ESCOLA SEM PARTIDO: UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE SEU SIGNIFICADO E DESDOBRAMENTOS PARA A EDUCAÇÃO BRASILEIRA

May 31, 2017 | Autor: G. Miranda Junior | Categoria: Filosofía Política, Ética, Ensino, Cidadania, Liberdade
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ESCOLA SEM PARTIDO: UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE SEU SIGNIFICADO E DESDOBRAMENTOS PARA A EDUCAÇÃO BRASILEIRA. Gilberto Miranda Junior [email protected] Centro Universitário Claretiano

Resumo Dentre as diversas manifestações e protestos contra o que, sob certo consenso, é chamado de “doutrinação de esquerda”, emerge na cena educacional brasileira o movimento Escola Sem Partido. Colocando-se como “livre de ideologia”, o movimento procura aprovar nos estados e a nível nacional projetos de Lei que visam, segundo seus idealizadores, proteger os alunos enquanto “audiência cativa” diante de educadores que usam de sua posição para praticar “doutrinação política e ideológica” nas escolas. Nosso objetivo primário neste trabalho é investigar, por trás do discurso do movimento, o significado concreto de suas proposições, a forma como apresenta as soluções propostas e se seu posicionamento, de fato, é isento de ideologia. Nosso objetivo secundário é promover a discussão sobre o significado da liberdade de cátedra no ambiente escolar e reunir elementos para a produção de um artigo científico a ser submetido para publicação. Para tanto, fundamentalmente, será elaborado uma breve análise crítica do discurso do movimento em seus fundamentos e desdobramentos práticos com base nos Projetos de Lei nº 867/2015 de autoria do Deputado Izalci (PSDB/DF) e nº 193/2016 de autoria do Senador Magno Malta (PR/BA) apresentados ao Congresso Nacional para apreciação das comissões da casa e inclusão nas diretrizes e bases da educação nacional, bem como em artigos do site do movimento. Perpassaremos conceitos como ideologia, liberdade, reificação, direita, esquerda, conservadorismo e etc. com base em autores que se dedicaram a aprofundar os estudos da sociedade contemporânea. Procuramos com isso atingir como resultado a construção de um espaço de análise crítica acerca de um tema atual de suma importância para a formação educacional dos alunos, a participação da família, bem como para uma autoanálise da prática do ensino por parte dos professores. Não é pretensão de esta investigação chegar a uma conclusão definitiva, e sim propor um diálogo amplo, de referências cruzadas e abertas para que não sejamos nós, cidadãos, audiência cativa para políticos e seus discursos difusos.

Palavras-Chave Escola, Política, Liberdade, Ensino.

2 INTRODUÇÃO Os projetos de Lei nº 867/2015 de autoria do Deputado Izalci (PSDB/DF) e nº 193/2016 de autoria do Senador Magno Malta (PR/BA) versam sobre a inclusão do Programa Escola Sem Partido entre as diretrizes e bases da educação nacional1. Foram idealizados a partir do movimento Escola Sem Partido (ESP), fundado em 2004 e que tem como principal idealizador o jurista e Procurador do Estado de São Paulo Miguel Nagib. Segundo o próprio, o movimento surge da percepção ou da ideia de que as escolas estariam sendo usadas para uma doutrinação de “esquerda” cujo objetivo seria a manutenção do Partido dos Trabalhadores (PT) no poder. Entre os motivos que o fizeram fundar o movimento, destacam-se, em suas próprias palavras, que: (...) O governo vem tentando naturalizar o comportamento homossexual, e isso pode atingir o que um pai ensina ao seu filho. Promover os próprios valores morais é violar os direitos dos pais, e isso é ilegal. O pai pode processar o professor por abuso de autoridade de ensinar, e dizer que isso é preconceito, é autoritário. Não é prudente que se debatam assuntos que estão no noticiário dentro de sala de aula, por exemplo. O debate pode trazer problemas para a escola. (NAGIB, apud ind RESENDE, 2015)

Sendo um dos objetivos da educação, garantida como direito de todos e dever do Estado, o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, Constituição Federal de 1988, Art. 205), impõe-se a questão alarmante de como seria possível promover o pleno desenvolvimento e preparo para a cidadania sem incluir debates sobre os assuntos atuais que afetam a vida dos estudantes diretamente, inclusive sobre a convivência com origens étnicas, orientações sexuais e posicionamentos político-ideológico distintos? O que é entendido 1

Ambos os projetos estão em tramitação em suas respectivas casas legislativas. Para ler os projetos na íntegra acesse os seguintes endereços eletrônicos: - Projeto de Lei 867/2015: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1050668 - Projeto de Lei 193/2016: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=125666

3 pelos membros desse movimento como cidadania? São perguntas que ficam perdidas e cujas respostas são escamoteadas por um discurso difuso, ambíguo e repleto de impresições que contam com apelos e falácias que precisam ser mostradas e esclarecidas para que possamos chegar ao âmago da questão envolvida nas propostas analisadas. Vale salientar que durante anos, desde sua fundação, as ideias do ESP encontraram pouca repercussão, até que em 2014, no recrudescimento da polarização política e na crise de representatividade no cenário nacional, um encontro com membros da família Bolsonaro mudou o status do programa. Com o pedido de Flávio Bolsonaro para que Nagib redigisse um anteprojeto de lei com as ideias do movimento, desde o Rio de Janeiro (primeiro no âmbito do estado e depois no município), Jair (pai) e Carlos (filho) apresentaram o texto na Assembleia Estadual e na Câmara de Vereadores para serem aprovados. Segundo o Centro de Referência em Educação Integral, desde então, Miguel Nagib disponibilizou no site do movimento um modelo de projeto estadual e outro municipal para que deputados e vereadores pudessem preenchê-los e apresenta-los a seus respectivos redutos políticos: Desde então, o projeto foi aprovado em Alagoas, Campo Grande (MS), Santa Cruz do Monte Castelo (PR) e Picuí (PB). O Centro de Referências em Educação Integral fez um breve levantamento e identificou que o projeto de lei tramita ou tramitou em ao menos 10 assembleias legislativas e em 9 câmaras de vereadores de capitais do país. (ZINET, 2016)

É urgente, portanto, que seja promovido em toda sociedade uma ampla discussão sobre esse programa, seu real significado e os desdobramentos possíveis das ações político-partidárias (embora não declaradas) que os envolvidos promovem de forma sistemática e planejada. Esse trabalho procura se inserir na gama de contribuições que visam desenvolver uma análise crítica e fundamentada sobre essas questões, ajudando na amplitude dessa discussão. O conceito de cidadania, sob todos os aspectos, envolve ações políticas. Essas ações, por sua vez, envolvem a constante discussão e diálogo sobre direitos civis e políticos que visam a organização da sociedade através da participação

4 ativa dos próprios cidadãos. Não é demais lembrar que “cidadão” (em latim:

civitas) é a tradução literal do grego politikós, o morador da cidade cujo comportamento e motivação voltam-se ao bem público e à participação ativa na gestão da coisa pública (res-publica). Para ser considerado cidadão, não apenas por direito, mas por definição, é preciso educar-se para tal, pois aquele que não se preocupa com o redor, com a organização social a qual pertence e nem com as repercussões ou consequência do que faz, não está exercendo sua cidadania. Segundo o filósofo Mario Sergio Cortella, os gregos tinham um nome para esse tipo de pessoa voltada ao próprio umbigo e que se preocupava apenas com seus assuntos privados e particulares: idiótes (CORTELLA e RIBEIRO, 2013). A educação para a cidadania, além de garantir uma sociedade dinâmica e dialeticamente voltada à melhora de vida dos cidadãos, constitui um direito fundamental segundo nossa Constituição Federal em seu artigo 205. Restam-nos saber se, sob a retórica do desejo de uma escola sem partido (um termo que carrega a obviedade de um desejo geral da sociedade), o que se pretende é o real desenvolvimento pleno da cidadania ou a manutenção compulsória das estruturas de dominação que alienam e, de forma coercitiva, formam pessoas para a reprodução acrítica de situações de opressão e usurpação de direitos. Optamos, portanto, por fazer uma análise crítico-filosófica dos projetos de lei apresentados em âmbito nacional e não do movimento ESP porque o caráter objetivo do movimento pode ser resumido, justamente, nas alterações na lei que eles propõem. Enquanto movimento, direito inalienável de manifestação do pensamento para mudanças na práxis social, a discussão de nossa situação educacional abriga (ou deveria abrigar) a pluralidade de visões que compõe nossa sociedade, sejam essas visões coerentes, incoerentes, de caráter autoritário, libertário, de viés conservador ou progressista. Reconhecemos que o caráter objetivo de um movimento centra-se, por definição, tanto naquilo que ele consegue construir de consenso social alterando práticas e costumes, quanto nas modificações efetivas das relações sociais que ele promove a partir do aparato legal/jurídico. No entanto, no campo do consenso social, estaríamos entrando em um jogo de forças discursivas em disputa na formação de

5 consensos, o que não é o nosso objetivo. Já no campo legal, a despeito dos aspectos jurídicos da questão (que também não é nosso foco principal), estaríamos adentrando em um campo argumentativo e ético; objeto e foco da reflexão filosófica. Óbvio, nos parece, porém, que o primeiro leva ao segundo. Uma Lei proposta é mais fácil de ser aprovada quando há um forte consenso social acerca do que ela propõe. Porém, mesmo assim, se aquilo em que ela se baseia entrar em contradição com os resultados almejados, esse consenso pode ser modificado a partir da crítica embasada sobre o que fundamenta a proposição legal, seja por sua visibilidade enquanto discussão pública que promove, seja por sua adequação ao corpo de leis já constituído a que ela deve estar submetida. Se essa crítica será feita de forma coerente nas comissões do Congresso Nacional, não sabemos. Mas pelo fisiologismo, clientelismo e todo o esquema por trás das aprovações de leis que temos assistido a partir das investigações da operação Lava-Jato, muito provavelmente essa lei poderá ser aprovada por outros motivos alheios aos fundamentos em que ela se diz basear. Nossa função, seja enquanto Filósofos ou Educadores, é analisar criticamente e tornar público tanto quanto possível essa análise, propor discussões, debates, seminários e o máximo de esclarecimento possível acerca desse assunto. É importante, a essa altura, que nos reportemos ao sentido da palavra Crítica. O senso comum tem por esse termo a ideia de que crítica se resuma a juízos que desabonem ou depreciem o objeto criticado. Embora haja esse aspecto enquanto possibilidade em uma análise crítica, a preocupação da Filosofia centra-se na possibilidade de esclarecimento acerca dos fundamentos que sustentam o objeto de crítica e, substancialmente, se esses fundamentos sustentam de forma coerente o sentido existencial atribuído a esse objeto. Ou seja, a crítica é necessária tanto para confirmar o sentido existencial do objeto de análise quanto para refuta-lo, seja a partir da inexistência de fundamento, da existência de outro fundamento velado (intencionalmente ou não) ou a partir de outro sentido não declarado com base no fundamento dado. Portanto, a crítica filosófica busca o significado concreto do objeto criticado a partir do alcance possível de um diálogo que observe as questões éticas envolvidas no exercício de uma racionalidade comunicativa.

6 ANÁLISE CRÍTICO-FILOSÓFICA DO PROJETO No projeto ora analisado há problemas graves de argumentação que denotam (o que procuraremos provar ao longo do trabalho) que há claramente uma determinada ideologia por trás daquilo que se pretende neutro ou isento de ideologia. Ou seja, há uma explícita “contradição entre o afirmado num ato linguístico e o saber agir implícito na realização desse ato” (VELASKO, 2001, p. 49). Habermas e Apel denominaram essa ocorrência como Contradição Performativa. Nesse caso específico, trata-se de um enunciado que traz em si o elemento que ele próprio tenta invalidar. Ou no geral, trata-se de enunciados que “reivindicam implicitamente o que negam, ou se apoiam em pressupostos não tematizados, que apontam para um conceito mais amplo” (REPA, 2008, p. 205). Nos projetos de lei baseados na ESP, ao procurar proibir doutrinação ideológica ou política na escola, as bases pelas quais essa proibição se sustenta deveria, por força de uma ética comunicativa e lógica, serem isentas de ideologia e de política, mas não são. Se essa isenção é possível ou não, é outra questão. A questão aqui é: se há uma ideologia ou vertente política por trás da proposição dos projetos, passa a não fazer mais sentido a própria proposição, já que procura tornar o ambiente escolar isento de ideologias e pensamento político. O fato de declararem que buscam a pluralidade de ideias não é suficiente para lhes dar a posição de que, de fato, buscam essa pluralidade. Esse ponto ficará mais evidente ao longo de nossa análise. É importante salientar que há especificidades no discurso do Movimento ESP que misturam enunciados auto-evidentes e irrefutáveis (começando pelo próprio nome do movimento), mas que se ligam retoricamente a afirmações questionáveis. É uma técnica retórica falaciosa, na medida em que a aceitação do primeiro enunciado não nos leva a aceitação automática do segundo, colocado como consequência do primeiro. Ao dizerem que almejam uma escola em que não haja doutrinação ideológica ou política, o discurso almeja a adesão das pessoas. Espera-se, portanto, que não haja quem discorde desse ponto. Porém, ao atrelar esse ponto à afirmação de que existe, de fato, doutrinação política e ideológica na escola, cria-se um vínculo entre o primeiro enunciado e o segundo que carece de uma justificativa ou um fundamento plausível. Esse

7 tipo de jogo retórico é conhecido em Filosofia como argumento non sequitur e se constitui em um erro, uma falácia. Para minimizar a percepção desse claro erro discursivo, os autores dos projetos de lei se dizem basear nas “evidências empíricas” baseadas em um artigo publicado do site do movimento ESP, transcrevendo-o no próprio texto do projeto como justificativa, a saber: É fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis. Diante dessa realidade – conhecida por experiência direta de todos os que passaram pelo sistema de ensino nos últimos 20 ou 30 anos –, entendemos que é necessário e urgente adotar medidas eficazes para prevenir a prática da doutrinação política e ideológica nas escolas, e a usurpação do direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. (BRASIL, 2015, p. 5)

Porém, parece-nos uma justificativa vaga e inócua basear a propositura de uma lei na simples afirmação de que a coisa que se queira combater seja “notória”. Para quem e de que forma é notório? O texto responde que é notório com base na “experiência direta de todos os que passaram pelo sistema de ensino nos últimos 20 ou 30 anos”. Não se demonstra ou referencia nenhum estudo que dê respaldo a essa afirmação, nenhuma pesquisa, nenhum levantamento de dados objetivo, mas fia-se a propositura na percepção empírica dos proponentes e daqueles que eles representam com uma generalização falaciosa de que “todos” teriam a mesma percepção. Para que seja objeto de um Projeto de Lei com regras e ordenamentos (inclusive legalmente puníveis), é preciso que se demonstrasse a existência de doutrinação ou a inexistência de pluralidade pelas quais a proposição deve se basear. Até onde podemos ver, não há um estudo que reconheça, a partir de pesquisa feita por método científico, a existência de doutrinação na escola de forma sistemática e ampla a ponto de haver a

8 necessidade de sua eliminação através de Lei. Se considerarmos que “doutrinar” significa a imposição de crenças sem evidências ou argumentos plausíveis que a sustente, flagramos o presente caso como uma pretensão descabida de combater uma suposta doutrinação por outra: a que quer nos fazer crer que exista doutrinação ideológica e política nas escolas. Essas generalizações dentro de um discurso difuso escondem mais do que podemos suspeitar. Embora não haja um código de ética específico na função de magistério, a urgência de um trabalho coordenado pelas associações docentes se torna premente diante dessa flagrante invasão da liberdade de cátedra. Porém, do que podemos analisar dos projetos, a preocupação não está exatamente na observância ética acerca do ato de lecionar, mas na imposição de certos posicionamentos e comportamentos desejáveis e, sobretudo, na proibição arbitrária de posicionamentos e comportamentos muito mal definidos dos quais os proponentes acreditam ferir suas crenças, fato que denuncia o compromisso doutrinário e ideológico do movimento e, consequentemente, dos projetos de lei baseados nele. À essa altura poderíamos definir como evidente o uso da Falácia do Espantalho como base para a proposição dos projetos de lei. Constitui-se um espantalho a eleição de um fato fictício, porém necessário, para compor e dar substância a uma proposição ou conclusão cujos motivos reais estão ocultos. É, portanto, um espantalho (até que se demonstre o contrário) que há doutrinação política e ideológica nas escolas ao ponto de poder ser reconhecida a necessidade de uma Lei que coíba ou elimine essa doutrinação na prática do ensino. Ao que nos parece, portanto, o movimento e os projetos com base nele pretendem outra coisa: a construção de um espaço acrítico e passivo para que uma determinada estrutura de controle e domínio se mantenha dentro das relações sociais sem questionamento através da ausência de discussão política na escola. A seguir iremos analisar algumas partes que julgamos mais emblemáticas e que ilustram as questões colocadas até aqui.

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Leitura selecionada dos Projetos de Lei

Artigo 2º - Princípios pelos quais a educação nacional se pautará Durante a leitura de ambos os projetos abundam afirmações imprecisas e vagas desde seu Art. 2º, ao menos, o qual declara sob quais princípios a educação nacional deverá ser gestada. Destacamos alguns princípios que, pela ambiguidade que causam dificultam o real entendimento do que o projeto almeja de fato e denunciam, com base no posicionamento público do movimento, seu caráter político-ideológico: Princípio I – Neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado. A exigência de neutralidade política do Estado significa retirá-lo de sua principal função que é, eminentemente, política. Embora seja possível entender a proposição como “neutralidade partidária”, o que faria total sentido, não é esse termo que é usado. Neutralidade partidária não implica neutralidade política, embora o texto as use como sinônimos. Por exemplo, o Estado tem dentre suas funções, determinadas pela Constituição Federal, garantir o ensino público gratuito. Esse é um posicionamento político e também constitucional. Conceber o Estado neutro politicamente, além de ferir a própria constituição que lhe dá sentido, é abrir mão de garantir aquilo que o define enquanto instituição sóciopolítica. Toda atuação institucional na sociedade é eminentemente política. Isso é inescapável. Usar de termos que carregam certa ambiguidade (pois fica claro que o proponente do projeto entende política de outra maneira) requer definições como parte do documento. Impõem-se, destarte, questionar se não há certo interesse em que não fiquem claros certos termos, conceitos e definições por parte do Movimento ESP. Se, como vimos, for impossível ao Estado ser neutro politicamente, consequentemente, ele não pode ser neutro ideologicamente, pois não há política sem um conjunto de ideias-base, uma visão de mundo que a sustente. A política (atos públicos de efeito coletivo que visam organizar a sociedade) pressupõe ideologia (conjunto de ideais-base que constituem uma visão de

10 mundo e de como a sociedade deva se organizar). No caso do Brasil, os princípios pelos quais o ensino se baseia (Art. 206 da Constituição de 1.988) é claramente um posicionamento ideológico que estabelece, por força dessas ideias, uma determinada política de ensino. Não sendo possível uma neutralidade política e ideológica, o Estado precisa ser laico, senão ele seria religioso, uma teocracia, ou então ateu. Ser laico não é ser neutro. A laicidade do Estado está definida na proibição expressa dada pela Constituição à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios no que tange a: Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencionalas, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público (Constituição Federal de 1988, Art. 19).

Ou seja, não é a neutralidade, mas sim um claro posicionamento ideológicopolítico o que estabelece a laicidade ao Estado. Vale ressaltar que, a despeito do texto constitucional, sequer nosso Estado pode ser considerado laico na prática, já que subvenciona igrejas e templos isentando-os da cobrança de impostos. É muito importante enfatizar que Ideologia não se reporta apenas a esse sentido latu sensu enquanto “conjunto de ideais-base que constituem uma visão de mundo e de como a sociedade deva se organizar”. Se nos aprofundarmos no estudo daquilo que constitui esse conjunto de ideias-base, verificaremos que ele emerge e se reporta, irresistivelmente, a uma estrutura de domínio e de relações de poder dadas e que formam o próprio tecido social baseado em uma forma de vida (leia-se: forma de produção que condiciona a forma de vida). Não é possível, porém, entender esse sentido do termo Ideologia, sem entender de que forma ela se mascara para que não seja vista enquanto tal, ou seja, entender o conceito de reificação de Marx, no qual as relações de domínio que privilegia um determinado modo de vida criam uma segunda natureza que torna o mundo histórico dado e deterministicamente estruturado como se fora anterior à própria história. Para o pensador alemão, embora rechaçado e em

11 vias de ser banido do pensamento ocidental por esse tipo de movimento, o ser humano não pensa antes de fazer história, mas ele está no mundo, vivendo e fazendo história para depois pensar. Seu pensamento, irresistivelmente, adquire a própria estrutura pela qual a história se faz, e não há, segundo Marx, história a ser contada se não for a partir de sua conexão ou dimensão social: a produção, a indústria e o intercâmbio decorrente delas: A produção das ideias, das representações e da consciência está, à princípio, diretamente e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material entre os homens; ela é a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens, aparecem aqui como emanação direta do seu comportamento material. O mesmo ocorre com a produção intelectual, tal como aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, etc, de todo um povo. (MARX e ENGELS, 1998, p. 18 e 19)

Decorre disso que a “consciência nunca pode ser mais que o ser consciente; e o ser dos homens é o seu processo de vida real” (MARX e ENGELS, 1998, p. 19), portanto “não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência” (MARX e ENGELS, 1998, p. 20). Ideologia, portanto, é um conjunto de ideias-base pelas quais um determinado modo de vida (de domínio, de poder), mascara essas relações naturalizando-as, reificando-as. Quando se reivindica a neutralidade, parte-se do pressuposto que não há ideologia nessa neutralidade. Porém a neutralidade já é, desde sempre, uma forma de reforço da ideologia para manter-se mascarando as relações de poder reificadas. II – Pluralismo de ideias no ambiente acadêmico. A questão do pluralismo é importante. Garanti-lo é sim um dever do Estado e, por extensão, da função docente. Mas essa garantia não implica a obrigatoriedade de que todo assunto ou tema deva ser abordado de maneira plural. Garantir não implica em obrigatoriedade. Há critérios para que algo seja considerado objeto de aprendizado. Um estudo, teoria ou pensamento que goze do reconhecimento da comunidade científica relacionada ao assunto que se aborda devem ser aprendidos dentro desse princípio de pluralidade, mesmo que

12 tragam contradições entre si. Não é o caso de, em nome dessa pluralidade, conferir o mesmo peso epistêmico entre crendices, tradições, costumes culturais, estudos acadêmicos e pesquisas científicas. Se relacionarmos esse princípio a outros que constam desses projetos de lei, não fica claro se eles abarcam, por exemplo, o princípio VII, que dá pleno direito aos “pais que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções” (BRASIL, 2015, p. 2). Portanto, se esses princípios se correlacionam entre si, será vedado ao professor ensinar a Teoria da Evolução (teoria que goza de status científico inquestionável) sem que seja abordado a Teoria Criacionista (visão de mundo de uma parte do cristianismo que nega a evolução sem que ofereça qualquer respaldo a partir do método científico). Apareentemente, sob a retórica do “pluralismo de ideias”, o que se pretende é a garantia de espaço para doutrinação ideológica e religiosa através de uma clara ação política direcionada e sistemática contra a liberdade de cátedra garantida constitucionalmente. Soma-se a essa questão a exigência constante para que os professores se especializem cada vez mais em suas áreas. Essa exigência é para que cumpram, não só o plano de carreira estabelecido na LDB e qualificação nos concursos para serem admitidos ou promovidos, como também pelo entendimento que quanto mais especializados, melhores condições para um ensino com excelência estará garantido. Uma especialização requer escolhas direcionadas a determinados assuntos, temas, autores, e, em geral, alinhados com a própria visão de mundo do professor. Um professor que se sinta obrigado a garantir absoluto plurarismo de ideais naquilo que ensina, não pode ser um especialista, fazer um mestrado ou doutorado. Ele terá que permanecer um bacharel generalista para que não beneficie um assunto em detrimento de outro, pois todo e qualquer especialista irá ensinar mais e melhor aquilo que dedicou anos de estudo para lhe dar a cátedra que tem. Qualquer aluno que perceber que um professor aprofundou-se mais no tema que domina do que em outro que ele apenas estudou de forma mais geral, poderá denunciar esse professor por ferir esse princípio de pluralidade, seja por má-fé ou outro motivo, mas com certeza pela falta de precisão e especificidade com que foi estabelecido em lei.

13 E não é apenas isso. Se relacionarmos o princípio da pluralidade com o de liberdade de crença (principio IV com implicações também no princípio VII), ao abordar, por exemplo, em estudos culturais, a tradição africana, o professor estará cumprindo um e ferindo outro, pois estará garantindo a pluralidade de ideias, mas poderá ferir o direito aos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. O que dizer, por fim, de pais cujas convicções morais exijam que seus filhos não convivam com negros, índios, gays ou mulheres que vistam calças?

Artigo 3º do PL 867/2015 – Veda a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que entrem em conflito com convicções religiosas ou morais dos pais. O Art. 3º do PL 867/15 fere frontalmente o princípio II. Se é necessário que haja o pluralismo de ideias no ambiente acadêmico, como é possível pretender vedar a realização de atividades pedagógicas que possam entrar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes? O que deveria ser garantido (e já é por Lei) é que ninguém pode ser discriminado por sua raça, cor, religião, orientação sexual, política ou ideológica. A Constituição Federal garante esses direitos. Logo, em nome dessa não discriminação, é necessário o pluralismo. Mas e se ele entrar em conflito com as crenças religiosas ou morais dos pais dos alunos? Há, claramente, no mínimo, mais uma contradição performativa nesse caso. Propaga-se e exige-se algo no discurso que, na verdade, está vedado de se praticar. Mais uma vez, no entanto, a retórica capciosa do texto coloca à frente do artigo a óbvia vedação acerca da prática de dotrinação política e ideológica, sem que se especifique no que consistiria essa prática. Fica implícito, ao que podemos especular, que para o proponente do projeto, tudo o que vai contra as convicções religiosas e morais dos pais dos alunos se constitua em doutrinação, sem se levar em conta que negar a possibilidade da pluralidade de ideias (algo exigido no próprio PL), é um indício de que se pretende, performativamente, a doutrinação ideológica, política e religiosa que osproponentes defendem.

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Parágrafo Único do PL 193/2016 – “opção sexual” No Parágrafo Único do Projeto de Lei 193, o senador da república Magno Malta, está redigido o seguinte texto: O Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero. (BRASIL, 2016, p. 1 e 2)

Não há, porém, nenhum tipo de definição sobre o que está sendo entendido e tomado por base para o que significa “ideologia de gênero”. O texto, ideologicamente, toma a sexualidade como uma questão de opção, ao contrário de todos os estudos disponíveis cujos resultados nos recomendam usar o termo “orientação sexual”. A flagrante falha conceitual de um projeto de lei que procura modificar as bases e diretrizes da educação nacional está colocando a crença ideológica do legislador acima de estudos acadêmicos que nos mostram que a sexualidade humana possui ligação estrita entre sexo biológico, identidade de gênero e preferência sexual por imposição cultural, embora tenhamos uma relevância estatística dessa coincidência. Não há como almejar o desenvolvimento pleno da pessoa para exercer cidadania se aquilo que está no cerne de sua formação humana (sua sexualidade) não for discutida de forma plural e não ideológica na escola, e para isso é imprescindível discutir sobre gênero. Proibir a discussão sobre gênero na escola chamando-a de ideologia, ao passo que a proibição carrega motivos claramente ideológicos, é perpetuar as relações desiguais de poder relacionadas a gênero de forma doutrinária e autoritária. Mais do que isso é excluir de forma desumana aqueles que não estão

atrelados

naturalmente

à

ideologia

dominante

que

vincula

coercitivamente e politicamente sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual. Em outras palavras, significa impedir aquilo que garante nossa Constituição Federal que enxerga a educação como a principal promotora de um desenvolvimento pleno da pessoa para o exercício de sua cidadania.

15 Por fim e não menos importante, ambos os projetos preveem que no descumprimento da Lei, assegurado o anonimato do denunciante, tanto o Ministério quanto as Secretarias de Educação deverão contar com um canal de comunicação para receber as reclamações de quem se dispuser a fazê-las. Não fica claro em nenhum momento de que forma as denúncias serão apuradas ou de que forma será avaliada sua pertinência, apenas obriga-se a esses órgãos que as encaminhe em sua totalidade ao Ministério Público.

OBSERVAÇÕES FINAIS Não é objetivo de o presente trabalho chegar a uma conclusão definitiva. Parece-nos importante a elaboração de um código de ética da profissão docente e a criação de conselhos regionais que fiscalizem a prática do ensino dentro dos princípios determinados por nossa Constituição. Isso implica na ideia de que aqueles alheios à prática cotidiana do ensino têm pouco ou nada a determinar como ela deva ser feita, sem o prejuízo de emitir seu pensamento acerca dela. O fato é que nossa classe política, notória por seu fisiologismo (demonstrado de forma inequívoca nas recentes investigações atuais), tem se preocupado em determinar os rumos de nosso país com base em seus próprios interesses pessoais, de classe ou ideológicos. É certo que fomos nós, enquanto eleitores, que autorizamos o poder que eles têm, mas sem que haja uma reforma ampla de nosso sistema e bases político-partidárias estaremos reféns de uma prática perniciosa e histórica que tem feito o país caminhar sem rumo, quando não, para um retrocesso sem precedentes. O que é possível dizer, conforme procuramos demonstrar, é que as tentativas sistemáticas de transformar em Lei o Programa Escola Sem Partido atendem a uma demanda ideológica que tem como principal característica fazer as pessoas crerem e pautarem sua existência como se toda construção histórica humana, por sua permanência ao longo do tempo (seja devido a coerção e domínio de quem detém o poder, seja por escolha do próprio dominado) é fruto de uma relação natural determinada antes da própria história, sendo essa apenas reflexo dessa determinação. É o que, conceitualmente, chamou-se de reificação

16 (LUKÁCS, 2003). É uma característica do conservadorismo, o qual pauta irresistivelmente grande parte daqueles que, beneficiados pelo sistema de vantagens

de

nossa

política,

conseguem

se

eleger.

Nesse

aspecto,

hodiernamente, não se distingue mais as vertentes de esquerda e direita, ao menos desde que o pragmatismo alçou o PT ao poder. Que, a partir dessa análise, possa ser ampliada a discussão não só acerca dos desdobramentos e significados dos projetos analisados, mas da própria crítica sobre as diversas contradições performativas que infestam as relações sociais determinadas pelas estruturas de poder a que somos submetidos, muitas delas presentes em nossa socialização e assumidas como naturais, portanto, reificadas. É inegável o papel da educação e da observância dos direitos fundamentais da pessoa como catalisador de práticas que levem a isso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasilia: Senado Federal, 1988. BRASIL. Projeto de Lei nº 867 - Inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional o "Programa Escola sem Partido". Brasilia: Câmara dos Deputados, 2015. BRASIL. Projeto de Lei nº 193 - Inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional o "Programa Escola sem Partido". Brasilia: Senado Federal, 2016. CORTELLA, M. S.; RIBEIRO, R. J. Política para não ser idiota. 1ª. ed. São Paulo: Papirus 7 Mares, 2013. LUKÁCS, G. História e Consciência de Classe. Tradução de Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003. MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. Tradução de Luis Claudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1998. REPA, L. Contradição Performativa. In: (ORG.), M. N. Curso Livre de Teoria Crítica. Campinas: Papirus, 2008. p. 295-297. RESENDE, L. Escola sem partido quer o fim da doutrinação de esquerda. O Dia, Rio de Janeiro, Brasil, 06 Junho 2015. http://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2015-09-06/escola-sem-partido-quer-fim-da-doutrinacao-de-esquerda.html - Acesso em 10/08/2016. VELASKO, M. Ética do Discurso - Apel ou Habermas? Rio de Janeiro: Mauad Editora Ltda. e FAPERJ, 2001. ZINET, C. Polêmico, projeto do Escola Sem Partido tramita em 5 estados, 8 capitais e DF. Notícias - Centro de Referências em Educação Integral, 5 Julho 2016. http://educacaointegral.org.br/noticias/polemico-projeto-doescola-sem-partido-tramita-em-10-estados-9-capitais-df/ - Acesso em 11/08/2016.

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