ESCRITO COM CAL E COM LUZ A partir da poética visual de Carlos de Oliveira

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Renato Roque

ESCRITO COM CAL E COM LUZ A p artir da po ética visual d e Carlos de Oliveira

2015

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Índice 1.

2.

Introdução ............................................................................................................................................................ 3 1.1.

O neo-realismo........................................................................................................................................... 4

1.2.

Carlos de Oliveira e o neo-realis mo .....................................................................................................14

1.2.1

Carlos de Oliveira e as contradições internas ao neo-realismo.............................................15

1.2.2

A poética de Carlos de Oliveira ...................................................................................................17

1.2.3

A reescrita permanente em Carlos de Oliveira.........................................................................20

Carlos de Oliveira e a poética da memória ...................................................................................................29 2.1 Micropaisagem e a fotografia .......................................................................................................................32

3.

O neo-realismo e a fotografia .........................................................................................................................36 3.1 Carlos de Oliveira e a fotografia....................................................................................................................46

4.

O ensaio fotográfico..........................................................................................................................................50

2

Diz a fábula de Anteu, como sabem, que é preciso tocar de vez em quando a terra para não sucumbir. Pois para criar também. Carlos de Oliveira, O Aprendiz de Feiticeiro

1.

Introdução

Eu penso que a memória entra pelos olhos Herberto Helder

Este pequeno “texto” (ensaio?), intitulado ESCRITO COM CAL E COM LUZ, foi escrito para acompanhar um “ensaio fotográfico” com o mesmo nome, inspirado na obra literária de Carlos de Oliveira, em especial no seu livro Micropaisagem, de 1968, onde, em nossa opinião, a memória e o tempo, que atravessam todos os livros do autor, parecem desempenhar um papel ainda mais crucial, permitindo estabelecer um elo ainda mais forte do trabalho do escritor com a fotografia. O texto foi construído num espaço orientado segundo três eixos quase ortogonais: a) o neorealismo, de que Carlos de Oliveira foi um dos membros mais relevantes, as contradições no seio desse movimento e a posição de Carlos Oliveira perante elas; b) o autor e a sua obra, sobretudo aquela que se pode ligar de uma forma mais visual e mais física às memórias de infância, à sua casa na Gândara e à paisagem gandaresa; c) a fotografia e o neo-realismo em Portugal. A escrita serviu-nos também, como quase sempre acontece, para organizar e sedimentar a nossa reflexão, à medida que líamos o autor e aqueles que sobre ele reflectiram, e à medida que fotografávamos e editávamos o ensaio imagético a partir das fotografias realizadas. O texto final é pois sobretudo um patchwork de diversos testemunhos referidos na bibliografia e de palavras do próprio poeta, cosidos com uma linha pessoal que foi sendo tecida a partir da leitura da obra. Tal como o poeta, que nos inspirou, poderíamos dizer se tivéssemos o talento para tal: De quando em quando paro a medir a altura das estrelas e então, se quero seguir adiante, ordeno certas ideias em alíneas. Carlos de Oliveira, Aprendiz de Feiticeiro

Tentaremos pois aqui ordenar as nossas ideias em alíneas. Dir-me-ão se as estrelas brilham ou se estão completamente apagadas.

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1.1. O neo-realismo A poesia está na luta dos homens, está nos olhos abertos para amanhã. Mário Dionísio, Arte Poética

Tendo Carlos de Oliveira pertencido ao chamado movimento neo-realista português desde o princípio, tendo sido mesmo, sem contestação, um dos seus membros mais proeminentes, parece fazer sentido começar por tentar fazer aqui uma deambulação muito curta pelo que esse movimento significou, esboçando assim um primeiro mapa do território, onde o poeta se movimentou, e onde nós planeamos nos movimentar, procurando-lhe as pegadas na areia, no seu encalço. Na caracterização do neo-realismo e das suas tensões internas tentaremos, sempre que possível, recorrer a testemunhos desse tempo, do próprio poeta, ou de seus companheiros e adversários. Tentaremos expressar algumas razões por que concordamos com aqueles que dizem que o neo-realismo era um movimento heterogéneo e não um movimento fechado e monolítico, em que alguns parecem continuar a querer acreditar. Talvez tivesse sido mesmo impossível, sem essa heterogeneidade do movimento, o surgimento de obras literárias dentro de si, como é o caso livro Micropaisagem de Carlos de Oliveira. E vai ser este livro o centro da nossa aventura literária e fotográfica. Antes de tudo, é importante dizer que o neo-realismo em Portugal só pode ser entendido se contextualizado na situação política, económica e social do país, depois da instauração do Estado Novo. O neo-realismo constitui claramente um movimento artístico de resistência à ditadura. Surge no fim da década de 30, quando a censura e a polícia política eram sombras permanentes a espreitar por cima do ombro dos criadores e dos artistas. Decorria a guerra civil em Espanha, anunciava-se a segunda guerra mundial, como uma ameaça terrível da Alemanha nazi sobre a Europa. Segundo Mário Dionísio, um dos seus fundadores, o movimento surgiu de uma forma relativamente espontânea, juntando artistas de vários pontos do país, que sentiram a necessidade urgente de procurar um caminho diferente, que pudesse servir a luta anti-fascista, e que de uma forma natural se foram aproximando. Há uma lenda que tenho tentado desfazer, com dificuldades, porque há quem não esteja interessado em desfazê-la; o neo-realismo não foi encomendado por ninguém, o neo-realismo não foi encomendado por ninguém, por nenhuma força política, surgiu espontaneamente. Como? Guerra de Espanha, uma consciência da luta política que foi nascendo, a princípio apenas um sentimento de revolta. Eu comecei a escrever coisas que o exprimiam, e ao mesmo tempo começavam também pessoas que só conheci depois – o Redol em Vila Franca, o Manuel da Fonseca em Santiago do Cacém, o Joaquim Namorado em Coimbra, o Ramos de Almeida e o Afonso Ribeiro no Porto. E foi o que escrevemos, que apareceu neste ou naquele jornal, que nos vai aproximar uns dos outros e constituir um grupo.[…] Há realmente no ar a ideia de que o neo-realismo seria uma encomenda de um partido político, mas não é verdade, porque nós nem nos conhecíamos uns aos outros – passámos a conhecer-nos e a sermos amigos quando começaram a aparecer coisas nossas em vários jornais orientadas de uma maneira muito parecida. [… ] Acontece é que muitos de nós viemos a pertencer depois, muito depois, ao PCP. Mário Dionísio, Entrevistas

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Segundo Mário Dionísio o movimento não terá pois resultado de uma iniciativa planeada do Partido Comunista, nem surgiu como uma vanguarda artística para romper com outras vanguardas. Mas, num ambiente de repressão violenta e de perseguição policial, a resistência era muito dura e muito difícil. E nessa luta, como é indiscutível, os comunistas desempenharam papel de relevo, e foram mesmo em muitos momentos os únicos a manter acesa a chama da esperança. É portanto natural que a resistência no campo artístico, que se alicerçara com o neo-realismo, também tivesse sido em muitas situações, em grande medida, enquadrada pelas orientações do partido comunista. E, como Mário Dionísio reconhece, muitos dos principais artistas neo-realistas tiveram, sobretudo na década de 40, ligação ao partido. Nessas entrevistas, Mário Dionísio também expressa muitas vezes a convicção de que a designação “neo-realismo”, adoptada a partir de um texto de Joaquim Namorado, não foi feliz, por poder induzir em erro, ao dar entender que se estava ou perante um regresso ao realismo do século XIX ou numa aproximação ao chamado realismo socialista. Afirma com clareza que tal aproximação não seria possível, pois muitos dos neo-realistas eram grandes defensores da chamada arte moderna. A publicação do romance Gaibéus de Alves Redol em 1939 é muitas vezes apresentada como o marco fundacional do movimento literário. Mas tinham ocorrido acontecimentos anteriores que prepararam e contribuíram para consolidar o movimento. Essa publicação fora por exemplo precedida de uma conferência, intitulada Arte, em 1936, onde o mesmo Alves Redol expressara já os princípios norteadores do neo-realismo: “não é a sociedade que serve o artista, mas o artista que serve a sociedade” … “a arte deve contribuir para o desenvolvimento da consciência e para melhorar a ordem social” … “a arte pela arte é uma ideia tão extravagante em nossos tempos, como a da riqueza pela riqueza ou da ciência pela ciência” … “a arte deve servir para algum proveito essencial e não deve ser apenas um elemento estéril”. Muito mais tarde, Alves Redol afirmaria acerca de Gaibéus, no prefácio à 7ª edição do livro, que este era “um compromisso deliberado de reportagem com o romance em favor dos homens olvidados e também da literatura aviltada”. Inspirado pelas teorias marxistas do materialismo histórico e dialéctico, divulgada nos meios políticos e intelectuais portugueses em meados dos anos 30, o movimento cultural do Neo-Realismo começa a desenhar-se a partir de importantes polémicas literárias então publicadas em periódicos como O Diabo, Sol Nascente e, alguns anos mais tarde, a revista Vértice, que afirmavam uma veemente oposição ao 1 subjectivismo presencista , ao defenderem uma “arte útil” virada para os problemas reais da sociedade, fazendo assim a ruptura com o ideário romântico e positivista do século XIX. [… ] In Museu do Neo-Realismo em Portugal

O neo-realismo é dinamizado por um grupo de pessoas com uma leitura marxista do mundo e surge como reacção às atitudes individualistas e idealistas e ao chamado humanismo burguês, designado no texto acima do Museu do Neo-realismo por “subjectivismo presencista”. Defende o realismo, não um regresso ao realismo do século XIX mas um realismo de tipo novo, um realismo transformador, ao serviço da luta do povo. Contrapõe ao individualismo uma poesia em nome do colectivo, transformando muitas vezes o “eu poético”, introspectivo, lírico, 1

Como veremos é dis cutível afirmar que os escritores neo-realistas “afirm avam uma veemente oposição

ao subjectivismo presencista”. 5

no “outro” ou no “nós”, introduzindo uma espécie de poesia coral, como refere Rosa Maria Martelo: uma dimensão de alteridade para o texto lírico, sem que a presença do outro implique o apagamento do eu, que mantém a posição de sujeito, mas integrando a busca de si num colectivo que se procura. É nesse movimento de integração do outro que é simultaneamente integração do eu, de passagem aos nós que pode considerar-se inverso da desintegração modernista do eu.[…] A opção pelo lirismo coral, comum certamente à maior parte dos poetas neo-realistas, e sem excluir a ocorrência de momentos solistas… Rosa Maria Martelo

Este processo de transformação é descrito muito bem na poesia Segundo Nascimento de Mário Dionísio. Não há mais eu e eles porque passou a haver unicamente nós. (...) Agora que deitei fora as lentes emprestadas, e mandei ao diabo as crenças emprestadas, e cuspi no altar das coisas consagradas, agora, sim: sou eu Mário Dionísio, em Segundo Nascimento no livro Poemas

Este “eu”, que reaparece no fim do poema de Mário Dionísio, permanece como um eu lírico na poesia neo-realista, mas deixa de ter a condição de solista absoluto, a favor de uma condição de membro de um coro. “Não é, portanto, o subjectivismo que desaparece, mas apenas a vertente individualista deste”, como escreve Rosa Maria Martelo, ou até talvez se pudesse dizer “apenas a vertente mais individualista deste”. Como afirma Rosa Maria Martelo, há várias consequências ao nível da escrita, determinadas pela procura de uma poesia de combate, apelativa e exortativa. São várias as consequências da integração da função apelativa na poética neo-realista. Em primeiro lugar, implicou a adequação do discurso a um público que se pretendia vasto e que se sabia pouco preparado para a leitura da poesia; em segundo lugar conduziu ao empolamento imperativo e exclamativo do discurso e, finalmente, à opção pelo canto, no sentido mais restrito do termo, isto é, por uma poesia que previa, frequentemente, a declamação ou a adaptação a uma partitura musical. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

Essa poesia é também marcada por um conjunto lexical, que deriva directamente de uma concepção marxista do devir. "Esperança", "Manhã", "Futuro" ou "Amanhã" são algumas das lexicalizações poéticas da utopia decorrente da aceitação dos princípios do materialismo histórico. Este será, aliás, um dos aspectos mais problemáticos da poesia neo-realista, na medida em que traduz o modo como esta se apoia em quadros de referência externa, vendo drasticamente diminuída a função heurística inerente à poesia, ou abdicando dela e limitando-se à expressão de uma versão-de-mundo marxista, isto é, de um horizonte previamente descoberto. Rosa Maria Martelo,

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E um dia virá uma primavera diferente de todas as primaveras, como também escreve Mário Dionísio. … Um dia (ah! sinto-o bem para além das milhentas folhas de todos os tratados) uma onda de amor invadirá tudo e todos. E será uma primavera diferente de todas as primaveras, porque ainda não foram inventadas as palavras para exprimi-la. … Mário Dionísio, Depois de mim

Mas, se parece ser incontestável que o neo-realismo sempre se assumiu como um movimento a favor da justiça e da liberdade, como um movimento constituído por pessoas que pretendiam criar uma arte que reflectisse a sua concepção marxista da história e do mundo, é fácil observar que houve, desde o início, no seu seio, contradições e concepções diferentes e até alguns equívocos, que se prolongaram no tempo, e que por vezes parecem até, em grande parte, permanecer por resolver. De facto, na visão de alguns, desse tempo e de hoje, o que caracterizava o neo-realismo era uma visão funcional da obra de arte, que deveria ser um mero espelho da luta de classes e dessa forma ajudar a lavrar o terreno ideológico a favor do socialismo e da revolução. As obras deveriam ser acessíveis, deveriam ter como destinatários leitores do povo, deveriam escolher temas baseados na injustiça social e na luta corajosa travada contra ela pelos operários e camponeses, deveriam mobilizá-los para a luta, deveriam fazê-los acreditar num futuro melhor. Esta visão, que se revelaria estreita e sectária, combatia todas as outras formas de arte, pretensamente decadentes e sobrevalorizava o chamado conteúdo à forma. Como escrevia Rodrigo Soares, considerado um dos doutrinadores mais intransigentes do movimento: Os poetas, que continuarão a parecer-se com os poetas de todos os tempos, terão de adquirir a convicção de que a poesia tem uma missão a cumprir: a de cantar novas realidades e entoar novos hinos. Eles não poderão esquecer o que disse Thomas Mann, numa fórmula admirável: "Só a verdade é capaz, de exaltar a vida". Os poetas terão de considerar temas inferiores o elogio do desinteresse, do desalento, da morte, da humilhação, e a descrição inútil dos momentos fúteis. (...) Os poetas terão de tentar reduzir o lirismo subjectivo borbulhante aos limites regrados de uma expressão adequada da vida que todos vivemos e das grandes realidades que nos esmagam ou nos erguem os corações. Rodrigo Soares, in Missão dos Novos Escritores, Diabo, 1939

Mas, desde o início, houve também vozes que contestaram esta visão simples e mecanicista e que compreenderam o papel da arte como forma suprema de conhecimento e de criação. António Pedro Pita resume esta contradição afirmando que existiam duas concepções antagónicas no seio do neo-realismo: a) a arte como um reflexo ou como uma imagem do mundo, como um processo de mediação, ou seja, a arte como um objecto-espelho b) a arte como expressão, como processo de transformação a partir do real, utilizando a árvore como metáfora deste processo. A arte como espelho, reflectindo o real, o mundo do trabalho, contando as suas lutas e galvanizando os oprimidos, está patente no discurso de Alves Redol que citámos. Este discurso

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acentua-se em autores como António Ramos de Almeida que escreve por exemplo em A Arte e a Vida, criticando duramente o afastamento da realidade dos modernistas: “os olhos habituados a ver a realidade da vida ficavam escandalizados diante da pintura moderna”. Nesse seu texto responsabiliza os pintores modernos pelo “fosso aberto no século XIX entre a arte e a vida”. António Ramos de Almeida requer da arte a fidelidade absoluta com que a realidade se veria reflectida num espelho da sua dimensão. António Pedro Pita, em Conflito e Unidade no Neo-Realismo Português

Mas essa visão, que reduzia a arte a uma função de espelho reflector do real filtrado pela ideologia marxista, foi discutida e contestado desde o início, como refere António Pedro Pita. Em vez de um espelho, a arte como árvore. Uma árvore de raízes enterradas bem no fundo, no mundo, no real, uma árvore que a partir da terra se desenvolve, cresce e cria um ser e frutos novos, que não poderão ser um mero reflexo do mundo. Essa polémica existiu desde o início, como testemunha Mário Dionísio. Houve sempre uma polémica interna, a que hoje normalmente se não dá grande atenção. Mário Dionísio, Entrevistas

No plano teórico é sem dúvida sobretudo Mário Dionísio2 quem dá corpo a esta visão-árvore e quem mais elabora no sentido de permitir ao neo-realismo romper com as amarras apertadas que alguns lhe pretendiam impor. Já em 1937, num artigo intitulado A propósito de Jorge Amado, o autor escrevia, “Parece-nos, portanto, acanhado considerar a arte, mesmo a mais subjetiva (o que nos parece bem diferente de impermeável ou inatingível), inútil ou perigosa… Toda a arte tem, voluntária ou involuntariamente o fim de revelar o homem”…”o real para nós não é também unicamente o palpável, mas o que ainda não é, mas será. Vem a propósito citar a opinião de Marcel Gromaire: o real não é somente o que é do domínio da nossa mão, do domínio da nossa vista, é também o que é do domínio do nosso espirito e o que ainda não é do domínio do nosso espírito. “. Ou seja, realmente como afirma Pita, ainda antes da publicação de Gaibéus, a polémica já estava instalada: …a polémica já está instalada no âmago da elaboração estética marxista: por um lado, um realismo que exponha um real contraditório (sendo o neo a consciência do carácter histórico e social da contradição); por outro, uma estrutura realista que revele mesmo o que ainda não é da ordem do visível. António Pedro Pita, em Conflito e Unidade no Neo-Realismo Português 2

Para além de inúmeras entrevis tas , artigos , conferências deveremos realçar es s a obra notável intitulada A Paleta e o Mundo que apes ar de dedicada em especial à pintura retrata com profundidades todas as questões ideológicas, artís ticas e es téticas do neo-realis mo. Paleta e o Mundo é um livro de certo modo polémico, porque é o livro de uma pessoa que estudava muito essas coisas da arte do passado e do presente, etc., de certo modo contra a corrente. Dentro do meu próprio campo – dessa grande corrente – havia quem pensasse ao contrário de mim. Ou era eu que pensava ao contrário de quase todos. Mário Dionísio, Entrevistas

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A arte, mesmo a mais subjectiva, contribuiria, na opinião de Mário Dionísio, para revelar o homem como elemento do real e esse real incluiria também o que não há mas que deve ser antecipado, correspondendo a arte portanto a um discurso de descoberta ou de revelação. Já em 1945, numa célebre entrevista ao jornal Primeiro de Janeiro, Mário Dionísio procura contrariar a ideia de quem advoga que o neo-realismo é caracterizado por uma linha estética marcada, que impede a pesquisa e a procura de novas estéticas. Para Mário Dionísio o neorealismo sempre foi um movimento “com várias tendências internas e pessoalíssimas. E é o que a simples leitura de Redol e de Carlos de Oliveira, de Manuel da Fonseca e de Joaquim Namorado, de Namora ou de João Cochofel – meros exemplos – facilmente mostrará”, afirma o autor. Foi sem dúvida Mário Dionísio quem teve um papel de maior realce no combate contra uma tentativa de transformar o neo-realismo numa literatura ortodoxa, monolítica, rígida, esquemática, epítetos que ele próprio utiliza. E ele próprio reconheceria, muito mais tarde, que o sucesso dessa sua luta tinha sido porventura reduzido. O que caracteriza o neo-realismo não é a técnica usada (ele deve por enquanto abarcar todas, visto que novas linguagens só podem criar-se através do lento aproveitamento, em síntese, das linguagens existentes), nem os motivos que o atraem de preferência. O que o caracteriza é a posição em que se coloca ideologicamente perante eles [… ] Para o neo-realista, não se trata de copiar a natureza, como o naturalismo pretendeu, nem de interpretá-la, como tem feito com tanto êxito o modernismo, mas de transformá-la. Os neo-realistas pensam que os indivíduos são um produto do meio mas que, por sua vez, esse meio é, em grande parte, produto das suas mãos.

[…]

E por isso, não está interessado (como, com tanta injustiça, se

tem pensado) em limitar o seu campo a este ou àquele personagem, a este ou àquele meio. Está interessado, sim, para poder bem reenquadrar o homem no seu todo social, em concretizar a sua visão do mundo, em cada caso e em todos os casos. É, portanto, completamente falso que um operário, uma criada de servir, um pescador sejam preferidos pelos neo-realistas, «como personagens», a um industrial, a uma filha de família ou a um banqueiro. [… ] É o que explica a necessidade da coexistência de realismo e de romantismo para a existência de neo-realismo. Por um lado, a narração da verdade, da verdade sem deturpação, tal como só pode vê-la e amá-la um homem ascendente; por outro lado, e simultaneamente, o sonho – sem o qual nenhuma obra pode viver e actuar, o sonho melhor de todos os sonhos – que é o que parte do real e tende para ele. […] Os neo-realistas repelem vivamente a lenda do seu desinteresse pelos assuntos estéticos. Essa, como a da construção de romances sem psicologia ou o estreito convencimento de que no mundo só há problemas económicos, é uma ideia superficial que não resiste ao mínimo exame. [… ] Uma linguagem nova só se conseguirá, repito, com o aproveitamento das linguagens existentes. […] Se é antinaturalista, anti-romântico, antimodernista, o neo-realista não despreza de modo algum as utilíssimas lições do naturalismo, do romantismo, do modernismo. Opõe-se ideologicamente a esses movimentos, mas nutre-se tecnicamente da sua experiência e dos seus recursos. Mário Dionísio, Entrevistas

As ideias de MD são desenvolvidas noutra entrevista do mesmo ano à revista Seara Nova e noutras entrevistas que foi dando ao longo do tempo. Contra o que algumas pessoas têm suposto, não sou partidário dum padrão único literário. Seria desconhecer os próprios processos de formação das literaturas. Correntes diferentes, se têm algo de comum e se isso que têm de comum é na verdade fundamental, enriquecem uma tendência geral, para ser mais preciso: tornam-na possível. Se luto, em especial, por determinada dessas correntes é por estar inteiramente convencido de que ela é a forma mais aperfeiçoada, mais madura, a forma verdadeiramente adulta da literatura progressiva nos nossos dias. Mas nada me impede de registar com alegria que aquilo que tem sido possível criar de literatura progressiva em Portugal regista às vezes caminhos diferentes e que, em todos

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eles, há um fundo comum: a não aceitação duma realidade inadequada às necessidades do homem da nossa época, o desejo de criação dum homem verdadeiramente livre! Mário Dionísio, Entrevistas

Para Mário Dionísio o neo-realismo não pode sequer ser considerado como uma escola literária, não é caracterizado por uma linha estética, mas deve ser visto apenas como um movimento que agrupa gente com uma concepção parecida do mundo e que tenta a partir dessa concepção descobrir uma nova estética que a possa traduzir, não recusando mas sim integrando todos os avanços artísticos realizados na história da humanidade. Desde o princípio que escrevi e não me cansei de escrever pelos anos fora que o neo-realismo não é uma escola literária, com os seus cânones dogmaticamente estabelecidos para todo o sempre, mas a expressão estética duma visão do mundo, dum modo de estar no mundo e nele agir, que não pode ser indiferente a todas as inovações técnicas que os que pensam como nós e os que pensam ao contrário vão elaborando. Por mais afastados por convicções, interesses, atitudes, vivemos todos no mesmo mundo, na mesma época. Cada descoberta torna-se inevitavelmente herança comum e seria ingénuo supormo-nos alheios àquilo mesmo que aparentemente nos contradiz ou temos de contradizer. Logo que uma inovação de linguagem se produz – se de autêntica inovação se trata –, já é impossível passar sem ela. Assim aconteceu, por exemplo, com o surrealismo, assim acontece hoje com o nouveau roman. Toda a conquista estética é um fenómeno irreversível. Mário Dionísio, Entrevistas

Rosa Maria Martelo reconhece também a dificuldade de encontrar o conceito de escola literária nos neo-realistas, que se distinguiam mais no plano ideológico, mas sem nunca terem sido capazes de fazer corresponder a essa ruptura ideológica uma ruptura estética, poética ou literária. Se ideologicamente os poetas do Novo Cancioneiro estão próximos, poeticamente é escasso o que têm de comum. […] Aos versos neo-realistas afluíam correntes de origem e constituição diversa e, apesar da coesão ideológica e clareza dos objectivos pragmáticos, jamais um grupo literário preciso se definiu numa tom ada de posição colectiva. Embora não seja difícil reconhecer nas obras que constituem o Novo Cancioneiro a tentativa de assumir um novo papel, mais interventivo, mais próximo do mundo, por parte dos seus autores, assim como um esforço no sentido de fazer pousar a poesia ao rés das vivências quotidianas e comuns, a leitura desta poesia em articulação com uma versão-de-mundo marxista não é de modo nenhum imediata. Entre si, as vozes dos poetas também não se revelam particularmente comunicantes, e é geralmente mais fácil captar a relação de cada um com a tradição poética do que sentir o que os une, além de serem poetas recortados num mesmo fundo ideológico. […] A principal característica evidenciada pelo Novo Cancioneiro, e o mesmo acontece ao longo dos anos 40 e 50, é a inexistência de uma poética coesa a reunir as obras publicadas. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

Essa dificuldade traduz-se também pela presença permanente de um espectro, a que Rosa Maria Martelo chama “o livro-a-haver”. Perante cada novo livro publicado, havia o reconhecimento de alguma crítica, vinda do núcleo dos próprios neo-realistas, de que aquele livro ainda não era o que se espera da poesia neo-realista; ou porque aqui e ali o

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individualismo do poeta o trai, ou porque a linguagem ainda não é suficientemente acessível ao povo, ou porque apresenta um perigoso excesso de virtuosismo3. Nesse livro [a haver], a poesia neo-realista "é" anti-subjectiva, anti-formalista, enraizada nas tradições populares e na poesia social pré-modernista, acessível e comunicativa, circunstancial e intervencionista, designativa de um mundo historicamente considerado, social e politicamente, e arauto do novo homem e do novo mundo que as leis do materialismo histórico permitem esboçar. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

Mas, como também a autora escreve, “O livro a-haver é quase sempre o modelo não dos poetas mas dos políticos.”. São os políticos os porta-vozes de modelos que identificamos facilmente com o realismo socialista. Será significativo referir as célebres polémicas do próprio Álvaro Cunhal, ainda que sob pseudónimo, primeiro com José Régio, em 1939, na revista Seara Nova, e depois com Mário Dionísio, através da revista Vértice, em 1954. No próprio processo de criação, como norma para alcançar um nível superior, como norma para alcançar uma forma superior, é válido o princípio: primeiro o conteúdo! Álvaro Cunhal, Cinco notas sobre a forma e o conteúdo, Vértice, vol. XIV, n° 131-2, 1954

Mas como Mário Dionísio afirma noutra entrevista “a poesia é a criação de uma realidade ainda desconhecida na nossa realidade”. Quão distantes estamos aqui da ideia de uma literatura que copia o real, de uma poética do espelho. Não consigo interessar-me por uma obra, desde que não reconheça nela um elemento de novidade autêntica. A arte não repete. O seu domínio é o do que ainda se não fez. Mário Dionísio, Entrevistas

Onde alguns viam decadência e formalismo, Mário Dionísio reconhecia a genialidade artística. [Sobre Picasso] O artista, em si mesmo, quando é um grande, um artista a sério, pode até ter ideias políticas diferentes das nossas, mas está a contribuir de facto para um progresso, está a contribuir para uma evolução. O que é preciso é que ele seja realmente um grande artista e não um produtor de coisas para vender. […] A arte é realmente um grande campo de aproximação. E é a beleza. Eu acho que a pintura ou outras formas de arte são construção da beleza. [… ] Ao contrário, um romance cheio de boas intenções, que quer transformar o mundo, mas mal feito, não chega a ser nada. Mário Dionísio, Entrevistas

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Alguns exemplos da manifestação desse “livro-a-haver”, como luz iluminadora da crítica neo-realista, poderão ser

retirados da tese de Rosa Maria Martelo. Em 1949, Raul Gomes reconhecia a qualidade do livro Colheita Perdida de Carlos de Oliveira, mas assinalava "a atitude de ‘virtuose’" … "perigosa na medida em que se presta a confusões com a ‘virtuosidade’ dos escritores individualistas", e aconselhava "transparência no sentido" e "parcimónia de metáforas". E em 1950, quando Mário Dionísio publicou O Riso Dissonante, Carlos Relvas critica o "preciosismo", a "hermeticidade e falta de acessibilidade", e escreve: "Todavia forçoso e doloroso é reconhecer que a poesia de Mário Dionísio, deste livro, apesar de todo o seu merecimento, não poderá constituir o caminho futuro da poesia neo-realista portuguesa".

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Outras ideias que Mário Dionísio procura desmistificar é a do neo-realismo como corrente eufórica ou aquela que lhe impõe uma linguagem fácil e acessível, motivo de críticas de que tantas vezes foi alvo, tal como aconteceu com Carlos de Oliveira. Há uma pergunta que se impõe: pode-se ser feliz e despreocupadamente optimista nos dias que vivemos? [… ] É que não só o grito e ingenuidade juvenil são sinais de luta. A amargura, o desespero, a raiva contida e até o desencanto de certos momentos fazem parte do processo dos que a vivem de dentro. [… ] Toda a obra nova é difícil, leva tempo a ser aceite, incomoda. Os que só querem encontrar nos livros o que já sabiam reagem desagradavelmente ao esforço que lhes é exigido. Mas... para que lêem romances? Um romance não é uma obra de divulgação ou de propaganda, comercial ou política, não é verdade? E é isto que sempre opôs e oporá os artistas aos que supõem poder dirigir a criação artística. Por mais culto e bem intencionado que seja o orientador, como poderia ele saber antecipadamente o que vai ser descoberto e como lá se chegará? Por mais que queira proteger as artes, não mais fará que atrofiá-las, porque lhes nega ou lhes restringe a sua condição primeira, que é a liberdade total. Mário Dionísio, Entrevistas

A obra deve ser comprometida com a concepção revolucionária do mundo do autor, mas como Mário Dionísio afirma amiudadas vezes nas suas entrevistas, o melhor comprometimento acontece quando ele surge com naturalidade e não é patente na obra. No que o artista inevitavelmente tem de cidadão e surgirá na sua obra por caminhos nada fáceis de determinar e me fizeram mais duma vez observar que o empenhamento (político) – o «alistamento» – do artista só é autêntico e resulta eficaz quando ele, criando, nem se dá conta dele. Quando o tem no sangue e não só na cabeça. […] O que inicialmente define o artista é a necessidade de. Dessa transposição reelaborada de si mesmo. E quando o homem é ele próprio um alistado, no que escreve ou pinta isso vai estar lá. O artista não se pode impor nada a si próprio. E o alistamento só é autêntico quando o artista já não dá por ele. Mário Dionísio, Entrevistas

A polémica no seio do movimento revelou-se muitas vezes em torno da discussão entre primazia da forma ou do conteúdo, uma questão que Mário Dionísio sempre considerou um equívoco. O valor da «linguagem» na expressão poética é total. Tudo nela é «linguagem». Não há em arte ideias, emoções, «conteúdo» para um lado e palavras, estilo, «forma» para outro. A enganadora separação entre «conteúdo» e «forma», que tanto tenho combatido e que não raro professam, na prática, aqueles mesmos que em teoria a negam, é responsável de uma série de equívocos. [… ] não aceito que haja essa realidade abstracta, que se pretende muito concreta, o «conteúdo», independente da «forma». Altera-se a «forma», altera-se toda a estrutura da obra, toda a emoção, tudo. Mário Dionísio, Entrevistas

Já depois do 25 de Abril, reafirma as suas ideias, mas ao mesmo tempo parece já reconhecer que as ideias de outros parecem ter vencido. Começo a estar com medo de que o neo-realismo seja só meu, quer dizer, são tantas as diferenças entre o que pensei sempre – e fui, sem dúvida, um dos que lançaram o movimento, ninguém me pode tirar essa pequenina glória – e o que às vezes dizem que foi o neo-realismo, que eu quase não chego a saber… [...] [O neo-realismo é] Uma nova visão do homem, de uma transformação do mundo, e do homem, uma coisa que eu tinha a ingenuidade de pensar (já estou em idade de pensar que isso era uma ingenuidade) que seria tão profunda como tinha sido o renascimento, porque era uma nova classe social que ia tomar conta do poder e transformar a sociedade. E assim como a burguesia, na sua ascensão, tinha formado o Renascimento, então uma coisa que não se podia dizer o que era, mas eu pensava no proletariado (nessa altura, punha as coisas 12

em termos assim tão simples), iria dar uma nova arte, e para essa nova arte nós não podíamos ter uma linguagem nova, já criada. Na entrevista que dei ao Primeiro de Janeiro em 1945, eu combatia a ideia de todos aqueles que achavam que o problema estava nos assuntos escolhidos – até lá digo claramente que não se tratava de falar na «criada de servir»; uma personagem de romance podia ser um banqueiro – mas na visão do mundo. […] Eu receava – parece-me que com alguma razão – que houvesse uma concepção do marxismo profundamente antimarxista. Para mim, o marxismo é uma concepção do mundo que abrange tudo, e nela está incluída a própria tradição. O facto de haver uma visão mecanicista e não dialéctica do marxismo, fazia-me recear (e cada vez penso mais que com razão) que algumas pessoas estivessem a cair numa coisa, que eu ao tempo não sabia ainda dizer o que seria, mas de que já tinha uma certa noção, que era a de separar a forma do conteúdo, e isso é para mim a coisa mais antimarxista que pode haver. [… ] queria uma arte panfletária», fazia-o com toda a sinceridade. Mas, por outro lado, claro que nós queríamos uma arte panfletária, mas em sentido não pejorativo. O que eu não sabia ao tempo pensar – o que só a experiência me ensinou – mas já queria dizer é que no homem, no criador, é que está o problema. Se tenho uma determinada visão do mundo, uma determinada sensibilidade, se sou feito duma determinada maneira, se quero profundamente a vitória de determinadas ideias, pois então a minha arte vai dizer isso com certeza. O que eu receava é que se seguisse o percurso inverso, de fora para dentro, como daí a poucos anos viria a 4 suceder, quando se conheceram os célebres textos de Jdanov , que muita gente seguiu alegremente, e não sei se ainda segue.[…] O artista criar – e deve criar livremente. Se não for livremente, não cria; faz coisas que sempre falham. Mário Dionísio, Entrevistas

Ao responder a uma pergunta em 1988, numa entrevista ao Diário, sobre se neo-realismo era ainda possível, se existia ou se estava morto, MD afirma: Não é fácil responder a essa pergunta, por várias razões. Primeira razão: o que foi o neo-realismo – e iríamos estar aqui algumas horas a conversar sobre isso, nem toda a gente pensa o mesmo. Eu tenho ideias precisas sobre o que foi, o que quis ser o neo-realismo, outros têm outras ideias, possivelmente tão precisas como as minhas. Era preciso primeiro chegar a acordo (difícil...) sobre o que é que foi e é, como nasceu. Realmente estive na primeira linha do início, tal como o Joaquim, o Alves Redol, o Manuel da Fonseca, o Carlos de Oliveira. A ideia precisa do neo-realismo para mim não vou agora dá-la, já a dei tantas vezes... É um dos meus motivos de amargura; porque se diz mais de mil vezes certas coisas e se continua sempre a dizer o contrário? Portanto, depende do que se pensar do neo-realismo se ele hoje existe ou não existe, se é válido ou não é válido. Claro que, de acordo com o que eu pensava, continua válido, mas o melhor é pensar que não senhor, que não é válido, que acabou como todos os movimentos, que têm um determinado período de tempo na história da literatura, na história da cultura e depois acabam, são talvez continuados por outros. Mário Dionísio, Entrevistas

Concluindo, o neo-realismo foi um movimento heterogéneo que integrou dentro de si escritores e poetas muito diferentes e, tal como Gastão Cruz sublinha, é fundamental não esquecer a sua importância, pois alguns dos seus autores revelaram-se como fundamentais para a evolução da poesia portuguesa. Num momento em que o proscénio era ocupado pela tendência mais retórica da poesia presencista [… ] vários poetas neo-realistas (e não valerá decerto a pena, mais uma vez, a inadequação do rótulo), prosseguiram um trabalho de revitalização do discurso poético português, quer por via de um intimismo ao arrepio do confessionalismo exibicionista e estridente, quer pela recuperação de uma densidade de uma tradição lírica, no que convergem, aliás, poetas estranhos ao movimento, como Sophia de Mello Breyner e Eugénio de Andrade. Gastão Cruz, Carlos Oliveira, uma poética da brevidade 4

Jdanov foi um fiel s eguidor de Stalin no PCUS e foi o autor de um rígido código ideológico, que definia de um a form a rígida todos os lim ites da produção cultural aceitável na URSS. 13

Ao estudarmos a história da poesia portuguesa, nas décadas de 30 a 60 do século XX, podemos identificar vários grupos e, entre eles, certamente os neo-realistas. E num plano estritamente ideológico as diferenças parecem profundas. Mas ao mesmo tempo, tal como também afirma Gastão Cruz, se definíssemos a poesia neo-realista de uma forma muito abrangente, como uma poesia de combate, como uma poesia que luta do lado dos injustiçados, teríamos de incluir nela todos os poetas que ao longo de décadas (séculos ou milénios?) não hesitaram em “sujar as mãos na temática político-social, na luta verbal contra a arbitrariedade e a violência do poder”. E nesse caso, como ele reconhece, teríamos de incluir na lista muitos poetas que nunca foram considerados neo-realistas: Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner, Alexandre O’Neill, António Ramos Rosa, Ruy Belo, Fiama Hasse Pais Brandão, Armando Silva Carvalho e Luísa Neto Jorge. E teríamos mesmo, se calhar, de nela incluir alguns surrealistas como Mário Cesariny ou Mário Henrique Leiria. O “ livro-a-haver” de que nos fala Rosa Maria Martelo nunca conseguiu ser publicado, porque correspondia em certa medida a uma ideia impossível de concretizar e como tal resultou, como afirma a autora, num “fracasso de um projecto poético”. A poesia neo-realista sofreu as consequências perversas do que foi provavelmente a sua maior utopia e a sua maior revolução (falhada): a de ter acreditado na possibilidade de uma poesia rasa e ao alcance de todos. Deste equívoco se alimentaram algumas vivências poéticas sem consistência criativa que muito contribuíram para diluir os contornos das obras efectivamente criadoras. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

Mas Rosa Maria Martelo também escreve: Mas se olhamos para a mesma poesia a partir dela mesma, do que ela quis e pôde ser, do que dela disseram os seus poetas, essa mesma poesia tem, como têm todos os movimentos poéticos em todas as épocas, obras que hoje nos parecem grandes e outras que não e, sobretudo, parece estar muito mais de acordo consigo mesma: e não parece pertinente, nem sequer legítimo debater se falhou ou não, da mesma maneira que não é legítimo nem pertinente discutir se o Modernismo falhou, ou se falhou o Surrealismo. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

1.2. Carlos de Oliveira e o neo-realismo Seul l’acte de résistance résiste à la mort, soit sous la forme d’une œuvre d’art, soit sous la forme d’une lutte des hommes. Deleuze, Confére nces Uma forma de resistência, embora momentaneamente, à opacidade interior e exterior, ambas hostis? Seja o que for, sempre compensa pelo menos as horas perdidas, os cigarros fumados. Carlos de Oliveira

Carlos de Oliveira foi indubitavelmente um escritor fundamental no movimento neo-realista português. Em Coimbra, onde estudou, criou ligações fortes, políticas e literárias, com um grupo de autores, onde podemos destacar os nomes de Joaquim Namorado, João José

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Cochofel e Fernando Namora, por vezes designados por geração de 405. Este grupo esteve ligado a vários jornais e revistas e esteve na origem da publicação de uma colecção de cadernos de poesia chamada Novo Cancioneiro6, onde Carlos de Oliveira publicaria em 1942, quando ainda era estudante universitário, o seu primeiro livro de poesia, chamado Turismo7. Todos esses escritores iriam integrar durante a década de 40 o movimento neo-realista. No grupo neo-realista de Coimbra, na década de 40, Namorado e Cochofel seriam as figuras tutelares. Pretendemos nesta secção, de alguma forma, por um lado analisar o modo como Carlos de Oliveira se situou nesse movimento, em particular perante a polémica e perante as contradições internas que apresentámos na secção anterior, aí sobretudo pela voz de Mário Dionísio, procurando agora, aqui, recorrer sobretudo à voz do próprio autor, e por outro lado tentar caracterizar a sua poética.

1.2.1

Carlos de Oliveira e as contradições internas ao neo-realismo

Verificamos facilmente que Carlos de Oliveira se colocou desde o início, no processo de discussão interna aos neo-realistas, ao lado das vozes mais críticas e menos ortodoxas. Aliás, ele foi muitas vezes o alvo dos reparos e das críticas dos mais fiéis seguidores de um modelo estereotipado. Escreveu em 1952, durante a polémica pública em jornais e revistas, e responsabilizou pela degradação da literatura portuguesa "certa teorização que postulava levianamente o desprezo da forma, exigindo sobretudo de cada romance, de cada poesia, que gritassem verdades como punhos". E acrescentava: "Mas acontece que uma obra de arte não 5

A associação do conceito de geração aos neo-realistas foi muito contestado por Mário Dionísio, que defendia que o neo-realismo não correspondia a “uma oposição de gerações, … , mas de grupos sociais, de interesses opostos, de mentalidades opostas, de atitudes opostas, de homens diferentes". 6 O Novo Cancioneiro constituiu, no plano da poesia, o marco editorial da poesia neo-realista, podendo ser considerado equivalente ao Gaibéus para o romance. Pretendia também ser um contraponto à revista Presença, ainda que, como afirma Rosa Maria Martelo, “O que do ponto de vista ideológico constituía efectiva ruptura podia não se traduzir necessariamente em processos de ruptura de amplitude equivalente no plano estético e menos ainda numa concretização poética radicalmente diferenciada“. E por isso, como Rosa Maria Martelo aponta, “as principais diatribes antipresencistas, através das quais se procurou impor uma nova geração de poetas, raramente ficaram a dever-se aos próprios poetas, ou sequer a homens de letras, mas essencialmente a homens mais vocacionados para a acção política, como foi o caso do próprio Álvaro Cunhal numa polémica célebre com José Régio, em 1939, em torno da questão da autonomia da obra de arte. O combate entre neo-realistas e presencistas é apenas no plano ideológico, sobre a função da arte e o papel dos artistas. E, se se discute a obra, a discussão centrase nas temáticas, ou seja, no célebre conteúdo, onde a discussão estava facilitada. Não há qualquer verdadeira confrontação no plano estético. “Toda a poesia do Novo Cancioneiro contém, ab initio, a impossibilidade épica do Neo-realismo poético”, escreve Rosa Maria Martelo. Percebemos hoje que muitas destas polémicas reflectem “um desvirtuamento simplista - e simplista de parte a parte [neo-realistas e presencistas] - que ganha raízes uma espécie de caricatura mútua que extrema, no plano do debate, o que no plano da realização poética estava longe de revelar a mesma irredutibilidade. Na contestação ao presencismo, na antinomia "arte pura"/ arte social, destacam-se outros nomes, que utilizaram como tribunas os jornais Sol Nascente e O Diabo, como António Ramos de Almeida, Rodrigo Soares, Mário Ramos e João Pedro de Andrade. Rodrigo Soares escreve em O Diabo em 1939: “Os poetas, que continuarão a parecer-se com os poetas de todos os tempos, terão de adquirir a convicção de que a poesia tem uma missão a cumprir: a de cantar novas realidades e entoar novos hinos.” 7 Este livro só seria reeditado, muitos anos mais tarde, em 1976, depois de fortemente reescrito pelo autor, para integrar a sua antologia poética, Trabalho Poético. Carlos de Oliveira terá no entanto publicado em 1937, antes de Turismo, um livro chamado Cabeças de Barro, com os autores Fernando Namora e Artur Varela, obra que seria constituída por um conjunto de textos estilo “novela” ou “conto”. Carlos de oliveira seria o autor de três contos,

Terra Alheia, A quadrilha do Pinhas vai descer ao povoado e Nódoa de sangue, além de um poema chamado Lamentação. Não conhecemos qualquer reedição destes textos nem lhes conhecemos qualquer referência de Carlos de Oliveira pelo que supomos que os terá cons iderado com o não merecedores de integrar a sua obra. 15

o será sem qualidade artística; acontece que a beleza exige um permanente estado de equilíbrio entre as verdades que se dizem e as palavras que as dizem”. Na polémica interna aos neo-realistas, que, como vimos, apareceu muito cedo, pelo menos desde a década de 40, Carlos de Oliveira manifestou sempre estar de acordo com a visão desempoeirada de Mário Dionísio. O escritor é particularmente crítico de uma visão mecanicista que pretende valorizar na obra neo-realista o chamado conteúdo. O interesse pelo tratamento da «forma» na obra literária ganha com frequência outra animosidade, a dos partidários do «fundo», que põem o problema no quadro esquemático de uma luta mortal entre expressão e conteúdo. Considerar romance, o poema, como bichos de duas cabeças é desfigurá-los. […] Não falta contudo quem ressuscite o fantasma e o ponha a passear na meia-noite das nossas preocupações de escritores, se pensamos em estilo, linguagem: «cá estão os formalistas”. O amor das palavras vivas, incisivas, o aprofundamento dos meios de expressão, é o dever mais elementar do romancista, do poeta. [… ] Parece ocioso repetir que «fundo» e «forma» são indissolúveis, se determinam entre si no âmbito da linguagem. Parece, mas apenas à primeira vista. A guerra mítica entre eles persiste nos dogmas ferozes e é preciso repetir, repetir, que as verdades, as boas intenções, não fazem só por só a boa, a verdadeira literatura. Carlos de Oliveira, Aprendiz de Feiticeiro

Carlos de Oliveira entendia que o escritor, como qualquer artista, desempenha o seu papel como homem e como revolucionário, contribuindo com a sua energia e com o seu trabalho para a transformação das condições sociais, sobretudo escrevendo, criando formas esteticamente novas, capazes de incorporar em si toda a história da criação anterior. Esse objectivo não se atinge sem estudo, sem trabalho árduo e minucioso. “O progressismo ideológico e político de uma obra literária identificar-se-ia, assim, com o vanguardismo estético na indissolubilidade entre forma e conteúdo”, como afirma Rosa Maria Martelo, a propósito do autor. Entendo mal a incompatibilidade entre uma ideia ou uma imagem e a busca das palavras que as tornam cintilantes. 'Procuro encostar as palavras à ideia', dizia Alberto Caeiro. Carlos de Oliveira, Aprendiz de Feiticeiro

E aos puristas (moralistas), para quem a sua intranquilidade poética incomoda, o escritor responde: A dignidade desenvolve-a uma ginástica vigilante e diária, que requer apenas paciência, atenção, vontade. Com uns anos de exercício torna-se instintiva, uma espécie de segunda natureza. Pouco maleável (rentável) na prática social mas esse defeito compensa-o largamente a tranquilidade interior (moral) que permite o crescimento livre de certa intranquilidade (imaginativa, criadora) ponto de partida para toda a obra literária alguns furoa acima das «necessidades de mercado». O que sucede nos casos vulgares é a falta da primeira liquidar a outra ou impedi-la de um completo desenvolvimento. Carlos de Oliveira, Aprendiz de Feiticeiro

E, tal como Mário Dionísio, afirma claramente a necessidade de um artista integrar toda a arte anterior, aquela que “acrescentou ou opôs alguma coisa ao que já existia”. Entramos sempre com maior ou menor conhecimento do facto numa linhagem que nos convém e é dentro dela que trabalhamos pelas nossas pequenas descobertas, mesmo os que se pretendem duma total 16

originalidade. Não há revoluções literárias que rom pam cerce com o passado. Olhem para elas, procurem bem, e lá encontrarão as fontes, as referências, próximas ou distantes. Claro, os escritores que contam são aqueles que acrescentam ou opõem alguma coisa ao que já existe, ou o exprimem de maneira diferente, mas cortes totais, rupturas, não se dão. Carlos de Oliveira, O Aprendiz de Feiticeiro

1.2.2

A poética de Carlos de Oliveira

Carlos de Oliveira é um poeta do real, “O meu ponto de partida, como romancista e poeta, é a realidade que me cerca”, escreve em O Aprendiz de Feiticeiro, num texto intitulado Almanaque Literário, numa espécie de manifesto literário pessoal. É mesmo um poeta de “um certo espaço geográfico, social e linguístico”: a Gândara. Mas quando escreve não é um mero espelho desse real; tem de encontrar “o equilíbrio difícil, criador, entre as verdades e as palavras que as dizem”. Não concebo uma literatura intemporal nem fora de certo espaço geográfico, social, linguístico; quer dizer, não a vejo inteiramente desligada das condições de tempo, de lugar; e quando digo inteiramente atendo já ao desenvolvimento específico da literatura; […] Mas o que vem a ser uma obra de arte sem qualidade e independência artísticas? Sem o equilíbrio difícil, criador, entre as verdades e as palavras que as dizem? […] A reestruturação da técnica narrativa ou Poética tem de conhecer até ao pormenor a matéria de que se serve. Carlos de Oliveira, Aprendiz de Feiticeiro

Quando Carlos de Oliveira frisa “quando digo inteiramente atendo já ao desenvolvimento específico da literatura “ parece querer dizer algo parecido com o que Mário Dionísio escrevera já em 1945, “Toda a conquista estética é um fenómeno irreversível”. Ou seja, a literatura atenta ao real tem de incorporar também o desenvolvimento da própria literatura. Esse desenvolvimento faz parte do real que um escritor absorve. A escrita de Oliveira acaba, assim, por reflectir a abertura ao diálogo com outras propostas, como aliás ele próprio de certa forma reconhece ao falar da influência de José Gomes Ferreira no grupo: o surrealismo, o neo-realismo e certo existencialismo, é ele [José Gomes Ferreira] que os antecipa entre nós; Carlos de Oliveira, Aprendiz de Feiticeiro

Nessa sua ligação ao real, na procura do rigor, da palavra certa, o escritor não prescinde de uma preocupação extrema com a estética, com a forma, com a beleza. A linguagem, a obra de Carlos de Oliveira, é daquelas que repetidas vezes nos proporciona o encontro com aquilo que talvez possamos, à falta de melhor, designar com uma palavra caída em certo desuso – a beleza. Uma beleza que espanta, uma beleza comovente. Manuel Gusmão, Carlos de Oliveira, Trabalho Poético – Paisagem e Povoamento

Sendo um escritor da “realidade que o cerca”, um escritor das gentes, das coisas e das paisagens, Carlos de Oliveira é também um escritor da memória. Toda a sua obra é marcada

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fortemente pelo território onde cresceu: a Gândara8, uma zona litoral localizada a sul de Aveiro e a norte da Figueira da Foz, à volta de Cantanhede; constituída por terras planas muito pobres, arenosas, onde predomina o cultivo do pinhal; polvilhada por colinas calcárias, onde se fazia a exploração da pedra e a extracção da cal; limitada pelo mar a oeste, atravessada no interior por lagoas pantanosas, território de febres de mau-prognóstico, que deram o nome à aldeia onde viveu, Nossa Senhora das Febres, hoje apenas Febres. Terra de névoas prolongadas carregadas de humidade e de sal. Terra farta de água mas parca de recursos e, por isso, as suas gentes viviam em condições de grande precariedade. aquele chão amargurado da gândara, que gerava ladrões, mendigos e assassinos, ganhões e emigrantes, terra mãe enjeitando os seus filhos pelo mundo fora. Carlos de Oliveira, Alcateia

Este é o universo poético do poeta, desde os seus primeiros livros de poesia, Turismo e Mãe Pobre, desde os seus primeiros romances, Casa na Duna e Alcateia, até aos seus últimos livros, mesmo se neles parece inventar uma nova linguagem. O próprio Carlos de Oliveira o reconhece sem qualquer ambiguidade. Perguntam-me ainda porque falo tanto da infância. Porque havia de ser? A secura, a aridez desta linguagem, fabrico-a e fabrica-se em parte de materiais vindos de longe: saibro, cal, árvores, musgo. E gente, numa grande solidão de areia. A paisagem da infância que não é nenhum paraíso perdido mas a pobreza, a nudez, a carência de quase tudo. Carlos de Oliveira, Aprendiz de Feiticeiro

Poder-se-ia mesmo afirmar, como faz Vital Moreira no seu ensaio Paisagem Povoada, que “A obra de Carlos Oliveira pode na verdade ser qualificada globalmente como um romance da Gândara”. Finisterra poderia assim ser interpretado como o último capítulo desse romance, porventura até “a chave de decifração de toda a obra, desenvolvendo e esclarecendo temas e problemas sempre recorrentes dos livros anteriores: a formação e instabilidade da paisagem; o povoamento, a ocupação e apropriação da terra; finalmente, a obsessão da casa como ponto de ancoragem do homem na paisagem”. Segundo o mesmo estudioso do poeta “paisagem e povoamento [subtítulo de Finisterra] poderia também ser o subtítulo de todos os livros de Carlos de Oliveira, ou até, porventura o título do único grande romance que ele escreveu, ora em prosa ora em verso, em vários capítulos e versões – ou seja, o Romance da Gândara, “não num sentido regionalista ou folclórico, mas sim no sentido simbólico de romance do homem e da terra”. Mas a escrita de Carlos de Oliveira evolui, na procura de uma poética justa para escrever sobre o real sobre o qual ele pretendia escrever. A palavra “brevidade” vai ao longo da obra do escritor adquirindo importância, brevidade como opção estética, que reflecte uma opção ideológica. Brevidade decorrente de uma opção filosófica materialista. Essa brevidade implica uma ideia implícita de transformação: transformação das coisas, transformação dos homens, transformação das sociedades, transformação do mundo. Ou seja, brevidade como carência e precariedade, mas também como transformação do mundo. 8

“G ândara”, segundo o dicionário H ouaiss, é “terra arenos a, improdutiva; terra em que medram plantas agres tes ; terreno onde medra a charneca; charneca”. Terra erma e agreste; estéril, portanto. 18

Na palavra brevidade, Carlos de Oliveira faz convergir uma opção no conflito de classes, reportando-a à memória da carência observada na sua infância rural na região da Gândara; mas dessa memória vem também a evidência da permanente transformação do mundo físico. Rosa Maria Martelo, Casas Destruídas

Mas a brevidade de Carlos de Oliveira reflecte também um lirismo pessoal do poeta e inscrevese numa visão de desalento que contraria o optimismo entusiasmante que caracteriza a doutrina política que procurou influenciar os neo-realistas. Do ponto de vista social, o conceito de brevidade (carência) regista uma opção no conflito de classes, a solidariedade com as vítimas desapossadas de uma sociedade injusta na distribuição da riqueza. Mas existe "o lado social e o outro", o da vivência individual da "brevidade" como precaridade: "opressiva brevidade", "tom precário" coincidindo com "os sentimentos do autor". Este outro lado é o lado das "obsessões pessoais" de um escritor para quem a vida tem ainda o sentido trágico que lhe advém de ser um "rumor precário". [… ] o conceito de "brevidade" aplica-se à obra, em toda a sua extensão semântica: na sua progressiva "secura e "aridez" a linguagem exemplifica literalm ente a carência que os textos podem designar ou à qual podem limitar-se a aludir, já que também exemplificam a carência pela progressiva rarefacção que os caracteriza; são ainda os textos que projectam a brevidade como vivência opressiva em franco desajustamento com o optimismo com que o "realismo socialista" encarava a dialéctica da transformação. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

Essa brevidade corresponde também a um Carlos de Oliveira como o escritor do rigor, da palavra burilada, do trabalho meticuloso e oficinal. De textos que são sujeitos a cortes e mais cortes, até conseguir a brevidade de que fala. Escrevo e cada página é a maranha anoitecida. Emendas, riscos, setas para as margens do papel; os acrescentos metem-se uns pelos outros como as frondes enoveladas. Mal se vê dentro destas frases. Só com a lâmpada da paciência. Felizmente não falta paciência a Gelnaa, que se tornou o meu criptógrafo. Decifra a escrita secreta e copia-a à máquina. Torno a corrigir e a emaranhar. Nova cópia, novas correcções. Carlos de Oliveira, Aprendiz de Feiticeiro

Compreendemos assim as referências constantes na sua escrita a trabalho e a oficina. O trabalho oficinal é o fulcro sobre que tudo gira. Mesa, papel, caneta, luz eléctrica. E horas sobre horas de paciência, consciência profissional.

E não é com certeza por acaso que a última antologia da sua poesia recebeu como título Trabalho Poético. A transformação de uma dimensão de canto, que caracterizava as suas primeiras obras, de uma poética perlocutiva, visando desencadear a acção política, numa poética “pura”, formalmente buscando a perfeição, pode ser interpretada como uma substituição de uma estratégia de intervenção por a uma estratégia de resistência, uma resistência no campo artístico e consequentemente no campo político, pois como escreveu Deleuze só há resistência à morte sob a forma de obra de arte ou de luta de um povo.

19

1.2.3

A reescrita permanente em Carlos de Oliveira

Esse rigor meticuloso, essa preocupação com a justeza da palavra, essa exigência, fizeram com que também sentisse uma necessidade permanente de reescrever9 a sua obra. E essa reescrita nunca se limitou a pequenas correcções, provocou mesmo em muitos casos alterações profundas dos textos. Por exemplo, em 1976, o seu primeiro livro Turismo (1942), que tinha sido eliminado da antologia Poesias de 1962, para integrar a nova antologia do poeta, Trabalho Poético, teve poemas muito longos largamente amputados, muitas vezes reduzidos a três ou quatro versos. A omissão de Turismo em Poesias e a posterior recuperação em Trabalho Poético sugerem, da parte de Carlos de Oliveira, uma relação de simultânea atracção e rejeição relativamente à sua primeira obra. Rejeição de tudo quanto, na obra, reflectia a interferência do quadro (estreito) do realismo poético ambicionado na época pelos jovens do Novo Cancioneiro; atracção pelo que se manifestava já como presença do universo pessoal do escritor, como embrião da sua poética pessoal. [… ] A maior parte dos traços que, na primeira parte do presente capítulo, permitiram aproximar Turismo das restantes obras pertencentes ao Novo Cancioneiro - denúncia de situações de opressão e exploração social, expressionismo exclamativo e sangrento, intervencionismo humanitarista, populismo - não são detectáveis através da versão de 76. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

O próprio autor terá justificado essa reescrita permanente, como conta Alexandre Pinheiro Torres, reproduzindo palavras do seu amigo Carlos de Oliveira, segundo reproduz Rosa Maria Martelo na sua tese. Pois eu escrevi estas poesias, se é que são poesias, claro que não são, você é livre de chamar-lhes todos os nomes, nada daquilo é seja o que for tal como está, embora, paradoxalmente, extraído o pomposo retórico estilo "negritude", no sentido pejorativo da palavra, que ia fazendo a sua época, eu sinta que há no livro um germinar de coisas que acabaram por me marcar a infância e hoje, com quarenta anos feitos, sei muito mais disso do que há vinte quando escrevi o livro. Rapaziadas!

Uma reescrita profunda semelhante aconteceu igualmente nas restantes obras, livros de poemas e também romances, que o autor por vezes designava por juvenis, de cada vez que a possibilidade de uma nova publicação se colocava. Para além de reescrever cada poema ou romance, Carlos de Oliveira corta ou inclui novos poemas em cada livro. Como um dia escreveu Augusto Abelaira em artigo publicado no Jornal de Letras "Carlos de Oliveira não tinha livros "anteriores", em última análise todos os seus livros estavam ainda por publicar". Cada publicação dava lugar a um novo livro escrito sobre as cinzas do livro anterior.

9

A reescrita em Carlos de Oliveira começou ainda na década de 40, com um conjunto de crónicas, que o autor tinha publicado na revista Seara Nova , transformadas em poemas em Terra de Harmonia (1950), designados nesse livro por por Prosas hors-texte. Poder-se-ia ainda argumentar que começou ainda mais cedo pois o romance Alcateia (1944) terá reescrito um conto juvenil, de 1937, chamado A Quadrilha do Pinha, publicado num livro de contos e poemas chamado Cabeças de Barro, juntamente com os autores Fernando Namora e Artur Varela. 20

Até os textos incluídos no seu livro O Aprendiz de Feiticeiro10 foram reescritos quando coligidos para publicação, o que nos obriga a ter algum cuidado, ao analisar a posição do autor perante a sua escrita, a partir dessas crónicas/ensaios, pois não podemos ter apenas em conta a data inicial da sua publicação. O Aprendiz de Feiticeiro foi reescrito para criar um objecto coerente. Tendo Carlos de Oliveira escrito um dia que “A meu ver (...), a arte é uma forma peculiar de conhecimento que não colide essencialmente com o conhecimento científico", a rescrita parece fazer todo o sentido, pois só a rescrita poderia materializar a actualização desse conhecimento. Reescreve a literatura como um homem de ciência reescreve a sua teoria científica, de cada vez que o seu conhecimento se enriquece. Ninguém como Carlos de Oliveira materializa melhor o que escreveu Eduardo Lourenço “A poesia neo-realista é de algum modo o remorso ou, se se prefere, a autoconsciência da impossibilidade do neo-realismo se inserir na realidade nacional de outra forma que poeticamente.” Rosa Maria Martelo fez uma análise profunda e detalhada de toda a obra poética de Carlos de Oliveira, e em particular da forma como ele a reescreve, e conclui que a percepção dessa obra nos obriga a olhar para ela através de uma profundidade no tempo. As antologias de 1962 e 1976 têm de ser interpretadas como projecções num plano de uma obra que realmente é tridimensional. Essa projecção garante um sincronismo temporal e ideológico que a obra no seu todo não possui. Poesias e sobretudo Trabalho Poético não serão encarados como simples recolhas que poderiam substituir a leitura das obras coligidas: são dois livros, o segundo, aliás, particularmente criativo, que retomarão o seu lugar na estratificação da obra poética de Carlos de Oliveira. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

Figura 1 - A obra de Carlos de Oliveira pode ser projectada em vários planos, obtendo obras coerentes diversas

Rosa Maria Martelo, de facto, identifica 6 andamentos, que corresponderiam portanto a seis e não três planos de projecção, como nós representámos na figura, apenas por simplificação. Esses andamentos seriam: 1. da "carência de quase tudo" à dialéctica da transformação com 10

O Aprendiz de Feiticeiro é um livro es pecial, publicado em 1971, que junta crónicas, ens aios, excertos de entrevistas e outros textos publicados anteriormente em revis tas como a Seara Nova, a Vértice ou no jornal Ler, entre outros . 21

os livros Turismo, Mãe Pobre, Colheita Perdida; 2. da dialéctica da transformação à carência como princípio de poética com os livros Descida aos Infernos, Terra de Harmonia, Cantata; 3. a reescrita em Poesias (1962); 4. auto-retrato11 na paisagem precária com os livros Sobre o Lado Esquerdo, Micropaisagem, Entre Duas Memórias; 5. a deserção inconclusiva – Pastoral ; 6. a reescrita em Trabalho Poético (1976). Esta organização faz-se baseada na evolução da poética do autor, mas também respeitando, como se observa, a cronologia da escrita. Em rigor outros planos poderiam ser “inventados “, mediante outros critérios, obtendo outras projecções da obra, como tentamos ilustrar na figura 2. A própria Rosa Maria Martelo reconhece outros cortes como possíveis e propõe outro: De certa forma, as três obras referidas [O Aprendiz de Feiticeiro, Trabalho Poético e Finisterra] constituem as peças fulcrais de um articulado hipertextual pelo qual nos é dado olhar integralmente a obra: como se fossem os três espelhos do corpo central de um caleidoscópio, vemos nelas, reiteradamente repetidos, os motivos que são e não são seus, o todo e as partes, o conjunto em transformação constante, ao mesmo tempo diferente e reconhecível. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

Nós, que procurávamos a imagem fotográfica na poesia de Carlos de Oliveira, seríamos tentados a inventar um outro espaço dentro do espaço de Carlos de Oliveira, agrupando Cantata, Micropaisagem e Finisterra, onde a escrita fotográfica e a possibilidade de observar uma relação dela com a fotografia nos parecem mais evidentes. Manteremos neste texto contacto com esses três livros, mesmo conservando como foco da nossa atenção o livro Micropaisagem. Se tal exercício complexo, necessário para a compreensão da evolução da obra no tempo, não for feito, e se se entender uma obra 2D como a obra 3D, ela poderá ser objecto de interpretações equívocas e distorcidas, como muitas vezes de facto aconteceu, e a autora cita casos desses, resultantes de olhar, por exemplo, para o livro Turismo, incluído em Trabalho Poético, como um texto escrito na década de 40. Carlos de Oliveira foi um dos leitores mais atentamente críticos dos seus livros. Reeditar implicou para ele, quase sempre, reescrever; e reescrever significa inscrever no texto um outro momento de escrita, outro entendimento do mundo, outras opções estético-literárias que não as iniciais. Por outro lado, reescrever é também apagar, subtrair aos olhos do leitor o que o autor deixou de considerar como seu, isto é, contrapor, ao valor documental que pode justificar a não-correcção de uma obra, o apuramento que legitima a reformulação. […] parece ser necessário, a quem pretenda estudar a obra poética de Carlos de Oliveira, começar por um acto de desobediência: alargar o corpus de trabalho a toda a poemática publicada pelo autor e estudar as várias versões como se camadas sobre camadas fossem. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira 11

O caracter de auto-retrato também é descoberto por Rosa Maria Martelo no livro O Aprendiz de Feiticeiro. Segundo a autora os diversos textos, foram integrados e reescritos no livro para constituírem um auto-retrato literário do autor. Esta presença criptográfica [de Ângela, mulher do escritor] prende-se com o facto de O Aprendiz de Feiticeiro adquirir, globalmente, a configuração de um auto-retrato através da montagem (no sentido cinematográfico do termo) dos textos que o constituem.

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Figura 2 - Milhares de planos podem ser “inventados” para projectar a obra 3D de Carlos de Oliveira

Ao contrário de outros autores cuja obra será constituída pelo conjunto de livros publicados ao longo da vida, em Carlos de Oliveira poderemos identificar várias obras correspondendo a projecções de uma obra virtual 3D em vários planos que tenham em conta a reescrita, isto apesar de, como afirma Rosa Maria Martelo, na poesia de Carlos de Oliveira não haver cortes radicais, como se o autor rescrevesse sempre o mesmo livro, talvez o tal romance sobre a Gândara de que fala Vital Moreira. Na poesia de Carlos de Oliveira não há cortes radicais, assim como não há nenhum ponto de imobilidade. De livro para livro, dá-se a imparável pesquisa do sentido de um livro - afinal sempre o mesmo - que se repete sem se repetir e, também por isso, parece evoluir como um terreno de sedimentação onde cada estrato recobre o anterior ao mesmo tempo que lhe confere outra consistência Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

Exercício semelhante poderia com certeza ser conduzido com os romances de Carlos de Oliveira, onde Finisterra, publicado no ano de 1978, como que permite uma projecção final de toda a sua obra em prosa, ou, se adoptarmos a ideia de que a obra do escritor é um grande romance sobre a Gândara, então poderemos projectar em 1978 num novo plano esse romance. … a escrita ficcional evolui de um modo semelhante àquele que foi observado na obra poética: o romance tende para uma maior contenção discursiva, apenas sugerindo, ou omitindo mesmo, o que antes era dito claramente; as intenções sociais ou políticas, que antes eram manifestas, tornam-se agora veladas; muitas das referências temporais são omitidas, o mesmo acontecendo no plano da caracterização das personagens que se torna mais alusiva e menos pormenorizada. Por outro lado, a interferência do narrador é mais limitada, o autor prefere mostrar a contar e explicar. Diminui a presença de marcadores de linguagem popular, o emprego da pontuação com função expressiva é reduzido, o romance tende para uma maior sobriedade estilística, para um discurso mais límpido e directo. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira 23

Curiosamente, mas se calhar não por acaso, podemos encontrar um espírito perfeccionista semelhante em Mário Dionísio, que também submete a sua obra a revisões profundas, alterando-a de uma forma radical para permitir novas edições.

Figura 3 - Correcções da pagina 58 de Dia Cinzento de Mário Dionísio

No caso de Mário Dionísio existem registos, página a página, das obras reeditadas, que nos permitem acompanhar as sucessivas levas de mudanças, a que o escritor se impõe e que ele acompanha de notas que nos ajudam a compreendê-las. 1.2.4 A dimensão po lítica e p oética (ética e estética) da escrita em Carlos de Oliveira O livro O Aprendiz de Feiticeiro, como metatexto, onde o autor reúne os seus artigos e crónicas onde escreve sobre a sua escrita, poderá surpreender por parecer não conter referências muito explícitas à função da arte na sociedade, nem discutir a função da literatura num ponto de vista ideológico marxista; de facto, o livro foca-se sobretudo numa análise da obra literária como objecto estético. Mas o livro expressa, na opinião de Rosa Maria Martelo, de uma forma muito explícita, as duas questões centrais na poética de Carlos de Oliveira, e que vão adquirindo mais visibilidade ao longo da sua obra, opondo-se à ortodoxia estética neo-realista: 1. “a valorização do carácter eminentemente estético da obra literária - que tem como correlato o princípio de autonomia, ainda que parcial, da obra” 2. “a valorização da experiência individual do mundo.” De facto, a escrita de Carlos de Oliveira nunca se afastou de uma perspectiva materialista e dialéctica, mas tal fidelidade não aconteceu sem uma tensão permanente, que se desenvolveu à medida que se afastava da “facilidade” que o marxismo como referência externa oferecia, 24

escolhendo um progressivo desconforto, que resultava da intensificação da interrogação epistemológica e da procura de uma depuração poética. O percurso literário do escritor alia uma concepção marxista do mundo a uma pesquisa poética/estética, capaz de assimilar a herança modernista, o que a ortodoxia se recusava a aceitar. Essa tensão crescente no processo de evolução literária é particularmente evidente se considerarmos a reescrita da sua obra, mas essa tensão “disfarça-se” se olharmos para qualquer uma das antologias poéticas ou para O Aprendiz de Feiticeiro que são projecções da obra num plano. Mas a sua poesia, a partir da década de 50, reflecte também um certo desalento que substitui a maior euforia da década de 40. Nas palavras de Gastão Cruz Carlos de Oliveira é sobretudo o poeta do desalento-esperança, binómio que sustenta toda a sua obra. O poema Círculo poderá talvez servir de paradigma da escrita e até da vida de Carlos de Oliveira. O Círculo Caminho em volta desta duna de cal, ou dum sonho m ais parecido com ela do que a areia, só para saber se a áspera exortação da terra, o seu revérbero im óvel na brancura, pode reacender-m e os olhos quase mortos. O que eu tenho andado sobre este círculo incessante; e ao centro o pólo magnético ainda por achar, a estrela provavelmente extinta há muito, possivelmente imaginada, conduz-me sem descanso, prende-m e como um ím an ao seu rigor já cego.

Carlos de Oliveira manteve-se sempre fiel ideologicamente, sempre do lado dos injustiçados e explorados, “Caminho em volta desta duna de cal …O que eu tenho andado sobre este círculo incessante”, mas ao mesmo tempo sente crescer dentro de si uma dúvida e um desalento, “ao centro o pólo magnético ainda por achar, a estrela provavelmente extinta há muito, possivelmente imaginada”. Singular também ter sido este poema introduzido na antologia de 1976, ao aí reeditar Terra de Harmonia, um livro de 1950, o último livro antes de Cantata, como se fosse um elemento de dúvida enxertado numa árvore de poesia ainda de certezas, ou um passageiro clandestino num barco para o Novo Mundo. Carlos de Oliveira permanecerá até à últim a página publicada um escritor marcado por pontos de vista marxistas, m esmo se, na fase final da obra, o m arxism o se inscreve tam bém com o perda, com o nostalgia de um a Idade do Ouro configurada como possibilidade de pensar a História em termos totalizantes e finalista. [… ] O marxismo que a obra de Carlos de Oliveira convoca como campo de referência externa é primeiro que tudo um a teoria do conhecimento. Com repercussões do ponto de vista estético e conexões no plano das opções ideológicas e políticas, é sob o prism a onto-gnoseológico que a presença do m arxism o mais se faz sentir. Mas, nesse quadro, a pesquisa estética será fortemente individualizada, não recuando perante um experimentalism o vanguardista nem sempre fácil de entender pelo Neo-realism o mais ortodoxo. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

Mas a atitude menos exortativa do escritor não passou impune e ele foi objecto de várias críticas, mais ou menos claras, mais ou menos veladas, dos elementos mais ortodoxos do movimento, como também refere Rosa Maria Martelo. O seu poema Soneto, publicado no livro Colheita Perdida de 1948, e que o escritor integrou numa versão profundamente revista de Mãe Pobre para a antologia Trabalho Poético de 1976, era já em 1948, claramente, uma resposta poética a essas vozes: “Acusam-me de mágoa e desalento, /como se toda a pena dos meus versos / não fosse carne vossa, homens dispersos, / e a minha dor a tua, pensamento. Mas desenganem-se os que possam pensar que tais versos pudessem traduzir uma qualquer traição à luta, uma quebra de solidariedade, um abandono 25

do campo do neo-realismo. Nos versos finais do mesmo soneto o poeta escreve: Entretanto, deixai que me não cale: / até que o muro fenda, a treva estale, / seja a tristeza o vinho da vingança. // A minha voz de morte é a voz da luta: /se quem confia a própria dor perscruta, / maior glória tem em ter esperança.” O poeta permanece do lado dos pobres e dos injustiçados, o poeta não se cala, mesmo com a sua tristeza e com a sua voz de desalento e morte: “ seja a tristeza o vinho da vingança” e “A minha voz de morte é a voz da luta”, clama o poeta. Mas, é inegável que a evolução da sua poesia parece reflectir um crescer das interrogações e das dúvidas quanto ao futuro. Assiste-se também ao longo do tempo a uma evolução rápida, quer das temáticas quer da forma de escrever. Também esta transformação “formalista” gera desconfianças e desconfortos. [Carlos de Oliveira] norteou o seu trabalho de escritor por padrões de inovação que lhe valeram frequentemente o epíteto de "formalista", ou "estilista" (expressões que frequentemente sublinhavam desvios relativamente ao realism o neo-realista), quando a inovação era apenas resultante da consciência de que a questão da relação entre texto e mundo não podia ignorar a complexa problem atização introduzida pelo Modernism o a este nível. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

A transformação da linguagem do poeta acentua-se com o livro Cantata de 1960, que é considerado charneira na sua obra. Mas Cantata, no seu significativo isolamento, na sua posição de ilha, emergindo quase ao centro da recta de dezoito anos que separa Sobre o Lado Esquerdo de Terra de Harmonia, é um momento privilegiado da obra poética de Carlos de Oliveira. Gastão Cruz, Carlos Oliveira, um a poética da brevidade

Cantata, na verdade, conclui, por vontade do poeta, o primeiro volume de Trabalho Poético, quando a antologia foi editada em 1976, organizada então em dois volumes. Corresponderia, na opinião de Rosa Maria Martelo, a “um ponto de sutura e de ruptura”, seria "um livro de passagem" para Manuel Gusmão, ou "uma espécie de 'Requiem' para Eduardo Lourenço, como escreveu num ensaio em 1967, parecendo augurar, que aquele livro era um fim, mas que anunciava um renascimento, que aconteceria, um ano depois, com a publicação em1968, de Sobre o Lado Esquerdo e de Micropaisagem. Será significativa a opinião elogiosa do presencista João Gaspar Simões sobre Cantata, pois na sua opinião “O neo-realismo implícito nalguns dos seus versos, um neo-realismo de confessado propósito comprometia, por vezes, a beleza da sua obra”. É pura poesia o novo livro de Carlos de Oliveira porque se apresenta com o uma espécie de fecho lírico de um a obra em que a parte restante funciona como exposição. … Hum ano nas suas emoções, nem sempre Carlos de Oliveira fora puro nas suas aspirações à poesia. O neo-realismo implícito nalguns dos seus versos, um neo-realism o de confessado propósito - é o caso da Descida aos Infernos -, comprom etia, por vezes, a beleza da sua obra, Com esta Cantata resgata-se do que porventura m aculava esses versos anteriores. A im agem da estrela do mar fossilizada na pedra exprime com sublim idade a condição da poesia de Carlos de Oliveira, que ficará, em verdade, nos quadros neo-realistas como o aceno petrificado de um a das mais belas inspirações hum anas da moderna poesia portuguesa.

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João Gaspar Simões, Carlos de Oliveira II. Cantata", Crítica II - Poetas Contemporâneos (1938-1961)

É também significativa a opinião de alguns dos seus amigos do campo do neo-realismo, que procuram demonstrar a manutenção do carácter neo-realista da poesia do autor. O peso das circunstâncias do real, o risco que corre ao longo deste nosso tempo, o negrume dos dias que vivem os, estão sem dúvida dramaticamente presentes nos versos de Carlos de Oliveira, soturnos e terríveis como são, mas só seriam pessimismo e desalento se neles houvesse resignação ou fatalism o, o que não sucede. É possível, tam bém, que não se encontre na obra de Carlos de Oliveira o aleluísm o de um mundo novo que será, mas toda a tensão dos seus m elhores poem as visa a conquista desse mundo Joaquim Namorado sobre a antologia de Carlos de Oliveira Poesias

Parecem ter sido necessários dez anos sem escrever, entre 1950 e 196012, para o poeta conseguir condensar toda a poética que desenvolvera/anunciara nos livros anteriores e que irromperá com plena forças nos livros seguintes. É a consagração da brevidade na sua poesia, no seu” insistente registo da brevidade da vida”, onde o vento é a metáfora que sopra dentro de cada poema para moldar e temperar as palavras. …

o dicionário que me coube em sorte folheei-o ao rum or do sofrimento: ó palavras de ferro, ainda sonho dar-vos a leve têmpera do vento Carlos de Oliveira, Soneto em Cantata

Reconhece-se um caminho persistente de depuração, assumindo formas que muitos consideram fundacionais da poesia portuguesa contemporânea. Carlos de Oliveira encontra-se e em alguns momentos antecipa diversos caminhos da poesia portuguesa contemporânea [… ] que se depura, revoltando-se contra um certo discursivism o lírico, confessional e psicologista. Manuel Gusmão, A Poesia de Carlos Oliveira

Essa depuração (brevidade) parece denotar os princípios de carência, precariedade e transformação que caracterizam a obra desde o princípio. o conceito de brevidade como um princípio de poética trifacetado ou divisível em três subprincípios carência, transformação e precaridade[…]o princípio de carência surgia logo em Turismo, e desenvolvia-se em Mãe Pobre […]sendo progressivamente subsumido pelo princípio de transform ação dialéctica.[…] O que acontece em Cantata é que a carência, que antes comparecia essencialm ente ao nível das relações sociais, e por um mecanism o de referência de direcção denotativa (representação), surge agora com o uma propriedade do texto.[…] o vocabulário é utilizado na construção de imagens que permitem que o texto exprima a precaridade do mundo através da coexemplificação m etafórica. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

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Em rigor Carlos de Oliveira durante esta década reescreveu os s eus romances da década de 40, ou melhor, escreveu novos romances a partir dos rom ances que escrevera na década de 40. 27

Mas Rosa Maria Martelo vai mais longe e afirma: Cantata representa o momento em que a poética de Carlos de Oliveira francam ente retoma a importância de que se reveste a exemplificação na tradição simbolista e modernista, da qual tinha vindo a aproximar-se progressivam ente, superando, em definitivo, a rasura em branco proposta pela ortodoxia neo-realista, que, aliás, nunca pretendera subscrever; por outro lado, coloca a matéria dessa linguagem sob o enquadram ento materialista e dialéctico que sempre foi o seu. E, por conseguinte, m ais do que um ponto de ruptura, Cantata é a síntese catártica de uma poética apurada em sucessivos andamentos de depuração. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

E Rosa Maria Martelo afirma mesmo que a revolução que Cantata terá representado, teria sido um corte “semelhante àquele em que a arte abstracta se contrapõe à arte figurativa”, o que nos pode intrigar e fazer pensar. É este processo referencial, pelo qual Cantata constitui a recusa mais completa do realismo, de um m odo semelhante àquele em que a arte abstracta se contrapõe à arte figurativa, que lhe confere densidade inovadora sem retirar-lhe um a muito adorniana capacidade de resistência e denúncia. Mas isso era tão novo no quadro da literatura de fundamentação m arxista que resistia até à leitura dos que estavam mais próximos da heterodoxia do poeta. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

A afirmação é surpreendente (talvez exagerada, para evidenciar pelo exagero o corte que Cantata representou), quando antes a mesma autora tinha afirmado acerca da mesma poesia “uma poesia que inquestionavelmente permanecia materialista e dialéctica”. O livro Micropaisagem necessitaria ainda de mais oito anos para amadurecer e ser publicado em 1968. Mas se é inegável que nos livros de poesia da década de 60, Cantata, Sobre o lado esquerdo e Micropaisagem, existe um abandono gradativo de uma inclinação referencial, é também evidente que não há uma ruptura radical com os livros anteriores, o que, na opinião do próprio poeta, seria “inviável”. Em todos podemos encontrar “as fontes [...] próximas ou distantes” a partir das quais os poemas foram gerados. Como afirmou o escritor ao Diário de Lisboa em 1965, a propósito da sua “nova” escrita, “a enxertia faz-se na árvore que já existe. Para a revitalizar ou para conseguir frutos diferentes que trazem no entanto um pouco do sabor, da textura anterior”. Não sabemos se Carlos de Oliveira responderia a uma hipotética pergunta sobre se esse livro e os seguintes ainda poderiam ser considerados neo-realistas, como Mário Dionísio respondera acerca do seu romance Não há morte nem principio, “Considero Não há morte nem principio como o livro mais neo-realista que escrevi”, respondeu ele. Mas ouçamos o que o próprio Mário Dionísio escreveu acerca desse assunto: Finisterra é um romance neo-realista? Precisávamos de muito tempo para ver primeiro o que é neo-realismo. É uma coisa de que hoje se fala bastante, de pontos de vista bastante opostos, ainda há pouco saiu um livro que m e parece que não põe o problema m uito bem, m as eu vou responder assim de uma m aneira um bocado bruta, e incisiva e rápida: o neo-realism o podem os defini-lo, com a dificuldade de todas as definições, evidentemente, como a expressão estética dum a visão m arxista do m undo. Claro que isto é tão amplo, tão amplo, que todas as acusações que têm sido feitas aos neo-realistas, sobretudo de 28

«antigam ente», de quererem primeiro um a escola, e depois ser um a visão muito limitada, e depois ser só falar dos pobrezinhos, e depois dizer mal dos patrões, o banqueiro gordo de charuto e a pobre criada de servir e não sei que mais, não tem qualquer sentido. Eu próprio desmenti isso numa entrevista que ficou mais ou menos célebre, ao Prim eiro de Janeiro, em 1945, chamada «Que é o neo-realismo?», e onde isso se põe de lado. Portanto, qualquer confusão com obra de intervenção social, sim, m as encarada na posição esquemática dos bonzinhos de um lado e os m auzinhos do outro, sem análise psicológica de espécie nenhuma, sem interesse pela qualidade da linguagem, etc., é realm ente uma das tais coincidências que não têm nada a ver com a realidade. Portanto, daqui se conclui que o Carlos de Oliveira, que foi um dos maiores escritores neo-realistas, m eu grande amigo e infelizm ente ainda há m uito pouco tempo desaparecido, na última fase da sua obra interessou-se m uito pela descoberta da linguagem, por efeitos de linguagem, o último texto publicado dele, que foi o Jornal de Letras que publicou, mostra isso claramente. Acho que isso não exclui a posição neo-realista. Um neo-realista está no direito pleno de trabalhar com a língua nos seus mais ínfimos (ínfimos no sentido de pequeninos, de porm enores), mas é evidente que as últimas obras do Carlos estão ligeiramente afastadas do que foi inicialmente a sua obra, sobretudo se falarmos de um livro que ele renegou que foi o Turismo, que foi o primeiro do «Novo Cancioneiro». Mas não vejo que o tenhamos de pôr fora do neo-realismo por isso. Tanto mais que há críticos que, com uma visão que talvez não seja exactamente (digo exactamente) a minha, vêem no Finisterra um livro que mostra a luta de classes. Mário Dionísio, Entrevistas

A verdade é que nunca houve uma desvinculação formal de Carlos de Oliveira do movimento neo-realista. Em toda a sua obra se manteve de alguma forma ao lado daqueles que na sua infância e juventude o tocaram e no fim temos uma obra poética que como realça Gastão Cruz cabe em cerca de duzentas páginas e como o escreveu o poeta no último poema do seu último livro “talvez / que só o musgo dá;/em seu discurso esquivo/de água e indiferença;/alguma ideia disto.”

2.

C arlos d e Oliveira e a p oé tica da memó ria Agora que escurece, impregnam -m e a carne os sucos da memória, essa m em ória que, pela sua força unicamente, a ergue entre os destroços e a alumia com o uma lamparina onde as lem branças fossem o azeite. Luís Miguel Nava, Vulcão

Nesta secção procuraremos sobretudo estabelecer a ligação entre a poesia de Carlos de Oliveira e a memória e justificar a escolha de Micropaisagem como principal inspiração para o nosso ensaio fotográfico. O livro O Aprendiz de Feiticeiro continuará muitas vezes a servir-nos de guia, pois é a única colectânea de metatextos do autor, onde ele escreve sobre a escrita e sobre o que escreve. Como vimos, em Carlos de Oliveira toda a poesia é simultaneamente documental, profundamente ligada às suas memórias, e introspectiva; mas, ao mesmo tempo, ela transforma-se muitas vezes em metapoesia, ao reflectir permanentemente sobre o acto de escrever poesia. Uma poesia que se liga ao mundo através da memória e uma poesia que se liga ao modo de fazer poesia através da linguagem.

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É uma poesia quase sempre bordada pela memória. Sobretudo a memória de infância e de juventude, que se materializa e muitas vezes em casas, tantas vezes casas abandonadas, casas arruinadas. A casa de meu avô, hoje destruída, para que a infância (com o lhe compete) habite pouco mais que a memória. Carlos de Oliveira, Aprendiz de Feiticeiro

Manuel Gusmão, um dos críticos que mais tem estudado a obra de Carlos de Oliveira, considera que logo a primeira obra de Carlos de Oliveira Turismo como reveladora do valor matricial, anunciando a memória como a principal fonte de imagem que o poeta explorará em sua obra poética. [… ] pela reunião dos temas da terra e de seus lugares (o m ar, a lagoa, a areia, o céu, o sol, o vento, as aves), com o tem a da memória e um dos seus lugares privilegiados, a infância, através da acção do poeta, afirmativa e instauradora (cham o as estelas /rosas) e interrogativa (Porque arde em mim ainda/ de m ágoa e de bronze /o sol do dia?) Manuel Gusmão,

Bastaria observarmos que Turismo, o primeiro livro do poeta, está dividido em três partes intituladas, Infância, Amazónia, Gândara, remetendo cada uma para memórias infantis ou juvenis. Gândara sem uma ruga de vento Sol e marasmo Silencio feito de troncos e de pasm o. Campos, pinheiros e campos quietos. Tanto, o sol parado encheu-m e os olhos de espanto. Carlos Oliveira, Gândara-Turismo

Carlos Oliveira é um poeta visual, mesmo quando lhe observamos um “adensamento da linguagem”. Carlos de Oliveira é um poeta essencialmente visual, e a im agem perceptiva detém uma função determinante na sua poesia; mas o progressivo adensam ento da linguagem em que as imagens se actualizam conduz à exploração de processos referenciais cada vez m ais complexos. Sendo essencialm ente dialéctica e materialista, a poesia de Carlos de Oliveira aponta para uma versão-de-m undo marxista, mas pondo-se em evidência com o obra de linguagem . Distanciando-se do cânone poético neo-realista, esta poesia m ais exibe o marxismo do que fala dele; sem reduzi-lo a uma temática, m ostra-o em modulações diversas, sem abdicar da atribuição de um a função heurística à poesia, construindo um a poética da brevidade. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

Visual desde o seu primeiro livro. Por vezes, quase nos atreveríamos a dizer que ele é um poeta quase-fotográfico. Por isso, a ideia de um ensaio fotográfico, a partir da sua poética, foi quase imediata. E a ideia consolidou-se dentro de nós com o passar do tempo. 30

Micropaisagem será talvez o mais visual de todos os seus livros13, e assim deveria servir-nos de porta de entrada. Para compreendermos como o livro aparece tão ligado a memórias visuais bastará lermos os dois primeiros versos do livro, "O céu calcário/duma colina oca”, que iniciam o poema Estalactite. Acerca deles o autor escreveu em O Aprendiz de Feiticeiro: “Certo dia, rebentando como de costume (a tiros de pólvora) uma das breves colinas gandaresas donde extraem a sua cal, os camponeses viram com espanto que a colina era oca. Estalactites suspensas do céu calcário. Gotas de água? De pedra? Por esta referência longínqua e autêntica começa o primeiro poema do livro”. O poeta o confessa. Estava encontrada a entrada. Teríamos de ser nós a desbravar o caminho e a descobrir a porta de saída, sem sabermos, quando partimos, aonde iríamos arribar. A matéria física com que Oliveira escreve o livro são as lagoas pantanosas, a água, a pedra, o calcário, a cal, a areia, o saibro, a sílica, a argila, a terra, as casas, a floresta, a árvore, os líquenes, o musgo, conforme o próprio autor confessa várias vezes num ensaio com o nome do livro de poemas, que ele inclui em O Aprendiz de Feiticeiro. A brevidade poética conduz-nos a uma efemeridade das matérias e das coisas da infância do autor. a poética da brevidade é agora uma poética da efem eridade, dos "materiais perecíveis" como o pinho e os adobes utilizados pelos camponeses que se combinam com outros, igualm ente perecíveis e desgastáveis pela erosão: redes de artérias, o "granito poroso" dos brônquios, o coração. O que lhe resiste é, até certo ponto, m ineralizado, mumificado, imóvel (cal, pedra, cálcio, osso), mas essa é uma questão a desenvolver a propósito de Micropaisagem. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

Micropaisagem é um livro de um rigor extremo14. Parece ser um livro essencial para compreender o global da obra do escritor. Se não, como compreender ter sido Micropaisagem o único livro a quem o escritor dedicou um metatexto explicativo em O Aprendiz de Feiticeiro. Nesse metatexto Carlos de Oliveira afirma: “Coisas reescritas até à saciedade, e por fim a pequenina explosão já entrevista, apenas sonhada. O aproveitamento (o cálculo) da explosão. Dominá-la, encaminhá-la, etc. Raras vezes a poesia me deu qualquer coisa de graça. [...] O resto é trabalho vagaroso. Feito, desfeito, refeito, rarefeito […] O trabalho oficinal é o fulcro sobre que tudo gira… horas e horas de paciência”. Os 82 textos do livro agrupam-se em 12 poemas e cada poema agrega vários conjuntos numerados, cada um com 14 versos, como os sonetos. Por isso, Gastão-Cruz lhes chamou quase-sonetos, pois é possível ver neles sonetos em que os versos se fragmentam, processo iniciado em Cantata.

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Se pretendêssemos agrupar os livros mais fotográficos da obra de Carlos de Oliveira poderíamos juntar a Micropaisagem, os livros Cantata e o Finisterra, este último, apesar de ser considerado um romance, liga-se com muita clareza à poética dos dois livros de poesia, onde a memória de infância é nuclear. Manter-nos-emos no entanto focados em Micropaisagem, sobretudo por considerarmos que os três livros seriam um desafio demasiado ambicioso no quadro temporal de que dispomos. Finisterra vai-nos ser útil na próxima secção. 14 Mas todos os livros da década e 60 parecem ser ao mesmo tempo jogos cujas regras só são reveladas durante a sua leitura. Em Sobre o lado esquerdo aparece mesmo uma personagem chamada Inventor de Jogos, como se as cenas descritas estivessem a ser encenadas perante o leitor e as instruções transmitidas pelo inventor se destinassem ao leitor. 31

… sonetos filtrados de que fica o rasto, o vôo preso, o esqueleto, [...] depois de decantada a sua estrutura mais tradicional Manuel Gusmão, A Poesia de Carlos de Oliveira

Os versos nunca têm mais de quatro palavras, quase sempre ainda mais curtos, frequentemente monolexemáticos. Mas podemos reconhecer, associando vários versos, ao longo de cada poema, frases decassilábicas (10= 6+4 ou 10= 6+2+2 ou 10= 4+4+2); mais uma identificação com o modelo. A linguagem utilizada pelo autor, também ela, é de um rigor avassalador, recorrendo a um léxico reduzido e usando muitas vezes termos técnicos de áreas de conhecimento diversificadas, nomeadamente do campo das ciências chamadas exactas: química, matemática, geometria, física, mineralogia, geologia, astronomia, botânica, medicina, anatomia, etc., como foi identificado por Catia Benedetti15.

2.1 Micropaisagem e a fotografia Acreditamos que as relações da poesia com a fotografia em Micropaisagem são várias. Muitas vezes com a chamada macrofotografia ou até a microscopia. Carlos Oliveira é quase sempre um poeta da memória e a fotografia faz-se obrigatoriamente de memória. Como referimos, Carlos Oliveira é um poeta das casas, das gentes, das paisagens, das coisas, da cal e da pedra, da areia e da água, da floresta e das lagoas. Acerca do livro Micropaisagem o próprio Carlos de Oliveira escreve: Meu pai era médico de aldeia, uma aldeia pobríssima: Nossa Senhora das Febres. Lagoas, pantanosas, desolação, calcário, areia. Cresci cercado pela grande pobreza dos camponeses, por uma m ortalidade infantil enorme, uma emigração espantosa. Natural portanto que tudo isso me tenha tocado (melhor tatuado). O lado social e o outro, porque há outro também, das minhas narrativas ou poem as publicados (quatro rom ances juvenis e alguns livros de poesia), nasceu desse ambiente quase lunar habitado por homens e visto, aqui para nós, com pouca distanciação. A m atéria de alguns poem as da “Micropaisagem”, talvez mais decantada, m ais indirecta, é a mesm a. Carlos de Oliveira, Aprendiz de Feiticeiro

O livro é, nas palavras do próprio autor, que já citámos, escrito com as suas memórias de infância. “Perguntam-me ainda porque falo tanto da infância. Porque havia de ser? “. A memória, sempre a memória. A memória, mas também o esquecimento, descrito em Líquen, quase como uma fotografia que desvanece pela luz do sol, imagem que irá ser tão importante em Finisterra. 16

Neste livro o tema da m em ória surge várias vezes. A m em ória, uma estalactite , [que dá nome a um poema.] […] Ainda a memória. Além do que já disse e que falta dizer (homens e m ulheres que perdem nas

15

Cátia Benedetti - Trabalho Poético: Approdo Macrolestuale dell’ opera poética di Carlos de Oliveira, Tesi di Laurea, Universitá di Perugia, 1986-7 16 No poema Estalactite Carlos de Oliveira compara a formação da estalactite com o fazer poético, mostrando como os processos parecem ser semelhantes: a formação vagarosa da estalactite, a cristalização, a geração lenta de “flores calcárias”. Mas também a explosão que pulveriza e espalha as palavras do poema na folha de papel branca. 32

suas cam as a mem ória uns dos outros, o amor que deixa de reconhecer o rosto que lhe serviu de espelho, etc,), o poema que fecha o livro tenta criar e analisar um processo visual de esquecimento. Os elementos físicos, reais, desse processo são também trazidos das lagoas purulentas, da m icroflora de árvores doentes. Carlos de Oliveira, Aprendiz de Feiticeiro

A memória e o tempo. “Localizar na frágil espessura do tempo…o foco do silêncio”. Porque não há memória nem esquecimento sem tempo. O tempo, esse material misterioso de que são sempre compostas as fotografias, porque as melhores fotografias são mais feitas de tempo do que de espaço. Não só a m em ória m as também o tempo. A elaboração do poema através dos estratos sobrepostos do tempo, com um rigor que sim ula a reacção quím ica ou um pequeno sistema planetário […] Carlos de Oliveira, Aprendiz de Feiticeiro

E tal como a fotografia, numa fracção de segundo, o poeta consegue captar o essencial; a brevidade dos textos de Carlos de Oliveira. A brevidade do essencial. Desses elementos se sustenta bastante toda a escrita de que sou capaz, umas vezes explícitos, muitas outras apenas sugeridos na brevidade dos textos. E disse sem querer uma palavra essencial para mim. Brevidade. Casas construídas adobos que duram sensivelmente o que dura uma vida humana. Pinhais que os camponeses plantam na infância para derrubar pouco antes de morrer. A própria terra é passageira: dunas modeladas, desfeitas pelo vento. Que literatura poderia nascer daqui que não fosse m arcada por esta opressiva brevidade, por este tom precário, demais a m ais tão coincidentes com os sentimentos do autor? Carlos de Oliveira, Aprendiz de Feiticeiro

E tal como a fotografia, o texto é um espelho, tal como a fotografia um espelho mágico com memória: memória do tempo, memória das memórias e memória do próprio texto. Para mim esse trabalho consiste quase sempre em alcançar um texto muito despojado e deduzido de si mesm o, o que me obriga por vezes a transformá-lo numa meditação sobre o seu próprio desenvolvimento e destino. É o caso de Micropaisagem : um texto vendo-se diante do espelho: vendo-se pensando-se. Carlos de Oliveira, Aprendiz de Feiticeiro

Poderíamos usar ainda, como mais um argumento, para justificar a nossa opção pela ligação da obra de Carlos de Oliveira à fotografia, a importância de que a fotografia goza, como uma das personagens principais, poderíamos mesmo dizer, num livro posterior de Carlos de Oliveira, o misterioso Finisterra17, um ”anti-romance, apesar de ser romance”, como o define

Gotas-letras, flores-poemas. Uma escrita de letras com cal e água, que faz nascer flores de pedra no poema. Mas também uma escrita feita com tempo. Ao longo dos 24 textos que integram o poema assistimos ao “aproveitamento (o cálculo) da explosão. Dominá-la, encaminhá-la”, feito com mestria. Esta análise minuciosa e imagética do fazer poético acontece noutros poemas do livro. Para Manuel Gusmão é neste poema que “mais extensa e combinatoriamente, é realizado o movimento conjunto de auto-reflexão do poema e da refracção do mundo”. 17

Chegám os a pensar incluir Finisterra, juntamente com Micropaisagem, com o ins piração para o nos so ens aio fotográfico. A ligação de Finisterra à m emória, à recordação da infância e a uma casa situada num terreno de realidade e de s onho é evidente e faria uma ponte óbvia com Micropaisagem . Decidimos no entanto limitar o nos s o trabalho a Micropaisagem, sobretudo por reconhecermos que Finisterra poderia alargar-nos demasiado os horizontes, que já eram vas tos . 33

M. Lurdes Ferraz em artigo do Jornal de Letras. Tentaremos aprofundar este ponto na secção seguinte, como uma tentativa de intuir o que pensava Carlos de Oliveira sobre a fotografia. Mas regressemos a Micropaisagem, foco da nossa viagem fotográfica e tentemos construir dois argumentos finais. Como primeiro argumento final, muitos poemas do livro Micropaisagem poderiam ter sido escritos por um fotógrafo. Mesmo os poemas de reflexão sobre a poesia. Façamos a experiência:

O poeta [o cartógrafo?] observa as suas ilhas caligráficas cercadas por um mar sem marés, arquipélago a que falta vento, fauna, flora, e o hálito húmido da espuma

O fotógrafo [o cartógrafo?] observa as suas ilhas fotográficas cercadas por um mar sem marés, arquipélago a que falta vento, fauna, flora, e o hálito húm ido da espuma

Primeira estrofe do poema Mapa

Primeira estrofe do poema Mapa

A fotografia filtra cada im agem já destilada pela distância, deixa-a m ais límpida embora inadequada às coisas que tenta captar no passado indiferente.

O poema filtra cada im agem já destilada pela distância, deixa-a m ais límpida embora inadequada às coisas que tenta captar no passado indiferente. Primeira estrofe do poema Filtro

Primeira estrofe do poema Filtro

2 poemas reescritos por um fotógrafo

A segunda coluna na tabela apresentada representa uma reescrita do poema pela mão e pelo olhar de um fotógrafo. Esta experiência pode ser repetida com outros poemas. Deixamos o desafio ao leitor. Como segundo argumento final, os poemas do livro Micropaisagem têm quase todos como temas explícitos: a memória, o tempo e a criação poética, todos tão próximos da fotografia. Façamos uma experiência, listando os poemas do livro e tentando identificar os três temas que referimos, explicitamente abordados em cada um.

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Po emas Estalactite Arvore

Temas M emória

Tempo

Criação Poética

X X

X X

X X

X X

X X

Debaixo do vulcão Fogo Aresta

X

Vidro Puzzle

X X

Filtro Rasto

X X X X

Mapa Espaço Líquenes

X X

X

Figura 4 – Tabela de temas dos poemas de Micropaisagem

A tabela parece provar o que dissemos18. Se tivéssemos em contas temas submersos, não explicitados pelas palavras e pela brevidade do texto, talvez todos os temas aparecessem em cada um dos poemas. Aliás, tal não surpreende, pois, de acordo com conversas e com correspondência entre Carlos de Oliveira e Manuel Gusmão, por ele relatadas, o livro Micropaisagem foi construído a partir e à volta do poema Estalactite, onde os três temas são claramente abordados. É o tema da criação poética, aqui quase sempre presente, que, quanto a nós, permite que a escrita vá ao encontro da paisagem, ”com a qual se reúne metonímica e metaforicamente de forma indissolúvel”, como escreve Rosa Maria Martelo. O próprio poema - papel, palavras, letras, espaços - se transforma numa paisagem convocada pela memória e transformada pelo tempo. E então o poema é paisagem, mas é ao mesmo tempo é corpo, como acontece no poema Estalactite “… poro a poro /pela mão /que escreve, /encaminhando-a /entre /a pouca luz /do texto”. E se o texto é formulado com o paisagem, tam bém o sujeito desta "enunciação escrevente" se integra na paisagem textual ao entendê-la como "caligrafia", isto é, não simplesmente "grafia da cal", mas prolongamento da mão, inscrição da sua passagem. Assim o texto, m etoním ia e metáfora da paisagem é também metonímia e m etáfora do corpo. Porque nele se prolonga a "mão que escreve", num ponto de indistinção que poderia ter o triplo nom e de corpo/paisagem/texto. Rosa Maria Martelo, A Construção do Mundo na Poesia de Carlos de Oliveira

Assim, com o livro Micropaisagem debaixo do braço, partimos à descoberta, a caminho da Gândara. E fotografámos.

18

Apenas o poema Debaixo do vulcão parece afas tar-se des sa proximidade. 35

3.

O n eo -realismo e a fotografia There’s no revolution in the fact that instead of a portrait of a general, people have started photographing the workers’ leaders with the same photographic approach. Alexander Rodchenko

Quando decidimos escrever este pequeno texto para acompanhar o nosso ensaio fotográfico, que construímos a partir da poética de Carlos de Oliveira, a questão da relação entre o neorealismo e a fotografia surgiu-nos de imediato. Estranhávamos nunca ter ouvido qualquer referência à fotografia quando se falava na arte neo-realista. Parecia que o neo-realismo em Portugal se confinara à literatura e à pintura. Nunca teria havido qualquer relação do neorealismo com a fotografia? Se sim, qual foi? E se não, porquê? Susan Sontag escreveu nos seus Ensaios sobre Fotografia que “Nenhuma outra actividade se encontra mais bem preparada para o exercício da visão surrealista do que a fotografia”. Poderíamos facilmente escrever algo idêntico para o neo-realismo. Ou não? O papel fundamental desempenhado por tantos fotógrafos no século XX na denúncia de injustiças e na divulgação de lutas inspiradores dos povos parece dar-nos razão. E, pelo menos desde a década de 30, que tal foi reconhecido com o papel desempenhado pela fotografia na FSA nos EUA. Fomos portanto à procura e decidimos que este tema constituiria um dos eixos definidores do espaço deste nosso trabalho. Encontrámos apenas duas abordagens, bastante recentes, deste tema: a) Um texto O neo-realismo na fotografia portuguesa, 1945 – 1963, de Alexandre Pomar, que integra as actas do Colóquio Internacional Centenário da CUF do Barreiro, 19082008, na Universidade Autónoma de Lisboa. b) Um texto de Emília Tavares Elementos para uma Teoria da Fotografia no contexto do neo-realismo, que integra o catálogo da exposição Batalha de Sombras no Museu do Chiado em 2009. Curiosamente, encontrámos também apenas dois textos de época sobre a fotografia: a) Um texto de Mário Dionísio intitulado Não se pode copiar19, que integrou uma publicação de grande fôlego do autor, A Paleta e o Mundo, escrito por volta de 1956, onde ele reflecte sobre a arte, em particular sobre a escrita e sobre a pintura. De facto, descobrimos também um outro texto de Mário Dionísio, intitulado Fotografia e Pintura, publicado na revista Vértice nº137, Vol. XV, em 1955, mas que tem um conteúdo quase idêntico ao texto da Paleta e o Mundo, pelo que deverão ser da mesma altura e Mário Dionísio terá aproveitado o texto que escrevera para a revista para integrar na sua obra. b) Um texto de Manuel Campos Lima, O Retrato e a Fotografia, publicado na revista Vértice 148-149, Vol. XVI, de Jan/Fev 1956.

19

36

Figura 5 – Revista Vértice 148-149, onde Campos Lima publicou o seu artigo Retrato e Fotografia, em 1956

O livro Finisterra, apesar de ser ficção, ser-nos-á útil para tentar indagar o que pensaria Carlos de Oliveira sobre a fotografia, pois não conhecemos nenhum testemunho sobre o tema do escritor. Alexandre Pomar no seu ensaio parece partir de uma mesma perplexidade perante a ausência de referências históricas a uma fotografia neo-realista em Portugal. Procura assim analisar a história da fotografia portuguesa, nas décadas de 40 e 50, e começa por realçar um facto histórico que, na sua opinião, com certeza, poderia ter dificultado a aceitação da fotografia pelos neo-realistas. A fotografia era então utilizada com enorme eficácia pelo Estado Novo, como um elemento fundamental da sua propaganda. Apesar da natureza culturalm ente retrógrada do regime de Salazar, ele acompanhou os outros países autoritários dos anos 30 numa relação moderna com a fotografia, usando-a com grande eficácia enquanto instrumento de representação e propaganda. Alexandre Pomar, O neo-realismo na fotografia portuguesa, 1945 – 1963

No entanto, esta justificação parece ser insuficiente. Existira também durante muito tempo uma integração na política de propaganda do Estado Novo de muitos artistas plásticos, à custa de uma acção muito inteligente de António Ferro, como Mário Dionísio nos relata nas suas entrevistas, e no entanto os artistas neo-realistas conseguiram inverter essa situação. A acção de António Ferro fora muito hábil e conseguira congregar à volta do SNI a m aioria esm agadora dos artistas modernos, fossem quais fossem as suas convicções pessoais (o SNI era praticamente o único local de exposição para os m odernos); por outro lado, a Sociedade Nacional de Belas-Artes estava desde há muito nas mãos dos artistas tradicionais e os m odernos tinham desistido de lá pôr o pé; por outro lado ainda, m esmo entre os tradicionais, havia vários grupos que m utuam ente se digladiavam . As divergências estéticas sobrepunham-se às divergências políticas – o que m uito convinha, como bem se calcula, à «política do espírito» do reinado salazarista. […]os artistas antifascistas [organizados no CEJAD] venceram as eleições da

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Sociedade Nacional de Belas Artes, renovaram a vida associativa, publicaram uma pequena revista […] a primeira grande Exposição Geral de Artes Plásticas, cuja condição de adm issão era só uma: nunca ter exposto no SNI ou deixar de lá expor depois de 1945. Mário Dionísio, Entrevistas

As EGAPs (Exposições Gerais de Artes Plásticas) na SNBA, realizadas a partir de 1946, por acção sobretudo dos neo-realistas, passaram a reflectir uma atitude coerente antifascista. Teremos de notar que, apesar de os neo-realistas terem assumido o papel fundamental na sua organização, as exposições era abertas a todos os artistas que aceitassem um único, mas corajoso compromisso, que Mário Dionísio refere, “nunca ter exposto no SNI ou deixar de lá expor depois de 1945”. E a participação dependia apenas desse comprometimento, pois não havia sequer um júri de selecção. E, como veremos, houve três EGAPs, onde a fotografia esteve presente: em 1946, 1950 e 1955. O próprio Alexandre Pomar reconhece que existiam, desde a década de 40, contradições internas no mundo da fotografia. Deverão ser observados em pormenor alguns debates que animaram os círculos dos am adores fotográficos e as suas revistas, em m om entos anteriores e posteriores à 2ª Guerra, contrariando a ideia de uma uniformidade estética sem tensões, mas é também significativo que não tenham tido ecos para lá das suas fronteiras especializadas. São particularmente interessantes as questões estéticas que atravessam os primeiros anos da revista Objectiva, a principal publicação sobre fotografia que circula a partir de 1937 e até 1945, com interrupções e m udanças de orientação. De facto, a vulgarização do novo form ato de 35 mm, o crescimento do mercado fotográfico e a abertura ao exterior dos salões (o I Salão Internacional de Arte Fotográfica é de Dezembro de 1937) tiveram consequências im ediatas no confronto entre os tradicionais cultores dos “processos artísticos” e do pitoresco pictórico e, por outro lado, as novas tendências da fotografia directa e do instantâneo. […] Existiu também no Portugal do pós-guerra, desde 1945, de m odo mais ou menos discreto ou oculto, uma fotografia atenta às condições de vida e de trabalho do povo, com sentido testemunhal e crítico, interessada em docum entar e alterar a sociedade. Alexandre Pomar, O neo-realismo na fotografia portuguesa, 1945 – 1963

A participação da fotografia nas EGAPs de 1946, 1950 e 1955 poderia tentar-nos a pensar que poderia ter havido, sobretudo depois de 195020, uma evolução na relação do neo-realismo com a fotografia. Na EGAP de 1950 participam quatro fotógrafos, onde podemos realçar os nomes de Adelino Lyon de Castro e de Francisco Keil do Amaral. Na de 1955, são expostas obras de nove fotógrafos, onde destacaríamos Augusto Cabrita, Victor Palla e novamente Francisco Keil do Amaral. Apenas três EGAPs com fotografia, apesar de entre 1946 e 1956 ter havido todos os anos uma EGAP. Só em 1954 a exposição não se realizou pois a SNBA fora fechada pela PIDE. Persiste a interrogação sobre a ausência de fotografia nas restantes sete EGAPs. Sobretudo porquê o interregno entre 1950 e 1955. A partir de 1957 não se realiza a EGAP. 20

De facto, logo na primeira EGAP, em 1946, participara Mário Novais, apesar de ele ser o fotógrafo oficial da Exposição do Mundo Português de 1940 e de outras iniciativas do Estado Novo. Mas não voltará a estar presente em nenhuma outra EGAP e, segundo Alexandre Pomar, precisamente devido a essa colaboração que se prolongou com o regime e com o SNI. O mesmo terá acontecido a outros autores, como por exemplo Carlos Botelho. Em 1946 era a primeira EGAP e a lista de participantes poderá ter representado ainda uma fragilidade dos organizadores.

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Figura 6 - Catálogos das EGAPs de 1946, 1950 e 1955

Se quiséssemos estabelecer possíveis ligações formais e ideológicas entre o neo-realismo e a fotografia nas décadas de 40 e 50, Adelino Lyon de Castro, Keil do Amaral, Maria Lamas e mais tarde Augusto Cabrita seriam com toda a certeza nomes-chave.

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Quanto à fotografia neo-realista, onde não há lugar para falar em movimento nesse sentido estrito, importa procurar acontecimentos com visibilidade pública que estabeleçam as suas balizas principais (e julgo que só obras publicamente mostradas ou editadas interessam para estabelecer balizas efectivas): a participação de Adelino Lyon de Castro (em seu nome e com m ais dois nom es de empréstim o) nos Salões de Arte Fotográfica do Grém io Português de Fotografia, a partir de 1946 (com a exibição da fotografia intitulada “Ex-homens”, logo nesse ano), e também a publicação em fascículos de As Mulheres do Meu País, de Maria Lam as, em 1948-50. […] Os seus inúmeros retratos de m ulheres devem ser vistos como uma grande aventura fotográfica, com um sentido de documentário social, de denúncia e de esperança ou optimismo que tem de ser associado ao neo-realismo, como uma contribuição m uitíssimo original. […] Gosto de pensar (sem ter quaisquer provas para isso) que foi na sequência e por efeito da publicação de As Mulheres do Meu País, cujo último fascículo é de 15 de Abril de 1950, que a fotografia entrou na V Exposição Geral, em Maio. Alexandre Pomar, O neo-realismo na fotografia portuguesa, 1945 – 1963

Figura 7 - Jovens trabalhadoras das minas de São Pedro da Cova, em Mulheres do meu país

Figura 8 - O Fardo, de Adelino Lyon de Castro

Mas, tal como notam Alexandre Pomar e Emília Tavares, as fotografias que foram mostradas nas três EGAPs reflectem uma grande heterogeneidade, indo de um pictorialismo caduco até uma fotografia documental ou uma fotografia com um cunho humanista muito vincado. Não podem portanto, de todo, globalmente, ser identificadas como de expressão neo-realista. Mas 40

permitir-nos-ão porventura ter uma visão abrangente sobre a fotografia que então se fazia em Portugal. A fotografia presente nas EGAPs reflectirá conjuntamente uma fotografia amadora ligada aos foto-clubes, a influência de reputados salões fotográficos e ainda uma fotografia documental praticada de uma forma sistemática por grupos de arquitectos. Mas, tal como nota Alexandre Pomar, é muito significativo que a fotografia nas EGAPs pareça nunca ter despertado qualquer atenção crítica e portanto pareça não ter servido para uma clarificação estética e ideológica no seio do movimento fotográfico português, nem para uma discussão crítica sobre ela no seio dos neo-realistas. Ao contrário de outras formas de expressão artística, que encontraram no seio do neo-realismo uma definição formal, tal não aconteceu com a fotografia. Observamos que a fotografia, se participou nas EGAPs, nunca foi admitida como membro de pleno direito no seio do movimento neo-realista, isto apesar de alguns desses fotógrafos terem pertencido às mesmas organizações políticas a que pertenciam os neo-realistas, em especial ao Partido Comunista Português. Para compreendermos porque tal aconteceu, teremos talvez de procurar qual era a relação dos próprios artistas neo-realistas com a fotografia. Tal como afirmámos, encontrámos apenas dois textos, onde participantes renomados do movimento neo-realista falam sobre fotografia. Por um lado um texto de Manuel Campos Lima, publicado numa revista Vértice de 1956, por outro lado um texto de Mário Dionísio publicado na mesma revista cerca de um ano antes. Terá havido por Campos Lima uma intenção de responder ao texto de Mário Dionísio, que entretanto abandonara o PCP por divergências ideológicas? Não sabemos. Campos Lima pode ser associado a uma linha mais ortodoxa dentro do movimento neorealista. O seu texto na Vértice nº 148/149 de Jan/Fev de 1956, intitulado “O retrato e a fotografia” é extremamente interessante e talvez nos permita finalmente compreender por que razão nunca a fotografia pôde ser aceite pelos neo-realistas. O objectivo do artigo começa por ser o de apontar as limitações do processo fotográfico, como um processo mecânico e não criativo, para depois concluir que a fotografia é em tudo diferente do retrato (refere-se o autor ao retrato em pintura), que os neo-realistas admirariam. Para Campos Lima a fotografia é “uma pobreza de arte que esvazia a vida do seu conteúdo dinâmico para a retransmitir parada”. É uma arte para quem bastou “dar ao botão da Kodack, um decalque mecânico, um golpe de olho, a agilidade da mão”. Para o autor, a arte fotográfica que “pretende uma identificação total com a realidade, afasta-se tanto dela, como a arte que, num polo oposto, se proponha voltar as costas à vida”. A fotografia é “tão pobre, tão estéril, como a arte abstracta, como a arte mais extremamente formalista”. Não há na fotografia “um trabalho mais complexo, não de pura análise, mas de análise e síntese” como há na pintura e nomeadamente no retrato.

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Figura 9 - Artigo “O retrato e a fotografia” de Campos Lim a

Reconhecemos no artigo argumentos anti-fotográficos antigos, já do século XIX, argumentos que estiveram na base do aparecimento dos pictorialistas, mas podemos também reconhecer neles a velha tese, tão grata a alguns neo-realistas, de uma arte decadente formalista, que sobrevaloriza a forma ao conteúdo. Uma arte decadente, de que o abstraccionismo seria o mais digno representante, mas a que a fotografia não escaparia, como uma técnica de expressão formalista, nas palavras de Campos Lima. A argumentação de Campos Lima parece por vezes ser contraditória (preconceituosa?), quando ao mesmo tempo, no mesmo artigo se diz que “o critério de valor da arte é o da fidelidade da representação” e quando se escreve que o neo-realismo “coloca como fundamental objectivo da arte a representação do homem no devir social”, coisas que a fotografia parece fazer tão bem. Quando se afirmava o naturalismo, inerente à fotografia, como um dos adversários do neorealismo, tão importante de combater como ao formalismo dos abstraccionistas, compreendemos que a fotografia nunca pudesse integrar o movimento. A fotografia poderia ser, quando muito, uma ferramenta útil ao dispor dos verdadeiros artistas, como de facto foi, como veremos. Como assumir um outro papel, mesmo que Mário Dionísio tenha expressado, cerca de um ano antes, quando fala da fotografia no seu artigo da Vértice nº 137, de Jan de 1955, uma posição muito menos rígida, repetida no seu fasciculo Não se pode Copiar que integra a sua obra A Paleta e o Mundo, publicado em 1956. O objectivo desse texto é de mostrar que arte não pode nem deve copiar o mundo. A arte nunca o fez.

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Para o neo-realista, não se trata de copiar a natureza, como o naturalismo pretendeu, nem de interpretá-la, como tem feito com tanto êxito o modernismo, mas de transformá-la. Mário Dionísio, Entrevistas

E nem mesmo a fotografia o faz. Mário Dionísio compreende o carácter subjectivo da fotografia e defende que a fotografia não é uma cópia do mundo, mas sim uma representação do mundo, construída pelo fotógrafo. A fotografia veio precisamente revelar-nos que o registo mecânico da realidade não corresponde ao que consideramos realidade. Um recanto da paisagem só existe para nós de acordo com a experiência que dele temos [… ] Cada vez se vê m elhor que a realidade objectiva não é o que a vista humana distingue. Que há diferenças profundas entre a realidade objectiva e aquilo que normalmente consideramos com o tal. Mário Dionísio, Não se pode Copiar

E mais à frente no seu texto, para além de reconhecer o contributo que a fotografia dera e poderia ainda dar à pintura, admite mesmo o carácter artístico que a fotografia pode assumir. É evidente que a própria fotografia pode ser considerada arte. E a prova está feita. Mas só quando a passividade mecânica da chapa é de certo m odo corrigida pelo homem que a utiliza. Só quando um a visão pessoal consegue impor-se mesmo através da evidentem ente desumana impassibilidade da objectiva. Só quando o hom em se serve da m áquina e a dom ina. Quando há escolha, alteração de dados naturais, interferência. Quando o hom em transform a. Mário Dionísio, Não se pode Copiar

Sendo os dois textos contemporâneos, há uma grande diferença entre o que postula Campos Lima, que escreve como se não conhecesse (conheceria?) os construtivistas russos, por exemplo, como se ignorasse em particular o trabalho de Rodchenko, como se ignorasse (ignoraria?) a fotografia documental americana e a fotografia humanista europeia, e o pensamento de Mário Dionísio, que reflecte sobre a arte e o neo-realismo na sua obra A Paleta e o Mundo, e que compreende melhor as potencialidades da fotografia. Mas mesmo Mário Dionísio, mais à frente no seu texto, parecendo mesmo contradizer-se, escreve, aparentemente para sublinhar a supremacia da criação na pintura: Entre a cena natural e a chapa fotográfica há um mecanismo que, com m aior ou menor felicidade, lhe permite ser impressionada por aquela. É tudo. Entre a cena natural e o quadro há o homem : um mundo. [… ] Um homem que [… ] não é um elemento passivo que regista, m as que essencialmente transform a. Mário Dionísio, Não se pode Copiar

Para além dos dois artigos, que referimos, teria também sido publicado em 1945 no jornal A Tarde, dirigido nesse tempo pelo pintor neo-realista Júlio Pomar, um excerto de um texto de Aragon, sob o título O Pintor e a Fotografia, retirado da contribuição de Aragon para uma colectânea chamada La Querelle du Realisme. Nele Aragon discutia a relação entre a pintura, a fotografia e o realismo social. Mas esse excerto publicado centrar-se-ia exclusivamente na forma como a fotografia poderia prestar um enorme serviço à pintura, esquecendo tudo o que Aragon escrevera sobre fotografia documental e, por exemplo, acerca de Cartier-Bresson. A fotografia ensina a ver, vê aquilo de que um olho não se apercebe. Ela será no futuro não o modelo do pintor no sentido antigo dos m odelos de academia, m as o seu auxiliar documental, no m esmo sentido em 43

que as colecções de jornais são indispensáveis ao romancista. Alguém diz que o diário, a reportagem, é um concorrente do romance? É esse absurdo que se com ete quando se opõe fotografia e pintura. O que digo é que a pintura de am anhã utilizará tanto o olho fotográfico como o olho humano. Eu anuncio aqui um novo realismo na pintura. Isto é, que não supõe de m odo algum o regresso a um realismo antigo.” Louis Aragon, in Querelle du Réalism e, ed. Cercle d’Art, 1987, pp. 94-95 (tradução do original francês de Alexandre Pom ar). Alexandre Pomar, O neo-realismo na fotografia portuguesa, 1945 – 1963

Este texto poderá ter tido algum impacto e grande importância num conjunto de obras neorealistas, nomeadamente do pintor Júlio Pomar, que usou algumas vezes a fotografia como suporte do seu trabalho. Poderá também ele reflectir a percepção que os neo-realistas tinham da fotografia, desvalorizando-a, (des)considerando-a como uma mera ferramenta, que poderia ajudar os artistas na produção de obras realistas. Por isso, esta é uma produção fotográfica que nunca terá sido entendida como autónoma; nunca se lhe reconheceu uma identidade própria; nunca foi mostrada, pois não aspirava ao reconhecimento como arte fotográfica. Era entendida como uma simples ferramenta para apoiar a pintura. Os seus autores eram muitas vezes anónimos e, se não eram, não se consideraram fotógrafos.

Figura 10 - Fotografias utilizadas por Júlio Pomar como base para um seus célebres quadros O Gadanheiro (Gadanha), de 1945, e Camponês com Gadanha, de 1951, de Júlio Pomar

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Es tas fotografias integravam um dossier de Francisco Castro Rodrigues, que integrou a IX Missão Estética de Férias em Évora, em 1945, e fazem hoje parte da colecção do Museu do Neo-Realismo, de Vila Franca de Xira. 44

Figura 11 - O Gadanheiro (Gadanha), Júlio Pomar

Todos estes factos, a presença pontual da fotografia nas EGAP entre 1946 e 1956, a heterogeneidade dessa participação, a ausência de polémica interna sobre a estética fotográfica, a fotografia como suporte da pintura, parecem afinal reflectir a forma como o neorealismo lidava com a fotografia. A partir de 1955 podemos observar alterações significativas e modernizadoras no panorama da fotografia em Portugal. Alexandre Pomar acredita numa influência decisiva da exposição The Family of Man, no MoMA, em 1955, e da efervescência que a precedeu com a publicação22 em 1954 do apelo de Edward Steichen à participação de amadores e de profissionais na exposição. Será, no entanto, só por volta de 1954-55, já no novo contexto internacional que tem por paradigma a m ega-exposição “The Family of Man” (MoMA, Nova Iorque, 1955 e itinerante), que surgem condições favoráveis de recepção e de legitimação conceptual de um a fotografia de am bição docum ental e poética, próxima do cinem a italiano e tam bém da fotografia hum anista francesa e da tradição social am ericana. Alexandre Pomar, O neo-realismo na fotografia portuguesa, 1945 – 1963

Teremos de neste contexto de destacar Victor Palla que, como referimos, foi um dos fotógrafos que participou na EGAP de 1955. Era arquitecto, mas, com a arquitectura, acumulava múltiplos interesses, onde sobressaía a fotografia. Pouco tempo antes decidira trocar as pesquisas mais experimentalistas na fotografia pela descida à rua para aí obter imagens do quotidiano da sua cidade. Victor Palla iniciou então, com outro arquitecto seu amigo, Costa Martins, uma aventura que se revelaria fundamental para a história da fotografia em Portugal, a edição de um livro sobre Lisboa, intitulado Lisboa Cidade Triste e Alegre, “um amplo e actualizado quadro de referências fotográficas internacionais, usando muita informação norte-americana a equilibrar o apreço pelo realismo poético francês “, nas palavras de Alexandre Pomar. 22

Ess e apelo foi publicado na revis ta Fotografia nº 2, de Março de 1954. 45

Na mesma época, surgiu um grupo informal de fotógrafos, onde se destacavam Carlos Afonso Dias, Sena da Silva e Gérard Castello-Lopes e Carlos Calvet, que se assumia como antisalonista. Discutiam a fotografia, procurando concretizar um olhar fotográfico inovador do país, pondo em causa uma espécie de pictorialismo e de fotografia bem-feitinha que continuavam a dominar grande parte do salonismo português. A obra deste grupo pode começar por reclamar-se da tradição documental e humanista do pós-guerra, onde Henri Cartier-Bresson será o nome com maior prestígio, mas rapidamente assume contornos de uma maior subjectividade, onde podemos distinguir um olhar mais céptico do que optimistahumanista, revelando influências de outros autores europeus e americanos. Curiosamente estes fotógrafos deixaram de fotografar no fim da década. Alguns retomariam muito mais tarde. Mas na segunda metade da década de 50, quando a fotografia parece encontrar um caminho autónomo alternativo, o neo-realismo na pintura era já um movimento que perdia terreno. 3.1 Carlo s de Oliveira e a fo to grafia Como não conhecemos testemunhos do escritor sobre fotografia, teremos aqui de nos cingir ao seu romance Finisterra, onde a fotografia desempenha papel importante, como uma das formas de representação do mundo, para tentarmos nesta secção, perceber a possível atitude de Carlos Oliveira perante a fotografia. “O enigmático romance Finisterra - paisagem e povoamento, de Carlos de Oliveira, é das obras da literatura portuguesa contemporânea mais difíceis de analisar e, por este motivo, de compreender” afirma António Martins Gomes da UNL. …este romance é tam bém uma reflexão sobre o olhar, sobre a forma como o olhar vigilante, intencional e persistente estabelecido pelo sujeito conduz à organização da natureza observada e à obtenção de um conhecim ento mais aprofundado da verdade.[…] é de referir a profusão de objectos auxiliares e interm ediários do olhar (janela, lupa, óculos, espelho, vidro de garrafa, objectiva fotográfica) ou a nomeação do acto característico de abrir e fechar de olhos das personagens, a par de uma utilização reiterada dos verbos prism áticos “ver”, “olhar”, “reparar” ou “examinar”. António Martins Gomes, A foto de Finisterra

Finisterra é o romance escrito sobre uma casa onde uma janela desempenha o papel de símbolo de passagem ritual entre o mundo interior (da casa) e o mundo exterior (do jardim e da paisagem). No romance confrontam-se diversas formas de representação do real: o desenho da criança, a fotografia do pai, a piro-gravura da mãe, a maqueta. Nelas se materializam diferentes interpretações, materializadas por cada uma das formas de expressão e pelo olhar singular de cada membro da família, numa busca da verdade, que afinal nunca se atinge. Todas elas ambicionam a ser janelas, como é a janela real da casa com vista para o jardim e para a paisagem, mas são sempre, afinal, interpretações subjectivas e precárias. Mais do que ser uma representação da natureza, este romance parece pretender ter como um dos seus temas, a natureza da representação. Poderemos estabelecer uma analogia entre a casa e a janela, por onde entra a luz, e a câmara escura da máquina fotográfica e o diafragma, que aliás o livro

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denuncia: “ [O pai] Levanta-se e examina também a ampliação fotográfica, suspensa na parede (perto da janela), que reproduz esta mesma paisagem: a moldura dá-lhe um enquadramento semelhante”. Logo no capítulo II do livro, o narrador (quem?) observa a fotografia na parede da casa e descreve a sua dissolução. Levanta-se e examina também a ampliação fotográfica, suspensa na parede (perto da janela), que reproduz esta mesma paisagem : a m oldura dá-lhe um enquadram ento sem elhante; falta-lhe porém a cor real, e o tempo destingiu a im agem: os contrastes são pouco visíveis, desaparecem as três zonas distintas, dissolvem se numa única mancha castanha (quase sépia) à medida que os anos (e a réstia de sol batendo na parede pelo fim da tarde) devoram linha a linha a nitidez dos contornos. Carlos de Oliveira, Finisterra

A fotografia está sujeita ao mesmo processo de degradação que a casa, a paisagem, a família. Também a fotografia é precária. Também a fotografia é breve. A degradação provocada pelo tempo é visível, “os contrastes são pouco visíveis…dissolvem-se numa única mancha castanha”. A paisagem que se vê através da janela está ainda lá, mas destingida pelo tempo. Reconhece-se ainda a paisagem, m as há sobre as coisas um resíduo de luar lento que se esconde (como nas sanguíneas oitocentistas para lá das últim as dunas. Carlos de Oliveira, Finisterra

E à fotografia “falta-lhe porém a cor real” (Seria uma fotografia a preto e branco23?). “Mas háde ter (garante o pai) já faltou muito mais… Paciência.”. A fotografia é em Finisterra certamente mais outra forma da representação do real, tema central da obra de Carlos de Oliveira. A imagem fotográfica mencionada no livro, que a personagem [a criança quando adulta?], compara com o seu referente, a paisagem vista através da janela parece constituir mais uma tentativa das personagens para interpretar o real e para o confrontar com a possibilidade de representação objectiva. A fotografia, que normalmente constituiria um objecto de recordação, parece ser aqui mais um utensílio de experimentação/confrontação do real. A fotografia aparece nomeada de novo pela personagem “pai” no capítulo VI como uma forma de representação do real sem “grande margem de erro “. A fotografia capta “os elementos essenciais”. O pai parece assim encontrar na fotografia a resposta que procura, e para isso consultou os “compêndios de fotografia”, onde lê que “mesmo ordenada ao contrário, a imagem repete (com grande semelhança) areia, gramíneas, céu, lagoa, nuvens”; e se “a imagem não era perfeita”, foi “só até a invenção das lentes”. “Cálculos, sonhos, tentativas” e as “lentes servem para fixar o grão de área” e “trazê-lo tal e qual para dentro de casa”. A fotografia como magia que “colhe o rigor submerso da realidade”, que descobre “os números, a geometria em que o mundo repousa”.

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Curiosamente esta era uma das linhas principais de crítica dos pintores à fotografia no século XIX, o que fez com que uma das preocupações principais dos pictoralistas fosse desenvolver técnicas de coloração das fotografias. 47

Mas a mãe discorda. Só lhe interessa um “pormenor”, pois ela acha que “nas relações sujeitoobjecto, o sujeito faz parte da realidade e sem ele (que sente as coisas) nada teria sentido.”. E conclui que o” pormenor” é ela. “O pormenor são todas as criaturas de Deus”. E diz: Tem a realidade o fascínio de um tesouro escondido? Creio bem que sim. E a entrega mecânica à tentação acaba por destruir-nos. Carlos de Oliveira, Finisterra

E demonstra a superioridade da pirogravura. Um a gravura abstracta. Perto da geom etria, da arquitectura subm ersa das coisas. Mas foi a m inha im aginação (partindo do real, eu sei) a construí-la. Magia para filtrar o mundo, dar-lhe algum sentido. Carlos de Oliveira, Finisterra

Parecemos estar próximos das palavras de Mário Dionísio que citámos acima: “Entre a cena natural e o quadro há o homem: um mundo. […] Um homem que […] não é um elemento passivo que regista, mas que essencialmente transforma”. E no fim deste capítulo, a criança vê uma balança onde um prato sobe e outro desce, “cada vez mais equilibrados”, parecendo representar a disputa entre as duas formas de representação, Mas a criança decide “evitar o dilema e não decidir por nenhum deles”. A fotografia regressa ao romance no capítulo XXVII. O homem reconhece de novo [desta vez será o pai?] a degradação da reprodução fotográfica. “O homem pára diante da fotografia; aproxima a lupa, analisa o trabalho da réstia de sol (ao longo dos anos).” A fotografia corresponde a um momento congelado no tempo e passa a ter um ciclo de vida próprio a partir desse momento. A fotografia revela-se, também ela, efémera, como o desenho ou a como pirogravura, e permite reconhecer apenas vagamente a paisagem. A fotografia será afinal um novo objecto construído e não uma cópia do objecto fotografado, pois parece ser um objecto com vida própria, o que significa com a sua própria precariedade, tal como ela é descrita no texto, “transformar o negro em castanho, o castanho em sépia, o sépia em rosa, o rosa em amarelo”? Ficamos depois a saber que há uma única fotografia dentro da casa familiar, ” A única é aquela mancha a decompor-se”. E segue-se neste capítulo uma cena de destruição de todas as outras fotografias, cujo significado em grande parte nos escapa por entre os dedos. “A criança assiste, em silêncio, à execução de um plano elaborado sem pressa”. De nada valem “as súplicas, pragas, ameaças” da mãe e do tio. O pai destrói de um forma metódico chapas de vidro, reduzidas a pó por uma martelo cadenciado, e provas em papel, lançadas às chamas. “Nenhuma excitação, nenhum vestígio de cólera”. Há apenas “uma tristeza concentrada nos olhos do pai” que “tropeça nas pernas da mesa”. Porquê. O texto mantém o enigma. A criança exam ina várias razões possíveis (m as põe-nas de parte), examina outras (que também exclui). Se fosse capaz de interromper o pai na tarefa destruidora, perguntava apenas: porquê? Só uma palavra, tanto depurou (destilou) os motivos que lhe ocorreram. Carlos de Oliveira, Finisterra 48

A criança não compreende e o leitor permanece sem decifrar o enigma. Porquê? O pai destrói as fotografias decepcionado com a degradação que presencia da fotografia na parede? Se sim, porque não a destrói também? Para manter o vestígio desse processo rejeitado? Se for assim, por que razão o texto não nos dá pistas das motivações do pai? Será a cena descrita uma cena real, presenciada por Carlos de Oliveira, o que a descrição pormenorizada da câmara escura e do processo de revelação-fixação no capítulo XXX poderá suportar? Não conseguimos responder. Há entretanto no capítulo XXIX uma outra passagem muito interessante, que nos poderá induzir a pensar naquilo que poderiam ser as limitações da fotografia para Carlos de Oliveira, quando perante uma cena onírica(?), onde a mãe desenha com o estilete ao rubro na pele de um cordeiro e perturbada pelo discurso do tio “mergulha o estilete em brasa no olho esquerdo do cordeiro”, o pai aparece, “traz a máquina fotográfica, o tripé, o pano preto pela cabeça e dispara o obturador num movimento acelerado. Saltam da máquina chapas sobre chapas veladas” e o narrador afirma “Isto não é real...Não se pode fotografar”. Curiosamente é só no capítulo XXX, já quase no fim do livro, que se nos revela a fotografia, como se constituísse uma memória forte em Carlos de Oliveira. O narrador descreve-nos com pormenor a despensa da casa transformada em câmara escura, convertida em “fábrica de imagens”: Im óvel, a m eio do corredor, a criança olha a porta da câmara escura que o pai acaba de fechar. Calafetam ento cuidadoso (difícil qualquer intromissão de luz): contornando as om breiras e o lim iar, um caixilho (com a ranhura estreita) onde se insere um a tira de feltro, quando a porta é fechada. Além disso, a chave (deixada no lugar, pelo lado de dentro) neutraliza o buraco da fechadura. Nem o fulgor dum relâmpago ultrapassa estas medidas de defesa, quanto mais o raio de sol incidindo agora sobre a porta: refracta-se palidam ente, esboroa-se contra a madeira. Carlos de Oliveira, Finisterra

A criança nunca visitou a fábrica em laboração. “Supõe apenas a penumbra vermelha, os reflexos de sangue nas chapas, nos banhos de cuvettes.” Mas visitou-as escondidas, o lugar onde acontece o processo fotográfico, a revelação, a fixação, as luzes vermelhas, os banhos. Visitou-a às escondidas [a fábrica de im agens], claro. Parada, sem fabricar imagens. Um a antiga despensa: e a mesa de pinho, as tinas, os solutos, as chapas que secam (presas por molas de roupa a um cordel) [… ] Nenhuma surpresa, nenhuma revelação de enigmas. Afinal, surgem como, as im agens? Reacções químicas? Pois sim . E que processos, substâncias, poderes, orientam o m istério? Comparar (outra vez) com a madrugada; [...] também ela rompe da noite e torna o m undo diferenciado; envolve-o num a película de luz, deixa-o depois reter (fixar) as formas, as tonalidades, pouco a pouco. Carlos de Oliveira, Finisterra

Dispondo apenas da fotografia-personagem-simbólica, tal como ela nos aparece em Finisterra, com uma vertente poética evidente e muitas vezes até enigmática, não poderemos saber exactamente qual poderia ser a posição de Carlos de Oliveira sobre a fotografia. Se ele realmente se distinguia da maioria dos neo-realistas, que a desvalorizavam, como forma de expressão artística, pela falta de criatividade do processo, ou até pelo pretenso naturalismo que a fotografia implicava. Não temos forma de saber se aquilo que o pai em Finisterra 49

expressa sobre a objectividade que procurava através da mecanicidade da imagem fotográfica reflecte realmente o pensamento do escritor, ou se esse pensamento é mais fielmente traduzido quando a mãe compara a sua pirogravura com a fotografia e diz: “Mas foi a minha imaginação (partindo do real, eu sei) a construi-la. Magia para filtrar o mundo, dar-lhe algum sentido”, parecendo traduzir de outra forma o que escreveu Mário Dionísio que só há arte “Quando há escolha, alteração de dados naturais, interferência. Quando o homem transforma.” No entanto, avaliando o conjunto das situações relativas à fotografia no romance, atrever-nosíamos a suspeitar que a posição de Carlos de Oliveira não deveria ser muito diferente da que é expressa por Mário Dionísio na Paleta e o Mundo, reconhecendo por um lado o papel da fotografia e até a possibilidade de se transformar em forma de expressão artística, mas estando por outro lado profundamente condicionado por uma conjunto de “preconceitos”, derivados da ideia de que intervenção do fotógrafo é profundamente limitada pela intermediação mecânica da câmara. 3.2 Co nclu sões Daquilo que escrevemos, sustentando-nos em muito que outros escreveram antes de nós, pensamos que poderemos concluir que não parece ser possível reconhecer verdadeiramente uma fotografia neo-realista em Portugal. Nenhum fotógrafo se assumiu como fazendo parte desse movimento e não descortinamos por parte do movimento qualquer evidência de poder/querer integrar a fotografia no seu seio, sobretudo por haver da sua parte uma atitude de desconfiança relativamente ao processo fotográfico, que era considerado como formalista, de pouco valor e incapaz de criar objectos artísticos, ainda que houvesse no seio do movimento neo-realista atitudes mais ou menos rígidas relativamente ao papel da fotografia. E como também afirma Alexandre Pomar, poderemos também ainda afirmar que o tema parece que não tem sido objecto de suficiente atenção em Portugal, alertando ele para a necessidade de um estudo com a profundidade que o tema exige. O tem a (ou a hipótese) da fotografia neo-realista em Portugal nunca foi até agora abordado por qualquer exposição ou ensaio de conjunto.

4.

O e nsaio foto gráfico

O nosso ensaio fotográfico foi construído a partir da poética de Carlos de Oliveira, em especial do seu livro Micropaisagem. O ensaio foi o motivo de termos escrito este texto como diário de bordo da viagem que fizemos pela obra do escritor. Partindo da casa de família24 do poeta na Gândara e do seu espólio mobiliário e literário, guardado em caixotes ou coberto por plásticos em armazéns, à espera de poder ocupar o 24

A casa é talvez a mais densa das obsessões de Carlos de Oliveira. Símbolo porventura do povoamento consolidado sobre a paisagem instável. A casa é também mem ória de infância (a casa fam iliar) e está incindivelmente ligada ao tem a do regresso.

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espaço que lhe pertence na casa, deambulando na paisagem, em torno das lagoas, das pedreiras, das casas e dos pinhais, e percorrendo o ciclo da cal, fomos coleccionando imagens do real que inspirou a escrita de Carlos de Oliveira.

Vital Moreira em Paisagem Povoada 51

Bib lio grafia

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