Escola de Àbá: política curricular para a promoção da igualdade racial no município de Juiz de Fora/MG

June 4, 2017 | Autor: Mônica P.Santos | Categoria: Ethnic and Racial Studies, Inclusive Education
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1 SANTOS, Mônica Pereira dos e SANTIAGO, Mylene Cristina. Escola de Àbá: política curricular para a promoção da igualdade racial no município de Juiz de Fora/MG. In: IX Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sudeste. Pesquisa em Educação no Brasil: balanço do século XX e desafios para o século XXI. São Carlos/SP, 2009 a (versão digital).

Escola de Àbá: política curricular para a promoção da igualdade racial no município de Juiz de Fora/MG

Introdução

No ano de 2001 vimos emergir no espaço público e na agenda política do país o debate sobre oportunidade, necessidade e tipologia de políticas públicas de promoção da igualdade racial, em virtude da realização da III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban, África do Sul. Na condição de signatário, o Brasil assumiu, desde então, o compromisso de criar políticas de ações afirmativas, que possibilitem ressarcir a população negra dos malefícios causados pela escravidão reconhecida, nesta conferência, como crime de lesa-humanidade. Em 2003, reiterando os princípios da Constituição Federal (1988) que em seu artigo 242 § 1º assegura que: “o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro”; foi sancionada a Lei 10.639, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9394/96, estabelecendo a inclusão no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura AfroBrasileira’. A partir desta lei, tornou-se obrigatório no currículo escolar da educação básica, conforme art. 26-A, § 1º, o “estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”. No embalo desta Diretriz, a Secretaria de Educação de Juiz de Fora/MG através da Supervisão de Atenção à Educação na Diversidade (SAED)1, lançou em 2007, o projeto Escola de Àbá para oferecer às escolas municipais subsídios para a implantação do ensino de História e Cultura Afro-brasileira, em conformidade com a referida lei. Àbá é uma palavra de origem Iorubá que se traduz como esperança. O projeto Escola de Àbá, está apresentado em um CD-Rom, que foi distribuído às escolas municipais de Juiz de Fora. O projeto recebeu esse nome por surgir em um contexto de confiança na possibilidade de novas relações sociais baseadas em conceitos de igualdade e justiça desenvolvidas, principalmente, no espaço escolar. Buscando romper com práticas excludentes, discriminatórias e racistas em nossas escolas, o projeto Escola de Àbá propõe uma escola que contemple a diversidade para além da questão racial, investindo nas múltiplas identidades presentes nos processos de ensino e aprendizagem. 1

SAED: responsável por discussões referentes à inclusão de pessoas com deficiência, questões raciais e de orientação de gênero nas escolas.

2 SANTOS, Mônica Pereira dos e SANTIAGO, Mylene Cristina. Escola de Àbá: política curricular para a promoção da igualdade racial no município de Juiz de Fora/MG. In: IX Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sudeste. Pesquisa em Educação no Brasil: balanço do século XX e desafios para o século XXI. São Carlos/SP, 2009 a (versão digital).

Além de discutir ações educacionais articuladas com outras instâncias para a promoção da igualdade racial na escola e na sociedade, o conteúdo do projeto Escola de Àbá destaca a importância de compreender a configuração geográfica, econômica, social, histórica, cultural e religiosa dos países da África; denuncia práticas discursivas e ideológicas preconceituosas e discriminatórias; define expressões e vocábulos, tais como: preconceito, racismo, discriminação; apresenta indicações bibliográficas e gráficos estatísticos que demonstram a desigualdade racial no Brasil, e; indica vultos de pessoas negras que influenciaram a História do Brasil e do Mundo. A pretensão da Secretaria de Educação, ao elaborar o projeto Escola de Àbá, era proporcionar apoio e assessoria técnica às escolas, no processo de introdução dos estudos da História e Cultura Afro-brasileira. No início de 2008, em reunião com os gestores escolares, foi solicitado relatório das atividades desenvolvidas no contexto escolar, voltadas para questões étnico-raciais. Através da análise dos relatórios enviados, percebemos que, majoritariamente, as escolas que desenvolveram alguma atividade referente à temática da racialidade2, assumiram iniciativas voltadas para a comemoração da Semana da Consciência Negra, em função da data de 20 de novembro, determinada pela Lei 10.639, como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’. Dessa forma, inferimos que as ações voltadas para a racialidade têm dia e mês determinados pelo Estado para visibilidade e discussão política. Algumas escolas, entretanto, manifestaram iniciativas diferenciadas em nosso ver, que iriam mais no sentido do que consideramos como uma perspectiva inclusiva de implementação de política pública ao lançarem mão de estratégias mais duradouras e que compreendiam um processo mais aprofundado de conscientização e discussão sobre as questões raciais. Em nosso ver, tais escolas adotaram uma estratégia de descolonização do currículo (SILVA, 1996) ao proporem, entre outras ações, fóruns de discussão e a elaboração de novos materiais que permitissem aos seus atores refletirem sobre as visões e representações alternativas dos grupos dominados. Entre essas estratégias, destacamos a desconstrução dos significados e representações envolvidos nas chamadas datas comemorativas. Para Silva (1996), tais “datas comemorativas” ilustram o processo de colonização do currículo na medida em que tendem a perpetuar precisamente as representações de grupos privilegiados e, portanto, as relações de dominação com as quais essas representações estão relacionadas. É como se a existência das datas nos fizessem crer que há uma maioria branca e generosa, que “abre espaço” para o diálogo com outras etnias, e “até mesmo” os celebra ao reservar-lhes tais datas.

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Optamos por essa nomenclatura em vez de racialismo, em função do sentido do sufixo “ismo”, que conforme assinala Houaiss em seu dicionário, é usado em medicina "para designar uma intoxicação de um agente obviamente tóxico", ou seja, seu significado está associado à patologia ou doença.

3 SANTOS, Mônica Pereira dos e SANTIAGO, Mylene Cristina. Escola de Àbá: política curricular para a promoção da igualdade racial no município de Juiz de Fora/MG. In: IX Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sudeste. Pesquisa em Educação no Brasil: balanço do século XX e desafios para o século XXI. São Carlos/SP, 2009 a (versão digital).

Referencial teórico

A proposição, por vezes prescritiva, ao sistema escolar do compromisso pela promoção da igualdade racial nos remete às indagações: A inserção da discussão étnica no campo educacional é suficiente para promover a igualdade racial e eliminar atitudes discriminatórias no espaço escolar e na sociedade, ou seja, é possível transformar determinações legais em práticas efetivas? Em certa medida, estas indagações refletem uma estrutura explicativa que vimos elaborando desde o final dos anos 80 (BOOTH, 1981), referente à compreensão dos processos ‘trialéticos’3 de inclusão/exclusão, que se manifestam por meio de três dimensões, as quais servem tanto como categorias de análise de práticas sociais e institucionais quanto como ‘palco’ de ações sociais: a dimensão da criação de culturas, a do desenvolvimento de políticas e a da orquestração das práticas de inclusão/exclusão no interior das instituições e como pano de fundo de políticas públicas. Ao falarmos na dimensão das culturas como categoria de análise e estrutura explicativa, referimo-nos aos processos valorativos (ou desvalorativos) de sujeitos, grupos e instituições, em jogo no cotidiano institucional, e que são produzidos e induzidos pelas políticas públicas e pelas inter-relações que ali se manifestam, oriundas ou não da compreensão que os atores sociais têm das políticas (em outras palavras: podem fundamentar-se, também, não no conhecimento de que possam dispor sobre as políticas, mas puramente em suas próprias percepções e experiências pessoais). Justificativas, crenças, valores, percepções, são exemplos da categoria das culturas como palco de acontecimentos nas instituições. Quando falamos nas políticas como categoria de análise, referimo-nos ao que é abertamente expresso e normatizador da vida da instituição e de seus respectivos atores. Como palco de ação, as normas, o próprio currículo em sua versão ‘oficial’, as disciplinas e suas ementas, as regras disciplinares, as circulares internas ou externas, exemplificam a dimensão do desenvolvimento das políticas, sempre como produto do interjogo entre as políticas públicas e seus complexos processos de implementação (ou sabotagem, ou boicote) no plano das práticas institucionais. 3

Inspiramo-nos aqui nas idéias de GREGORY, 2005, segundo o qual “Aderir à trialética é um procedimento de inclusivismo, de inter e translateralidade” (p.38) e ALOUAT (2002), para quem “A «trialética» é melhor adaptada à noção de complexidade que, por natureza, é irredutível a um modelo binário ou unívoco; favorece a manutenção de paradoxos pela aceitação da coexistência de antagonismos. » (apud CORTELAZZO, 2000, p. 187).

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Quando nos referimos às práticas como categoria de análise, queremos dizer o que efetivamente acontece no dia-a-dia das instituições, inspiradas ou não pelas políticas e pelas culturas, mas certamente relacionadas a estas. Como exemplo, citamos o estilo administrativo da escola, as aulas oferecidas em suas respectivas particularidades relativas às matérias, aos professores, às maneiras como os alunos são agrupados, etc. O referencial teórico aqui adotado, assim, estabelece diálogos com importantes autores contemporâneos, em particular aqueles conhecidos como autores dos Estudos Culturais. Isto porque, conforme nos diz Sanches (1999, p.193), Os estudos culturais não se definem por um método exclusivo, um objecto de estudo próprio, mas pela diversidade das abordagens e dos temas. É nesta linha que consideramos nosso tema de interesse como relevante e variado: ele abrange processos micro, meso e macro relativos à Educação, a saber: as subjetividades (micro), os grupos identitários e as questões institucionais (meso) e as políticas públicas (macro). Daí a importância de desenvolvermos a estrutura conceitual que aqui apresentamos. Cremos que a mesma permite contemplar a todos estes aspectos em movimento, mas sem descaracterizá-los ou hiper dimensioná-los em detrimento de um ou outro, mas atribuindo-lhes o peso mais equilibrado possível no que tange à compreensão e explicação de tais processos em coexistência em dada arena educacional. Assim, acreditamos que a estrutura explicativa que adotaremos possibilita uma abordagem analítica que rompe com uma compreensão e análise fragmentadas e a verticalizadas dos processos de formulação e implementação de políticas públicas na esfera educacional.

Objetivo

O presente artigo relata um estudo de caso que teve por objetivo avaliar, em caráter exploratório, os impactos das políticas relativas à racialidade em uma escola da rede pública municipal de Juiz de Fora. A finalidade do estudo exploratório foi servir como preparativo para um estudo maior, em desenvolvimento no doutorado de uma das autoras, orientado pela segunda autora. Nosso objetivo, com o término do doutoramento, será o de ter analisado, compreendido e avaliado, à luz de nosso referencial teórico-explicativo relativo aos processos trialéticos de exclusão/inclusão, os impactos das diretrizes do projeto Escola de Àbá no processo de implementação do ensino de História e Cultura Afro-brasileira, em conformidade com a Lei 10.639/2003, na rede municipal de Juiz de Fora/MG.

5 SANTOS, Mônica Pereira dos e SANTIAGO, Mylene Cristina. Escola de Àbá: política curricular para a promoção da igualdade racial no município de Juiz de Fora/MG. In: IX Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sudeste. Pesquisa em Educação no Brasil: balanço do século XX e desafios para o século XXI. São Carlos/SP, 2009 a (versão digital).

Metodologia

Utilizamos

o

paradigma

qualitativo

de

pesquisa

(ALVES-MAZZOTTI

e

GEWANDSZNAJDER, 1999) no presente relato, posto que tratamos, majoritariamente, com dados verbais e que interessava-nos, neste momento, captar processos de ordem mais subjetiva do que objetiva. O delineamento do estudo é do tipo exploratório, que segundo Babbie (1986, p.83) serve majoritariamente a três propósitos: (1) simplesmente satisfazer à curiosidade do pesquisador e desejo de melhor compreensão, (2) testar a viabilidade de se levar a cabo um estudo mais aprofundado e (3) desenvolver os métodos a serem aplicados em um estudo mais aprofundado. Para efeitos do estudo aqui narrado, entre as 98 escolas municipais de Juiz de Fora, elegemos a Escola Municipal Mandela4, que desde 1999, portanto quase uma década antes do Projeto Escola de Àbá ter sido proposto, já vinha desenvolvendo um projeto voltado para a diversidade cultural, cujos detalhes apresentaremos na próxima seção deste artigo. Assim sendo, além da leitura e análise de conteúdo do CD-Rom que contém a proposta do Projeto Escola de Àbá, fizemos uma entrevista não estruturada (idem) com a diretora da escola Mandela, que nos permitiu o uso de gravador, para apreendermos o trabalho que esta escola vem desenvolvendo no sentido de construir uma proposta curricular voltada para a diversidade cultural. A entrevista foi realizada em abril de 2008 e durou aproximadamente duas horas. Uma vez gravada, a mesma foi transcrita na íntegra e seus conteúdos foram analisados com o auxílio do software N-Vivo, que permite a codificação e a categorização de dados verbais. Além deste procedimento, em função do próprio delineamento do estudo (de caso e exploratório), utilizamos os conteúdos da entrevista em diversos momentos do presente artigo como base ilustrativa da análise preliminar que fundamentou o presente artigo e o planejamento e a execução do doutorado em andamento.

Desenvolvimento

Desde o ano de 1999, a Escola Municipal Mandela, vem desenvolvendo o projeto “África-Brasil” que reúne atividades voltadas para a comunidade. Através do teatro, da dança, do artesanato e, principalmente, da criatividade dos alunos da escola, os contos e as lendas africanas ganham novas interpretações. E o papel do negro no Brasil torna-se objeto de 4

Nome fictício.

6 SANTOS, Mônica Pereira dos e SANTIAGO, Mylene Cristina. Escola de Àbá: política curricular para a promoção da igualdade racial no município de Juiz de Fora/MG. In: IX Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sudeste. Pesquisa em Educação no Brasil: balanço do século XX e desafios para o século XXI. São Carlos/SP, 2009 a (versão digital).

discussão. Esse projeto foi iniciado a partir da pesquisa de mestrado da professora Sabrina5, que apontou que as crianças tinham baixa estima por conta da não aceitação étnico-racial, o que acabava afetando o desempenho escolar e as relações sociais no colégio. A Antropologia enquanto disciplina foi inserida no currículo em 2003, mas desde 1999 a escola trabalhava questões referentes à diversidade cultural, direitos raciais e formação de identidade. O trabalho desenvolvido pela escola tem acompanhado a produção editorial de materiais que contemplam diferentes culturas, nas palavras de Sabrina: “a produção editorial está muito boa, mas não se pode discutir somente a questão racial negra, pois existem outras etnias e culturas, inclusive abordadas através de contos (Ásia, União Soviética, Ameríndios, Europa) que demonstram a existência de uma diversidade cultural muito grande. A escola investe muito em bibliografias que apresentam o mundo em concepções diferentes e considera que o trabalho tem dado muito resultado no sentido de mostrar que há multiplicidade de sentidos construídos de acordo com a pertinência a determinados grupos culturais. Esses temas são discutidos nas duas aulas semanais de Antropologia que os alunos têm desde o ano 2003, na Educação Infantil e no Ensino Fundamental. O objetivo dessas aulas foi criar um tempo específico para discutir não apenas as questões raciais, mas a diversidade do homem no mundo de acordo com sua cultura. Os temas discutidos nas aulas de Antropologia influenciam as demais aulas e disciplinas. As ementas são construídas com os alunos”. A ampliação da questão racial para outras culturas foi um passo importante feito pela escola, no sentido de buscar superar a essencialização discursiva pautada na diferença racial. Nesse sentido, Giroux (1997) aponta a necessidade de redefinição do papel do conhecimento dentro dos contextos de estudos culturais e curriculares. Destaca a necessidade de trabalhar não apenas com as culturas subordinadas, mas também trabalhar sobre elas, não apenas confirmando suas experiências, como também interrogando-as de maneira crítica para resgatar seu pontos fortes e fracos. Em relação à Lei 10639/2003 e a proposta da Secretaria da Educação de Juiz de Fora – Projeto Escola de Àbá, Sabrina considera como iniciativas importantes, embora a escola não tenha precisado de tais ações enquanto lei para perceber a necessidade de trabalhar com as questões da racialidade, considerando que a maioria dos alunos é parda e negra. Ela questiona: Por que iríamos nos calar diante dos problemas relacionados ao preconceito e à discriminação racial dentro da própria escola e na sociedade? As proposições da Lei 10639 e da Proposta de Àbá já faziam parte do cotidiano escolar. Por conta do processo vivenciado na escola, as propostas dessas duas ações já haviam sido superadas, através da percepção de que a questão racial não pode estar sozinha enquanto 5

Nome fictício.

7 SANTOS, Mônica Pereira dos e SANTIAGO, Mylene Cristina. Escola de Àbá: política curricular para a promoção da igualdade racial no município de Juiz de Fora/MG. In: IX Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sudeste. Pesquisa em Educação no Brasil: balanço do século XX e desafios para o século XXI. São Carlos/SP, 2009 a (versão digital).

discussão na escola. “A escola chegou a vivenciar situações de conflito ao perceber que os adolescentes se reconheciam enquanto negros e pardos, no entanto, nenhum deles dizia que era descendente de alguém que havia sido escravo, assim o grupo descobriu a existência de uma memória de ressentimento6 nos alunos afro-descendentes. Ao constatar que o sofrimento da escravidão e a condição de ter um antepassado escravo trazia uma memória de ressentimento, a escola teve que mudar a maneira de focalizar o currículo e passar a trabalhar com a diversidade cultural em um contexto mais amplo”. Acrescenta que “os alunos da sétima série chegaram a verbalizar que não queriam mais falar de África, pois o assunto estava fazendo mal a eles, após escutá-los foi perceptível que o que fazia mal era o tratamento pouco sutil na questão do escravismo, a escola passou a trabalhar com a literatura, mito, história, lenda e as questões estéticas da cultura afrobrasileira. As questões do sofrimento, da tortura, do não respeito à humanidade no período da escravidão deixaram de ser o foco”. Este relato nos remete a Bourdieu e suas reflexões sobre cultura legítima e cultura dominada.

O desconhecimento do que a cultura legítima e a cultura dominada devem à

estrutura de suas relações simbólicas, isto é, à estrutura da relação de dominação entre as classes, afirma Bourdieu (2008, p. 45), inspira tanto a intenção da cultura popular de “liberar” as classes dominadas dando-lhes os meios de se apropriar da cultura legítima, quanto o projeto populista de decretar a legitimidade do arbitrário cultural das classes dominadas. Essa contradição da ideologia dominada expressa na prática ou no discurso das classes dominadas (sob a forma, por exemplo, de uma alternância entre o sentimento da indignidade cultural e a depreciação agressiva da cultura dominante) pode sobreviver às condições sociais que a produzem. Assim o testemunham a ideologia e mesmo a política cultural das classes ou das nações outrora dominadas, que oscilam entre a intenção de recuperar a herança cultural legada pelas classes dominantes, e a intenção de reabilitar as sobrevivências da cultura dominada. Ao refletir sobre a proposta do CD Escola de Àbá, Sabrina observa que: “esse material tem uma abordagem com muito resquício do movimento negro, que parte da denúncia. Em um primeiro momento tal abordagem pode ser até necessária, mas estruturar um projeto pedagógico pela via da denúncia ou da rejeição dos fatos e não pela reflexão em relação à filosofia do pensamento africano, à história africana, às manifestações culturais enquanto mecanismo simbólico pode implicar no risco da não adesão ao projeto. Através da experiência

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O termo memória de (res)sentimento surgiu do colóquio internacional realizado nos meses de maio e junho de 2000, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, reunindo, em sua maioria, pesquisadores desta universidade e da Universidade de Paris I.

8 SANTOS, Mônica Pereira dos e SANTIAGO, Mylene Cristina. Escola de Àbá: política curricular para a promoção da igualdade racial no município de Juiz de Fora/MG. In: IX Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sudeste. Pesquisa em Educação no Brasil: balanço do século XX e desafios para o século XXI. São Carlos/SP, 2009 a (versão digital).

da escola percebi que os caminhos que estão sendo apontados por algumas políticas provocam mais ruptura do que adesão”. No que tange à compreensão dos processos de elaboração de políticas públicas, esta observação nos parece de extrema importância, na medida em que expressa a necessidade de se criar estratégias de implementação de políticas (no nível macro) que contemplem o seu acompanhamento e a sua própria avaliação (nos níveis meso e micro). Isto significa dizer, conforme a estrutura explicativa que aqui propomos, que não há políticas que possam perdurar se não se atentar para o desenvolvimento de culturas que lhes sirvam de base, e práticas que (nos níveis micro, meso e macro) lhes inspirem uma consolidação flexível, pois de outra maneira, a mesma política pode constituir um “tiro no pé”: tornar-se excessivamente prescritiva, cristalizadora e mantenedora – ou mesmo criadora – de privilégios, o que contradiria o seu próprio objetivo como política de combate às desigualdades.

Considerações finais Neste artigo relatamos um estudo de caso que teve por objetivo avaliar, em caráter exploratório, os impactos das políticas relativas à racialidade em uma escola da rede pública municipal de Juiz de Fora. A Escola de Àbá, de acordo com seus idealizadores, é uma tentativa de descolonização do currículo, sua proposta visa superar um caráter conteudista7. Como Projeto, ela é um exemplo de política pública levada ao plano executivo institucional e que tinha, teoricamente, por conta de uma consistência política entre município e federação, tudo para ser implementada sem maiores problemas. Entretanto, percebemos que a complexidade do entrelaçamento das dimensões (culturas, políticas e práticas) que aqui propomos para explicar e compreender diferentes níveis de realidade (micro, meso e macro), é muito maior do que o que aparenta ser. Por exemplo, no caso aqui analisado, observamos que as práticas pedagógicas desenvolvidas a partir da noção de diferença e diversidade cultural, como no caso do projeto Escola de Àbá, geralmente estruturam os problemas curriculares de forma a incluir referências aos conflitos e tensões que existem entre os diferentes grupos. Contudo, em vez de discutir com os estudantes as formas nas quais os diferentes grupos lutam dentro das relações de poder e dominação, estas abordagens subordinam as questões de luta e poder à tarefa de desenvolver metas pedagógicas que fomentem o respeito e entendimento mútuo entre grupos culturais 7

Por caráter conteudista nos referimos à perspectiva curricular preocupada tão somente com a inserção e “passagem” dos conteúdos de cada matéria de modo acrítico, tendo como peso maior de qualidade da educação a quantidade de assuntos vistos e o longo de um período acadêmico, muito inspirados nas supostas necessidades geradas pelo vestibular, em detrimento da priorização de conteúdos menores em quantidade, mas melhores em profundidade de discussões, reflexão e apropriação.

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diversos. É como se apenas o olhar tecnicista prevalecesse, em nome da defesa de princípios moralistas de paz, que, perigosamente, beiram novas práticas de homogeneização de valores e inculcação ideológica (a paz de quem? para quem? conforme valores prescritos por quem?) Desse modo, concluímos, a título provisório, que a implantação curricular de conceitos e saberes culturais por força de lei, como no caso da Lei 10.639/2003, ou através de realização de projetos orientados pela Secretaria de Escola (Escola de Àbá), em que pese serem iniciativas necessárias e complementares a ações de porte mais contundentes, não sejam ações suficientes para romper com processos de exclusão e promover uma cultura de combate às desigualdades. Concluímos, ainda, não apenas pela viabilidade de um estudo em maior escala, em nível de doutoramento, sobre os assuntos aqui tratados, como também pela relevância do mesmo, uma vez que a abordagem de análise aqui adotada busca ultrapassar as fronteiras da unicidade de olhares para a compreensão de fenômenos sociais, adotando o olhar das probabilidades e da descolonialização: na teoria e na prática. Referências Bibliográficas ALVES-MAZZOTTI, A. e GEWANDSZNAJDER, F. O Método nas Ciências Naturais e Sociais. Pesquisa Quantitativa e Qualitativa. São Paulo: Thomsom, 1999. BABBIE, E. The practice of social research. 4th ed. Belmont, Wadsworth Publ., 1986 BOOTH, Tony. Integrating Special Needs Education. London: Routledge, 1981. BRASIL. Lei n.9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial República Federativa do Brasil. Brasília, 1996. _______ Constituição da República Federativa do Brasil. 29ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2002. ______ Lei 10639. MEC. 2003. Disponível em http://www.mec.gov.br/home/legislação CORTELAZZO, Iolanda Bueno de Camargo. Colaboração, Trabalho em equipe e as Tecnologias de Comunicação: Relações de Proximidade em Cursos de Pós-Graduação. Tese de Doutorado - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2000. GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais – Rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. GREGORY, W. De. Manifesto da Proporcionalidade. Goiânia: Kelps, 2005. HOUAISS, Antônio (2000) Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1 volume. Rio de Janeiro: Editora Objetiva. SANCHES, Manuela Ribeiro. Nas margens: os estudos culturais e o assalto às fronteiras académicas e disciplinares. Etnográfica, Vol. III (1), 1999, pp. 193-210

10 SANTOS, Mônica Pereira dos e SANTIAGO, Mylene Cristina. Escola de Àbá: política curricular para a promoção da igualdade racial no município de Juiz de Fora/MG. In: IX Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sudeste. Pesquisa em Educação no Brasil: balanço do século XX e desafios para o século XXI. São Carlos/SP, 2009 a (versão digital).

SILVA, Tomaz Tadeu. Identidades terminais – as transformações na política da pedagogia e na pedagogia da política. Petrópolis: Vozes, 1996.

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