Escuridão e caos: sítios da linguagem

September 18, 2017 | Autor: A. de Carvalho | Categoria: Filosofia
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Escuridão e caos: sítios da linguagem




Nenhuma língua pode descrever com rigor e precisão como todo e
qualquer acontecimento se dá, ou como todo e qualquer pensamento,
impressão, interpretação de realidade se dão.
"El hombre (...) no ve, ni oye, ni toca, ni
gusta, ni huele más que lo que necesita para vivir y
conservarse. Si no percibe colores ni por debajo del
rojo ni por encima del violeta, es acaso porque le
bastan los otros para poder conservarse. Y los
sentidos mismos son aparatos de simplificación, que
eliminan de la realidad objetiva todo aquello que no
nos es necesario conocer para poder usar de los
objetos a fin de conservar la vida. En la completa
oscuridad, el animal que no perece, acaba por
volverse ciego."
Do mesmo modo que "los sentidos mismos son aparatos de
simplificación", a língua de que nos valemos cotidianamente é um aparelho
de simplificação. Ela não é, contudo, imperfeita. Sua suposta imperfeição é
verificada quando se tem a pretensão de usá-la para além de suas
possibilidades, assim como aconteceria se intentássemos ver para além do
que nossa vista alcança. Está certo que a ciência em geral tenta criar
aparelhos que, a princípio, complementariam os sentidos, tornando-os mais
agudos e mais abrangentes; entretanto, isso não significa que eles, com o
auxílio da ciência, deixem de ser aparelhos de simplificação, muito pelo
contrário, é justamente aí que eles se investem de sua maior possibilidade
de simplificação, pois vêem mais do mesmo, ouvem mais do mesmo, tocam mais
do mesmo, cheiram mais do mesmo, falam mais do mesmo. A tarefa primordial
dos sentidos, conservação da vida, mesmo na idade da ciência, não é posta
de lado, ela apenas exige complementações. Mesmo novas linguagens foram
criadas para suprir essa nova necessidade. A linguagem computacional em
geral simplifica ainda mais a realidade em a reduzindo a dois dígitos, o 0
e o 1. Essa linguagem chama-se binária e é a da qual se valem os
computadores para a realização de suas tarefas. Apenas se pode dizer que os
sentidos sejam imperfeitos, quando não se têm bem claros os limites de uso
deles. Se só se pede o que está dentro dos limites de possibilidade, por
exemplo, do olfato, pode-se dizer que ele é perfeito. Se se espera ter
olfato tão sensível quanto o de um cão, só aí se pode dizer ser o olfato
imperfeito. Contudo é meu desconhecimento dos limites do olfato que me faz
pensar assim. Quanto à língua, se pedimos a ela que seja mais do que é, só
aí a consideramos imperfeita. Ela se limita a dar as ferramentas de
descrição da realidade. Se pretendemos explicitar algo além da realidade
tangível, ou seja, além da simples conservação da vida, então ela pára e
mostra-se como uma ferramenta inadequada. "A língua é para a filosofia, o
que ela é para a música e para a pintura, de modo algum o meio correto de
apresentação". [1] Do mesmo modo que não esperamos que alguém pinte com
palavras, não podemos esperar que alguém pense com palavras. O pensamento
se dá como reconhecimento mudo. A tentativa de expressão desse pensamento,
ela sim, só pode ser feita através das palavras de uma determinada língua,
mas a apreensão do pensamento que elas encerram só é possível num
reconhecimento do lugar de onde tal pensamento emerge. Mesmo na filosofia
não se pode dizer que a língua seja imperfeita. Ela nunca pode, está fora
de seus limites, o pensamento. Quem vê imperfeição nalguma língua para o
pensamento não conseguiria apreender o pensamento ainda que ele se desse
primordialmente nas palavras dessa língua. "A palavra é disfarce de uma
coisa mais grave, surda-muda," [2] e enquanto disfarçado, o pensamento
exige grande intimidade para ser reconhecido. Nesse sentido, também a
poesia é disfarce. O que está disfarçado aí é algo ainda mais grave, mais
surdo e mais mudo que o pensamento. Quem dá testemunho disso é Chico
Buarque em sua música Choro Bandido quando diz que "(...) mesmo que você
fuja de mim / por labirintos e alçapões / saiba que os poetas como os cegos
/ podem ver na escuridão" [3]. É na escuridão de luz, som, toque, gosto e
odor que o poeta vê. Apenas habitando nessa mesma escuridão é possível ver
tal como o poeta, e, portanto, reconhecer o que a escuridão resguarda.
Talvez descubramos então que o que se resguarda fundo na escuridão seja a
possibilidade mesma de toda e qualquer linguagem, seja a poética, seja a
filosófica, e seja até a binária. Por esse motivo, o modo de encarar a
linguagem, mesmo a ordinária, nunca é ordinário, pois para o poeta,
Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
Os sítios escuros onde nasce o
'de', o 'aliás'
o 'o', o 'porém' e o 'que', esta incompreensível
muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-
muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infreqüentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.


O que Chico Buarque chama de escuridão é o mesmo que Adélia Prado
chama de caos. Em ambos os casos, a apreensão do que se vela no escuro e do
que se dispersa no caótico nos envolve de susto e terror; e se, deveras,
ficamos assustados e aterrorizados é porque começamos a ver a escuridão.
Ver a escuridão no caos, safar-se do caos na escuridão significa demorar
onde é possível apreender a linguagem em seus próprios termos, que sempre
se dão silenciosamente. "Pois a beleza é aquele grau do terrível que ainda
conseguimos suportar" [4]. A linguagem possível do caos e da escuridão é
sempre dolorosamente terrível, pois sempre bela. Ela nos remete à
escuridão, ao caos; e se não nos escurecemos de terror nem nos perdemos no
terrível, é "porque o belo, sereno, desdenha nos destruir" [5].
A poesia é essa linguagem terrível, é fronteira com sagrado, depois da
qual só os Anjos habitam e, aí, mesmo se eu "gritasse (...) e mesmo que de
repente um deles me acolhesse no coração: sucumbiria à sua existência mais
forte" [6].
Aqui há o que antes chamei de reconhecimento mudo. O pensamento,
disse, não se dá em palavras, mas num reconhecimento mudo. As palavras
apenas são um veículo de alusão a esse silêncio, são disfarces dele.
Primeiro Chico Buarque se reconhece em Adélia Prado quando ambos falam do
lugar desde onde surge a linguagem, que o primeiro chama de escuridão, e a
segunda de caos. Depois é a vez de Rilke e Adélia Prado se reconhecem. O
"acolher no coração do anjo" de Rilke é o mesmo que "entender Deus" da
Adélia Prado, e o "sucumbir à existência mais forte do anjo" dele é "o
morrer frente ao entendimento da linguagem" dela. A habitação no mesmo solo
escuro e caótico é o único modo possível de pensamento, pois se dá no
reconhecimento entre pensadores e poetas e no reconhecimento do que se vela
na escuridão e do que se abriga no anonimato do caos. Nesse texto, Unamuno,
Chico Buarque, Adélia Prado e Rilke vêem no escuro e ordenam sua poesia a
partir do caos. Nesse sentido, também o pensador Nietzsche pode ser
chamado, quando ele escreve que "é preciso ainda ter caos em si para poder
gerar uma estrela dançante". [7] A estrela que brilha a partir do caos deve
seu brilho a essa proveniência e só brilha para quem a reconhece em seu
próprio caos interior.
O poeta, assim como o pensador, procura lançar luz sobre a escuridão
e dar nome ao caos, mas o mais que pode é arrastar a nós com sua poesia a
essa mesma escuridão para que nós mesmos possamos ver; e a esse caos para
que nós mesmos percamos nossos nomes, pois só assim poderemos habitar a
linguagem silenciosa e anônima na qual todos já habitamos sem jamais
reconhecer.

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[1] "Die Sprache ist für die Philosophie, was sie für Musik und Malerei
ist, nicht das rechte Medium der Darstellung. 1275". Novalis. Disponível em
http://gutenberg.spiegel.de/novalis/fragment/philolog.htm. Acesso em: 12
Mar. 2003.
[2] Prado, Adélia. Poesias reunidas. São Paulo: Siciliano, 1998.
[3] De Holanda, Chico Buarque. Choro Bandido, In: Paratodos.São Paulo: BMG,
93.
[4] Rilke, Rainer Maria. Die Erste Elegie. In: Duiniser Elegien: Denn das
Schöne ist nichts
als des Schrecklichen Anfang, den wir noch grade ertragen." Disponível em
http://gutenberg.spiegel.de/rilke/elegien/duineser.htm. Acessado em
03/05/2006

[5] Idem, ibidem: weil es gelassen verschmäht, uns zu zerstören".
[6] Idem, ibidem: (...) wenn ich schriee (...)und gesetzt selbst, es nähme

einer mich plötzlich ans Herz: ich verginge von seinem
stärkeren Dasein".

[7] Nietzsche, Friedrich: Werke und Briefe: Zarathustras Vorrede. Friedrich
Nietzsche: Werke, pg. 6300
(Cf. Nietzsche-W Vol. 2, pg. 284) (c) C. Hanser Verlag: man muß noch Chaos
in sich haben, um einen tanzenden Stern gebären zu können. Programa
disponível em
http://www.digitale-bibliothek.de/band31.html
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