ESCRITA MIDIÁTICA E ESCRITA LITERÁRIA NOS PRIMEIROS ARTIGOS PROUSTIANOS

June 26, 2017 | Autor: Yuri Anjos | Categoria: Media and Cultural Studies, Marcel Proust, Press and media history
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ANEXO 02 Artigo publicado nos Anais do CIELLI

ESCRITA MIDIÁTICA E ESCRITA LITERÁRIA NOS PRIMEIROS ARTIGOS PROUSTIANOS

Yuri Cerqueira dos Anjos (USP/Fapesp) O presente trabalho é derivado de um projeto de Doutorado iniciado em 2012 na Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Philippe Willemart, com o financiamento da Fapesp. O objetivo desta pesquisa é traçar novas linhas interpretativas da produção jornalística proustiana tendo como base os novos estudos (sobretudo de linha francesa) acerca da relação entre literatura e imprensa, interpretação e estudo do suporte. Em janeiro de 1859, em um artigo de duas partes publicado no Correio Mercantil, artigo intitulado “O Jornal e o Livro”, Machado de Assis, faz uma análise interessante do lugar que a imprensa periódica ocupa no contexto literário, social e econômico do século XIX: “O jornal, invenção moderna, mas não da época que passa, deve contudo ao nosso século o seu desenvolvimento; daí a sua influência” (ASSIS, 2011, p. 50). Machado demonstra com essas palavras uma sensibilidade aguda à ideia que reaparece em alguns estudiosos contemporâneos da imprensa, quando, ao se debruçarem sobre o século XIX, propõem nomenclaturas e termos do tipo “O Século da Imprensa” (CHARLE, 2004), “A Era Midiática” (THÉRENTY e VAILLANT, 2001) ou “A Civilização do Jornal” (KALIFA, RÉGNIER, THÉRENTY, VAILLANT, 2011). Se quisermos, portanto, analisar as relações que Marcel Proust estabeleceu com a imprensa de seu tempo, é preciso levar em conta que ele se encontra num momento já avançado desse processo acelerado de desenvolvimento e de evolução que se perfaz no seio da imprensa periódica. Na Belle Époque francesa, a imprensa já é um fator largamente inserido no contexto social e cultural, sendo um dado que já faz parte do quotidiano ao contar com jornais de larga difusão e amplo público leitor. O período de

1890-1910, onde encontraremos boa parte da contribuição proustiana à imprensa, é justamente quando os primeiros grandes jornais diários parisienses atingem a marca de um milhão de exemplares (FEYEL, 2007, p. 136). Dentro desse quadro de efervescência, vamos analisar os primeiros contatos de Proust com a imprensa e tentar mostrar como desde muito cedo ela influencia o seu processo de escrita, no intuito de repor no primeiro plano uma questão geralmente tida como secundária ou menor. O período que iremos abordar (de 1888 a 1891) é um período no qual Proust ensaia os seus primeiros passos numa carreira literária cujos contornos ainda são muito pouco definidos. O interesse desses primeiros projetos não está tanto no tamanho do corpus (o nó da produção jornalística proustiana de encontra no período de 1892-1912), mas no fato de mostrar como imprensa e literatura dialogam nos anos de formação do futuro escritor. Dada a efervescência da imprensa na Belle Époque, não é de espantar que no final dos anos 1880 a criação de pequenas revistas seja inclusive um hábito comum entre jovens colegiais. Dentre esses jovens, encontramos justamente Marcel Proust que, aos 17 anos de idade, funda com colegas do liceu Condorcet, La Revue verte (Revista verde), e em seguida, ainda no mesmo ano, La Revue lilas (Revista lilás). Essas revistas são efêmeras, manuscritas e amplamente ligadas ao contexto escolar; o próprio nome Revue verte seria uma referência à cor do papel que deveria ser usado nas lições. Mesmo Proust afirma que o objetivo da Revue verte seria o “simples divertimento” e que “os artigos escritos por brincadeira não passam de um reflexo inconsistente da mobilidade de imaginações que se divertem” (PROUST, 1971, p. 332), mas ainda assim tais empreitadas são reveladoras de uma ligação intrínseca entre as ideias de ambição ou iniciação literárias e o formato periódico. Como dirá J-Y Tadié: “Seu gosto pelas revistas anuncia a sua vocação literária” (TADIÉ, 1996, p. 167). De volta ao texto onde o jovem Proust, na condição de “secretário” da Revue verte, se opõe a seu colega Daniel Halévy, que queria copiar e conservar ao menos alguns artigos da revista, podemos notar justamente uma visão muito perspicaz da relação entre a produção dos artigos e as demandas específicas do suporte em questão. Proust traça uma série de considerações para que a revista não se torne pública “considerando que a Revue verte, por não ser nem pagante nem reproduzida em um grande número de exemplares, é completamente

diferente das folhas ditas públicas, que ela existe apenas para o divertimento de um círculo muito restrito e inteiramente seleto, que seus diretores são livres para impor, a leitores que eles escolhem, condições que lhes agrada” etc. (PROUST, 1971, p. 332)

Ao contrapor o seu projeto ao projeto de uma revista de ampla difusão, o jovem Proust já parece ter consciência das exigências e consequências da escritura para a imprensa. Em certa medida, ele busca fazer da sua revista um negativo da imprensa. Primeiramente, ele se mostra atento à problemática da circulação pública dos escritos, ao propor uma revista dirigida a leitores escolhidos. Essa primeira característica, que expõe a interferência do leitor no processo de escrita, talvez seja uma característica de qualquer texto, porém segundo Proust, no caso da revista, com textos que se fazem espontaneamente e às vezes às pressas devido à exigência de periodicidade e ao objetivo primário da revista, uma circulação mais ampla acabaria por limitar a imaginação devido à “reserva imposta por alguns leitores”. Aqui, a preocupação parece ser voltada principalmente às possíveis críticas a esses textos que se querem despretensiosos, o que restringiria o poder de alcance dessa colocação, porém não podemos deixar de perceber que tal texto já sugere a profunda interrogação acerca da relação leitor-texto-escritura, questão que Proust perseguirá em toda a sua literatura. Em seguida, ainda no mesmo trecho, podemos observar a sua compreensão da coletividade da escrita na revista. Seu objetivo é também de restringir esse dado ao mínimo: ou seja, a um “seleto grupo de diretores”; Mas o fator coletivo é incontornável, uma vez que parece haver um objetivo comum entre as “imaginações que se divertem”, e que o próprio texto do secretário pressupõe uma organização interna (ou um pseudocorpo editorial) e um diálogo a fim de delimitar um acordo quanto à natureza da publicação. Dessa forma, a partir de um tom fortemente paródico, Proust já começa a jogar de maneira muito interessante com as características básicas da escritura periódica. Já ao atentarmos para os textos da Revue lilas que chegaram até nós, podemos sentir uma presença mais forte da vocação literária de Proust. Segundo Robert Dreyfus, amigo de Proust que também participava da revista, a Revue lilas, era composta em um

fino caderno roxo pálido que eles adquiriam numa papelaria do Havre, ao lado do liceu Condorcet. Mais uma vez, então, estamos certamente diante de um projeto de proporções minúsculas, cuja importância pode ser questionada inclusive pelo fato de nenhum exemplar ter sido conservado. Contudo, graças ao próprio Robert Dreyfus, conseguimos hoje ter acesso a dois manuscritos onde encontramos rascunhos de dois artigos (o primeiro, uma espécie de diário íntimo, e o segundo, uma crítica teatral) que Proust destinou à Revue lilas. A leitura desses textos nos permite reavaliar a importância desse projeto, tendo em vista que alguns fatores centrais de toda a produção proustiana mais uma vez aparecem, porém nesse caso com mais força literária. Vejamos mais de perto o primeiro deles: Para a Revista Lilás. Sob reserva de destruição ulterior. A meu querido amigo Jacques Bizet Quinze anos. 7 horas da noite. Outubro O céu é de um violeta escuro marcado por manchas brilhantes. Todas as coisas estão negras. Eis as luminárias, o horror das coisas usuais. Elas me oprimem. A noite que cai como uma tampa negra cerra a esperança, amplamente aberta ao dia, de escapar. Eis o horror das coisas usuais, e a insônia das primeiras horas da noite, enquanto acima de mim tocam-se valsas e eu escuto o ruído crispante das louças remexidas em um cômodo vizinho (PROUST, 1971, p. 333).

Nesse texto vemos Proust evocando temas como a memória (ao evocar os seus “quinze anos”), o drama do sono/insônia, a figuração do quarto como espaço da individualidade, a perspectiva do voyeur, etc. Temas muito presentes na obra romanesca de Proust que encontram num projeto de revista a sua primeira figuração. Cabe ressaltar o pedido de “destruição ulterior”, que parece mostrar o pouco apego que Proust tem ao artigo em questão, mas que contraditoriamente traz à tona um desejo, ainda que efêmero e restrito, da mise-en-public, da divulgação desse mesmo escrito. A revista parece se configurar assim como um espaço de rasura, onde ao mesmo tempo o texto se perfaz materialmente e prefigura presença de um texto futuro. Ainda no mesmo texto:

Dezessete anos. 7 horas da noite. Outubro. (...) Eu estou deitado. Minha luminária colocada perto da minha cama sobre uma mesinha, em meio a copos, frascos, bebidas frescas, pequenos livros preciosamente encadernados, cartas de amizade ou de amor, clareia vagamente no fundo da minha biblioteca (PROUST, 1971, p. 333-334).

Nesse trecho adentramos ainda mais profundamente na vertente literária proustiana. O quarto é definitivamente um de seus temas de predileção, os efeitos visuais e a atenção ao detalhe também não podem deixar de ser notadas. No estilo que sentimos o germe da tão comentada sintaxe complexa que faz de Proust um autor inconfundível. Pouco a pouco notamos a aparição de alguns procedimentos adotados quase obsessivamente, como, por exemplo, o distanciamento entre o sujeito (“minha luminária”) e o verbo (“clareia”). No caso dessas primeiras revistas, ainda não podemos falar de uma inserção proustiana no regime da imprensa do seu tempo. Pelo seu caráter escolar, restrito e manuscrito, essas revistas não impõem uma delimitação de estilo e gênero como aquela encontrada nas publicações periódicas impressas e de maior difusão. Contudo, o mais importante nesse momento é observar como esse projeto transparece uma interessante necessidade de enquadrar a escrita em um contexto midiático, ainda que ficticiamente, ou por “divertimento”. Em seguida, após sua entrada na Escola de Ciências Políticas, Proust participa na redação de um periódico mais elaborado, dessa vez impresso, e com uma gama maior de rubricas e temas, Le Mensuel. Essa maior variedade permitirá a Proust um trabalho de escrita mais intenso no qual ele se aventurará por diversos gêneros, como a crítica literária e o comentário mundano, binômio esse que se revelará muito fértil no percurso de escritura proustiano, mas também de gêneros mais “puramente” literários como a poesia e o conto. Além disso, diferentemente das revistas colegiais, os exemplares do Mensuel foram conservados e são importantes por ser o testemunho mais antigo da contribuição

proustiana à imprensa, além de terem trazido os primeiros textos impressos de Marcel Proust. Apesar de praticamente sozinho ao lado de Otto Bouwens na redação da revista, parece haver uma distinção mais ou menos rígida da rubricas entre os dois autores. Proust ficará encarregado do tema da moda, que tomaremos como exemplo: um simples petit chou, de cor terna, azul celeste de preferência, jogado neste conjunto severo como um pensamento mais alerta, mais contagiante, no meio de uma dissertação grave: eis o chapéu (apud TADIÉ, 1996, p. 217)

De fato um tema cada vez mais comum nas publicações da época, sobretudo com a ascensão paulatina da fotografia e da imprensa especializada, a moda se coloca como ponto importante no cenário da escritura de imprensa da Belle Époque. Porém para Proust o comentário da moda, mais do que um gênero de escritura com moldes específicos, parece se tratar de um espaço de reflexão e de trabalho criativo. Aliás, “é pela moda que o jovem Proust descobre a passagem do tempo” (TADIÉ, 1996, p. 218). Outro fator importante nos escritos de Proust para essa revista é o uso de pseudônimos. Além de evocar uma forte influência Stendhaliana, o uso da pseudônimos é um fenômeno comum na escrita periódica da época. Ora, primeiramente esse procedimento tem por objetivo camuflar a escassez de autores do Mensuel, e dar a ilusão de escritura coletiva. Em segundo lugar, ele parece permitir a Proust a superação das hesitações presentes nas primeiras revistas e a criação mais livre, ampliando as possibilidades e as descobertas da sua produção literária. A ideia de rasura parece agora dar lugar à ideia de ensaios, ou se pensarmos num paralelo com a pintura, à ideia de estudos. O uso de nomes como “Etoile Filante”, “De Brabant”, etc., não são decerto procedimentos aprofundados de construção literária, porém parecem fazer parte importante do princípio proustiano de pesquisa estilística e filosófica através da escritura, princípio que se plasmará, por exemplo, nos seus “pastiches”, compostos posteriormente para o jornal Figaro, onde ele incorpora o estilo/pensamento de autores como Balzac, Flaubert e outros. Assim, elementos que dizem respeito à escrita midiática serão trabalhados por Proust desde o começo e serão fortemente inscritos na sua concepção literária. Analisando esse pequeno panorama do ponto inicial da trajetória de Proust é verdade

que deixamos de lado boa parte dos seus escritos de imprensa, porém já podemos afirmar com certa convicção a pertinência desse campo de pesquisa que é o diálogo entre imprensa e literatura nos escritos proustianos. Nesse período inicial, o imaginário midiático e o suporte material da imprensa se mostram como uma espécie motor de escritura. Projetos e textos variados mostram um tateio na e pela imprensa do seu desejo de escrever. Já nos primeiros contatos, a ideia de imprensa periódica surge então como um gatilho, um lugar de descoberta e de exploração de diversos temas e formas que configurarão pouco a pouco as bases da escrita proustiana. Sendo assim, a imprensa já parece dar espaço ao processo em espiral que atravessa a escritura proustiana onde um tema reaparece e é retrabalhado em diversos momentos diferentes. Finalmente, cabe ressaltar aqui a difícil tarefa do pesquisador em lidar com dois fatores concomitantes. O primeiro seria o de levar em conta os meandros de uma escrita de imprensa que flutua sempre entre as demandas estilísticas midiáticas e uma tendência à criação literária mais livre. O segundo elemento seria a difícil tentativa de mostrar os escritos de imprensa não como um simples rascunho da Recherche, mas talvez pensar a Recherche como um fruto, entre outras coisas, do trabalho de escrita que ele desenvolveu na imprensa. Diante disso, ao que parece, se por um lado os estudos dos escritos proustianos para a imprensa ainda são relativamente escassos, por outro lado, podemos e queremos crer que eles terão um futuro promissor. Referências: ASSIS, Machado de. O Jornal e o Livro. São Paulo: Penguin e Companhia das Letras, 2011. CHARLE, Christophe. Le Siècle de la presse. Paris, Seuil, 2004. FEYEL, Gilles. La Presse en France – Des origines à 1944. Paris: Ellipses, 2007. KALIFA, RÉGNIER, THÉRENTY, VAILLANT. La Civilisation du Journal. Paris: Nouveau Monde, 2011.

KOLB, Philip. Correspondance de Marcel Proust – 1880-1895. Paris: Plon, 1970. PROUST, Marcel. Contre Sainte-Beuve. Paris: Gallimard, 1971. (Col. Bibliothèque de la Pléiade). TADIÉ, Jean-Yves. Marcel Proust - Biographie. Paris: Gallimard, 1996. THÉRENTY, Marie-Ève e VAILLANT, Alain. 1836: L’An I de l’ère médiatique. Paris: Nouveau Monde, 2001.

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