Escrever ficção é um ato subversivo

June 29, 2017 | Autor: Eduardo Reina | Categoria: Literatura brasileira, Biografias, Ditadura Brasileira
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Escrever ficção é um ato subversivo



O título pode ser uma provocação. E é. Esse artigo surge exatamente em
função de situação recém vivida por mim, há alguns dias, durante a procura
e conversas com pessoas para escrever o prefácio de um livro que está no
prelo e será lançado até o fim do ano. O texto trata da história de uma
mulher que ao nascer foi roubada de sua mãe por agentes da ditadura e
entregue a um inescrupuloso empresário que financiava a repressão em São
Paulo. Isso no fim da década de 1960 e a obra mostra a vida dessa pessoa
até chegar aos dias de hoje. Ela está em busca da verdade, de sua origem. É
uma ficção com base em fatos reais, apesar de no Brasil não haver registros
sobre bebês roubados na ditadura civil-militar, como aconteceu fartamente
nos países vizinhos ao Brasil no mesmo período.

Aqui quero debater a relação ficção e realidade. Precisamos quebrar o
preconceito sobre a não aceitação da ficção como boa literatura no Brasil.
Boa literatura não é somente feita por livros reportagem, biografias e
documentários.

Pergunto: quanta realidade podemos encontrar nas ficções? Acredito que
podemos ajudar a compreender a realidade por meio da ficção literária. A
realidade tem seu lado irreal. Até o jornalismo, área que por excelência
deveria ser só objetividade com fatos, nada além de fatos, está
comprometido com soluções imaginárias, ficcionais.

A literatura é muito mais potente do que podemos imaginar. Um texto
literário é capaz de quebrar o gelo e antipatia das pessoas e mostrar fatos
pouco conhecidos ou mesmo detalhes que não são captados num livro
reportagem. A literatura de ficção é capaz de abrir janelas. Mostrar os
fatos por outras perspectivas e as maneiras de olhar a história real. Não
existimos sem ficção.

Reafirmo que a ficção não é sinônimo de mentira, de algo falso. A ficção
tem o poder de ampliar o mundo em que vivemos. O escritor tem o poder de
transformar a nossa realidade em narrativas que podem ser entendidas por
mais e diferentes pessoas. Quebrar a barreira da segregação e despertar o
interesse para assuntos áridos e para a simples leitura. Atitude essa que a
crua realidade não consegue por si só.

A ficção é muito dinâmica. Mas por favor, não me entendam mal. Adoro livros
de não-ficção. Obras essas que sempre estão ao meu lado. Tenho já pronto um
livro - uma reportagem histórica - ainda sem editora e trabalho em dois
outros textos na mesma linha. Mas acredito que para ter uma visão mais
profunda de alguns assuntos, o romance pode ser muito importante. O romance
nos permite navegar por um lado que a não-ficção não permite. Possibilita
estar ao lado íntimo e pessoal dos acontecimentos. O romance nos aguça a
sensibilidade em todos os sentidos.

Não é a toa que romances provocaram problemas a muitos autores consagrados.
Cito notícia veiculada no jornal Estado da Bahia, em 17 de dezembro de
1937, que mostra a marginalização de romances de Jorge Amado. A notícia
tratava da incineração de 808 exemplares do livro "Capitães da areia", 223
exemplares de "Mar morto", 89 exemplares de "Cacau", 93 exemplares de
"Suor", entre outros livros. A queima dos romances de Jorge Amado se deu no
dia 19 de novembro de 1937, em frente à Escola de Aprendizes Marinheiros,
em Salvador, Bahia, sob a presença dos "senhores membros da comissão de
buscas e apreensões de livros, nomeada por ofício número seis, da então
Comissão Executora do Estado de Guerra".

A incineração se deu às vésperas da decretação do Estado Novo, com a
suspensão das liberdades e direitos dos cidadão, com imprensa censurada e
tudo o mais. Todos os livros queimados mostravam a realidade do
proletariado, dos marginalizados, dos esquecidos, através de lindos e
importantes textos ficcionais.

Comunista de carteirinha, a posição ideológica levou Amado a muitos
percalços em sua vida. Os livros banidos outrora ocupam hoje o rol das
obras clássicas brasileiras. Eram e são a mais pura realidade narrativa de
fatos verdadeiros. Mas mostrados por personagens ficcionais. À época,
Graciliano Ramos disse em Memórias do Cárcere que "começamos oprimidos pela
gramática e terminamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e
Social".

Não ouso dizer que hoje vivemos situação semelhante. Mas citei esses fatos
para mostrar que obras de ficção baseadas em fatos reais, com a presença de
personagens verdadeiros e outros criados pelo autor são capazes sim de ser
tão bons quanto livros reportagem, biografias e documentários.

E o que pode ser mais subversivo do que a leitura? Termino citando a
professora e escritora Guiomar de Grammont: "Afinal de contas, a leitura é
um poder, e o poder é para poucos. Para obedecer não é preciso enxergar, o
silêncio é a linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra é
inútil. Ler pode tornar o homem perigosamente humano".

Quero mais leitura de ficção e também de reportagens, de biografias.
Afinal, o que há de mais real do que a ficção de Machado de Assis,
considerado o maior representante do realismo no Brasil?

O Brasil precisa de mais e melhores leitores. De todos os tipos de
literatura.

E sobre o título deste artigo digo que escrever ficção é subversivo sim. É
revolucionário, transformador.



Eduardo Reina, autor de "No Gravador" (2003); integrante de "O Conto
Brasileiro Hoje, Volume 5" (2007); integrante de "Contos e Casos Populares
(introdução de Paulo Freire)" (1984).
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