Escultura Devocional e de Uso Litúrgico. In Igreja de S. João Baptista de Alcochete. Alcochete: Câmara Municipal, 2003, pp. 157-163

May 30, 2017 | Autor: C. Fernandes | Categoria: Virgin Mary, Medieval Sculpture, História De Arte Em Portugal
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Descrição do Produto

A IGREJA DE S. JOÃO BAPTISTA DE ALCOCHETE Coordenação Isabel Cristina Ferreira Fernandes

Autores Carla Varela Fernandes, Carlos Russo Santos, FJsa Afonso, Isabel Cristina F. Fernandes, José Meço, Francisco Lameira, Mário Jorge Barroca, Nuno Vassalo e Silva, Paulo Almeida Fernandes e Vítor Serrão

CAMARÁ MUNICIPAL DE ALCOCHETE 2003

FICHA TÉCNICA Edição

Fotografia

Câmara Municipal de Alcochete

Arquivo da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais: indicadas em cada imagem

Coordenação

Isabel Cristina Ferreira Fernandes Autores dos textos

Carla Fernandes Carlos Russo Santos Elsa Afonso Francisco Lameira Isabel Cristina F. Fernandes José Meço Mário Jorge Barroca Nuno Vassalo e Silva Paulo Fernandes Vítor Serrão

Margarida Ramalho: peças de "O Tesouro" Rui Minderico: as restantes Levantamento topográfico e desenho da planta da igreja

Miguel Correia Design

Paulo Curto Execução Gráfica

Belgráfica ISBN: 972-9217-31-9 Depósito Legal: 197669/03 Tiragem: 2.000 exemplares

Alcochete, Junho de 2003 Todos os direitos reservados para a língua portuguesa por Câmara Municipal de Alcochete

ESCULTURA DEVOCIONAL E DE USO LTTURGICO Carla Varela Fernandes

Na Igreja Matriz de Alcochete encontramos, entre o conjunto da imaginária de altar e as peças de escultura destinadas a fins litúrgicos, um pequeno número de obras cujo interesse históricoartístico vale a pena destacar. Na actualidade, a Igreja de São João Baptista não pode ser considerada como particularmente rica em património escultórico móvel, sendo apenas um simulacro do que foi noutros tempos, em que as várias capelas e seus respectivos altares ostentaram um importante número de imagens sacras. Percebemos, através das informações dadas 2pelas Vísifaçõesda Ordem de Santiago, logo a partir de 1512 , que aí existiam imagens de pedra e outras de madeira, umas novas, outras mais antigas, que enriqueciam e abrilhantavam o seu interior. Muitas delas desapareceram, substituídas por outras mais

recentes, levadas para diferentes igrejas ou seguindo destinos menos felizes, dos quais não possuímos informações. As que subsistem desses primeiros tempos transitaram dos seus lugares primitivos para outros (novas capelas ou novos altares), sujeitando-se às alterações de gosto e de funcionalidade, enquanto que outras imagens foram dando entrada na matriz de Alcochete, quer por encomenda, quer por acontecimentos "milagroso/. Amais antiga e também uma das mais curiosas peças pertencente a este acervo é, sem dúvida, a pia de água benta, hoje exposta em frente ao altar cruzeiro doladodaEpístolaeque, pelasua reduzida dimensão e decoração pouco exuberante, quase passa despercebida ao olhar dos fiéis e outros visitantes. Julgamos poder afirmar que se trata da "pia daguoabenta muyto

' Museu Arqueológico do Carmo Como se pode constatar através de alguns excertos da visitação da Ordem, realizada 6011512, que aqui transcrevemos: (1512 - Fl. i43v) - "(...) e o arco do dito cruzeiro he depedrarya muy boom e na parede em cima estaa huum crucifixo com a Imagem de nosa Senhora e de Sam Joham_de cada parte tudo de paao pyntadas de novo" "E da parte do evangelho apaegado com aparede do cruzeiro estaa huum alltar depedra sobre quatroprayeos de pedra e nelle estaaom muytas Imagens de paao velhas E da outra parte estaa outro alltar do mesmo theor e nelle huuma Imagem de Santa Maria de paao pyntada e de huuma parte outra Imagem de Pedro e da outra huuma Imagem de Santo antonio ". (Foi. 144) "E no corpo da dita Igreija da parte do avamgelho (...) estaa huum alltar de nosa Senhora f...j e no meyo delle huuma charolla naquallfFl. I44.v) estaa huuma Imagem de nosa Senhora com o menyno Jesus no collo. E mais esta no dita alltar huuma Imagem do menyno Jesus muyto boa ". IAN/TT, Ordem de Santiago, Liv. B 50 - 155, fls. I43v. -148 v. 2

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Tem particular destaque, entre a escultura de vulto pleno que se conserva ao culto nas capelas da igreja, uma imagem do orago São João Baptista - actualmente numa das capelas laterais. Trata-se, segundo Fernando António Baptista Pereira, de uma imagem luso-flamenga de "excelente factura'4. Datável do primeiro quartel do século XVI é, provavelmente, a mesma imagem que em 1512 é referida pelos visitadores como "huuma Imagem de SamJoham depaaopymtada"5 e a mesma que o padre Felix Soares da Silva refere nas Memórias Paroquiais de 2 de Julho de 1758, salientando o facto de ter sido cobiçada pelo infante D. Francisco, motivado pela sua elevada perfeição e pelos milagres que se lhe atribuía . É uma imagem de vulto pleno, de madeira policromada e dourada (com repintes), reveladora de forte naturalismo e expressividade, saída das mãos de um bom escultor, ainda que anónimo.

Fernando António Baptista PEREIRA, O Manuelino, a Arte na Época dos Descobrimentos em Alcochete, desdobrável promocional, Alcochete, s. d. 5 Fl. I43v. 6"(...) este Santo é muito milagrozo, e na perfeição eo sem segundo, tantoqueo Senhor Infante Dom Francisco, que Deus tenha na Gloria fez(?)diligenciaspara levar este Santo, fazendo mil partidas a todo este Povo, e até mandou buscar um artífice o mais insigne para que fizesse outro Santo da mesma sorte, tudo para versegrangiava os ânimos daquelle Povo,fés o artífice o Santo mas como do vivo ao pintado, de sorte que o mesmo Princepeficou sumamente disgostozo, e querendo levar o Santo o povo teve em termos de se alevantar gritando que sua Alteza lhe não havia de levar o seu Santo, e vendo este Príncipe a summa devoção que todo este Povo tinha aquelle Santo, disse que socegacem que lhes não levava o seu Santo que continuacem na devoção que tinham com elle e que soubecem que a imagem mais perfeyta que aquella que não a reconhecia o mundo, esta era a devoçam deste Pricepe com este Santo que muitas Vezes quando vinha a Nossa da Atallaya vinha a esta Matris a visitar este prodigiozo Santo, ate deu um riquicimo manto que o Santo põem nas festividades". IAN/TT, maço 6, (fl. 48-53), Memórias parochiais, Pd.e Felix Soares da Silva, 2 de Julho de 1758, fls. 48-49. 4

São João Baptista. .^ Primeiro quartel do séc. XVI. Madeira policromada e dourada.

A figura do santo, assente sobre peanha em forma de rochedo, produtivo geral das oficinas portuguesas dos primeiros anos de posiciona-se frontalmente em relação ao observador, frontalidade Quinhentos, para que possamos arriscar numa atribuição feita essa que é reforçada pela direcção do olhar. O peso do corpo faz- sobre bases seguras e, tratar-se-à, de uma obra de importação, -se sobre uma das pernas, enquanto a outra avança ligeiramente provavelmente encomenda do infante D. Fernando, com o para a frente, com o joelho algo flectido. O rosto, emoldurado objectivo de dotar a igreja de Alcochete de uma boa imagem do pelas madeixas negras do cabelo e pela barba compacta, seu orago. A sua execução em madeira, bem como algumas caracteriza-se pelo excepcional tratamento dos diversos elemen- características do tratamento dos panejamentos, podem indiciar tos fisionómicos e é bem a expressão plástica da boa qualidade um trabalho de oficinas flamengas, ainda que, no geral, o figurino da obra, a mesma que denota na delineação conferida às mãos, se insira na linha e continuidade da tradição da imaginária elegantes e perfeitamente articuladas. portuguesa, podendo-se aceitar a sua caracterização como Com uma das mãos segura o Antigo Testamento (revelando-se imagem luso-flamenga. aos fiéis como o últimos dos profetas da velha Lei), sobre o qual Porém, a igreja alcochetana de São João Baptista tornar-se-ia assenta o cordeiro, símbolo de Jesus Cristo, sacrificado para a famosa, não pela imagem do orago, embora, como já vimos, os salvação do mundo, cuja vinda o santo anuncia; com a outra seus valores estéticos e méritos milagrosos fossem reconhecido mão, aponta para estes atributos, exaltando a sua importância ainda no século XVIII, mas sim por uma imagem de Nossa enquanto valor expressivo de uma retórica catequética, no já Senhora da Conceição ou, como o povo a baptizou, Senhora codificado gesto demonstrativo que tanto caracteriza a icono- Aparecida. Na sua valorização entrecruzam-se motivos de ordem grafia de São João Baptista - o demonstrador por excelência. política e de ordem sobrenatural. Também a caracterização da figura, no que se refere ao figurino De ordem política, na medida em que o início da história que a e à indumentária, insere-se no modelo de santo ascético e eremita, conduziria a Alcochete ocorreu poucos dias antes do 1° de sujeito aos rigores da vida contemplativa passada no deserto, Dezembro de 1640, associada a um galeão português de nome para o qual se retirara. Figura magra, mas bem proporcionada, Nossa Senhora da Conceição, que nas águas do Tejo se debateu veste túnica de pele de camelo, dourada, com decote em V face um gigantesco temporal, acabando por abalroar outra pronunciado sobre peito e presa na cintura por cinto de fita. embarcação e sofrendo irremediáveis danos. O galeão ostentava Cobrindo, parcialmente, os ombros e as pernas, uma longa capa, na proa uma grande imagem de talha, uma Senhora da vermelha com douramento e punções na face exterior, e verde Conceição, que acabou por se desprender e cair ao mar, sendo com douramento e punções na face interior (evidenciando levada pelas águas do rio. repintes e acrescentos decorativos à policromia original), cuja De ordem sobrenatural porque, inexplicavelmente, depois de ter extremidade direita prende à ao cinto da túnica, criando um sido dada como irremediavelmente perdida, passados alguns ligeiro volume de panejamentos sobre a anca, no lado direito da meses, no dia 22 de Janeiro de 1641, dia de São Vicente, alguns figura. pescadores de Alcochete depararam-se com a imagem que, A ser a imagem referida em 1512, não se insere no quadro entretanto, acabaria por repousar nas areias da praia, perto da 101

Ermida de Nossa Senhora da Conceição dos Matos, em excelente estado de conservação. A prodigiosa imagem foi então levada em procissão até a "IgrejaMatriz acompanhando a todo o Clero e mais Povo, esta Senhora e de immensa grandeza tem duas varas de comprimento fora o globo" . Segundo as palavras de Frei Agostinho de Santa Maria, foi transportada ao altar-mor da matriz "aonde esteve algum tempo até darem lugar próprio, comofizerão compondo a Imagem sobre o mesmo globo, & Serpente, & os Anjos em roda, que mostrão venerar e adorar a sua Senhora, & Rainha, em hua Capella particular" . Actualmente, enquadrada por altar de talha dourada barroca, a imensa imagem seiscentista da Virgem Maria - assente sobre o Crescente e o Mundo, sob o qual se encontra a serpente do Mal, todos "emoldurados" por nuvens de onde espreitam cabecinhas de anjos, enquanto outros, de corpo inteiro, amparam a sua Senhora e dirigem-lhe o olhar em adoração -, causa ainda uma sensação de algum desconforto, parecendo desproporcionada em relação ao seu enquadramento. Além do mais, o seu figurino é surpreendente, não apenas pela dimensão em altura e pouca profundidade, mas também pelo estranho pregueado horizontal do vestido, que lhe cobre as pernas, dando-lhe uma bizarra forma tripartida, em relevos arredondados e distantes do real. É pouco

Nossa Senhora da Conceição. Séc. XVII. Madeira policromada e dourada.

~ Memórias parochiais^. 50. Veja-se ainda José ESTEVAM,AnaisdeA/cochete, dados históricos desde o século XIII, Lisboa, Couto Martins, 1956, pp. 121-122. * Já citado por Júlio GIL, As Mais Belas Igrejas de Portugal, vol. II, Lisboa, Verbo, 1989, p. 8o. 102

naturalista, sumariamente tratada, certamente porque não foi concebida para ser vista de perto. Por fim, gostaria de destacar uma imagem setecentista de São Miguel Arcanjo, que permanece ao culto e em bom estado de conservação, no altar do cruzeiro, do lado da Epístola, dedicado a São Miguel, tal como já é referido pelo Padre Luís Cardoso em 9 1747.

Escultura de vulto pleno, de madeira policromada e repintada, representa São Miguel numa das suas funções escatológicas - a pesagem das almas - papel que o cristianismo desde cedo lhe atribuiu e que, certamente, muito contribuiu para o incremento da devoção para com este anjo santo, guerreiro e combatente das forças do Mal, o qual também associa às suas incumbências este papel fundamental no momento do Juízo Final. Em posição de quase desequilíbrio, o arcanjo segura a balança com uma das mãos e com a outra um estandarte cuja bandeira original se perdeu. Toda a volumetria e ritmo desta imagem põem em evidência a tónica teatral barroca, que privilegia a abundância das formas, transformando o corpo e seus atavios em verdadeiro espectáculo. Excessiva volumetria corporal, panejamentos ondulantes e esvoaçantes, gestos pantomínicos e ostentosos, cores e brilhos, tudo se conjuga para enaltecer o triunfo da imagem e da sua mensagem.

Pormenor da imagem de São Miguel Arcanjo. Século XVIII. Madeira policromada e dourada.

P.c Luís Cardoso, Diccionário Geográfico ou notícia histórica de todas as cidades, villas, lugares, ealdeas, rios, ribeiras, e serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontrão, como modernas, Lisboa, 1747, p. 182. 9

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