Esculápios bélicos: a Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará e as efemérides cívicas da nação brasileira, 1914-1922*

June 8, 2017 | Autor: Aldrin Figueiredo | Categoria: History, Health Sciences, Anthropology, Brazil, Amazonia, Medicine
Share Embed


Descrição do Produto

1

Esculápios bélicos: a Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará e as efemérides cívicas da nação brasileira, 1914-1922* Aldrin Moura de Figueiredo** Comunidades intelectuais, sociedades científicas e datas cívicas são, muitas vezes, expressões que guardam certa analogia no campo da história. Por trás da representação do mais corriqueiro evento pátrio sempre estiveram os arautos das efemérides da nação. Engenheiros, advogados e médicos, mediando o exercício da política e da produção literária, eram os polímatas que escreviam a história da pátria. As formulações matemáticas da engenharia, o exercício positivo do direito e a marca biológica do savoir-faire da medicina foram, de fato, recursos constitutivos nas discussões que serviram para solidificar o tema do nacionalismo e do civismo na Amazônia e no país afora, durante os primeiros decênios do século XX. Nos meados da década de 1910, no contexto da grande crise da borracha e da explosão da primeira guerra mundial, inúmeros intelectuais faziam eco na imprensa e em várias publicações debatendo o problema das tradições nacionais, a partir da investigação e divulgação dos fatos históricos. As comemorações patrióticas ganharam um destaque impensável há algumas décadas e, sem dúvida, esse esforço, surgiu em meio a disputas, nas redações dos jornais e principalmente nas associações científicas e literárias. No Pará dos anos de 1910, a mais importante foi, sem nenhuma dúvida a Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará, fundada em 1914. Mas essa história, como já era de se esperar, estava imbricada em muitas outras. O processo de afirmação da sociedade médica foi demorado. No início do século XX, o que se via entre os esculápios paraenses era um forte empenho em constituir-se e solidificar-se como “classe” e “organismo social”. Pelo menos, era esse o principal interesse da agremiação profissional mais importante da época, a Sociedade Médico-Farmacêutica do Pará, que, em 1901, lançava o jornal Pará-Médico, tendo à frente da redação os doutores Américo Campos, João Godinho e Pontes de Carvalho 1. A perspectiva a partir daí era a de tentar amealhar a simpatia popular para a atividade desempenhada pelos médicos, com informações claras sobre o que ocorria no interior de suas sociedades2. A visibilidade da atividade médica deveria, cada vez mais, contrastar com o *

Este artigo é parte de uma pesquisa mais ampla sobre a história social da intelectualidade na Amazônia, durante as primeiras décadas do século XX, realizada com o apoio da UFPA e do CNPq. Uma primeira versão do que vai aqui expresso foi apresentada originalmente no Simpósio Nacional de História, em Niterói, 2001. ** Doutor em História. Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Pará. 1 Pará-Médico. Belém, 1 de janeiro de 1901, p.1. 2 Para uma leitura da história social da gênese e constituição desse tipo de imprensa médica, ver William Bynum; Stephen Lock & Roy Porter (eds.), Medical journals and medical knowledge: historical essays. London: Routledge, 1992.

2 exercício “oculto” da pajelança e, para isso, os clínicos faziam uso de armas muito sutis para ganhar pontos diante do público. A constituição da imagem da autoridade médica, do herói da cura e do benemérito cidadão fazia parte dessa estratégia das associações médicas. Em 1904, um grupo de amigos do Dr. Camillo Salgado resolveu homenagear o experiente médico em seu aniversário natalício, narrando a sua trajetória biográfica em favor do bem público 3. A gratidão da classe médica com uma de suas mais eminentes lideranças deveria se transformar em reconhecimento público. A notoriedade médica transformava-se assim numa das mais importantes formas de inserção política da classe no cotidiano da cidade. Desde o século XIX, as atividades desenvolvidas no interior da Junta de Higiene deram mostra desse papel desempenhado pelos doutores, mas o conhecimento público de suas atividades limitou-se muito ao que as gazetas diárias informavam, tanto nas denúncias sobre pajés e curandeiros como nas soluções sobre algum problema sanitário existente na cidade. Em 1905, a diretoria do Serviço Sanitário de Belém tomava outro rumo buscando aprimorar essa comunicação com o grande público. Nesse mesmo ano, começou a publicar um periódico mensal dando conta dos problemas e progressos experimentados nos limites urbanos da capital e em algumas regiões do interior do Estado do Pará. Nessa publicação, os médicos, farmacêuticos e higienistas articularam um espaço proeminente de autopropaganda como jamais visto anteriormente numa publicação oficial do município4. Neste contexto, a longa história de conflitos entre a medicina oficial e a pajelança na Amazônia, começava a ganhar novos contornos e formas mais sofisticadas de litígio. Se por um lado os médicos estavam conseguindo articular um meio eficiente de divulgação de suas atividades, os pajés e curandeiros continuavam, por seu turno, alcançando um outro tipo de evidência nos velhos diários — aparecendo como uma pecha que infestava a cidade. Em vez da ciência dos médicos, os pajés eram citados pelos contatos que faziam com o desacreditado mundo sobrenatural. Em 1902, apareceu em Belém uma mulher que vomitava vidros e agulhas e, à qual, a gazeta recomendava, em tom de zombaria, a consulta com algum célebre pajé5. No ano seguinte, eram as “almas d’outro mundo” que grassaram pelo Umarizal, bairro aonde, anos antes, fizera fama o pajé Veridiano Belém Pereira, muito falado à época. Naquele início de século, o tal bairro vivia às voltas com as triviais queixas sobre a existência de lobisomens, matintas-pereiras e outras visagens cometendo todo tipo de “correrias 3

Dr. Camillo Salgado. Belém, 22 de maio de 1904. Boletim Mensal de Estatística Demographo-Sanitaria da Cidade de Belém. n.1. Belém, 31 de janeiro de 1905. 5 O Notícia. Belém, 14, 15 e 20 de novembro de 1902, p.1. 4

3 noturnas”. O jornal galhofava das histórias reiterando que, com esse tipo de criatura, somente os pajés e a polícia conseguiam se entender6. A situação conflituosa entre as várias medicinas no Pará do início do século XX tendia a transformar-se numa espécie de diálogo de surdos. De um lado os médicos tentando demonstrar uma aparente indiferença em relação à pajelança e ao curandeirismo e, por outro lado, os pajés levando seu “ofício” como sempre. Os médicos apostavam agora na afirmação da medicina com a especialização de seu campo de trabalho. Se na prática um pajé poderia ser uma espécie de clínico geral, dificilmente se transformaria num especialista. Na década de 1910, apesar de todo esse barulho, Belém não tinha um grande contigente de médicos e, muito menos, uma faculdade de medicina. Na verdade, todos eram formados em faculdades estrangeiras ou, quando muito, na Bahia e Rio de Janeiro. Poucos faziam alguma especialidade e, em sua grande maioria, eram clínicos gerais, parteiros e obstetras. Essa realidade fazia com que, desde o século passado, muita gente acusasse os clínicos de fazerem uso dos mesmos “específicos” que os pajés receitavam aos seus clientes, incluindo-se aqui, as mesmas ervas e beberagens7. A especialização dos médicos tornava-se assim mais um poderoso critério de diferenciação entre os médicos e, mais ainda, destes em relação aos pajés. Em Belém, os pediatras Ophir Loyola, Hilário Gurjão e Francisco de Souza Pondé; o psiquiatra Antonio Porto de Oliveira; o oftalmologista Lyra Castro e o otorrinolarigologista Olegário Costa estão entre os primeiros a divulgar seus trabalhos especializados e, de certo modo, a entrar em conflito com a antiga tradição do médico de família. Muitos desses médicos foram pontas de lança na organização de uma nova sociedade profissional, com uma feição bastante distinta das anteriores — a Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará. O problema da formação dos médicos era tão urgente entre as lideranças da classe que, apenas cinco anos depois de fundada a confraria, os mesmos diretores da casa estiveram à frente da criação da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, em janeiro de 1919. Sob o patrocínio do governo do Estado, então comandado por Lauro Sodré (1858-1944) um dos mentores do cientificismo republicano no Brasil e uma das principais políticos de seu tempo, a faculdade foi dirigida nos seus anos iniciais pelos professores Antônio Emiliano de Sousa Castro (que seria governador do Pará entre 1921 e 1925) e Camillo Henrique Salgado. Nesses primeiros anos, a Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará serviu como braço-forte da Faculdade de Medicina, especialmente no campo da pesquisa, porém foi a Associação Científica do Pará (mantenedora da Faculdade de Odontologia) que arcou a parte orçamentária da nova 6

O Notícia. Belém, 19 e 20 de março de 1903, p.2.

4 instituição. O grupo de médicos que havia fundado a Sociedade Médico-Cirúrgica teve participação decisiva na fase de estabilização do novo curso de medicina, alertando os colegas de ofício para a necessidade e especificidade da formação de novos médicos habilitados na Amazônia, organizando os currículos e ementas de disciplinas e designando professores e seus assistentes para as cátedras. A faculdade então precisava dos recursos oriundos de loterias e doações, principalmente até 1923, quando a Faculdade obteve autonomia administrativa, desvinculando-se da Associação Científica do Pará, constituindo sua própria direção, conselho técnico e administrativo e congregação. Nesse período, houve uma aproximação ainda maior com a Sociedade Médico-Cirúrgica, em virtude do espaço acadêmico e de debates científicos que a confraria solidificara. É certo que uma das iniciativas mais importantes e inovadoras dessa associação foi manter uma espécie de fórum permanente de discussões e pesquisas médicas e sanitárias. Tanto assim que, nove meses depois de fundada, a sociedade lançava, em maio de 1915, o primeiro número de sua revista, com título homônimo de um jornal já citado aqui e que havia existido 15 anos antes — Pará-Médico. Além da ata de fundação, o número de lançamento trazia a conferência proferida pelo Dr. Acylino Leão, orador oficial da diretoria empossada8. O discurso versou sobre o tema medicina como um campo de pesquisa “experimental” e evolutivo, marcado pela presença demiúrgica dos heróis fundadores — desde a ancestralidade de Hipócrates (460-377 a.C.) e seus “humores”, passando pelas conquistas da modernidade, a partir do século XV, com Paracelso (Theophrastus Phillippus Aureolus Bombastus von Hohenheim, 1493-1541) e sua “química”, André Vesale (1514-1564) e sua “anatomia”, com os medicamentos específicos e química biológica do holandês Hermann Boerhave (1688-1738) e a teoria fermentativa da digestão de Jean Baptiste van Helmont (15061588) até William Harvey (1578-1657) e a descoberta da circulação sangüínea. Isso tudo, no entanto, parecia à distinta platéia de notáveis médicos como coisa de um passado remoto, fios condutores de um progresso que eles já conseguiam experimentar em seus consultórios. Assim o eminente conferencista divagava pelas conquistas das luzes setecentistas, com química de Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794) descrevendo o processo respiratório e a calorimetria, o exatismo da fisiologia de Albrecht von Haller (1708-1777) seguida de sua teoria da irritabilidade muscular, Abbe Lazzaro Spallanzanni (1729-1799) repudiando o velho mito da geração espontânea, passando pelo positivismo biológico de Louis Pasteur (1822-1895) até as 7

“Os pajés”. Diário de Notícias. Belém, 4 de outubro de 1887, p.2. Uma análise cuidadosa dessa notícia está em Aldrin Moura de Figueiredo, Pajés, médicos & alquimistas: uma discussão em torno de ciência e magia no Pará Oitocentista”, Cadernos do CFCH. v.12, n.1-2. Belém, 1993, pp.41-54. 8 “Ata da Sessão Inaugural da Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará”. Pará-Medico: Archivos da Sociedade MedicoCirurgica do Pará. v.1, n.1. Belém, 1915, p.10-11.

5 pesquisas de Edward Jenner (1749-1823) com as vacinas. Houve espaço ainda para lembrar o desenvolvimento da teoria celular por Theodor Swann (1810-1882) e, por fim, em tom mais do que eloqüente, como pedia o título da preleção, foi evocado o estabelecimento das bases da ciência experimental por Claude Bernard (1813-1878). O discurso, no entanto, não parava por aí. Havia a necessidade de mostrar que a recente sociedade de médicos estava atualizada e atenta às últimas novidades que chegaram com o limiar do século XX. O grande recado retomava o título da conferência: a medicina que os médicos paraenses deveriam praticar era aquela fundada em teorias aprovadas pela experimentação, convergindo diversos campos da medicina contemporânea, da endocrinologia à genética, da biologia a biotipologia9. A fala do Dr. Acylino Leão faz lembrar a matéria publicada no velho Diário de Notícias, cerca de trinta anos antes, onde esses grandes “vultos” da ciência eram despudoradamente comparados aos pajés, inclusive como experimentadores de novas técnicas e receituários na cura dos mais diversos males. Em 1914, no entanto, a situação já era outra e os médicos haviam estruturado o seu quartel general, investido com beneplácito científico. Por esse tempo, o discurso de Acylino Leão, segundo o médico e memorialista Clóvis Meira, chegou a servir como uma espécie de “padrão para as metas a serem alcançadas pela sociedade nascente”, especialmente se levarmos em conta que um dos objetivos mais importantes da sociedade era o do “aprimoramento da classe”10. A medicina experimental foi, assim, uma pedra de toque no discurso dos clínicos e higienistas ligados à nova sociedade, traduzindo-se nas primeiras publicações com os resultados das pesquisas na região de Belém, fosse sobre a descrição de uma enfermidade num grupo social específico, fosse analisando novas medidas terapêuticas ou profiláticas destinadas ao controle de algum tipo patológico encontrado em alta na cidade. Mas se o experimento cientifico servia de beneplácito acadêmico à confraria médica, faltava ainda firmar o passado da sociedade em meio à história pátria. As efemérides nacionais serviram, neste sentido, como canal de expressão desse processo de inserção política na história do país. O exercício mais eloqüente dessa atitude institucional ocorreu em 1922, quando da comemoração ao centenário da independência do Brasil. Na data, a Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará lançou um número especial da revista Pará-Medico: Archivos da 9

Acylino Leão, “Medicina experimental”. Pará-Medico: Archivos da Sociedade Medico-Cirurgica do Pará. v.1, n.1. Belém, 1915, p.5-9. Na contextualização dessas citações do Dr. Leão, foi de grande valia a consulta do livro de Jean Starobinsky, História da medicina. Lausanne: Livraria Morais, 1967, especialmente, pp.19-57. Não à toa, grande parte das citações da conferência se refere aos “avanços” posteriores ao século XVII, tempo da “popularização” da medicina na Europa. Cf. Roy Porter (ed.), The popularization of medicine, 1650-1850. London: Routledge, 1992. Ainda sobre essas ligações do passado com o presente, na leitura dos médicos da década de 1910, em Belém do Pará, ver Arthur França, “Alguns dados sobre a história da medicina em Belém”. Pará-Medico: Archivos da Sociedade Medico-Cirurgica do Pará. v.1, n.3. Belém, 1916, pp.77-79.

6 Sociedade Medico-Cirurgica do Pará, órgão oficial da instituição. Mais do que uma simples alusão à efeméride pátria, a publicação aproveitava a data cívica para recompor a história e memória da confraria médica, circunscrevendo o passado dos esculápios paraenses na própria história dos sucessos da nação. Na publicação sobressaiu um artigo escrito em conjunto pela comissão de redação da revista sugestivamente intitulado Apontamentos para a historia social e scientifica da Sociedade Medico-Cirurgica do Pará, no qual subjaz o processo de construção de um “olhar retrospectivo” como parte de uma ampla demanda pela legitimação da medicina, por meio daquilo que os doutores acreditavam ser uma verdadeira batalha pelos “interesses morais e materiais da classe”11. O traçado da história da medicina a partir da escrita dos próprios médicos era, assim, apenas o limiar de uma luta pela auto-regulação da atividade, na constituição de uma ética de classe e divulgação das formulações veiculadas e recepcionadas no interior da sociedade. Deste modo o Pará acabou sendo tomado pela Sociedade MédicoCirúrgica do Pará “como um dos grandes centros da cultura médica brasileira”, na medida em que, além de recompor sua história médica, também procurava manter um diálogo com as mais recentes descobertas científicas no mundo, ignorando qualquer possibilidade de descompasso entre a medicina praticada nas instituições paraenses e aquelas divulgadas em outros centros brasileiros e no exterior. É importante que se observe que muito dessa atividade poderia ser enquadrada no âmbito de um impulso meramente nostálgico de revalorização de um pretenso substrato cultural e histórico da nação. Todavia, esse saudosismo, tão presente nas memórias e corografias médicas da época, no meu entender, servia muito pouco para explicar essa nova experiência de interpretação do Brasil que nada tinha de imemorial. Muito mais do que uma simples estima pelo passado, esses intelectuais da medicina procuraram descobrir, registrar e traduzir antigos fatos, nomes e episódios que eles próprios consideravam desaparecidos da memória social e, ao mesmo tempo, inserir suas sociedades nesse cenário das glórias pátrias. Mais até do que a década de 1910, durante a fundação da Sociedade MédicoCirúrgica do Pará, foram os anos seguintes muito mais férteis em comemorações cívicas. A data do aniversário da nação foi sutilmente relacionada ao aniversário da confraria médica e das faculdades e escolas onde os esculápios atuavam. Independência e emancipação foram termos recorrentes durante os festejos de 1922 e 1923, porém, apesar de utilizados na maior parte das situações como sinônimos, essas definições acabaram manipulando um amplo campo 10

Clóvis Meira, Medicina de outrora no Pará. 2a ed. Belém: Grafisa, 1989, p.7 Jaime Aben-Athar et al, “Apontamentos para a historia social e scientifica da Sociedade Medico-Cirurgica do Pará”. Pará-Medico: Archivos da Sociedade Medico-Cirurgica do Pará. v.8, n.10. Belém, 1922, p.268. 11

7 simbólico que, para lembrar a formulação de Clifford Geertz, revelou múltiplos “padrões de significados”, historicamente datados12. A independência do país também foi a da medicina moderna e da ciência experimental. Pontuando melhor: enquanto no primeiro decênio do século XX os intelectuais paraenses se ocuparam da redescoberta do Brasil, já com uma visível desconfiança em relação aos referenciais, linguagens e valores cultivados na Europa, já que a formação médica na Amazônia era na maior parte das vezes alienígena13, na década seguinte, esse reencontro com o passado se transformou em elemento fundador da nacionalidade nascente, na qual a história da medicina acabou fixando rumos para as interpretações sobre a nova face do país. Em 1922, o médico João Baptista Penna de Carvalho, afirmava que a simples existência da Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará era “a confirmação plena e cabal do progresso da medicina entre nós”14. E, por fim, depois de reconstituir uma longa e progressiva história da aclimatação das teorias médicas nos rincões da Amazônia, o médico-historiador atentava para os três principais pontos que nortearam a concepção e a escrita desta comunicação. Antes de mais nada, apareceu o aspecto de “classe” envolto na sociedade médica. Incorrendo sobre aquilo que futuramente será chamado de ética médica, o doutor chamava a atenção dos “profissionais que com sinceridade estremecem a sua profissão e com interesse elevado se preocupam com as crises da classe a que integram”. Todo o clínico, alertava Penna de Carvalho, deveria colocar as “questões profissionais” acima das “ambições” pessoais, pois só assim refletiria “a elevação moral e científica da sua classe” 15, retomando formulações da ética científica veiculadas na Europa a partir dos fins do século XVIII16. Em seguida, retoma o problema da identidade regional/nacional, contrastando o bairrismo e o nacionalismo na percepção dos esculápios: “Desejo afagar cérebro dos clínicos que idolatram o Pará”, bradava o médico, insistindo que essa aspiração serviria como o melhor antídoto para aplacar “a crise econômica e financeira” que manietava o “evoluir progressista” do Estado 17. 12

Clifford Geertz, “A ideologia como sistema cultural”. In: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p.178. 13 Ver, sobre o século XIX, Eduardo de Léger Lobão. A medicina em Belém. Belém: Tavares Cardoso, 1901. 14 João Baptista Penna de Carvalho, “Evolução da medicina no Pará”. Pará-Medico: Archivos da Sociedade MedicoCirurgica do Pará. v.8, n.10. Belém, 1922, p.225. 15 Idem, p.228. 16 Vale notar que, no século XVIII, a ética médica esteve revestida sob o traço da etiqueta do Antigo Regime, especialmente na França. Já no século XIX, no contexto anglo-americano, houve um enorme investimento na formulação de uma jurisprudência médica, embrião do processo de auto-regulação da atividade, muito comum em todo o mundo ocidental no século XX. Cf. Robert Baker, Dorothy Porter & Roy Porter (eds), The codification of medical morality: historical and philosophical studies of the formalization of Western medical morality in the eighteenth and nineteenth centuries. Dordrecht; Boston: Kluwer Academic Publishers, 1993-1995, 2 v. 17 João Baptista Penna de Carvalho, Op. Cit., p.228. A crise a que se referiu o médico é justamente a crise da borracha, pois na década de 1920, o Pará passa a responder por apenas 5% da borracha consumida no mercado

8 E, por fim, o médico desdobra a formulação anterior, projetando o conteúdo nacionalista da efeméride pátria. A idéia era mesmo a de insuflar os próprios membros da Sociedade MédicoCirúrgica do Pará que provassem com seu trabalho como se fazia “o verdadeiro culto do amor à pátria”, melhor enaltecido posto que vinha de um “recanto afastado e ignorado do país e do mundo científico”18. Assim, os médicos registravam suas memórias, definiam efemérides e se colocavam nos anais mais sagrados da história da nação, num tempo em que, tanto a nacionalidade como a medicina moderna, ambas estavam escrevendo o seu livro do gênesis. internacional. Cf. Aldrin Moura de Figueiredo, No tempo dos seringais: o cotidiano e a sociedade da borracha. São Paulo: Atual, 1997, p.36. 18 João Baptista Penna de Carvalho, Op. Cit., p.228.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.