ESCRITA ACADÊMICA: DE DOM A HABILIDADE CONSTRUÍDA (CAPÍTULO DE LIVRO)
Descrição do Produto
1
FUPAC - MARIANA
2
iii
FUNDAÇÃO PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS (COORDENADORA)
DIREITO: ATUALIDADES E ENSINO 1ª Edição
MARIANA,
FUPAC-MARIANA 2016
iv
Ficha catalográfica
DIREITO: ATUALIDADES E ENSINO
Fundação Presidente Antônio Carlos (coordenadora). Direito: atualidades e ensino. 1 edição. Mariana: FUPAC-MARIANA, 2016. 432 p.
ISBN: 978-85-98974-19-4
Coletânea de textos do 3º Concurso de Ensaios Acadêmicos da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana e de artigos científicos dos professores da instituição. Capa e diagramação: Magna Campos
1. Direito. 2. Atualidades Jurídicas. contemporaneidade e ensino.
2. Ensino Jurídico. 4. Direito:
* A revisão textual é de responsabilidade dos autores de cada ensaio ou artigo do livro.
ESCRITA ACADÊMICA: DE DOM A HABILIDADE CONSTRUÍDA
Ms. Magna Campos1 Resumo: Neste ensaio acadêmico, proponho-me a discutir e a combater o senso comum e suas crenças imobilizadoras e reducionistas que permeiam a atividade de escrita acadêmica, propondo, em contrapartida, uma perspectiva mais ativa associada ao desenvolvimento de competências e de habilidades necessárias ao êxito nas produções textuais e que podem ser trabalhadas pelos e com os estudantes.
Introdução:
Há
certos
entendimentos
equivocados
sobre
a
escrita acadêmica que atrapalham os alunos de melhorem, progressivamente,
na
qualidade
de
suas
produções
textuais. Dentre esses entendimentos, a crença de que escrever seja um “dom gratuito”, que alguns têm e outros não, e que, por essa razão, não precisaria ser trabalhado e sua competência não tenha que ser desenvolvida por meio de estudo e prática constantes, tanto de escrita quanto de reescrita, é algo problemático. Outra crença que também causa danos ao processo de melhoria contínua associada
1
Mestre em Letras. Professora universitária e escritora.
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à competência de escrita dos estudantes refere-se à ilusão de que bastaria o cuidado com os aspectos normativos da gramática
para
ter-se
um
texto
de
qualidade,
desconsiderando-se, com isso, que há muito que ser cuidado no texto para além da gramática. Entretanto, cabe ressaltar aqui que não desconsidero que haja “potenciais”, designado por alguns de “aptidões”, e, tampouco, que a gramática não seja importante para um texto. Sendo assim, ainda que haja “aptidão” associada à inteligência
linguística2,
uma
das
nove
inteligências
proposta por Howard Gardner, escrever, na modalidade e qualidade necessárias ao meio acadêmico, é desenvolver esse potencial de forma a gerar competências que se materializem em habilidades capazes de atuarem na elaboração gêneros textuais, de forma proficiente e adequada ao ambiente universitário. Portanto, é do desenvolvimento das competências e de habilidades que tal proficiência advém e não do “dom”, uma vez que apresentar potencial para algo é simplesmente isso: “estar suscetível de existir ou acontecer, mas sem existência real; virtual”,
conforme
descreve
o
Dicionário
Eletrônico
Houaiss. Se não for desenvolvido, o potencial é apenas Refere-se ao potencial para usar as apalavras de forma efetiva, quer oralmente, quer escrevendo. 2
346
promessa de vir a ser, mas não sua concretização. Afinal, como o próprio Gardner (1994)3 ensina, a competência linguística
é
a
inteligência
mais
ampla
e
mais
democraticamente compartilhada pelo ser humano, mas precisa ser estimulada e desenvolvida. Neste sentido, o que debato aqui e contra-argumento está ligado à crença imobilizadora ou reducionista, assentada na ideia de “incapacidade inata” ou, em outras palavras, “na falta de dom”,
que
pode
cercar
o
mau
entendimento
da
problemática aqui tratada e que leva muitos estudantes a não “trabalharem continuamente” em prol de melhorias em suas produções, resignando-se a resultados pífios. Crença que, não raro, leva os professores, que lecionam nas mais diversas áreas na academia, a afirmações nessa linha de pensamento, dificultando ainda mais a superação dessa ideologia. E, obviamente, não desconsidero a importância da forma de gramática adequada, na maioria das vezes, a norma culta da língua, para a escrita acadêmica. Mas é imprescindível que se compreenda que a gramática é um dos aspectos a serem cuidados na elaboração de um texto, não se pode circunscrever, apenas a esse aspecto, a
GARDNER, Howard. Estruturas da mente: a teoria das múltiplas inteligências. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. 3
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qualidade do texto elaborado, como Geraldi (2003)4 reforça. Assim, outros aspectos, como por exemplo, informatividade,
coerência,
coesão,
atendimento
aos
propósitos interacionais, estrutura composicional de cada gênero textual, adequação da linguagem ao gênero e estilo selecionados, dentre outros, que influenciam a qualidade das produções escritas, seriam negligenciados na nessa perspectiva equivocada e aqui debatida. 2. De dom à habilidade construída
A atividade de produzir um texto acadêmico seja ele um resumo, uma resenha, uma “redação5”, um paper6, uma pensata7, um ensaio acadêmico8, um artigo científico
GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 4
Nome geralmente dado ao texto dissertativo-argumentativo ou dissertativoexpositivo, estruturado em introdução, desenvolvimento e conclusão. 6 Gênero textual escrito que se assemelha ao artigo científico, porém apresenta extensão menor e, comumente, destina mais espaço para a parte prática que a teórica. 7 Gênero textual escrito que registra as ideias da pessoa sobre uma questão, aquilo que lhe vier à mente por associação ou reflexão crítica, menos rigorosa quanto à necessidade de fundamentação teórica, podendo, inclusive, dispensar tal fundamentação. Quando apresenta a fundamentação teórica, assemelha-se ao ensaio acadêmico. 8 Gênero textual escrito que apresenta mais espaço para subjetividade, por isso, escrito em 1ª pessoa do singular (eu) e cuja fundamentação teórica não se restringe apenas a textos credenciados cientificamente. 5
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ou qualquer outro gênero textual é sempre um trabalho desafiador. Todavia, o senso comum costuma cercar essa atividade de algumas crenças que podem atrapalhar o estudante na melhoria de suas habilidades relacionadas à escrita. Uma dessas crenças refere-se a considerar a escrita como um dom, nato ou recebido misticamente, que está atrelado ao fato de se escrever bem. Por tal razão, tendo em vista as dificuldades associadas à escrita enfrentadas por muitos estudantes, especialmente, no momento de produção de um texto acadêmico, considerase que seja a ausência de tal dom a grande responsável por tais problemas. Assim, para essas poucas pessoas escolhidas pelo destino, verdadeiras afortunadas, já que têm esse dom, escrever não lhes custariam esforços, planejamento, dedicação, reescritas contínuas, ou mesmo, tempo para o desenvolvimento de um bom texto. Além disso, escrever lhes seria sempre uma atividade prazerosa, inspirada e fluida. Nesse sentido, é comum também se pensar que o texto “cai-lhe do céu”, como que se acontecesse via uma ação mágica, sem esforço algum. Outra crença comum é a que de que escrever bem é questão restrita de boa gramática, isto é, “escrever sem erros gramaticais”. A competência gramatical, sem dúvida, 349
ajudará aquele que produz um texto a melhor redigir, à medida que, ao trabalhar em conjunto com outras competências necessárias para a produção de um bom texto contribua para que este atinja seus propósitos interativo-comunicativos.
A
competência
gramatical
precisa ser desenvolvida, mas não pode ser considerada como a única competência envolvida na produção textual, afinal quantos textos são perfeitos gramaticalmente, mas não produzem sentido ou sua informatividade está comprometida pela fraca elaboração das ligações entre texto e contexto. O que o senso comum ignora é que a escrita longe de ser um fenômeno espontâneo é uma habilidade cumulativa9,
ou
seja,
é
algo
a
ser
trabalhado
continuamente e que se vai melhorando pela prática contínua de produzir e de reescrever os próprios textos. Dessa forma, uma habilidade que pode ser desenvolvida por todos que a ela dediquem atenção, trabalho e esforço. Aqui vale aquela velha máxima de que “escrever se aprende escrevendo” e, acrescento, “reescrevendo”.
GARCEZ, Lucília Helena do Carmo. Técnica de Redação: o que é preciso saber para bem escrever. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 9
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O
desenvolvimento
dessa
habilidade
está
relacionado às competências10 interacional-comunicativa, pragmática, discursiva e gramatical, por isso, pressupõe conhecimentos de certas peculiaridades da produção de textos escritos que vão desde conhecer o gênero textual que se quer escrever a conhecer as condições de produção de dado texto, para além do conhecimento das questões gramaticais inerentes à escrita acadêmica. Isso quer dizer que, dentre outras coisas, é preciso saber como aquele texto que se vai escrever organiza-se em termos de estrutura prevista para o gênero textual a que pertence. Sendo assim, é preciso saber, por exemplo, que o gênero textual “redação”, se for da espécie dissertativoargumentativa, se organiza por meio de uma introdução – na qual, comumente, apresentam-se o tema, a tese e o ponto de vista – de um desenvolvimento – em que se apresentam
os
argumentos
e
suas
sustentações/
estratégias argumentativas para reforçar o ponto de vista e a tese enunciados na introdução e de uma conclusão – em que se amarram os argumentos apresentados em prol de uma perspectiva adotada e se procede à observação final ANTUNES, Irandé. Práticas pedagógicas para o desenvolvimento das competências em escrita. In: COELHO, Fábio; POLAMANES, Roza (orgs.). Ensino da prática textual. São Paulo: Contexto, 2016. 10
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ou se apresenta uma proposta concreta de intervenção, com
ações
sociais
para
mitigar
ou
resolver
uma
problemática, como é o caso do estilo de conclusão empregada na redação do ENEM. Da mesma forma, se se for escrever uma resenha crítica11 é preciso saber que ela se estrutura em quatro fases: apresentação do autor e do texto, resumo das principais informações/argumentos do texto resenhado, crítica à forma e ao conteúdo de tal texto e indicação da leitura desse a alguém somadas à referência bibliográfica do texto resenhado que abre a resenha. Em ambos os casos é preciso também se considerar as condições de produção12 do texto, uma vez que a escrita está vinculada a práticas sociais, não sendo atos isolados de um contexto micro e macro textual/discursivo. Essas condições envolvem basicamente: o para quem se está escrevendo: para o professor em uma disciplina; para um conjunto de professores
em
uma
atividade
interdisciplinar; para uma revista científica, para um livro, para um jornal; para um blog. Resenha crítica, nomenclatura usada para diferenciação da resenha indicativa e da resenha temática. 12 CAMPOS, Magna. Leitura e escrita: nuances discursivo-culturais. 2.ed. rev. ampl. Mariana: Aldrava Letras e Artes, 2012. 11
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Condição
essa
ligada
à
competência
de
interação entre autor e leitor virtual/real, e, assim, de se planejar o texto levando em conta tal forma de interação. o como escrever: qual gênero textual (resumo, redação, resenha, ensaio, pensata, paper, artigo,
monografia
etc.);
qual
ou
quais
sequências tipológicas são comuns a esse gêneros
(sequência
argumentativa,
narrativa,
expositiva,
descritiva,
injuntiva
ou
dialogal), com qual registro linguístico esse gênero, produzido nessas condições, deverá ser escrito (formal, semiformal, informal); quais conhecimentos gramaticais (lexicais, morfossintáticos,
sintáticos,
semânticos,
ortográficos, por exemplo) são necessários para concatenar, articular, citar, referenciar, explicitar
ou
não,
relacionados
ao
processamento das ideias no texto. Condição ligada à competência pragmática13 de escrita, pois sendo a linguagem uma atividade social, está
relacionada
à
produção
de
“peças
O termo pragmática é empregado no sentido de linguagem contextualizada e usada em práticas sociais. 13
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inteiras de linguagem” e não de fragmentos soltos e desarticulados. o como dizer: como separar as vozes daquele que escreve de outras presentes no texto (isto é, separação das vozes daquele que escreve o texto das vozes dos outros autores que são mencionados
no
texto).
Ainda
ligada
à
competência pragmática mencionada acima e à competência discursiva. o quando e onde se escreve: quanto tempo se tem para escrever, afinal escrever na sala de aula com um tempo delimitado pela horaaula ou, em casa, com mais tempo, não são condições similares. Além disso, o “onde” se escreve implica também pensar em quais recursos estão disponíveis, pois, veja-se, não se tem na escrita manuscrita as mesmas possibilidades/recursos que escrita digital permite. Inclusive, na escrita digital, cada vez mais
se
avulta
a
multimodalidade
(a
conjunção em um mesmo texto de três modalidades
de
registro:
oral,
visual
e
354
textual). Novamente, competência pragmática e discursiva. o
para
que
se
finalidade/propósito
escreve: da
escrita
qual
a
(para
ser
lida/avaliada pelo professor; para ser lida por vários leitores, para ser publicada, para servir de anotações para estudos futuros da própria pessoa que escreve, para informar, para persuadir, para convencer, para emocionar, para
motivar,
condição
para
está
registrar
diretamente
competência
etc.).
Essa
relacionada
à
interacional-comunicativa
e
ligada à funcionalidade da escrita, já que é uma
ação
de
determinado narrar, suscitar,
linguagem
propósito
informar, informar,
orientada
(escreve-se
explicar, persuadir,
para para
comentar, silenciar,
manipular, advertir etc.). Não se escreve para nada! Ainda que seja para cumprir uma mera obrigação, ainda sim, se tem uma finalidade. o que escrever: qual o tema/assunto a ser escrito e o quanto aquele que escreve conhece de tal assunto. Aqui, a leitura é uma forte aliada, 355
pois embora escrever se aprenda escrevendo, ler é, sem dúvida, crucial para se construir uma “rede de conhecimentos” importantes que poderão servir de base para o texto a ser redigido. E a ajuda da leitura não para por aí, auxilia também na ampliação do vocabulário e na apreensão de qualidades de um bom texto, como fluidez, clareza e informatividade bem dosada. o revisar e o reescrever: a primeira versão de um texto deve ser sempre considerada uma primeira versão, a qual pode, pela releitura analítica, silenciosa ou em voz alta, por si mesmo
ou
por
outra
pessoa
evidenciar
melhorias a serem feitas tanto no plano estrutural (gramática, estilo, estrutura do gênero, por exemplo) quanto no plano do conteúdo
do
texto
(coerência,
clareza
e
informatividade, pertinência, por exemplo) e no
plano
discursivo
(relação
texto/contexto/intertexto/ interdiscurso, por exemplo). Assim, pode-se entender que a escrita acadêmica se divide em três etapas: o
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planejamento,
a
elaboração
e
a
edição
(revisão e reescrita). Além disso, na escrita acadêmica, é necessário também o desenvolvimento da competência que está relacionada à autoria, ou seja, ao fato de se assumir a condição de ser autor14 de um dizer. Neste aspecto, surge o problema do plágio, que se relaciona ao fato de se assumir a autoria de algo ou de alguma ideia que não lhe pertence. produzirem
Quantas um
vezes, texto,
ao os
serem
solicitados
estudantes
a
procedem,
simplesmente, a uma costura de informações coletadas aqui e ali, nos textos lidos, reduzindo a escrita do texto ao trabalho de apenas costurar o mosaico coletado, sem estabelecer nenhuma forma de diálogo com tais fontes, eximindo-se com tal procedimento da autoria “de fato”, embora o esteja assinando. O que se pode depreender do desenvolvimento de tais competências é que, muitas vezes, não é a quantidade que se escreve, mas o esforço e trabalho de tentar aprender com o processo de escrita e de reescrita, de observar e aprender com os próprios erros, ou mesmo, Autor aqui entendido no sentido de aquele que “diz” algo a “alguém”, não se adentrando à discussão da origem do dizer trazida por Michel Foucault, ao tratar da função-autor, no texto de sua conferência “O que é um autor?”, de 1969. 14
357
com os erros de outros, que se pode alcançar uma melhor qualidade dos textos produzidos. Reescrita que não pode se centrar na revisão puramente gramatical ou ortográfica, mas
na
melhoria
dos
aspectos
comunicativos
e
interacionais do texto, bem como pragmático-discursivos que o envolvem.
Considerações finais: As competências envolvidas na produção de um texto acadêmico, portanto, longe de serem fenômeno espontâneo e automático (um dom ou um passe de mágica), envolvem aprendizagem que ocorre em um processo recursivo, com muitas idas e vindas. Por isso, seu “treinamento” constante somado aos conhecimentos construídos com base tanto em aulas quanto em buscas autônomas é crucial. E, nessa busca pela qualidade dos textos, é preciso considerar-se
as
atividades
“leitura-apreensão”,
pois
de
“revisão-reescrita”
corroboram
para
e o
desenvolvimento de habilidades que tornam o processo de escrita mais efetivo e, assim, pela prática, chega-se à proficiência
na
produção
de
determinados
gêneros
textuais acadêmicos. Muitas vezes, é dessa produção efetivada,
mais
fluida
porque
desenvolvida 358
adequadamente, que nasce o “prazer” em escrever que alguns
alunos
apresentam,
capaz
de
confundir
os
observadores menos informados, que o julgam, como sendo “dom e inspiração mágica”.
359
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