas. Entretanto, só se encontra discussões mais longas relacionadas a este conceito a partir do MS110, onde aparece a contraposição entre esclarecimento ostensivo [hinweisenden Erklärung] e definição ostensiva [hinweisenden Definition]. O uso corrente do termo “definição ostensiva” é, entretanto, posterior à estruturação da posição de Wittgenstein sobre o tema. Em uma passagem que aparece no início das Observações Filosóficas e que tem origem em uma anotação de março de 1930 (registrada no MS108), Wittgenstein diz o seguinte: Se explico o significado de uma palavra “A” a alguém apontando alguma coisa e dizendo “Isto é A”, então, essa expressão pode significar de duas maneiras diferentes. Ou ela própria já é uma proposição, caso em que só pode ser compreendida na medida em que o significado de A é conhecido, isso é, devo deixar ao acaso se ele o entende como eu ou não. Ou a sentença é uma definição. Suponhamos que eu tenha dito a alguém “A está doente”, mas ele não sabe a que me refiro com A, e eu agora aponto para um homem dizendo “Isto é A”. Aqui, a expressão é uma definição, mas isso só pode ser compreendido se ela já

                                                                                                                9

Cf. J. Hintikka, “Ludwig’s apple tree”, p. 28-9. Ludwig Wittgenstein und der Wiener Kreis, 209.

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concluiu que tipo de objeto isto é por meio de sua compreensão da gramática da proposição “A está doente”. Mas isso significa que qualquer tipo de explicação de uma linguagem já pressupõe uma linguagem. E, em certo sentido, o uso da linguagem é algo que não pode ser ensinado, isto é, não posso usar a linguagem para ensiná-la da maneira como a linguagem poderia ser usada para ensinar alguém a tocar piano – E isso é claro, é somente outra maneira de dizer: não posso usar a linguagem para sair da linguagem.11

Podemos identificar aqui, em primeiro lugar, a indicação de que a mesma sentença (“Isto é A”) pode ser usada ora como uma proposição, ora como uma definição. A diferença entre ambas não está na própria sentença, mas em seu uso e em seu contexto.12 No caso do uso como definição, entretanto, ele pressuporia a apreensão da “gramática da proposição ‘A está doente’”, isto é, pressuporia a identificação do “tipo de objeto” de que se trata ao falar de A. Pode-se vislumbrar aqui uma formulação preliminar de um argumento apresentado nas Investigações: ao apontar para algo e dizer “Isto é A”, não é possível, a princípio saber se se trata de uma cor, posição, objeto, do próprio ato de apontar, etc. A eliminação desta ambiguidade inerente ao gesto ostensivo pressupõe o recurso a algo que seja anterior a ele. No caso das Observações Filosóficas, deve-se recorrer à gramática, que desempenha o papel de uma “teoria dos tipos”. Wittgenstein nos diz o que entende com estes termos no parágrafo seguinte do texto: A gramática é uma ‘teoria dos tipos lógicos’. / [...] Qualquer descrição como essa [do que é representado] já pressupõe as regras gramaticais. Isto é, se qualquer coisa vier a ser considerada sem sentido na gramática que tem de ser justificada, essa coisa não pode, ao mesmo

                                                                                                                Wittgenstein, L. Philosophische Bemerkungen, 6 (itálicos acrescentados). Uma distinção semelhante, entre proposições empíricas e gramaticais, desempenha um papel central na 2a parte Sobre a Certeza. Cf. e.g. L. Wittgenstein, Über Gewißheit, 98. 11 12

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tempo, se apresentar como dotada de sentido na gramática das proposições que a justificam (etc).13

“Teoria dos tipos” é o nome dado por Russell a sua estratégia de discriminar diferentes tipos (de “coisas”) de modo a criar uma hierarquia que evita o paradoxo de Frege. Trata-se justamente de discriminar o “lugar” de cada termo da linguagem e impedir contrasensos. Já no Tractatus Wittgenstein recusava a possibilidade de uma teoria dos tipos como supunha Russell (na medida em que algo assim pressupõe que se pudesse falar sobre o significado de um termo), e afirmava que a sintaxe lógica deveria desempenhar este papel. Na passagem das Observações Filosóficas que consideramos aqui, Wittgenstein diz que aquilo que está chamando de gramática ocupa o lugar de uma teoria dos tipos, e por isto é pressuposta no uso de “Isto é A”: pressupõe-se que esteja dada a possibilidade de, por exemplo, esclarecer “refiro-me à cor, não à forma”.14 O mesmo argumento aparece no MS114, em uma anotação de 1932. Ali, entretanto, sua formulação já se apresenta nos termos utilizados nas Investigações: Lembre do fato de que os significados de palavras de vários tipos podem ser explicados pelo mesmo gesto ostensivo em relação ao mesmo corpo. Por exemplo: "aquilo (algo que eu vejo) se chama ‘madeira’”, “aquilo se chama ‘marrom’”, “aquilo se chama ‘barra’, aquilo se chama ‘suporte de caneta’”. O esclarecimento ostensivo é decisivo uma vez que [haja] apenas uma pergunta do tipo: "Qual dessas pessoas é o Sr. N" [“Qual cor é chamada de ‘roxo’”, “qual som é chamado de C alto”].15

                                                                                                                Wittgenstein, L. Philosophische Bemerkungen, 7. Wittgenstein, L. Philosophische Bemerkungen, 7. 15 Wittgenstein, Nachlass, Item 114, page 42 [jun 32]. Há, entretanto, uma diferença central entre esta passagem e o texto das Investigações: ali Wittgenstein 13 14

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O texto do parágrafo 6 das Observações Filosóficas tira consequências intrigantes desse argumento. A primeira delas é aquela retomada no debate sobre o artigo de Carnap, um ano mais tarde: toda explicação, mesmo a explicação ostensiva, já pressupõe a linguagem e se situa em meio a ela.16 Sendo assim, e este é o ponto mais intrigante, “em certo sentido” a linguagem não pode ser ensinada. Supor que se poderia fazê-lo seria o mesmo que supor que se pode usar a linguagem para sair dela. Essa conclusão paradoxal, de que a linguagem não pode ser ensinada, só pode ser estabelecida caso o ensino da linguagem envolva algo que só se poderia constituir por meio de definições ostensivas (a conexão entre linguagem e realidade de que Wittgenstein fala a Waismann em 1932). Este mesmo tema é retomado nas Investigações, com a diferença fundamental de que ali o paradoxo não é afirmado diretamente, mas sim associado à imagem da linguagem apreendida na citação das Confissões de Agostinho que abre o livro. Como veremos, esta mudança de perspectiva explicita uma mudança importante na compreensão de Wittgenstein sobre as implicações das dificuldades associadas aos gestos ostensivos. Os textos desse início dos anos 1930 apresentam também uma distinção entre os uso da expressão “esclarecimento ostensivo” [hinweisenden Erklärung], que tem um sentido mais geral, e as definições [Definition] e elucidações [Erläuterung] ostensivas, compreendidas naquele primeiro conceito. O parágrafo 35 do Big Typescript esclarece a relação entre estes conceitos:

                                                                                                                                                                                                                                          apresenta o problema de forma muito geral (e é transposto para outros contextos – cf. adiante): o gesto ostensivo “pode ser interpretado de várias maneiras em todos os casos”. 16 Cf. Wittgenstein’s Lectures, Cambridge, 1930–32, p. 23, 43 e 62. Moreno, A. R. (org.). Compreensão: Adestramento, Treinamento, Definição. Col CLE, v. 68, pp. 151-175, 2014.

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Se eu explico a palavra “lilás” eu aponto para uma mancha e digo “esta mancha é lilás”, este esclarecimento [Erklärung] pode ocorrer de duas maneiras – de um lado, como uma definição [Definition], que usa a mancha como um signo, e, de outro, como uma elucidação [Erläuterung]? E como este último é possível? Eu precisaria assumir que a outra pessoa está dizendo a verdade e vendo a mesma coisa que eu vejo. Um caso que efetivamente ocorre é o seguinte: em minha presença A diz a B que certo objeto é lilás. Eu ouço isto, e também havia visto o objeto, e penso comigo mesmo: “Agora eu tenho certeza de o que ‘lilás’ significa”. Ou seja, eu extraí um esclarecimento da palavra [Worterklärung] daquela descrição.

Os esclarecimentos podem, então, ser feitos de duas maneiras: por meio de definições, que seriam regras (gramaticais) que definem o uso de um termo (o equivalente às regras de substituição de Carnap), ou por meio de elucidações, que são sentenças em que o termo aparece e que mostram como ele é usado. A distinção entre estes dois casos é dada pelo contexto em que se situa o gesto ostensivo. Esse vocabulário apresenta a definição ostensiva como uma das maneiras de esclarecer o uso de um termo e como uma das possibilidades de uso do gesto ostensivo. E, então, nem mesmo o uso que se faz do gesto ostensivo, como definição ou como elucidação, é dado fora do contexto particular em que ele ocorre.17   II.1

                                                                                                                A caracterização da elucidação de um termo como uma forma de esclarecimento sobre seu significado por meio do uso deste termo em proposições já está presente no Tractatus e também ali este tema está diretamente associado à recusa por Wittgenstein da possibilidade de uma “teoria dos tipos” (Cf. T, 3.331-2). No parágrafo 3.263 do Tractatus lemos que “Os significados dos sinais primitivos podem ser explicados por meio de elucidações [durch Erläuterungen erklärt werden]. Elas são proposições que contêm os sinais primitivos. Portanto, só podem ser entendidas [verstanden werden] quando já se conhecem os significados desses sinais.”

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As mesmas dificuldades e argumentos a respeito dos gestos ostensivos encontrados nos textos de Wittgenstein do início dos anos 1930 se fazem presentes nas Investigações Filosóficas: fora de um contexto específico o gesto ostensivo é ambíguo e pode ser interpretado de várias maneiras18, a compreensão do gesto ostensivo pressupõe que se saiba o lugar que o termo definido ocupa na linguagem19 e, então, a definição ostensiva se situa já em meio à linguagem.20 Também a distinção entre esclarecimento e definição ostensivas está presente, ainda que com um ajuste de vocabulário, como veremos adiante. O debate mais conhecido dos problemas ligados ao gesto ostensivo nas Investigações se inicia no parágrafo 27b, a partir de uma referência aos jogos de linguagem dos parágrafos 2 e 8, nos quais não havia nada como perguntar o nome de algo. Isto e seu correlato, o esclarecimento [Erklärung] ostensivo, são, como poderíamos dizer, eles próprios um jogo de linguagem. Isto quer dizer: somos criados, treinados, para perguntar: “Como se chama isso?” – frente a que o nome é dado.21

A explicitação de que o esclarecimento ostensivo se situa já em meio à linguagem é apresentada aqui, já de início, a partir do vocabulário dos jogos de linguagem: ao caracterizar o esclarecimento ostensivo como um jogo de linguagem que aprendemos, para o qual somos treinados, e que, sendo assim, estava ausente no jogo descrito nos parágrafos 2 e 8, explicita-se que este tipo de procedimento não se situa antes da instauração de qualquer jogo de linguagem, ou fora da linguagem. O jogo de linguagem de esclarecer termos por meio de gestos ostensivos é aprendido e se situa em plena linguagem, não em

                                                                                                                L. Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, 28. L. Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, 30. 20 L. Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, 27. 21 L. Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, 27. 18 19

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seu limite. É isto que se pretende explicitar nos parágrafos 29 e 30, em que a contraposição entre definição e esclarecimento ostensivo é elaborada. uma definição ostensiva esclarece [erklärt] o uso – o significado – de uma palavra caso o papel que se espera que a palavra desempenhe na linguagem já esteja claro.22

A referência ao “papel” desempenhado pela palavra nos remete à relação entre a gramática e a “teoria dos tipos” tratada nas Observações Filosóficas. O uso dos esclarecimentos ostensivos pressupõe que seu papel já esteja dado de antemão. O início do parágrafo 28 fala não de esclarecimentos, mas de definições ostensivas e da suposição de que se pode definir de maneira ostensiva o significado dos nomes. Pode-se definir ostensivamente o nome de uma pessoa, o nome de uma cor, o nome de um material, o nome de um número, o nome de um ponto cardeal, etc. A definição do número dois “isto é chamado de ‘dois’” – enquanto se aponta para duas nozes – é perfeitamente exata.23

Wittgenstein não recusa a afirmação de que não há problema em se definir ostensivamente um termo. Sua intenção não é nem mostrar qualquer problema neste uso cotidiano, nem eliminá-lo. Neste contexto, o uso não envolve maiores dificuldades e é “perfeitamente exato”. Mas ele tem pressupostos e devemos explicitá-los. A suposição de que essas definições ou esclarecimentos ostensivos sejam capazes de estabelecer a conexão inaugural entre palavras e coisas (aquela conexão entre linguagem e realidade a que o

                                                                                                                22 23

L. Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, 30. L. Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, 28.

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registro de Waismann se referia), entretanto, é diferente do uso cotidiano em relação ao qual não há objeções. Neste caso não se poderia evitar as ambiguidades dos gestos ostensivos por meio de esclarecimentos que envolvam o uso de palavras (e que já pressupõem a linguagem). Afinal, sua pretensão é justamente estabelecer o significado dos primeiros termos de nosso vocabulário. Esta seria, enfim, uma tentativa de usar a linguagem (o gesto ostensivo) para sair dela (para conectá-la à realidade). O parágrafo 28 segue nos seguintes termos: – Mas como o número dois pode ser definido desta forma? Aquele a quem se dá a definição não sabe o que se quer chamar de “dois”; ele vai supor que “dois” é o nome dado a este grupo de nozes! – Ele pode supor isto; mas talvez ele não o faça. Ele pode cometer o equívoco oposto: quando eu quero assinalar o nome deste grupo de nozes, ele pode tomar isto como o nome de um número. E ele pode da mesma maneira tomar o nome de uma pessoa, que eu esclareço ostensivamente, como o de uma cor, de uma raça, ou mesmo de um ponto cardeal. Ou seja, uma definição ostensiva pode ser interpretada de várias maneiras em todos os casos.24

As dificuldades associadas à tentativa de definir de maneira ostensiva o nome de uma pessoa, de uma cor, etc, levam, assim, à conclusão geral de que “a definição ostensiva pode ser interpretada de várias maneiras em todos os casos”25, e que a eliminação desta ambiguidade se faz pela explicitação do contexto do jogo em meio ao qual se apresenta (e, portanto, de seu “lugar” em uma linguagem já dada). O debate sobre definições e esclarecimentos ostensivos nas Investigações é parte de um outro debate mais amplo, a respeito da “imagem da linguagem” associada à descrição feita por Agostinho, nas

                                                                                                                L. Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, 28. “Das heibt: die hinweisende Definition kann in jedem Fall so und anders gedeutet werden”, L. Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, 28. 24 25

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Confissões, de como teria aprendido a falar. Trata-se, então, de explicitar a impossibilidade de que se atribua ao gesto ostensivo o papel que lhe caberia nesta imagem da linguagem: o esclarecimento ostensivo, na medida em que se situa já em meio aos jogos de linguagem, não pode ser o procedimento por meio do qual se instaura algo equivalente a uma conexão inicial entre nomes e coisas, papel que a concepção presente na descrição de Agostinho parece pretender atribuir-lhe. No cotidiano de seu uso em meio à linguagem os gestos ostensivos não apresentam dificuldades e não há problemas em compreender o esclarecimento ostensivo do uso das palavras. As dificuldades aparecem quando se pretende que este esclarecimento, um jogo que aprendemos, desempenhe o papel de conexão inaugural entre nome e objeto, entre linguagem e mundo, de definidor último do significado, e, assim, de instaurador da própria linguagem. O sentido inicial desse conjunto de observações é afirmar que não se pode conceber que a “última explicação desta cadeia” [PU, 29] (de esclarecimentos do significado) seja apresentada por meio de gestos ostensivos, pois em algum momento parece que teríamos que definir palavras sem para isto utilizar outras palavras, conectando-as diretamente às coisas. O gesto ostensivo, entretanto, segundo a argumentação de Wittgenstein, pressuporia que o uso que se dará à palavra que se esclarece por este meio esteja de antemão claro. Ele pressupõe que algo na linguagem já esteja dado. Pressupõe, então, a própria linguagem, e não é capaz de explicar o que seria o último elo da cadeia de explicações que este tipo de descrição do aprendizado da linguagem inevitavelmente precisaria explicar. II.2 Segundo David Stern o paradoxo da ostenção (e outros paradoxos que se estruturariam a partir do mesmo tipo de Moreno, A. R. (org.). Compreensão: Adestramento, Treinamento, Definição. Col CLE, v. 68, pp. 151-175, 2014.

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argumentação)26 resulta de que se desconsidere o contexto de práticas e instituições em meio aos quais estes gestos se situam. A ostensão em particular, e a linguagem como um todo, sempre dependem de um contexto prático. Como resultado, definições ostensivas, tratem elas de objetos internos ou externos, sempre dependem de um contexto anterior de práticas e instituições.27

A princípio parece possível identificar a origem do paradoxo na ausência de referências a um contexto (de práticas e instituições). A relação entre a possibilidade de que o gesto ostensivo seja interpretado de várias maneiras e as “circunstâncias” [Umständen] em meio às quais se apresenta (tema que se tornará central no debate sobre seguir regras) aparece já no parágrafo 29: Se a palavra “número” é necessária na definição de “dois” depende de se sem essa palavra alguém o compreenderia de modo diferente do que eu desejo. E isto dependerá sem dúvida das circunstâncias nas quais ela é dada, e e de para quem eu a dou.28

                                                                                                               

26 David Stern identifica uma única estrutura de argumentação, que nomeia “paradox of ostensive definition” (Investigações, 28/85-7/163), em três outros momentos centrais do texto, e estruturando três outros paradoxos: o “paradox of explanation” (Investigações, 86c), o “rule following paradox” (Investigações, 198201) e o “paradox of intentionality” (Investigações, 433). Em todos estes casos a formulação do paradoxo seria equivalente àquela encontrada no parágrafo 28: explicações, regras e intenções podem ser interpretadas de várias maneiras em todos os casos. Mais ainda, estes paradoxos resultariam sempre de que definições ostensivas, regras, explicações e atribuições de intencionalidade pressuporiam “a prior context of practices and institutions” em geral ignorado. Os problemas surgiriam sempre da tentativa de atribuir significação a gestos ostensivos e regras, de compreender explicações e a atribuição de intencionalidade, de maneira independente de qualquer contexto de práticas compartilhadas. Cf. D. Stern, As Investigações Filosóficas de Wittgenstein. 27 D. Stern, As Investigações Filosóficas de Wittgenstein, 177. 28 L. Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, 29.

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Como na argumentação do início dos anos 1930, a forma como um gesto ostensivo é compreendido por alguém não dependeria apenas do próprio gesto, mas do contexto em que ele se situa, daquilo que “acontece antes e depois de apontar” para algo.29 Só assim o esclarecimento do uso de um termo poderia ser compreendido. Sem a referência ao contexto não se estabeleceria o “lugar” em que o termo apresentado se situa na linguagem. A novidade estaria em se tratar de um contexto de práticas e instituições. Essa identificação da ausência de contexto como origem das dificuldades com a definição ostensiva e com os gestos ostensivos em geral explicita alguns elementos importantes das Investigações. Antes de mais nada, ela deixa clara a relevância da reinterpretação da referência ao contexto, que deixa de ser concebido como o sistema de regras em meio às quais o uso de um termo se situa e passa a ser uma exigência de outra natureza, de explicitação das práticas efetivas em meio às quais se insere um termo.30 A compreensão desta mudança é uma condição a que se dimensione a distância a que o conceito de “jogos de linguagem” se situa do conceito de “gramática” presente nos trabalhos intermediários de Wittgenstein. Mais do que isso, a exigência da explicitação do contexto de práticas e instituições em meio às quais o gesto ostensivo se situa evidencia a posição central que a referência às nossas práticas efetivas passa a ocupar na reflexão de Wittgenstein, diferente da referência ao uso “determinado por regras” que aparece até o Big Typescript.31

                                                                                                                L. Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, 35. Este tema é desenvolvido em M. Engelmann, Wittgenstein’s Philosophical Development, p. 190 e segs. e J. Medina, The unity of Wittgenstein’s Philosophy, chap. 4. 31 M. Engelmann, Wittgenstein’s Philosophical Development, p. 115 e segs. 29 30

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No que se refere à estrutura dos argumentos apresentados nas Investigações, entretanto, esta leitura nos indica que eles seriam fundamentalmente os mesmos presentes já nos textos do início dos anos 1930, ainda que ajustados à compreensão de que o contexto exigido para a compreensão dos gestos ostensivos se apresenta como um conjunto de práticas e não como um sistema de regras gramaticais. A questão fundamental a respeito desta maneira de descrever a concepção apresentada nas Investigações é saber se não se poderia aplica também ao gesto em um certo contexto de práticas a mesma objeção que se aplicava inicialmente ao gesto ostensivo isolado. Ele não poderia ainda ser interpretado de várias maneiras em todos os casos? O gesto situado em um contexto particular de práticas passa a poder ser usado da maneira como Agostinho pretendia fazê-lo em seu texto das Confissões? Ele passa a ser capaz de estabelecer a conexão entre nome e objeto? Em outros termos, as “circunstâncias” aqui referidas são algo diferente da explicitação, por meio da linguagem, de que se trataria do nome de uma cor, ou forma? Ao referir o gesto ostensivo a um contexto pode-se enfim situá-lo fora da linguagem? No que se refere ao nosso uso cotidiano dos esclarecimento e definições ostensivas, o contexto é dado ou por nossas práticas, ou por meio da própria linguagem. Estes não seriam os casos problemáticos. É na situação original de aprendizado da linguagem que aparecem as dificuldades. Em que medida a referência ao contexto poderia eliminar a ambiguidade inerente ao gesto ostensivo nesta situação limítrofe? Em defesa de Agostinho, deve-se salientar que ele descreve esse aprendizado como composto por gestos claramente contextualizados na experiência da criança. De tal maneira que uma leitura da caracterização do gesto ostensivo nas Investigações que se restrinja à explicitação de um contexto em que se situa o uso não parece ser suficiente para que se compreenda nem as dificuldades encontradas na Moreno, A. R. (org.). Compreensão: Adestramento, Treinamento, Definição. Col CLE, v. 68, pp. 151-175, 2014.

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descrição de Agostinho, nem as diferenças entre os registros deste debate no início dos anos 1930 e o trabalho maduro de Wittgenstein (na medida em que a explicitação da necessidade de que se situe o esclarecimento ostensivo em um contexto já estava presente na crítica à definição ostensiva encontrada no Big Typescript). Mais do que simplesmente transitar para um vocabulário que passa a falar de jogos de linguagem em lugar de cálculo e gramática, mais do que apresentar a definição como parte do conjunto de elucidações de um termo ou de uma sentença, o que se apresenta como grande novidade e que marca a distância entre as Investigações e as concepções sustentadas por Wittgenstein até o Big Typescript é o aparecimento de um novo uso do gesto ostensivo que não é nem esclarecimento, nem definição ostensiva. Já no início das Investigações Wittgenstein fala de treino [Abrichtung] e ensino ostensivo [hinweisendes Lehren der Wörter]. A compreensão desta novidade pressupõe que situemos o debate sobre gesto ostensivo no contexto de um outro debate a ele associado, sobre o aprendizado da linguagem, e que explicitemos a relação construída por este meio entre linguagem e prática.

III.1   O tratamento dado por Wittgenstein nas Investigações à afirmação paradoxal de que não se poderia ensinar a linguagem deixa claro seu distanciamento em relação a Agostinho e aos textos do início dos anos 1930. Após tratar do esclarecimento ostensivo ele retoma o debate com a citação de Agostinho e a associa à concepção de que a Moreno, A. R. (org.). Compreensão: Adestramento, Treinamento, Definição. Col CLE, v. 68, pp. 151-175, 2014.

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linguagem não poderia, em certo sentido, ser ensinada. Wittgenstein afirma que a descrição apresentada nas Confissões pressuporia que a linguagem já fossa dada, e o aprendizado nela descrito equivaleria a aprender uma segunda língua. E agora podemos dizer, creio: Agostinho descreve o aprendizado da linguagem humana como se a criança chegasse a um país estrangeiro e não compreendesse a língua desse país; isto é, como se ela já tivesse uma linguagem, só que não essa. Ou também: como se a criança já pudesse pensar, e apenas não pudesse falar. E “pensar” significaria aqui qualquer coisa como : falar consigo mesmo.32

Essa conclusão, derivada da compreensão de que o esclarecimento ostensivo se situa já em meio à linguagem, aparece nas Investigações de uma forma relativizada: não é possível conceber que a linguagem seja ensinada por meio de definições ostensivas, e, então, quem concebe que isto deveria ser deste modo, como o texto alega ser o caso nas Confissões, seria obrigado a concluir que não se pode ensinar a linguagem, mas apenas uma outra linguagem. O texto das Confissões não é de todo estranho a essa maneira de falar. Ele mesmo descreve a indicação ostensiva utilizada para relacionar nomes e coisas como sendo a “linguagem natural de todos os povos”, e, então, o aprendizado da linguagem é precedido por algo que já é uma linguagem, natural e universal. O problema apresentado ao texto de Agostinho é que ainda que se aceitasse que toda palavra tem um significado, concepção problematizada nos primeiros parágrafos do texto, ele deixaria sem resposta a pergunta sobre como as duas ordens que o aprendizado da linguagem consistiria, segundo ele, em relacionar (nomes e coisas) seriam inicialmente associadas. A ambiguidade inerente à definição

                                                                                                                32

L. Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, 32.

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ostensiva de uma palavra só seria eliminada no interior da linguagem propriamente dita. A instauração da linguagem não poderia, então, se dar da maneira descrita por Agostinho. De tal modo que aquilo que Agostinho nos apresenta como descrição de sua experiência não parece passível de ser assimilado desta forma. O que ele descreve como um fato é uma impossibilidade: definições ostensivas não são capazes de estabelecer a significação de uma palavra sem o recurso a outras palavras ou a um contexto já linguístico, de jogos de linguagem. O papel do paradoxo que se arma aqui é explicitar a inadequação desta descrição e a necessidade de uma outra que ocupe o seu lugar. III.2 Já no início das Investigações, no mesmo parágrafo em que Wittgenstein contrapõe o estudo das formas primitivas de uso das palavras ao conceito de significado (na medida em que este envolve em névoa o funcionamento da linguagem e impossibilita uma visão clara), é apresentada uma outra contraposição, entre esclarecimento [Erklarung] (do significado) e treino [Abrichtung]. A criança usa essas formas primitivas de linguagem quando aprende a falar. Aqui o ensino da linguagem não é esclarecimento, mas treino.33 A referência ao treino nos aponta para aquilo que é anterior à constituição dos jogos de linguagem de perguntar pelo significado e de apresentar esclarecimentos ostensivos. A introdução do conceito de “treino” possibilita a Wittgenstein se contrapor à concepção paradoxal de que a linguagem não pode ser ensinada. Não haveria paradoxo na descrição do aprendizado da linguagem como um treino:

                                                                                                                33

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Uma parte importante do treino [Abrichtung] consistirá em o professor apontar para os objetos, dirigindo a atenção da criança para eles, e ao mesmo tempo pronunciar uma palavra; por exemplo, a palavra “lajota”, quando ele mostra este objeto. (Eu não quero chamar isto “esclarecimento ostensivo” ou “definição” [“hinweisende Erklärung”, oder “Definition”], pois a criança não pode ainda perguntar pelo nome. Vou chamá-lo de “ensino ostensivo de palavras”. – Digo que isto constitui uma parte importante do treino porque é assim com os seres humanos; não porque não se poderia imaginar de uma outra maneira.34

O esclarecimento e a definição ostensiva estão ausentes desse contexto primitivos. A criança não sabe perguntar pelo significado – este é um jogo aprendido posteriormente. O ensino da linguagem é apenas treino. Mas porque o ensino ostensivo não envolveria as mesmas dificuldades apontadas por Wittgenstein nos esclarecimentos ostensivos? Em que a referência ao treino afeta o problema? A exigência de um contexto continua sendo o elemento central, mas não se trata aqui de um contexto de jogos de linguagem, em que esteja em se apresente qualquer coisa que a princípio se poderia considerar como “o significado” de uma palavra. Há, segundo Wittgenstein, apenas um ensino ostensivo das palavras [hinweinsendes Lehren der Wörter], no qual a associação entre um nome e um objeto é acessória e desnecessária, e em que “compreender” não corresponde a estabelecer associações deste tipo, mas a agir de determinada maneira. Aqui se situa a diferença entre o treino e o esclarecimento: não se trata de ensinar uma conexão entre nome e coisa, mas de ensinar a fazer algo, a agir. Este treino se insere integralmente no domínio da ação, é uma prática.

                                                                                                                34

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A criança é simplesmente criada para executar essas ações, para usar essas palavras ao executá-las, e para reagir assim às palavras dos outros.35

Descrito dessa maneira, o aprendizado da linguagem não envolve nem a explicação, nem o recurso a nada que pudesse ser caracterizado como seu significado. Envolve apenas treino e uso (e descrição do uso substitui a descrição do significado). Situa-se inteiramente no contexto de uma prática que, sendo o último elo da cadeia, “cuida de si própria”.36 A diferença entre treino e explicação ostensiva consiste em que a efetividade do treino pressupõe também um contexto, mas neste caso se trata explicitamente de um contexto de práticas e ações, como assinalado por D. Stern. Pressupões-se que este treino esteja inserido em meio a um conjunto de práticas, mas não que ele esteja já em meio à linguagem. A criança é treinada para agir e para reagir assim. Usar palavras se constitui como parte de uma prática, é uma ação entre outras. Não se trata de afirmar que o esclarecimento ostensivo não exija também um contexto de práticas, mas de explicitar que no caso daquilo que é caracterizado como treino ostensivo, estas são práticas não estruturadas como linguagem – e que, assim, a linguagem se constitui ela própria como prática e como parte de nossas práticas. Enquanto nos textos do período intermediário o contexto em que a definição ostensiva se insere é um sistema de regras que compõe o que ali se nomeia o cálculo ou a gramática, nas Investigações Wittgenstein “enfatiza que o pressuposto de uma definição ostensiva não é mais do mesmo, mais definições ou regras”.37

                                                                                                                L. Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, 6. L. Wittgenstein, Über Gewißheit, 139: “Praxis muss für sich selbst sprechen”. 37 J. Medina, The unity of Wittgenstein’s Philosophy, p. 170. 35 36

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O texto das Investigações nos mostra que nesse contexto primitivo, anterior ao jogo do esclarecimento ostensivo, se situa algo que, inequivocamente, não pode ser confundido com a construção de associações entre nomes e objetos descrita por Agostinho nas Confissões. Nos termos do parágrafo 419 de Zettel: Qualquer esclarecimento tem seu fundamento no treino. (Os educadores devem se lembrar disto).38

Naquilo que se ensina por meio do treino não precisa estar presente nenhuma relação de representação ou substituição (de uma coisa por um nome). III.3 Em lugar de descrever a linguagem como uma estrutura aposta ao mundo com o qual constitui uma relação de significação, cada palavra ligada com aquilo que por meio dela se nomeia, a linguagem se apresenta para nós, nas Investigações, como prática: fazemos coisas com palavras, palavras são como ferramentas, a linguagem é uma prática, de tal modo que não se coloca como problema relacionar nome e objeto, mas compreender como esta prática se instaura, como aprendemos certos usos, como somos treinados para fazer coisas com palavras. Essa descrição do aprendizado da linguagem a apresenta como uma outra coisa, diferente do que se apreendia no texto de Agostinho. O treino precede qualquer jogo de esclarecimento e definição – e se situa inteiramente no terreno da prática. Seu resultado é uma ação, não uma associação entre o que se supõe um nome e seu significado. Antes do jogo de definições e esclarecimentos ostensivos há uma prática em

                                                                                                                38

L. Wittgenstein, Zettel, 419.

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meio à qual não cabe falar de associação ou relação entre palavra e significado, entre regra e ação. Não se trata aqui de explorar aqui esse recurso à prática na filosofia madura de Wittgenstein – um tema central e bastante delicado. Mas a compreensão da radicalidade do recurso ao “treino” nas Investigações só se explicita em meio à compreensão de sua recusa da precedência da definição e do esclarecimento ostensivos na compreensão da linguagem, assim como da suposição ligada a esta, de que o aprendizado da linguagem consiste na apreensão de uma lista de associações entre palavras e coisas. O que se nomeia aqui de “treino” se apresenta no avesso da descrição de Agostinho.   REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA CARNAP, R. “Die Physikalische Sprache als Universalsprache der Wissenschaft". Erkenntnis 2. Bd., pp. 432-465, 1931. ENGELMMAN, M. Wittgenstein’s Philosophical Development. New York: Macmillan Palgrave, 2013. HINTINKKA, J. “Ludwig’s apple tree: on the philosophical relations between Wittgenstein and the Vienna Circle”. In: F. Stadler (ed.), Scientific Philosophy: Origins and Developments, Kluver Academic Publisher, (1993), p. 27-46. MEDINA, J. The unity of Wittgenstein’s Philosophy. Albany: SUNY Press, 2002. NEDO, M. (hrsg.). Ludwig Wittgenstein: ein biographisches Album. Munchen: Beck, 2012.

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