Escutas da memória: os ouvintes das canções da Bossa Nova

July 22, 2017 | Autor: Simone Luci Pereira | Categoria: Rio de Janeiro, Bossa Nova, Escuta, Memoria, Escuta musical
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SIMONE LUCI PEREIRA

ESCUTAS DA MEMÓRIA: os ouvintes das canções da Bossa Nova (Rio de Janeiro, décadas de 1950 e 1960)

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

PUC - São Paulo 2004 1

SIMONE LUCI PEREIRA

ESCUTAS DA MEMÓRIA: os ouvintes das canções da Bossa Nova (Rio de Janeiro, décadas de 1950 e 1960)

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais sob orientação da Profª. Dr.ª Silvia Helena Simões Borelli.

CIÊNCIAS SOCIAIS

PUC - São Paulo 2004 2

TD 300 P

Pereira, Simone Luci Escutas da memória: os ouvintes das canções da Bossa Nova (Rio de Janeiro, décadas de 1950 e 1960). São Paulo: s.n. , 2004. 393 f. ; 30 cm. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Área de concentração: Antropologia Orientadora : Profª. Drª. Silvia Helena Simões Borelli 1. Música popular brasileira. 2. Bossa nova. 3. Memória. 4. Escuta.

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COMISSÃO JULGADORA

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RESUMO Esta tese tem como tema central as memórias de escutas dos ouvintes das canções da Bossa Nova no Rio de Janeiro, nas décadas de 1950 e 1960. O objetivo é interpretar as experiências de escuta naquele momento histórico e as formas pelas quais elas são guardadas na memória e reverberam no presente. Para isso, busca-se compreender a formação histórica da Bossa Nova, suas origens musicais, sociais e culturais e a estruturação de um campo musical popular. Procura-se também documentar o cotidiano da época, o que é feito a partir da interpretação da imprensa, das memórias dos bossanovistas e dos ouvintes, das canções e de uma sondagem acerca do campo musical naquele período. Ao colocar em contato estas várias linguagens que discursam sobre o passado, estrutura-se a metodologia da pesquisa que se vale da trama complexa entre estes variados discursos, mas que tem como fio condutor as memórias dos ouvintes analisados, ressaltando, em suas experiências, aspectos como a escuta e o olhar na sociedade midiática, a cidade, a juventude e as noções de gênero – masculino e feminino – em jogo naquele momento. Todas estas são questões que estavam presentes na época analisada e que já apontavam o devir de uma sociedade em que estes elementos assumiriam posição de destaque. Nesse sentido, a escuta da Bossa Nova é apenas uma porta de entrada para interpretar questões mais amplas do cotidiano vivido. É intenção do trabalho captar experiências do passado que engendraram algumas das formas atuais de escuta musical e que guardam intensas relações com o ambiente sonoro daquele momento. Fazendo isto, interpreta-se também a escuta do mundo e da vida.

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ABSTRACT This thesis has as central subject the listening memories of the Bossa Nova listeners in Rio de Janeiro in 1950's and 1960's. The objective is to interpret listening experiences from that historical moment and the way they are kept in the memory and reverberate in the present time. For this, it is important to understand Bossa Nova historical background, its musical, social and cultural origins and the popular musical field estruturation. It also aims to register the everyday life of that time, which is done through the interpretation of the news, the memories of the composers and the listeners, the songs and a analyses of the musical field in that time. The research methodology is based on the confrontation of these different approaches about the past, which consists of a complex weave of these varied speeches that has as conducting wire of the memories of the analyzed listeners, pointing out their experiences, aspects about the listening and the look in the media society, the city, the youth and the slight knowledge of gender of that moment. All these questions asked at the analyzed time and pointed the future of a society where these elements would assume prominence position. Therefore, the listening of Bossa Nova is only one key to interpret ampler questions of the everyday life. The intention of this work is select experiences of the past that had produced some of the current forms of musical listening and that keep intense relationships with the sonorous environment of that moment, thus, it also interprets the listening of the world and life.

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Para meus pais, Pelas memórias primeiras, originárias. Pelo aprendizado da escuta, sempre afetiva. Enfim, por tudo, sempre.

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SUMÁRIO

Apresentação.....................................................................................12 PARTE I – PERCURSOS................................................................30 Cap. 1. Em busca das origens..........................................................31 PARTE II – ESCUTAS DA MEMÓRIA.......................................130 Cap. 2. A trama da memória...........................................................131 Cap. 3. Ecos da Bossa Nova.............................................................158 3.1. Entre escutas e olhares......................................................159 3.2. A cidade............................................................................208 3.3. Juventude..........................................................................267 3.4. Homens e mulheres...........................................................332 Considerações finais.........................................................................393 Bibliografia.......................................................................................398

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Agradecimentos Este é o espaço para agradecer as instituições e pessoas que ajudaram para que a pesquisa pudesse ser realizada. Momento importante e prazeroso de citar os que estiveram envolvidos em todo este processo, colaborando, convivendo comigo ou me inspirando. Agradeço à Profª Drª Silvia Helena Simões Borelli – a Silvinha - por ter aceitado me orientar nesta difícil empreitada de pesquisar os ouvintes da Bossa Nova, e pela confiança depositada em mim desde o começo. Pela capacidade agregadora, produtora de diálogos, convívios e debates fecundos. Pela sua sabedoria, acuidade teórica e metodológica, aliada a uma extrema sensibilidade. Pelo diálogo sincero e aberto desde o início de nossa convivência. Os diálogos com inúmeros colegas também foram essenciais nesta pesquisa. Agradeço especialmente aos colegas do “nosso grupo”: Fina, Marli, Bernardete, Gislene, Rita, Rose, Ronízia, Yara, Carlos, Edmilson, Luis, Laudenir, Marcelo, Marcão, Marquinhos, pelas valiosas e profundas discussões e trocas. Ao Marcelo, agradeço o empenho para que meu projeto se efetivasse em uma tese. À Marli, agradeço ainda a amizade e o companheirismo em tantos momentos, e a revisão precisa deste trabalho. À Fina, sou grata também pela amizade sincera e estimulante em todos estes anos e pela leitura atenta de muitos trechos desta tese. Outros amigos ainda merecem destaque, pela importância de suas presenças em minha vida - cada um ao seu modo, mas sempre fundamentais: Ia, Josimey, Conceição, Armando e Fernando. Agradeço a colaboração das integrantes da banca em meu Exame de Qualificação – Profª Dra. Teresinha Bernardo e Profª Dra. Heloisa de Araújo Duarte Valente – pela leitura atenciosa do trabalho, as sugestões, comentários e contribuições. À Heloisa, agradeço ainda a presença e os diálogos constantes, férteis e belos sobre a canção e os “zumthorismos”. Aos colegas do Núcleo de Estudos de Música e Mídia (MUSIMID) da UNISANTOS – Heloísa, Herom, Silvia e Theo – que nos últimos tempos inspiraram muitas das discussões realizadas neste trabalho. À FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), pela bolsa de estudos concedida, sem a qual a realização deste trabalho seria impossível. Ressalto ainda a colaboração e presteza de algumas pessoas, no Rio de Janeiro, ao me indicarem os “ouvintes da Bossa Nova”: Isabel Travancas, Patrícia Farias, Glória Leal, Pina Coco

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e Santuza Cambraia Naves. À Isabel e Patrícia, agradeço ainda a amizade e a companhia sempre agradável no Rio e em outros lugares, bem como alguns comentários pontuais para a reflexão que se elaborava. Aos meus pais, pelo incondicional apoio e incentivo, pela presença contínua e por me colocarem em contato com a música ainda criança. Agradeço pelas memórias narradas e pela escuta estimulada. Pela compreensão e carinho, ao atentarem para as minhas alegrias, angústias, descobertas. Sem vocês, tenho certeza de que tudo seria mais difícil e menos motivante. Por isso, um muito obrigada sempre será pouco. Aos meus avós, que inspiraram o olhar para trás em busca de escutas passadas. Ao Mateus e ao Gustavo, pela esperança de reencontros possíveis, de vidas compartilhadas, de escutas futuras. À Lara, pelo companheirismo e escuta sempre atenta. Ao Guilherme que, com sua arte própria, ensinou-me muitas coisas. Obrigada pela paciência, carinho e companheirismo nestes últimos dois anos, que tramamos e trilhamos juntos. Por fim, agradeço aos homens e mulheres que me concederam mais que depoimentos – matéria-prima principal desta tese –, colocando-me em contato com suas memórias, experiências em um tempo/espaço que sempre me fora fascinante, fazendo-me entrar em contato, a todo instante, com minhas próprias lembranças e afetividades. Reconstruindo tempos, durações, vidas, alegrias, tristezas, suas narrativas me soaram como constelações de vida, estilhaços de experiências que iam, pouco a pouco, sendo costuradas, tramadas, reconstruindo a história. Sou grata pelos ensinamentos daí tirados e pela atenção, disponibilidade, interesse e gentileza que a mim ofertaram. A todas estas pessoas citadas – e também a algumas não citadas, mas que estão nas entrelinhas de todo o percurso – agradeço e reconheço a participação que tiveram no processo de composição desta tese.

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“A veneranda Circe disse-me, então, estas palavras: - Foi, portanto, assim que se realizou essa viagem. Agora escuta o que te vou dizer e que um deus há de recordar-te, um dia. Encontrarás, primeiro, as Sereias, que encantam a todos os homens que se aproximam delas. Aquele que, sem saber, for ao seu encontro e lhes ouvir a voz, esse não voltará à casa, nem a mulher e os inocentes filhos o rodearão, alegres; mas será encantado pelo seu canto sonoro. Elas estão assentadas num prado, junto de um grande monte de ossos de homens em putrefação, cujas carnes vão desaparecendo. Passa de lado e tapa os ouvidos dos teus companheiros com cera amolecida, para que nenhum deles as ouça. Tu ouveas, se quiseres, depois de te prenderem os pés e as mãos, ereto, junto ao mastro, e de teres sido ligado com cordas a ele, para que te possas deleitar com a voz das Sereias. Se, porém, pedires e ordenares aos companheiros que te soltem, prendam-te, então, com mais ligaduras ainda. Em seguida, quando tiverem passado além das Sereias, não te direi com precisão qual das duas rotas deverás seguir; cabe a ti decidir em teu coração.” Odisséia, de Homero.

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Apresentação “Você, que celebra o passado Que já explorou o exterior, as faces das raças, a vida que se desvelou, Que tratou do homem enquanto ser político, agregado, soberano e clero, Eu, habitante da serra das Alleghanies, concebo o homem em estado puro, com esses direitos, Tomo o pulso da vida que quase nunca se mostrou (o grande orgulho que o homem traz em si). Cantor da personalidade, vislumbrando o que virá, Eu projeto a história do futuro.”

A um historiador, Walt Whitman

Apresentar uma tese é sempre uma tarefa difícil, principalmente, se for considerado o fato de que a escrita e o texto jamais conseguem dar conta da riqueza e da intensidade de experiências, sentimentos e inquietações que uma pesquisa provoca durante todo o seu percurso. Mas, iniciando por seu título, é importante ressaltar que refere-se à escuta e não à audição. Isso significa que o objeto de reflexão é – para além do puro ato fisiológico que é a audição – a forma como os sons são recebidos pelos órgãos sensoriais. O que se busca é uma escuta geradora de sentidos. Escuta da memória, referente àquilo que foi guardado na trama de lembrança e de esquecimento dos ouvintes, compondo uma experiência vivida nos anos 50 e 60, mas que se refere também à pesquisadora diante destes ouvintes, constituindo um trabalho feito neste jogo duplo, fundindo experiências e memórias dos ouvintes e da autora, diálogo nem sempre fácil ou harmonioso, mas certamente rico e encantador. Memórias que partem de uma música sentida e tocada no piano desde a infância nos anos 70 e 80, um tempo em que o objeto temporal desta tese já havia passado, e as lembranças destes ouvintes já se encontravam em constituição. E, no momento da feitura desta tese, estas várias temporalidades entraram em diálogo e até em confronto, proporcionando esta narrativa que se segue. Procurando a escuta da Bossa Nova dessas duas décadas, o que se encontra é a dos tempos atuais, já que o fio condutor desta descoberta são as memórias dos ouvintes. Memórias que partem de hoje, apontando trajetos, bifurcações e elementos a serem destacados ou esquecidos nesta narrativa. Impossível esquecer que as lembranças estão relacionadas com a escuta e com o que se pensa sobre a Bossa Nova hoje: uma música edificada no tempo como representação do melhor ou de um dos melhores momentos da história do país; uma tradição evocada a todo momento como signo de distinção e de bom gosto, influência principal entre vários artistas da música brasileira atual. 12

Além disso, diante do trabalho de Maria Rita Mariano, considerada a grande revelação da música brasileira contemporânea, com shows lotados e mais de 350 mil CDs vendido em apenas três meses – num mercado cada vez mais invadido pela pirataria -, o que se coloca não é tanto a qualidade de sua obra, mas a possibilidade de ela vir a ser uma substituta à altura do talento de sua mãe, a cantora Elis Regina. O que chama a atenção, no meio de tudo isso, é a procura da crítica e também do público em evocar este passado glorioso, guardando-o em forma de um som, um timbre, uma imagem, um rosto, uma “performance”1. A busca pela conservação do passado põe em evidência um certo sentimento de que nada mais pôde existir de tão bom e de que estando todos órfãos e destituídos de uma música de qualidade – na verdade, destituídos de um tempo que não existe mais – é necessária a figura redentora desta moça, reencarnação de todo este passado que se deseja perpetuar.

::: ::: ::: Esta tese, como qualquer trabalho, possui uma história repleta de continuidades e descontinuidades, inquietações que geraram novas problematizações, e de subjetividades que mapearam e teceram os contornos da reflexão que ora se apresenta. É um pouco deste caminho que será narrado neste momento. Logo após o término e defesa de minha Dissertação de Mestrado no Programa de Estudos Pós-Graduados em História na PUC/SP, em Março de 1998, algumas questões me empurravam intensa e incessantemente para uma reflexão acerca de meu objeto de estudo. Já naquele momento, estudara a Bossa Nova, analisando-a a partir do urbano, de modo a perceber, por meio das músicas, a dinâmica de um Rio de Janeiro em transformação – nas maneiras de se ver a cidade, nas novas formas de se ver o mundo, de agir, de sentir, de se morar, e na ocupação sistemática de novos espaços urbanos, como a praia e os bairros de Copacabana e de Ipanema. O problema central da dissertação era uma cidade em transformação e um movimento musical que trazia em si pistas de uma mudança comportamental em conformação com as mudanças deste meio urbano. Considerando estas duas instâncias fortemente atreladas, entendiase, a partir da noção de circularidade cultural, que a música capta elementos do cotidiano e recoloca-os no social, influenciando formas de ser, de viver e de olhar a cidade, numa tentativa de rastrear a experiência urbana dos sujeitos no seu meio urbano.

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Este é um conceito desenvolvido por Paul Zumthor e será melhor trabalhado e explicitado mais à frente. 13

Após finalizar este trabalho, a Bossa Nova continuava sendo objeto de indagações. O tema não havia se esgotado, pelo contrário, suscitava sempre novos problemas. Foi assim que se iniciou um questionamento sobre seus ouvintes, pois, se ela era o movimento e o estilo musical brasileiro instituído como marco histórico, referência na música popular brasileira posterior, me inquietava compreender a sua recepção à época de sua existência como movimento nos anos 50 e 60. A crítica musical e mesmo o campo acadêmico já haviam realizado muitos estudos sobre a Bossa Nova, mas nada existia sobre os sujeitos comuns, jovens que ouviam rádio, compravam discos, frequentavam os shows universitários da Bossa Nova, enfim, nada havia sobre os que dialogavam com estes sons em seu cotidiano, um cotidiano permeado também por outras formas de consumo cultural. O que começava a me interessar era a busca de uma experiência de escuta naquele momento histórico. De alguma forma, as continuidades e descontinuidades constitutivas da trajetória até aqui traçada estão também presentes na narração do que aconteceu durante este percurso. Em outras palavras, se até aqui falei de uma forma pretensamente linear sobre minha reflexão, inverterei este ordenamento para apresentar agora, o problema, o objetivo central da tese. Em seguida, como num trabalho de rememoração de minha própria trajetória, continuarei minha narrativa.

::: ::: ::: Esta tese tem como objetivo captar as experiências de escuta das canções da Bossa Nova no Rio de Janeiro, nos anos 50 e 60, por meio da interpretação das memórias atuais de seus ouvintes. Procuro compreender sua formação histórica, buscando suas origens musicais, sociais e culturais na história – sua tradição – e a estruturação de um campo musical popular. Para tanto, foi preciso também documentar a recepção através do cotidiano desta cidade. Isso foi feito a partir da interpretação da imprensa da época, das memórias dos bossanovistas e dos ouvintes, das canções da Bossa Nova e de uma sondagem acerca do campo musical naquele período. Este último aspecto levou a uma análise sobre a história, a formação e desenvolvimento das mídias sonoras no Brasil como o rádio e a indústria fonográfica. A busca pela compreensão desta escuta, que é ativa na atribuição de significados, permite um entendimento dos papéis sociais e históricos desempenhados por estes sujeitos ouvintes das décadas de 50 e 60. O que se quer interpretar é a especificidade da escuta de uma parcela da sociedade carioca de um determinado período, imbuída de tradições orais, escritas e imagéticas.

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Com isso, pretende-se apreender a historicidade deste estilo musical, por meio da relação entre produção e consumo, dando, inclusive, significação histórica para a sua técnica, que inclui o cantar em baixo volume, um jeito intimista de se apresentar nos shows, os acordes dissonantes, a batida rítmica inovadora. Será, enfim, atribuída uma significação para essa performance2. Interpreta-se experiências de escuta que ajudaram a constituir o material que temos até hoje e que foi forjado no desenvolvimento e na estruturação do campo musical, da indústria fonográfica e do status que passa a ter a sigla MPB como sinônimo de algo associado à idéia do nacionalismo popular, como um ato de engajamento e de resistência política; uma música ligada à juventude, estando ao mesmo tempo relacionada com o desenvolvimento paulatino da indústria fonográfica e com a adequação a um mercado de bens simbólicos3, num movimento dinâmico de contenções e resistências. A intenção do trabalho é captar experiências de escuta musical que nos engendraram e que guardam intensas relações com a paisagem sonora4 daquele momento: seus sons, seus ruídos, seu ambiente sonoro.

::: ::: ::: Como pensar a escuta, algo tão abstrato e fugidio? Num momento de viabilização de uma história da leitura5, seria possível pensar em uma história da escuta? Como compreender uma escuta num espaço e num tempo específicos: o Rio de Janeiro das décadas de 50 e 60? O passado, segundo David Lowenthal é uma “terra estrangeira”6 a ser interpretada a partir de uma perspectiva crítica do presente. Exatamente por isto nunca pode ser alcançado em sua totalidade, ou tal como foi. Resta o modo fragmentário, parcial, tecido pela narrativa do pesquisador. A questão é: como recuperar a escuta num tempo que já passou? Nos anos 50, a Bossa Nova era um estilo musical em formação, época em que a sociedade carioca parecia estar entre a oralidade, o texto e o visor, isto é, uma sociedade prestes a se tornar uma cultura hegemonicamente visual. Embora isto só se configure no final da década de 60 e início dos anos 70, com o advento e popularização da televisão no Brasil – momento a partir do qual se pode falar efetivamente em 2

Interpreta-se para além das letras das canções, a linguagem musical (harmonia, melodia, ritmo, arranjos, timbres) e o estilo de interpretação dos cantores e instrumentistas. No entanto, não se detém numa análise das partituras musicais ou do conteúdo lingüístico, semântico ou discursivo das letras, mas centra-se na performance do artista, a qual une a sua gestualidade vocal e corporal e a recepção do ouvinte. 3 Renato ORTIZ, A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. 4 Conceito formulado pelo músico canadense Murray Schafer, o qual será também trabalhado mais adiante. 5 Cf: Roger CHARTIER (Org.), Práticas da leitura; Michel SCHENEIDER, Ladrões de palavras: ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o pensamento; Robert SCHOLES, Protocolos de leitura; Alberto MANGUEL, Uma história da leitura, entre outros. 6 David LOWENTHAL, The past is a foreing country. 15

cultura de massas no país –, a década de 50 parece apontar para esta questão da imagem como linguagem que tinha a pretensão de traduzir de maneira infalível os desejos e ambições daquela sociedade7. Isto fica claro já na imprensa e na publicidade da época, o que leva a outro problema: como pensar a escuta, num meio social que lança as bases de uma sociedade de consumo pautada na imagem? É preciso lembrar que as formas de produção e de consumo musical neste período – rádio, vendagem de discos, estrutura das apresentações musicais ou shows – ainda não tinham uma plena configuração de indústria cultural8. Refletindo sobre o passado à luz do presente, é importante confrontar estes elementos de produção/consumo musical nas décadas de 50 e 60 com a atualidade. Tomando a audição hoje: em 1997, por exemplo, foram vendidos no Brasil 107 milhões de CDs, fitas cassetes e LPs. O país, naquele ano, foi o sexto colocado no mundo em vendas, e primeiro colocado entre países do Terceiro Mundo9. Claro que aqui devem ser consideradas as mudanças na indústria do entretenimento, com leis de incentivo à área do audiovisual, bem como a estrutura de vendas de CDs no Brasil, pois até meados da década anterior (1980) quem queria comprar um disco ou fita ia até uma loja especializada em música. Na década de 1990, grande parte dos consumidores passou a comprar seus CDs em lojas de departamento, que passaram a ser responsáveis por 42% da venda de CDs no país. No entanto, é necessário registrar uma queda gradativa nos gastos com recreação e cultura no Brasil desde 1997. Em relação à venda de CDs (segundo dados da Associação Brasileira dos Produtores de Discos – ABPD), houve um aumento palpável de consumo, porém, um terço das cópias vendidas em 2001 já eram piratas, ao custo de R$ 3 contra os até R$ 30 praticados pela indústria oficial. Numa primeira etapa, o boom de consumo de CDs iniciado no governo Collor se ampliou nos anos FHC, pulando das 44,2 milhões de unidades de 1994 para 107,9 milhões de unidades em 1997. Naquele mesmo ano, no entanto, a indústria fonográfica começou a conviver com a pirataria, que aparecia, então, com 3 milhões de cópias vendidas. Em 2001, a estimativa de CDs pirateados havia pulado para 40 milhões. Oscilando inversamente, a fatia oficial caiu e atingiu em 2001 seu pior resultado desde 1995. Foram 80 milhões no ano de 2002, contra 75 milhões de CDs oficiais e nada de pirataria no primeiro ano do governo FHC. Isto significa que o consumo de CDs cresceu, mas em grande parte motivado por uma transferência do mercado

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Alexandre Pianelli GODOY, Imagens veladas: a sociedade carioca entre o texto e o visor (1952-1957). São Paulo, 2000. Dissertação (Mestrado em História) - PUC/SP. 8 Renato ORTIZ, A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. 9 A cultura de massas emergente. Folha de São Paulo. São Paulo, 12/04/98. Caderno Mais! p.1-9. 16

oficial para o mercado promovido pelo crime organizado.10 O Brasil está entre os dez países em que este problema é mais grave, sendo que a indústria fonográfica passa por uma séria crise com mais de três anos consecutivos de quedas nas vendas.11 No entanto, embora todos estes dados sejam pertinentes e importantes, não são auto explicativos. Lembrando Adorno, as análises do consumo musical baseadas em contagem ou mensuração não vão muito longe uma vez que, segundo ele, esta exatidão de métodos quantitativos do comportamento social ou de registro de estímulos sensoriais viram “fetiche” e buscam compensar “a irrelevância do que permitem descobrir”12. Assim, esses métodos quantitativos devem ser confrontados com o significado da música escutada, estudando as condições sociais de tal efeito. Diante dessa discussão, não é demais ressaltar a relevância de estudos como os de Pierre Bourdieu que se voltam para a produção cultural, para os agentes envolvidos e para o “campo”13 no qual estão inseridos. Mas, assim como na relação inseparável entre leitura/escritura, o receptor das obras merece também destaque e análise, uma vez que é na recepção que se dá a atribuição de sentidos à obra. A leitura é sempre produção de sentidos, num jogo polissêmico que não necessariamente coincide com o desejado pelo autor14. Pensando a leitura num sentido mais amplo – não só na de textos escritos, mas na leitura de textualidades diversas e entre elas, a música – se compreende a importância da recepção, tanto por ser um dos termos essenciais do processo de troca, como também por ser o local onde é possível a atribuição de outros sentidos às obras, deixando de ser considerada apenas como um locus de mera reprodução. Muitas vezes a ação dos meios de comunicação de massa (rádio, TV, indústria fonográfica) aparece associada a idéia de manipulação dos indivíduos, uma vez que a cultura de massas, imbuída da ideologia da sociedade burguesa, acaba por promover um “mascaramento intrínseco do real”. A “indústria cultural”, termo utilizado por Adorno e Horkheimer seria assim, algo que vende valores falsos e expropria o espectador de sua consciência crítica, levando-o ao 10

Ivan FINOTTI e Alexandre SANCHES, Brasileiro gasta menos com cultura. Folha de São Paulo, 25/10/2002. Caderno Brasil. 11 Segundo dados da Federação Internacional da Indústria Fonográfica, mais de um bilhão de CDs piratas foram vendidos no ano de 2002, em todo o mundo, gerando uma renda de US$ 4,6 bilhões. Na China, por exemplo, 90% das vendas são de CDs piratas. Mais de 1 bilhão de CDs piratas foram vendidos em 2002. Folha de São Paulo, 10/07/2003. Caderno Ilustrada. 12 Theodor W. ADORNO, Idéias para a sociologia da música. In: COHN, Gabriel (Org.). Theodor Adorn.o, p.74. 13 Pierre BOURDIEU, As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário; ORTIZ, Renato (Org.), Pierre Bourdieu. 14 Jean M. GOULEMOT, Da leitura como produção de sentidos. In: CHARTIER, Roger (Org). Práticas da leitura. 17

conformismo e a alienação15. Umberto Eco, contrapondo-se ao dito pelos expoentes da Escola de Frankfourt, afirma que os consumidores dos produtos da indústria cultural não são apenas passivos, mas podem desenvolver uma posição crítica, agindo também ativamente16. No entanto, esta “resistência” não nasce das próprias massas, o que faz com que esta análise ainda recaia, como lembra Marta Avancini, no mesmo problema metodológico adorniano, que seria o de compreender a cultura de massas a partir de sentidos unívocos e fundados a priori17. Edgar Morin relativiza uma leitura restrita da cultura de massas, sem entendê-la em sua negatividade e malignidade intrínseca, colocando também que os produtos da indústria cultural não se opõem à vida cotidiana e nem a massacram. Considerando a canção algo integrado à vida das pessoas, sendo consumida por todos, em todo lugar, a todo instante, como o mais cotidiano dos objetos de consumo18, Morin não a vê como instrumento de dominação. Ao se colocar o que foi historicamente experimentado como instância indissociável de suas representações, num processo de influência mútua, estas representações não podem se configurar como imagens etéreas, pairando sobre o social, sem vínculos com a realidade que este abriga. A música (como outras formas artísticas) se mostra como uma linguagem específica, que guarda elementos daquilo que “poderia ser”, do imaginário dos indivíduos em sociedade, revelando-se como o espaço de liberdade, não podendo ser encarada como mero reflexo do real e nem cerceada e limitada por regras pré-estabelecidas. Entretanto, algo deve ser mantido nestas considerações: os sentidos dados às obras são historicamente datados, sendo assim temporais e variando segundo estas temporalidades. Desta maneira, faz sentido a consideração de Adorno sobre o perigo de trabalharmos apenas com amostragens do consumo musical. Para se interpretar os sentidos dados à música, é necessário rastrear a sua recepção no tempo, tramada no presente. Segundo uma visão hegemônica, a Música Popular Brasileira (MPB) ocupa um papel muito importante na cultura brasileira, sendo que dentre as variadas linguagens, ela parece ter uma certa função de “explicar” o Brasil. Enor Paiano comenta sobre a constituição de um ideário

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Theodor ADORNO, A indústria cultural. In: Gabriel COHN (Org.). Theodor Adorno. Umberto ECO, Apocalípticos e integrados. 17 Marta AVANCINI, Marlene e Emilinha nas ondas do rádio: padrões de vida e formas de sensibilidade no Brasil. História e Perspectiva. n.3., 1990. 18 Edgar MORIN, Não se conhece a canção. In: Linguagem da cultura de massas : televisão e canção. 16

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ligando o “povo” à música e, depois da década de 30, constituindo-se em “nação-música”, articulada ao eixo nacional-popular19. A presença da canção no cotidiano afirma a sua relevância como linguagem entre as artes em geral, remetendo fundamentalmente ao ouvir e, mais ainda, ao estar na boca de todos. A música é um dos elementos culturais pelos quais o Brasil é mais conhecido internacionalmente, algo que parece singularizar a cultura nacional. Mas será que se pode assumir esta possível “posição privilegiada” ou este rótulo de “país musical” em termos absolutos sem questionar suas implicações? Esta característica, que essencializa a cultura brasileira como “país do Carnaval” ou “país da Bossa Nova”, precisa ser desconstruída, pois faz da música representação de uma idéia ou de um projeto de Estado-Nação, associando-a firmemente ao que se quer constituir como “identidade brasileira”. Procurar trazer à luz as ambiguidades ocultas sob o manto do “Brasil musical” permite interpretar as pluralidades e as diferenças que não se mostram quando se trabalha com categorias fixas e com sujeitos universais. As ciências humanas estão, cada vez mais, elaborando uma série de questionamentos às metodologias vigentes no campo científico, criticando os parâmetros epistemológicos tradicionais que sugerem explicações generalizantes e homogenizadoras, baseados na Razão universal Iluminista. Esta outra postura tem originado novos caminhos de reflexão na contracorrente dos grandes sistemas de explicações, debruçando-se sobre o estudo das diferenças, rupturas, fissuras e possibilidades de novos modos de ser.20 A Bossa Nova, nos anos 50, estava se constituindo, começando a se mostrar, sendo considerada pela imprensa, pela crítica musical e também pelo gosto musical mais geral como algo estranho, por vezes de mau gosto, ou, num outro extremo, como excessivamente sofisticada. No meio disso tudo e de tudo o que se dizia sobre ela, ainda não ocupava uma posição central na cena artística e musical. Nos anos 60, embora estivesse mais consolidada como um estilo ligado à juventude universitária foi, por muitas vezes, considerada elitizada, algo fechado para um grupo específico, uma música alienada, fruto do imperialismo americano, por conter ainda elementos musicais advindos do jazz.

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Enor PAIANO, O Berimbau e o som universal: lutas culturais e indústria fonográfica nos anos 60. São Paulo, 1994. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, USP. 20 Maria Odila Leite DIAS, Hermenêutica do cotidiano na historiografia contemporânea, Projeto História, n.17, pp.223-258; José Américo PESSANHA, Cultura como ruptura. In: Gerd BORNHEIM (Org.), Cultura Brasileira: tradição e contradição. 19

Os festivais passaram, assim como as músicas de protesto e o movimento Tropicalista com sua tentativa de elaborar uma releitura da cultura brasileira, procurando incorporar o Modernismo, o Antropofagismo, a Poesia Concreta e a Bossa Nova, numa idéia de “linha evolutiva”21. Nos anos 70, esta “bossa-nova” se solidifica e, com iniciais maiúsculas, acaba por virar mito, monumento musical e cultural brasileiro, marco divisor de águas na Música Popular Brasileira – esta também agora já usada com letras maiúsculas e instituída como um estilo musical e um certo emblema da “brasilidade”. Após o Tropicalismo, a Bossa Nova é edificada na memória histórica como um grande momento criativo brasileiro, passando a ser amplamente cultuada. Mas como encará-la neste início do século XXI? Como olhar para o passado com olhos atuais? É preciso depurar este passado com os olhos do presente, à luz da história, tentando desconstruir estas visões, desmontando as camadas de sentido acumuladas, buscando entendê-la em suas significações. É preciso pensar sobre suas múltiplas escutas, interpretando aquelas que não puderam aparecer por força destas mesmas visões hegemônicas. Seria o caso de interpretar o que se constitui como tradição, numa perspectiva crítica que possibilite a realização de uma tradução destes sentidos acumulados. É aqui que um estudo da Bossa Nova se justifica. Um movimento musical com vários sentidos acumulados no tempo e que, até a atualidade, mantém-se é como algo unívoco: uma música ligada ao Rio dos “anos dourados” - posto como local belo, tranqüilo e idealizado -, fortemente associada à noção de beleza e de “singularidade” da mulher brasileira e à idéia de ser um produto feito pela e para a classe média em ascensão. Buscar a diferença, a ruptura e a descontinuidade nestas leituras da Bossa Nova e interpretá-las hoje é uma tarefa desta pesquisa. Muitas vezes, a memória histórica sobre um período pode encobrir as tensões travadas nas experiências do cotidiano. Edgar de Decca afirma que na desmontagem desta memória histórica vão surgindo emblemas do imaginário das sociedades, aquilo que se guardou, as formas de representação do passado feitas pelas sociedades que inventam tradições, construindo e trazendo visões hegemônicas, e buscando legitimação de fatos22. É assim que, na busca de uma história, procuramos desconstruir (para reconstruir) a interpretação do movimento musical Bossa Nova, a

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Augusto de CAMPOS, Balanço da Bossa e outras bossas: antologia crítica da moderna música popular brasileira. Edgar de DECCA, 1930, o silêncio dos vencidos: memória, história e revolução; Carlos Alberto VESENTINI, A teia do fato: uma proposta de estudo sobre a memória histórica. São Paulo, 1982. Tese (Doutorado em História) FFLCH - USP. 22

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partir de uma crítica elaborada no presente. O pesquisador que se lança neste trabalho tem a tarefa de produzir releituras, a partir das malhas desta memória histórica, deste passado e desta tradição à qual pertence. Neste confronto, entre o presente e o passado, é permitida a entrada de outras visões que vêm à luz pela mediação do antigo, através da interpretação tentando rever o passado, traduzindo a tradição utilizada para a sua compreensão, revelando diferenças e outras leituras possíveis23. A Bossa Nova, nascida nos anos 50, se valeu da tradição da música popular existente no Brasil até então, mas também e principalmente trouxe inovações harmônicas, melódicas e rítmicas, utilizando uma linguagem poética inovadora, uma elaboração clara, sintética, com uma linguagem direta e coloquial, sendo encarada até hoje como um divisor de águas da Música Popular Brasileira. É ressaltada também como sendo uma música que carrega a “cor local” da zona sul do Rio de Janeiro. No entanto, é preciso redimensionar esta visão, buscando interpretar suas pluralidades e tensões sociais, tornando-a um objeto crítico de reflexão histórica. As canções, nesta pesquisa, são compreendidas a partir da relação entre composição e escuta, possibilitando rastrear sentidos múltiplos atribuídos pelos que as ouvem em seu cotidiano. Sentidos esses que não necessariamente coincidiam com os padrões normativos impostos socialmente. Muitas vezes, é por meio dos sentidos unívocos dados às canções da Bossa Nova e pelos padrões normativos impostos pelos variados meios sociais como a imprensa, a família e outras instituições que se pode interpretar criticamente o interdito. Olhar para os padrões normativos não para “precisar como a violência da ordem se transforma em tecnologia disciplinar, mas para exumar as formas sub-reptícias que são assumidas pela criatividade dispersa, tática e bricoladora” dos sujeitos, suas “maneiras de fazer [que] constituem as mil práticas pelas quais usuários se apropriam do espaço organizado pelas técnicas de produção sócio-cultural”24. Cabe, porém, destacar que as práticas dos ouvintes não surgem muitas vezes como algo organizado, cristalizado ou, evidente mas sim a partir de uma interpretação que leve em conta as diferentes táticas dispersas no cotidiano, aqui entendido numa perspectiva crítica. Lembrando Agnes Heller, o cotidiano é algo que, em sua própria ordenação, mostra-se “um fenômeno nada cotidiano”, isto é, contém uma ação moral e política, não devendo, portanto, ser encarado como

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Hans-Georg GADAMER, O problema da consciência histórica. Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano - 1. Artes de fazer, p.41. 21

alienante e efêmero. A vida cotidiana não está fora da história, mas no centro do acontecer histórico, sendo a verdadeira “essência” do social25. Nas Ciências Sociais contemporâneas, o estudo do cotidiano sugere um trabalho de interpretação da relação de diálogo entre o pormenor e os processos globais, sempre numa perspectiva crítica; evitando ressaltar somente os aspectos curiosos e anedóticos – o que na maioria das vezes apenas reflete estereótipos do passado, mascarando os aspectos dissidentes na prática concreta dos sujeitos. Como afirma Maria Odila Dias, o estudo desse objeto se mostra importante “por ser uma forma de apreensão de papéis informais, que escapam aos papéis prescritos nesta multiplicidade de mediações da vida de todo dia que ressaltam a margem de resistência possível, a improvisação e a capacidade de subverter os padrões impostos.”26 Nesta pesquisa, a perspectiva adotada é a de pensar um cotidiano como o local onde se pode interpretar escutas múltiplas da Bossa Nova. Podemos agora retomar as indagações iniciais deste texto: como capturar elementos tão fugidios, movediços e abstratos desta terra estrangeira chamada passado? A intenção deste trabalho é buscar compreender a relação tensa entre o evento e sua significação, relação que pode ser capturada pelas linguagens diversas que comunicam sobre o passado e que discursam sobre este evento.27 A distância temporal permite resgatar o passado, não tal como foi, mas como é lembrado por estes ouvintes. Saturados de consciência histórica, é imperativo olhar para trás a fim de historicizar a própria tradição engendrada no tempo. Esta é a centralidade da tese: perscrutar um tempo – os anos 50 e 60 no Brasil – e em meio a este grande emaranhado de eventos, as rupturas e os marcos históricos, focalizando uma cidade que reunia diversos elementos-sínteses deste momento, uma cidade encarada até hoje como um local que agrupou o que havia de mais fecundo na cultura brasileira. Em meio a isso, localizar as sonoridades daquele tempo. Mais ainda, olhar para jovens ouvintes da Bossa Nova e para a recepção destes sons em meio à densa tessitura de um cotidiano permeado de normas, ideologias, coerções, mas em que também são possíveis práticas de liberdades e de resistências. Tudo isto numa perspectiva dialógica, em que ouvintes anônimos – homens e mulheres jovens – apresentam diferenciações em suas formas de diálogo com esta sonoridade. Trazer à tona o que

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Agnes HELLER, O cotidiano e a História, p.20. Maria Odila Leite DIAS. Teoria e método dos estudos feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do cotidiano. In: Albertina O. COSTA e Cristina BRUSCHINI (Org.), Uma questão de Gênero, pp.39-53. 27 Paul RICOEUR, Interpretação e ideologias.

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eles compreendem sobre a Bossa Nova, em diálogo/confronto com outras linguagens que discursam sobre este tempo, pode proporcionar uma interpretação das relações homem-mulher daquele período, assim como da juventude, do próprio estilo musical, do Rio de Janeiro e deste tempo tão fortemente fixado na memória histórica. Mas como encontrar estes ouvintes? Em primeiro lugar, buscando as origens e a história da forma musical e cultural da Bossa Nova, interpretando o sentido de sua configuração no período em questão, a partir de matrizes culturais seletivamente incorporadas como tradição. Em segundo lugar, por meio do cotidiano daquele momento – que chega via imprensa, memórias e outros discursos – permitindo perceber tanto os aspectos normatizadores da sociedade, quanto aquilo que não foi dito. Pelo esmiuçar da imprensa da época em suas mais variadas linguagens é possível reconstruir os fios deste cotidiano vivido. A perspectiva adotada ao se tomar a imprensa como fonte é pensá-la como um discurso sobre o real, uma representação veiculadora de normas e ideologias carregadas de subjetividades; um veículo com uma linguagem que mistura ficção e realidade e que não pode ser encarado como neutro, objetivo tal como foi considerado em determinados momentos28. Foram utilizados o jornal Última Hora e as revistas O Cruzeiro e Manchete por conterem as variadas linguagens que se queria e por terem sido de grande circulação na época. A imprensa é usada como fonte auxiliar para interpretar o cotidiano do período estudado, os padrões de gênero, a constituição social da juventude, a cidade do Rio de Janeiro, a inserção e a aceitação da Bossa Nova no campo musical e sua recepção pelos ouvintes, lembrando que foi posta sempre em diálogo com outras fontes. As memórias dos agentes da Bossa Nova são outra fonte. A partir de memórias escritas e de entrevistas coletadas com cantores, compositores, instrumentistas e produtores de shows, foram buscadas tanto questões relativas ao cotidiano da cidade – um cotidiano de sujeitos que se inseriam no mundo diurno do trabalho ou do estudo, e também na boêmia –, quanto questões relacionadas ao campo musical no qual estavam

inseridos, bem como aspectos relativos à

produção musical compreendendo composição, gravação, apresentação em shows, divulgação, entre outros elementos, tentando entender os diversosa indústria cultural (ligada à música) que se estruturava. Outro conjunto de fontes são as próprias canções. A música é uma linguagem artística carregada de especificidades, diferente não só dos documentos históricos tradicionais, mas 28

Renée ZICMAN, História através da imprensa: algumas considerações metodológicas. Projeto História. n.4, 1985. 23

também de outras formas de arte. Ela não pode ser encarada como reflexo do real, como se a arte reproduzisse o cotidiano que se quer interpretar, pois a música, por ser uma linguagem específica, carregada de ambigüidade, contém tanto elementos normatizadores do social, mantendo relações com as regras do campo musical, como também está aberta a diversos tipos de leituras/escutas. Ao argumento de que uma obra possui certos protocolos, “senhas, explícitas ou implícitas, que um autor inscreve em sua obra a fim de produzir uma leitura correta dela, aquela que estará de acordo com sua intenção”29, contrapõe-se o de que sua leitura é sempre uma produção de sentidos de natureza polissêmica, que nem sempre coincidem com os sentidos desejados pelo autor. Assim, as músicas contêm estes protocolos dados pela autoria, mas também aberturas para as várias formas de performance confiadas à iniciativa do intérprete em suas variadas e inesgotáveis formas de gravar e fazer arranjos, como também à própria estrutura da obra, possibilitando a produção variada de atribuições de sentido deixadas para o ouvinte, ou o “intérprete fruidor”30. As canções foram interpretadas pelo que significaram para os ouvintes, a reverberação em seu cotidiano, indo além do que os autores quiseram dizer com uma frase ou uma harmonia, por exemplo. Essa compreensão da “obra poética”31 só se completa na escuta. A análise está centrada na performance, apontando para uma cadeia de mediações, em que autores, produtores, produtos e receptores se articulam de forma conflituosa32. A interpretação do cantor está em comunicação com o ouvinte. Por trás dos recursos técnicos e do timbre, existe uma gestualidade oral e corporal que deve ser historicizada, considerando a performance dentro de um esforço de interpretação da audição das canções no seu tempo e no seu meio. Partindo do pressuposto de que não há como analisar a recepção sem que se compreenda a produção, o campo musical e alguns de seus aspectos como a instauração e a consolidação das mídias sonoras e audiovisuais no país, a estrutura de vendagem de discos, a circulação das canções no rádio, os shows e a abrangência destes fatores, é interpretado a partir

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reconhecimento da existência de disputas por hegemonia no campo cultural e artístico. Assim, procura-se dar atenção à gravação da canção, uma vez que é esta que chega ao público. A gravação, com seus arranjos musicais e todo o aparato tecnológico que possa ter, bem como o seu intérprete, desempenham papel fundamental na escuta da música. Como lembra Edgar Morin,

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Roger CHARTIER (Org.), Práticas da leitura, p.95. Umberto ECO, A obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. 31 Paul ZUMTHOR, Performance, recepção, leitura. 32 Jesus MARTIN-BARBERO, Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 30

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devemos situar a canção dentro de um complexo multidimensional, considerando que sua história e sua sociologia devem estar imersas “em uma história e uma sociologia da dança-canção-musichall [o que] nos mostra a plasticidade protoplásmica da canção”.33 O aparecimento da Bossa Nova ocorre em paralelo a um processo de incremento do campo e do mercado musical e de shows em que o rádio – que até aí era o grande e quase exclusivo divulgador – passa a dividir o seu papel fundador com outros meios. Esse foi o momento em que a televisão entrou em cena, embora de maneira ainda muito restrita. Neste ínterim - quando no Brasil consolida-se um “mercado de bens simbólicos” – o mercado de shows acaba se modificando também: o Teatro de Revista passa a ceder espaço tanto para um estilo mais intimista, os pequenos shows nos bares, como também, mais à frente, para shows com maior público, nas universidades e nos teatros – os quais, inclusive, tiveram sua fórmula aproveitada pela TV, veículo em que esta nova música iria se popularizar34. É desta forma que se busca pensar estas mudanças no campo musical, as modificações e implementações na área artística/cultural/entretenimento e a relação com seu público, os seus ouvintes. Interpretar as escutas de determinado estilo musical implica em também refletir sobre os meios utilizados por esta linguagem, salientando o fato de que na década de 50 e até a metade da década de 60, ainda não se pode pensar, no Brasil, em indústria cultural, mas num incipiente mercado musical e artístico que se instituía com o advento da televisão, de novas técnicas fonográficas e de formas de apresentação dos artistas. Todos estes elementos serão relacionados na interpretação da recepção dos ouvintes, considerando que estes estariam dialogando e reelaborando as mudanças trazidas pela modernidade. Ao refletir sobre formas artísticas e culturais, há que se tecer uma análise que articule as instituições culturais, os meios de produção, os processos de reprodução da cultura, a sua organização bem como sua performance e sua linguagem artística35.

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Edgar MORIN, Não se conhece a canção. In: Linguagem da cultura de massas: televisão e canção, p.146. Entre os compositores da Bossa Nova, havia um jornalista que acabou também por constituir-se como produtor musical e de shows. Ronaldo Bôscoli foi um produtor musical e de shows, trabalhando no Beco das Garrafas, espaço privilegiado da Bossa Nova nos anos 50 e 60, produzindo programas musicais de TV no início dos anos 60, como O Fino da Bossa, lançando no Brasil os primeiros programas de TV que se baseavam num só artista, os “Musicais”, inspirando-se numa tendência dos musicais americanos, e ainda dirigindo shows de “estrelas” como Elis Regina e Roberto Carlos até perto de sua morte em 1994. 35 Raymond WILLIANS, Cultura. 34

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Quanto a esta última, não adianta ao antropólogo ou cientista social analisar a produção de significados do mundo artístico levando em consideração apenas os aspectos mercadológicos, sociais, culturais e esquecendo-se da linguagem em si. Como argumenta Santuza C. Naves36, “quando se confina nessa tarefa [o antropólogo] corre o risco tanto de dar pouca importância à acuidade estética quanto de manter paralisada a sua reflexão crítica. (...) ao se concentrar nos aspectos coletivos que envolvem o trabalho artístico, o pesquisador pode descuidar da análise da obra em si e incorrer no risco de reduzir o texto a mero sintoma do contexto.”

Um último e fundamental conjunto de fontes utilizado nesta pesquisa são as memórias dos ouvintes, mulheres e homens que ouviam Bossa Nova no período estudado, questão que será discutida no capítulo 2. A metodologia de pesquisa procura colocar em diálogo todas estas linguagens específicas e diferentes (memórias dos produtores, memórias dos ouvintes, imprensa e canções), procurando interpretar, a partir do seu confronto e tensão dialógica, fios de práticas que permitem tecer uma narrativa no presente sobre este cotidiano que se quer recuperar.

::: ::: ::: A parte I – e seu capítulo primeiro – traça um percurso histórico da formação da Bossa Nova, procurando as origens de sua forma artística e de suas matrizes culturais. Aqui, falo da música no Brasil, desde o século XIX, o nascimento do samba e suas modificações, passando pelas influências do jazz, estabelecendo a história da constituição de uma música popular urbana e midiática no Rio de Janeiro. Levanta-se alguns fios do emaranhado social que apontam para os ouvintes caminhando em meio às modificações trazidas pela modernidade, pensando neste receptor metropolitano tomando contato com as máquinas, aparelhos (rádio, disco, indústrias, cinema) advindos desta vida moderna e de sua subjetividade. Nisso, acaba-se entrelaçando uma história cultural e social do Rio de Janeiro, num tecido que se adensa com a discussão da constituição do campo artístico musical popular no Brasil do século XX, a partir do advento do rádio e da estruturação da Indústria Fonográfica. Ao mesmo tempo, está presente, neste capítulo, uma reflexão teórica na qual estão expostos os principais pressupostos conceituais de análise, entre eles uma idéia de cultura articulada ao cotidiano, no sentido proposto pelos Estudos Culturais Britânicos. Também trabalha-se com a cultura dos sujeitos comuns, trazendo a noção de popular formulada pelo pensamento latino-americano – mais precisamente por Jesús Martin-Barbero –, para quem a cultura urbana latino-americana é resultado da mestiçagem entre elementos do popular, do 36

Santuza Cambraia NAVES, A canção crítica. In: ____ et alli (orgs.). Do samba-canção à tropicália,p.261. 26

massivo e do erudito. De posse desta definição de popular urbano, discute-se a filiação da Bossa Nova ao samba, ao jazz, assim como à música erudita. Delineia-se assim, uma “Sociologia da Cultura”, como propõe Raymond Williams, buscando entrelaçar forma artística, formações culturais, meios de produção, campo musical e mercado. Nesse sentido, busca-se apoio nos conceitos de Pierre Bourdieu e em suas noções de campo cultural. A parte II trata da escuta da Bossa Nova, mais precisamente da memória dos seus ouvintes. No capítulo 2, se desenvolve uma discussão teórica sobre memória, recepção e escuta musical e sobre as premissas metodológicas estabelecidas e utilizadas. É onde se narra um pouco das experiências realizadas no trabalho com os depoimentos, o modo como foram coletados, as dificuldades e descobertas, os questionamentos e inquietações surgidos nesse processo. É destacada a especificidade de se ter a memória como fonte, partindo de autores clássicos em suas reflexões sobre a construção memorialística, utilizando ainda pesquisadores que realizaram trabalhos nessa área. Faz-se uma distinção entre memória e história, identificando a estreita relação entre elas, assumindo-se que o trabalho do historiador é também algo que se vale da memória histórica e da tradição da qual se é herdeiro. Discute-se ainda a questão da memória oral (material principal de trabalho) e suas particularidades, utilizando-se, além das formulações conceituais de Paul Zumthor, trabalhos que se valem das metodologias da História Oral como fonte. O capítulo 3 é decorrente da pesquisa com depoimentos, a análise das memórias dos ouvintes. Dividido em quatro sub-capítulos, seus títulos – bem como seus conteúdos – têm como base os assuntos mais recorrentes nos depoimentos. Cada um destes sub-capítulos se mostram como questões que dão pistas sobre a constituição do campo musical e cultural que se formava e se estruturava a partir da Bossa Nova e durante toda a década de 60: a juventude, a cidade do Rio de Janeiro, a promoção dos valores femininos; as questões sobre cultura oral, audiovisual e a preponderância do visual/imagético. Estes sub-capítulos de análise de depoimentos são, a todo momento, trabalhados em conjunto com outras fontes, cruzados com as canções, com os depoimentos dos bossanovistas e com a imprensa da época, numa tentativa de interpretação de um cotidiano tenso, tramado na vida de todo, dia repleta de normas, resistências e desvios. O primeiro deles, Entre escutas e olhares, descobre a sociedade carioca daquele momento vivendo a passagem de uma cultura oral para uma cultura audiovisual com forte presença da imagem, mas contendo fortes traços de oralidade. Busca-se interpretar a relação destes sujeitos

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com os meios comunicacionais da época como a televisão, o rádio, o disco, os jornais, as revistas de variedades repletas de imagens. Compreende-se a sociedade carioca daquele momento, entre imagens, escrituras e sonoridades, apontando para o devir de uma sociedade de massas, passando por um momento nomeado por Martin-Barbero, como aquele de uma “segunda alfabetização”. Pensando numa estreita e complexa relação entre os sentidos humanos, lembra-se que as imagens e os sons guardam relações profundas e de complementaridade. Aqui incorpora-se as noções de Paul Zumthor relativas à performance como um ato comunicativo que engloba audição, visão, tato, olfato, envolvendo intérprete e ouvinte. O sub-capítulo seguinte, A cidade, busca interpretar a experiência urbana destes ouvintes no Rio de Janeiro nos anos 50 e 60 e se justifica tanto pelo fato de as músicas falarem constantemente do assunto em alusões explícitas – aliado ao fato de a Bossa Nova ter nascido ali – como também por se considerar que um meio urbano específico, com sua cultura e sua paisagem sonora, deve ser analisado a fundo, para que se possa melhor compreender o contexto de recepção destes ouvintes. A partir da construção memorialística, compreende-se as experiências urbanas num processo que inclui subjetividades, percepções e experiências. Isto leva o espaço urbano para além de sua existência material, passando a ser encarado como um sistema de representações a ser lido em suas relações com a vida cotidiana dos sujeitos. Aqui vai estar, portanto, uma narrativa acerca das experiências urbanas dos jovens no Rio de Janeiro desse período, cujo ponto de partida é a memória articulada, a todo momento, com fontes, como a imprensa, por exemplo, e as próprias canções. Um outro sub-capítulo, Juventude, trata do significado do termo que, naquele momento, passava a ganhar cada vez mais destaque na sociedade. A idéia de se pensar separadamente esta questão parte da própria pesquisa sobre o objeto. Analisando as letras das músicas, é fácil perceber um ideário de modernidade, a busca por algo novo em detrimento do antigo, tantos nos aspectos musicais quanto nos comportamentais. Deve-se levar em conta que o movimento musical da Bossa Nova foi feito, majoritariamente, por jovens, como tal se proclamava e, acima de tudo – o que interessa aqui –, dirigia-se aos jovens. O trabalho com a imprensa permite entrever também o quanto a questão da juventude está presente na sociedade, circulando socialmente na publicidade, em matérias diversas, artigos e conselhos comportamentais, o que permite montar um quadro de franca valorização e preocupação com os preceitos juvenis.

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Ainda na discussão sobre juventude, está presente a questão política e seus desdobramentos, o que permite a discussão de temas como “engajamento” e “alienação”. A questão da participação política aparece na bibliografia sobre a Bossa Nova, em que alguns de seus autores não só afirmaram como defenderam suas idéias por meio das composições e da participação em organizações como a UNE e os Centros Populares de Cultura (CPCs), chegando até mesmo a um rompimento com o movimento inicial por julgá-lo “alienado” ou descomprometido. Sem querer classificá-la como música “alienada” ou “engajada”, busca-se interpretar as experiências de seus jovens ouvintes, procurando compreender o significado da noção de participação política naquele momento. Por fim, o sub-capítulo Homens e mulheres fala sobre as diferenças de gênero que passaram a ser construídas no período, traçando uma interpretação da construção social sobre papéis de homens e mulheres e seus ecos nas experiências dos sujeitos depoentes. Toma-se como partida para este sub-capítulo o fato de os anos 50 estarem apontando para uma valorização dos valores femininos – trazidos pelos pressupostos da cultura de massas, colocando as mulheres na publicidade e nos outros produtos da indústria cultural, dando-lhes importância enquanto faixa de consumo –, o que desembocaria nos movimentos feministas do final da década de 60. Em todo este capítulo 3, há uma reflexão sobre as memórias dos ouvintes que tinham por volta de 20 anos de idade no início da Bossa Nova – final da década de 50 – e os que tinham esta idade uma década mais tarde, no final dos anos 60, buscando comparar e perceber diferenças, permanências, continuidades e rupturas nas experiências de escuta de ambas as gerações. A tentativa é pensar a Bossa Nova num outro momento histórico, analisando sua movimentação no tempo, o modo como reverberou posteriormente, como se deu a sua afirmação como movimento importante da música brasileira, qual foi sua contribuição para a efetivação de um campo musical popular – a MPB. O que se busca entender, enfim, é o seu processo de institucionalização. Tudo isso ocorre num Brasil onde passava a existir um mercado de bens simbólicos mais estruturado, uma indústria fonográfica mais atuante, mas também movimentos contestatórios e juvenis, assim como um endurecimento do regime militar.

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Parte I - Percursos “ A língua tem indicado inequivocamente que a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é antes, o meio. Um meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois ‘fatos’ nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação. (...) Mas é igualmente indispensável a enxadada cautelosa e tateante na terra escura. E se ilude, privando-se do melhor, quem só faz o inventário dos achados e não sabe assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho.” Walter Benjamin

A Bossa Nova tem se mostrado na memória histórica – a partir de vasta bibliografia existente sobre o assunto1– como um movimento e estilo musical que se caracteriza por um certo tipo de ritmo ao violão com sua “batida diferente”; inovações harmônicas e melódicas advindas do jazz norte-americano e do samba-canção sofisticado; novas formas de linguagem poética, com letras mais simples e diretas que falam de maneira leve e coloquial do cotidiano do Rio de Janeiro, revelando uma especificidade carioca no jeito de cantar a vida, fazendo uma crônica sobre o cotidiano do Rio, falando da própria cidade, de seus espaços físicos, do amor, das mulheres, entre outras coisas. 1

Cf: Billy BLANCO, Tirando de letra e música; Ronaldo BÔSCOLI, Eles e eu: memórias de Ronaldo Bôscoli (Depoimento a Luiz Carlos Maciel e Angela Chaves); Jomar Muniz de BRITTO, Do Modernismo à Bossa Nova; Augusto de CAMPOS, Balanço da Bossa e outras bossas: antologia crítica da moderna música popular brasileira; Ruy CASTRO, A onda que se ergueu no mar: novos mergulhos na Bossa Nova; Ruy CASTRO, Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova; Arnaldo Daraya CONTIER, Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e o popular na canção de protesto (os anos 60). Revista Brasileira de História - Dossiê Arte e Linguagens, v.18, n.35; Luiz Fernando FREIRE (Org.), Bossa Nova: som e imagem; Walter GARCIA, Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto; José Estevam GAVA, A linguagem harmônica da Bossa Nova. São Paulo, 1994. Dissertação (Mestrado em Artes - Musicologia). Unesp/SP; Valter KRAUSCHE, Música Popular Brasileira; José Eduardo Homem de MELLO, Música Popular Brasileira cantada e contada por Tom, Baden, Caetano, Bôscoli, Carlos Lyra, Chico Buarque ... ; Marcos NAPOLITANO, Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959/1969); Santuza Cambraia NAVES, O violão azul: modernismo e música popular; Santuza Cambraia NAVES, Da Bossa Nova à Tropicália; Enor PAIANO, O Berimbau e o som universal: lutas culturais e indústria fonográfica nos anos 60. São Paulo, 1994. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, USP; Adalberto PARANHOS, Novas bossas e velhos argumentos (tradição e contemporaneidade na MPB). História e Perspectiva, n.3, 1990, p.5-111; Sérgio RICARDO, Quem quebrou meu violão: análise da cultura brasileira (décadas de 40 a 90); Walter SILVA, Vou te contar – histórias de música popular brasileira; Geraldo SUZIGAN, Bossa Nova: música, política e educação no Brasil; Luiz TATIT, O Cancionista: composição de canções no Brasil; Luiz TATIT, Semiótica da canção: melodia e letra; Artur da TÁVOLA, 40 anos de Bossa Nova; José Ramos TINHORÃO, Pequena História da Música Popular Brasileira; José Miguel WISNIK, Algumas questões de Música e Política no Brasil. In: Alfredo BOSI (Org.).Cultura Brasileira: Temas e situações; José Roberto ZAN, Do fundo de quintal a vanguarda: contribuição para uma História Social da Música Popular Brasileira. Campinas, 1997. Tese (Doutorado em Sociologia) - IFCH/ UNICAMP. 30

Pode-se argumentar que estas características, estas inovações trazidas por este estilo/movimento, são resultado de uma influência cada vez maior da cultura americana no Brasil do pós-guerra, quando ícones da indústria cultural dos EUA estavam sendo difundidos por meio do cinema hollywoodiano e de seus musicais ou do jeito de cantar de Frank Sinatra e Chet Baker, revelando formas mais “aveludadas” de voz e um certo ar cool presente nos anos 50, além de outras influências. Por outro lado, é impossível negar que formas de composição que revelavam canções com letras mais coloquiais, usando expressões simples, diretas, sem arroubos de sentimentalismo, e um jeito de cantar em baixo volume de um modo mais intimista, o “cantar falando” da Bossa Nova, já estavam presentes na própria música brasileira, tendo suas raízes em Noel Rosa (no caso das letras) e em Mário Reis (no caso da forma de se cantar), entre outros. O que se procura nesta primeira parte do trabalho é buscar as origens históricas da Bossa Nova, origens que não são únicas – o que traria uma noção histórica simplista de causalidade e linearidade – mas sim múltiplas, plurais, dinâmicas. Assim, é fundamental compreender também a sua formação histórica e as bases de sua constituição, desenvolvendo uma análise de sua formação cultural e social.

Cap. 1 Um percurso histórico até as origens da Bossa Nova “Solo una cosa no hay. Es el olvido. Dios, que salva el metal, salva la escoria y cifra em Su profética memoria las lunas que serán y las que han sido. Ya todo está.”

Jorge Luis Borges Algumas balizas teóricas O que se pretende estudar é a Bossa Nova como uma manifestação cultural. Inicialmente, tomando como eixo conceitual uma idéia de cultura desprendida da sua tradição elitista e trazendo para o centro do debate as práticas cotidianas, o que se busca é uma reflexão que interprete a relação dialógica entre os detalhes e os processos globais, partindo do específico para o geral, sempre numa perspectiva crítica. Um estudo do cotidiano se impondo por ser uma forma de apreensão de papéis informais que escapam aos papéis prescritos, nesta multiplicidade de mediações na vida de todo dia, ressaltando a margem de resistência possível, a improvisação, a capacidade de subverter os padrões impostos. Uma história, assim, dos homens comuns.

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Nesse sentido, muitas das reflexões aqui presentes têm se inspirado nas formulações teóricas e metodológicas dos Estudos Culturais britânicos. Estes, ao afirmarem a cultura como questão chave para o entendimento dos processos sociais, salientam-na como cultura comum, ordinária, numa relação em que a vida diária não deve estar ausente da reflexão em que o cotidiano deve ser o foco principal de interpretação, sempre numa perspectiva de se pensar a materialidade da vida. Este campo de estudos, dado que não pode ser encarado como uma disciplina, mas como uma perspectiva teórico-metodológica, surgiu, de maneira organizada, por meio do Centre for Contemporany Cultural Studies (CCCS), ligado ao English Departament da Universidade de Birmingham, sendo um centro de pesquisa de pós-graduação nesta instituição. Sua organização tem como ponto de partida, as “alterações dos valores tradicionais da classe operária da Inglaterra do pós-guerra, buscando como eixo principal de reflexão as relações entre a cultura contemporânea e a sociedade, isto é, suas formas culturais, instituições e práticas culturais, assim como suas relações com a sociedade e as mudanças sociais”.2 A partir de três trabalhos fundantes deste campo do estudos, realizados no final da década de 50, pode-se ter uma melhor noção sobre o direcionamento da reflexão do grupo. O primeiro deles, The uses of Literacy (1957), de Richard Hoggart, tem como foco de atenção os materiais culturais antes desprezados da cultura popular e dos meios massivos de comunicação, inaugurando uma certa tradição de enxergar neste âmbito não só submissão, mas também resistência, examinando a vida cultural da classe trabalhadora e não apenas seus aspectos econômicos. O segundo, The making of the English Working-class (1963), de E. P. Thompson, teve o mérito de compreender a cultura como rede viva de práticas e relações que constituíam a vida cotidiana, em que o indivíduo tem primazia. E o terceiro, Culture and Society (1958), de Raymond Williams, fundamental para os Estudos Culturais, revela um olhar diferenciado sobre a história literária, mostrando a cultura como categoria-chave que liga a análise literária e a investigação social.3 Entre estes três fundadores, embora existam discordâncias em alguns aspectos, é notório o fato de possuírem algumas preocupações comuns que se revelam instigantes. Dentre elas, um conceito de cultura mais ampliado em que esta, por um lado, assume características diferenciadas 2

Ana Carolina ESCOSTEGUY, Estudos Culturais: uma introdução. In: Tomaz Tadeu SILVA (Org.). O que é, afinal, Estudos Culturais? . 3 Graeme TURNER, British Cultural Studies – an introduction. 32

em formações diferentes e não se revela como algo monolítico ou homogêneo, e, por outro lado, a cultura passa a significar um grande número de intervenções ativas, sendo não apenas algo passivo e recebido. Assim, está colocada uma noção de cultura como sendo as práticas vividas cotidianamente, sem uma hierarquização entre a cultura em sua acepção tradicional – que compreende a Arte e o erudito – e sem utilizar como parâmetro a idéia de que haja um cânone e seu outro – a cultura popular –, onde esta última seria encarada como uma “cultura original”. Mais ainda, este conceito de cultura relaciona produção, distribuição, recepção de bens culturais e práticas econômicas, garantindo aderência às condições materiais e aos aspectos simbólicos da vida de uma dada sociedade num momento histórico específico. Desta forma, cultura mantém com as questões político-econômicas uma relação de dupla mão no que tange às influências, em que os âmbitos políticos, econômicos e culturais competem entre si e se relacionam em conflito numa sociedade complexa. Este modo de pensar rompe, assim, com a clássica divisão marxista entre infra-estrutura e super-estrutura, em que a cultura é mero reflexo das condições econômicas.4 Isso contribui para que transpareça um outro aspecto também relevante dos cultural studies, que é a sua não-filiação à alguma disciplina ou área do conhecimento, com ênfase ao seu caráter multi ou interdisciplinar. Como argumenta Raymond Williams, para se fazer uma “sociologia da cultura”

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é

necessário analisar a arte ou um movimento artístico nas relações sociais materiais em que um estilo está inserido, evitando a idéia de encará-lo como algo autônomo. É necessário pensar nas instituições, nas formas de produção e distribuição cultural, nas suas ligações dentro dos processos sociais materiais, nas relações sociais e econômicas implícitas neste processo, mas também no próprio estilo em si, sua formação e constituição. Uma “sociologia da cultura”, portanto, em que haja uma unidade complexa dos elementos assim relacionados pois, ao se refletir sobre formas artísticas e culturais, há que se elaborar uma análise que articule as instituições culturais, os meios de produção, os processos de reprodução da cultura, sua organização, bem como a linguagem artística. A intenção aqui não é a de um desvio conceitual no qual se deixaria a investigação social, cultural e histórica e se passaria a investigar uma categoria generalizada – a arte – com supostas regras internas, acreditando na sua suposta autonomia, o que seria, em outras palavras, adotá-la

4 5

Ana Carolina ESCOSTEGUY, Cartografias dos estudos culturais: uma versão latino-americana. Raymond WILLIANS, Cultura, passim. 33

como “categoria de análise”, esquecendo de que ela própria é “objeto de análise”, lembrando Williams. Estudar as origens históricas de uma forma artística possibilita um maior entendimento acerca da sua historicidade como linguagem e como cultura, compreendendo-a como variável no tempo, imbuída numa complexa teia de hegemonias, ideologias, contenções, resistências, e não como dada, conceito fechado, imutável, fixo e supra-histórico. Como exemplo, pode-se citar o samba: tendo algumas de suas matrizes na cultura popular rural, este gênero musical, em um determinado momento, misturou-se às práticas populares urbanas, em outro ganhou ares de cultura de massas, recebendo uma cunhagem ideológica e passando a ser associado a uma política e a um ideal de Estado-Nação, e mais à frente, em outro momento histórico (já nos anos 60), passou a ser identificado com um popular “puro” novamente. Houve, aqui, um esforço por interpretar a tradição da Bossa Nova, entendendo tradição como algo construído segundo princípios de seleção6, que funciona como poderoso mecanismo de incorporação, articulando processos de identificação e de definição cultural e agindo como elemento formador do presente e não como um segmento historicamente inerte. Tradição, aqui, é vista como algo dinâmico, aberto às leituras que o presente seleciona e sua busca deve ser encarada como uma tentativa de olhar para o passado com o intuito de recuperá-lo para o presente, tendo como impulso a necessidade de esclarecer os sentidos do processo, estabelecendo conexões, diferenças e possibilidades habitualmente escamoteadas7. A compreensão da tradição funciona assim, como um elemento formador contemporâneo, apresentando versões do passado deliberadamente criadas para estabelecer conexões com o presente, atribuindo-lhe sentidos. É preciso atentar para a complexidade de um movimento cultural/musical, compreendendo a dinâmica interna destes processos, em que se deixa de lado, quer a exclusão de aspectos, nomeando-os como “marginais”, “incidentais” ou “secundários”, quer a construção de elementos unívocos e hegemônicos do que é dominante. Busca-se focalizar as características emergentes e residuais dentro dessa cultura dominante8. Entende-se por “emergente”, os significados, valores, as formas de relacionar-se que se referem aos valores substancialmente alternativos e opostos, entendendo também que, estas novas práticas e visões de mundo, são continuamente recriadas, não sendo de alguma fase nova da cultura dominante. Já o “residual” é compreendido como sendo aqueles elementos que foram formados no passado, mas encontram-se 6

Raymond WILLIAMS, Tradições, instituições, formações. In: ____ Marxismo e Literatura. Maria Elisa CEVASCO, Para ler Raymond Williams. 8 Raymond WILLIAMS, Dominante, residual e emergente. In:___ Marxismo e Literatura. 7

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ainda ativos no presente, como aspectos que se perfazem e se refazem no presente movimento – o outro modificado e reinterpretado –, e não como elementos do passado, do arcaico, um resto deixado por outras manifestações culturais anteriores. Desta forma, para além de uma sociologia da cultura, nos moldes acima descritos, o que se pretende neste trabalho é uma análise histórica com base na cultura – no sentido amplo que obtém ao ser encarada como prática cotidiana – que compreenda aspectos sociais, econômicos, materiais, inserindo-se nas questões mais amplas da sociedade, como também do campo de lutas do meio cultural em busca de hegemonia; e ainda uma história das subjetividades, da arte musical e de como foi interpretada no cotidiano dos seus ouvintes. Outrossim, revela-se nos Estudos Culturais uma reflexão em que pensamento e viver cotidianos são inseparáveis e dão os contornos da totalidade social que se busca, compondo uma cultura entendida como modo de vida ou processo social total. Percebe-se aí uma filiação deste pensamento às reflexões que estavam, já nos anos 30, na base do pensamento de Antonio Gramsci9, para quem a sociedade é o campo estratégico de lutas por hegemonia entre blocos que não estão isolados ou dicotomizados. A cultura, em Gramsci, é campo simbólico, espaço de articulação de conflitos. No pensador italiano revela-se uma tentativa de compreender o folclore articulado a outras formas de cultura – inclusive erudita –, configurando-se como algo ativo, concepção de mundo e de vida, e não como algo isolado, puro, cristalizado. Não é nenhum despropósito lembrar da idéia de “tradição engendrada pela própria modernidade”, proposta pelo latino-americano Néstor Canclini10, o que sugere uma mesma filiação conceitual. Parecem se articular, assim, as formulações dos Estudos Culturais britânicos e o pensamento latino-americano sobre Comunicação e Cultura, mais precisamente, os conceitos de Jesús Martin-Barbero e Néstor Canclini. Voltando à trajetória dos Estudos Culturais, pode-se perceber que após os anos 70 passa a ocorrer uma dispersão deste pensamento para outras partes do mundo, para além da Inglaterra, tomando características diversas em cada uma destas localidades. Neste sentido, adoto aqui a tese de Ana Carolina Escosteguy11, que analisa os estudos culturais surgidos na década de 80 na América Latina – interessados em pensar na presença cada vez maior da indústria cultural na vida cotidiana e na questão da cultura popular em meio a isso – como tendo muitas ligações com os Estudos Culturais britânicos. Afirmando, é 9

Antonio GRAMSCI, Literatura e vida nacional. E também Cartas do cárcere. Nestor G. CANCLINI, Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade, passim 11 Ana Carolina ESCOSTEGUY, Cartografias dos estudos culturais. 10

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claro, as diferenças, as apropriações, interpretações, traduções, enfim, que este pensamento europeu ganhou por aqui, Escosteguy relaciona correntes de pensamento que podem ser vistas como correlatas. O processo conjuntural em que se manifestam essas formulações inglesas, nos anos 50 e 60, passa a ocorrer na América Latina na década de 70 para 80 com a globalização, a crise do horizonte marxista, o debate sobre a modernidade e as indústrias culturais. Isso tudo levou a um redimensionamento da trama teórico-conceitual vigente. Dentre outros aspectos, na tese de Escosteguy, é importante ressaltar a passagem de um marxismo determinista – que buscava ver e explicar os conflitos por meio de uma única contradição, (a de classe) impedindo de se pensar a pluralidade de matrizes culturais – para um marxismo de corte gramsciano, em que se flexibiliza esta lógica para uma melhor compreensão sobre as relações entre cultura e classe social, redesenhando assim, não só o sentido da cultura, como também o da política, permitindo reconhecer as culturas populares e a formação de identidades. Aqui, entrariam em jogo noções como negociações e busca pela hegemonia, renovando o âmbito do político, reconhecendo as movimentações sociais cotidianas como âmbitos também da cultura. Isso implicou, em outras palavras, no “deslocamento da idéia de cultura do âmbito restrito da reprodução para o campo dos processos constitutivos e transformadores do social”.12 Outro aspecto a ser destacado no pensamento latino-americano é a busca por relativizar o conceito de ideologia, não o deixando de lado, mas valendo-se de um outro conceito, que seria o de hegemonia. Recorrendo mais uma vez a Antonio Gramsci, o próprio conceito de ideologia não se restringe à idéia de dominação e nem contém a noção de exterioridade aos sujeitos, idéia muito comum na tradição frankfurtiana, para quem a ideologia é própria à sociedade capitalista, produzindo seu falseamento intrínseco. Ideologia é aqui entendida como sistema de significados, de crenças e valores, imbricado no cotidiano, sendo universal, em que se adota uma perspectiva de interioridade e não de exterioridade, ou seja, ideologia não se opõe ao conceito de cultura, mas está contida na vida cotidiana. Já o conceito de hegemonia, mostra-se como um processo em que um grupo tem hegemonia na medida em que representa interesses que os grupos ou classes subalternas também reconhecem, de alguma maneira, como seus, implicando numa idéia de usos e apropriações. Este é um conceito mais amplo do que o de ideologia e as suas formas clássicas de imposição, as quais 12

Idem, p.47. 36

resultam em manipulação dos sujeitos a partir de um exterior. Hegemonia é a vida em sua totalidade, significados e valores experimentados na prática, são os processos vividos, não sendo sistema ou estrutura fechada, mas um processo complexo de experiências, e apropriações feitas no cotidiano; um processo em que estão presentes lutas, incorporações de valores de outras culturas, apropriações, seduções, cumplicidades, negociações. Hegemonia é também a capacidade de assimilar traços de outras culturas, sejam elas populares, locais ou alternativas em geral. Partindo das considerações de autores ingleses como Raymond Williams, chega-se ao pensamento latino-americano. A partir do que foi apontado, não seria equivocado articular estes dois pensamentos que servem de base epistemológica para a reflexão que se encaminha nesta tese. Assim, um conceito de Martin-Barbero que parece ser útil neste momento, para compreender as origens da Bossa Nova e sua formação histórica, é o de matriz cultural13. Segundo o autor, elas expressam universalidades, tradições, memórias e resgatam seletivamente, na modernidade, traços de um passado e de um tempo aparentemente perdidos. São dimensões universais, capazes de ativar mecanismos coletivos de identificações e apropriações. Como universais, as matrizes culturais possuem formas que podem ser encontradas nas variadas manifestações que compõem, historicamente, o cotidiano, expressando formas de saber e artes de fazer, cujas estruturas fundamentam a realização de operações simbólicas capazes de articular, pela narrativa, memórias, sonhos, desejos, realizações. Destaque-se, no entanto, que as matrizes culturais são dinâmicas, elas mudam, se mesclam – e se adaptam no tempo, no transcorrer histórico. Realizar este percurso histórico até as origens da Bossa Nova é uma tentativa de compreensão deste estilo e movimento musical, é interpretar outros tempos. Isso requer que se assuma a estreita ligação entre presente e passado, necessitando, por parte do pesquisador, uma inserção em sua contemporaneidade, entabulando com o passado um diálogo entre seus conceitos presentes e os conceitos imbuídos nas suas fontes, para chegar à compreensão de fragmentos deste vivido. Assim, o diálogo a ser estabelecido entre estes tempos é o de uma “fusão dos horizontes de compreensão [do presente e do passado] que se desloca sempre”14. 13

Jesús MARTIN-BARBERO, Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Maria Odila Leite DIAS, Hermenêutica do quotidiano na historiografia contemporânea. Projeto História Trabalhos da memória. n.17, p.234-5. 14

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O caminho a percorrer é o da busca da origem, restituição, restauração, resgate da tradição, não por ela mesma, ou para mostrar um passado curioso e linear que chega numa cadeia harmoniosa, mas por haver recognoscibilidade entre o presente da Bossa Nova e seu passado, um passado que só é válido na medida em que é reconhecido e reatualizado no presente, fazendo-lhe sentido. Há que ser, no entanto, um presente atual – do início de século XXI –, que olha para a Bossa Nova e seu tempo e vê, nele, um passado que lança interpelações e que é, a todo momento, reconhecível. Walter Benjamin salienta que “um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos, encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois”.15 Assim, faz-se um duplo jogo de se voltar ao passado: um que vai do presente até a Bossa Nova, e outro que se lança da Bossa Nova ainda mais para trás nesta “terra estrangeira”16, denominada tempos pretéritos. Esta busca tenta cruzar ambas as necessidades de volta ao passado, dos tempos que se cruzam no mesmo anseio, o de resgatar experiências, sentidos, memórias construídas ou espontâneas, mas que salvam do esquecimento, da falta de reconhecimento deste passado, que é também constituinte do presente. O objetivo é compor, assim, uma narrativa que possa salvar o passado para perpetuá-lo17, não como verdade absoluta e incontestável, mas como memória que traz as reminiscências, as tradições, as leituras já feitas sobre ele, e também os esquecimentos, para atualizá-los no presente.

Primeiras palavras sobre a Bossa Nova A partir disso, como definir a Bossa Nova? “preparada desde os fins dos anos 40, no pós-guerra, pela descontinuidade de acentuação rítmica muito usada (....) a partir do surgimento do bebop no jazz norte-americano, a bossa nova constituiu uma reação culta, partida de jovens da zona sul, da classe média branca das cidades, contra a ditadura do ritmo tradicional. Historicamente, o aparecimento da bossa nova na música urbana do Rio de Janeiro marca o 18 afastamento definitivo do samba de suas fontes populares.”

Na definição de José Ramos Tinhorão, a Bossa Nova é uma música urbana, da zona sul do Rio de Janeiro, fruto da classe média em ascensão, “dominada” e esmagada pelo jazz. Uma 15

Walter BENJAMIN, A imagem de Proust. In: Obras escolhidas, p.37. David LOWENTHAL, The past is a foreing country, passim. 17 Walter BENJAMIN, Sobre o conceito de História. Obras escolhidas. 18 José Ramos TINHORÃO, Pequena História da Música Popular Brasileira, p.230. 16

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música que perdeu suas características populares, nacionais, tornando-se apenas o “jazz brasileiro”. Nas próprias letras é possível ver críticas parecidas, por vezes em um tom mais brando e de gozação: “Pobre samba meu Foi se misturando, se modernizando E se perdeu E o rebolado, cadê ? Não tem mais Cadê o tal gingado Que mexe com a gente? Coitado do meu samba Mudou de repente Influência do jazz Quase que morreu E acaba morrendo, está quase morrendo Não percebeu Que o samba balança De uma lado pro outro O jazz é diferente, pra frente e pra trás E o samba meio morto Ficou meio torto Influência do jazz no afro-cubano Vai complicando, vai pelo cano, vai Vai entortando, vai sem descanso Vai, sai, cai ... do balanço ! Pobre samba meu Volta lá pro morro E pede socorro onde nasceu Pra não ser um samba Com notas demais E ser um samba torto Pra frente e pra trás Vai ter que se virar Pra poder se livrar 19 Da influência do jazz”

Carlinhos Lyra, em 1962, criticava a influência do jazz na Bossa Nova, imbuído que estava na luta política e estudantil dos Centros Populares de Cultura (CPC) e no debate sobre o “nacional-popular”, cujo objetivo era afirmar e consolidar uma cultura genuinamente nacional, rechaçando

os elementos estrangeiros presentes no repertório cultural brasileiro que

desvirtuariam e manchariam o puro, autêntico, livre de influências imperialistas. Lyra define a música que faz como sendo samba, ou seja, ele busca recuperar e afirmar a origem de sua arte no popular, no gênero reconhecido, naquele momento, como nacional por excelência. 19

Música de Carlos Lyra, 1962. 39

Já na definição do historiador Arnaldo Contier, a Bossa Nova tem suas origens também na música erudita européia do século XIX, mais precisamente no Impressionismo de Claude Debussy e Maurice Ravel. A canção Insensatez, composta em 1959 por Tom Jobim e Vinícius de Moraes, seria um exemplo claro desta filiação erudita da Bossa Nova, possuindo um sistema de acordes isolados, livres de uma rigidez harmônica tradicional, com acordes e notas que parecem soltos ao vento, revelando a característica impressionista de sugestão, impressão ligada à natureza. No trecho abaixo, Contier fala de como Edu Lobo, em suas “músicas de protesto”, também incorpora estas características. “a aproximação da obra de Edu Lobo com o simbolismo ou impressionismo musical francês na música erudita ou com o neo-classicismo ou ainda com o jazz vem exposta em algumas de suas canções escritas durante os anos 60 (...) notamos, de um lado, traços do neo-classicismo – preservação do sistema tonal; e, de outro, a presença de algumas inovações timbrísticas, inspiradas no Prèlude à l’après midi d’une faune 20 (C. Debussy) ou nas Bachianas (H. Villa-Lobos).”

Júlio Medaglia, por sua vez, faz uma definição da Bossa Nova que a articula ao samba, a esta matriz cultural popular nacional: “As primeiras manifestações desse movimento receberam por parte de observadores precipitados, as mais veementes críticas no sentido de que a Bossa Nova não seria samba autêntico (...) nem a Bossa Nova é objeto estranho ou incompatível com a zona norte e nem a zona sul permanece indiferente ao sambão ou às manifestações de massa (...) o que acontece é que os extremos do samba se tocam e se auto-influenciam, o 21 que não representa nada de negativo para nenhuma das partes – muito ao contrário.”

De qualquer forma, algo está presente – para reforçar ou refutar – em todas as definições: uma preocupação em fixar, em conceituar a Bossa Nova como popular ou erudita; como música de classe média ou de elite; ou mesmo como música que traspassa, transpõe as barreiras sociais. Ou ainda, como uma música fruto dos grandes meios urbanos, em contato e influenciados pela indústria cultural americana, dando bases a uma cultura de massas no Brasil que viria a se consolidar uma década mais tarde, com o advento de uma indústria de bens culturais simbólicos no país 22. No entanto, é necessário discutir também o que vem a ser o popular, o erudito e o massivo como formações e conceituações históricas, pois é importante compreender o que se 20

Arnaldo Daraya CONTIER, Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e o popular na canção de protesto (os anos 60). Revista Brasileira de História - Dossiê Arte e Linguagens. v.18, n.35, p. 13-52. 21 Júlio MEDAGLIA, Balanço da Bossa Nova. In: Augusto de CAMPOS (org.). Balanço da Bossa e outras bossas: antologia crítica da moderna música popular brasileira, p.70 e 73. 22 Renato ORTIZ, A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. 40

convencionou designar como folclórico, popular e massivo. É preciso também observar como estas constituições de fronteiras culturais se efetivaram aqui na América Latina e particularmente no Brasil.

Hiato – uma reflexão sobre o popular e o massivo Jesús Martin-Barbero argumenta que ao nos depararmos com o contexto cultural latino americano ficamos frente a uma questão relevante: a mestiçagem. Esta não se limita ao fator racial já tão explicitado e aceito, mas diz respeito a uma trama atual de modernidade e descontinuidades culturais, deformações sociais e estruturas de sentimento, memórias e imaginários que mesclam o indígena e o rural, o rural e o urbano, o folclore e o popular, o popular e o massivo23. Acrescente-se também, o erudito e o popular, o erudito e o massivo. Nesse sentido é que o autor propõe uma análise das mediações sociais e culturais, muito mais do que dos meios comunicacionais ou dos estilos artísticos e culturais em si mesmos. Há, portanto, entre os latino-americanos, a vigência de um espaço conflituoso onde existe uma densidade e uma pluralidade de culturas urbanas, das mais variadas matrizes misturadas entre si, com uma dinâmica cultural incontestável. Martín-Barbero argumenta que – sendo os conceitos, muito menos “portos seguros”, e muito mais articulados à noção de problemas (parafraseando Raymond Williams), como algo que não explica em definitivo as questões, mas requer problematização – faz-se necessário historicizar o movimento de gestação de alguns conceitos básicos, como os de popular e de massivo, interpretando a constituição original destes e o movimento histórico tomado no tempo por eles. É neste sentido que, para entender a constituição dos mesmos, justifica-se um debruçar sobre o século XVIII e XIX. No século XVIII, verifica-se as primeiras tendências de se colocar o povo como ator social. Estas tendências dividiam-se entre os que contraditoriamente colocavam o povo afirmado na política (ilustrados) e na cultura (românticos). Quanto aos primeiros, a importância do povo na política estava articulada ao fato de a Revolução Francesa ter sido realizada por uma classe nova que aspirava ao poder, a burguesia, travestida como “povo” - camada popular -, para garantir sua legitimidade política. No entanto, essa valorização dava-se apenas em termos políticos e não culturais, ou seja, nada do que era parte desse universo cultural (entendido aqui como nãoerudito) era positivado ou trazido à tona. Sendo a Ilustração um pensamento dominado por 23

Jesús MARTIN-BARBERO, Dos meios às mediações. 41

noções racionalistas, nada do que pertencia a essa esfera era valorizada ou afirmada, pois eram articuladas a formas irracionais e menores de vida e cultura, como crenças, misticismos, superstições, conhecimento não-culto, vistos pejorativamente como articulados à desordem social. Daí é que se delineia a idéia da categoria povo associada a uma certa noção de boa cultura e má cultura, sendo a popular menor e inferior. Os românticos, por sua vez, tentavam afirmar o popular exatamente por sua cultura, admitindo o povo como possuidor de uma cultura que deveria ser preservada. Ao afirmarem a existência de dois mundos – um rural, tradicional, feito de oralidade, crenças, arte ingênua e outro urbano, ligado à modernidade, à cultura escrita, vida secular, racional, não religiosa e arte refinada – os românticos afirmam em seu ideário a existência também de duas configurações da sociedade, em paralelo a estes dois mundos: uma exterior, superficial, visível, onde tudo é deformado e inautêntico, fruto das mudanças históricas e da modernidade, e outra interior, situada mais abaixo da superficialidade, baseada na estabilidade e na unidade das etnias e das raças puras. O que fica claro aqui é a idéia de uma cultura pura – a popular – e outra erudita. Parece ser aí que reside a origem histórica da idéia de folclore24, como uma iniciativa externa às camadas populares, uma tentativa da elite, ou dos Estados, de preservar das tecnologias, dos meios massivos, da modernidade, uma cultura pura, autêntica, original, enraizada e incontaminada. Surgem assim, as noções de “povo-tradição” e “povo-raça”, que no transcurso histórico aproximam-se, ora mais, ora menos, confundindo-se em alguns momentos. No entanto, segundo Martín-Barbero, a armadilha do pensamento romântico é a ambiguidade de sua idéia de cultura popular pois, se por um lado sua originalidade reside essencialmente em sua autonomia e na ausência de contaminação com a cultura hegemônica; ao se negar a circulação cultural, o que está se negando, na verdade, é seu processo histórico de formação, sua dinâmica, seus movimentos e sua atualidade, o que acaba por transformá-la em cultura morta. Uma cultura morta que, exatamente por não ter mais como sobreviver no cotidiano de mestiçagem, hibridismo e mistura de culturas, precisa ser colocada num “lugar da memória”25, transfigurado em museus, monumentos, ou em datas guardadas e consagradas oficialmente. A idéia de folclore é muito controversa porque supõe um lugar, um espaço imaginário para guardar uma cultura supostamente “pura”, intacta, mas na qual foi abafado o que havia de

24 25

Idem. Pierre NORA, Entre memória e história. Projeto História, n.10, p.7-28. 42

verdadeiramente vivo, original: o seu processo de constituição, de afirmação, de lutas por espaços no campo hegemônico em que há, ora contenções, ora resistências e no qual ela se modifica, se altera26. Quanto à noção de massa, cabe ressaltar – como bem lembra, mais uma vez, MartínBarbero – que esta idéia é bem mais antiga do que costuma contar a vasta bibliografia sobre estudos de Comunicação. Estes estudos, obstinados em atrelar à idéia de sociedade de massas a tecnologia, datam o advento da “sociedade de massas” na década de 30/40 do século XX. Na verdade, sociedade de massas é um conceito que guarda matrizes históricas, sociais e políticas desde o século XIX, quando surgiu o fenômeno das massas, da aglomeração urbana, das multidões na rua, das revoltas trabalhadoras (como a Revolução de 1848 e a Comuna de Paris) e quando surgiu o medo destas massas, pois durante o século XIX e XX, a idéia de massa passou do medo à decepção, e daí ao pessimismo, conservando sempre uma idéia pejorativa, significando ajuntamento, multidão, mistura.27 Se a idéia de popular é – neste mesmo momento – positiva, a massa é vista como algo perigoso, revoltoso, sem controle, sem consciência, manipulável e por isso degradante, empobrecedor, regressivo. Vem daí a idéia clássica de algumas correntes das Ciências Sociais e da Comunicação que ainda hoje vêem os meios de comunicação como algo alienante e massificador, partindo do pressuposto de que esta “massa” que assiste à TV, ouve rádio, ouve CDs é completamente inculta, manipulável, sem qualquer capacidade crítica. Surge assim a idéia de multidão e o temor que esta provoca como algo

ameaçados à ordem estabelecida, à

civilização e ao projeto modernizador capitalista, uma vez que o argumento dominante era o de que quanto mais a sociedade capitalista evoluía, mais irracionais elas se tornavam. Os pensadores letrados e da elite logo se propuseram a formular teorias conservadoras para explicar o fenômeno das massas, organizando a visão da burguesia/elite sobre as camadas baixas da população, consideradas como perigosas, por isso devendo ser controladas e reprimidas, sob o risco de, sem isto, acabarem com a civilização e com o progresso, destruindo a sociedade moderna capitalista. Dentre estas teorias, surgem as idéias de Alexis de Tocqueville sobre a maioria e seu poder, como também as idéias de Stuart Mill pressupondo que a junção de 26

Stuart HALL, Notas sobre la desconstrucion de lo popular. In: Raphael SAMUEL, História Popular y Teoria Socialista. 27 Cf: Maria Stella BRESCIANI, A cidade das multidões, a cidade aterrorizada. In: Robert PECHMAN (Org.), Olhares sobre a Cidade. E também Maria Stella BRESCIANI, Metrópoles: as faces do monstro urbano. Revista Brasileira de História. n. 8/9, 1985. 43

indivíduos isolados com sua conseqüente agregação, levaria a uma uniformização de diferentes e ao império da mediocridade coletiva. É nessa época que começam os estudos sobre a psicologia das multidões, cujos argumentos partem da noção de que as massas sempre têm ações inconscientes, irracionalistas, bestializantes, e por isso precisavam ser controladas por uma parcela racional e civilizada: a elite. Dentro deste pensamento conservador, pode-se perceber também as idéias de Gustave Le Bon, para quem as massas são decorrência da sociedade industrial, que cria multidões articuladas à turbulência. Foram estes estudos que balizaram toda uma corrente de pensamento que articula massa e, por conseqüência, cultura de massas a algo pejorativo, sujeito a qualquer tipo de manipulação, uma vez que esta massa insana acaba por não possuir consciência sobre si própria. Por outro lado, massa também significou para muitos pensadores, algo aparentemente não tão pejorativo, mas que representaria a idéia de população ou sociedade em geral. Só que isso, num outro sentido, acaba encobrindo as diferenças e mascarando a sociedade como algo uniforme, universal. Compreendidas as matrizes históricas do que se conceitua como popular e massivo em relação ao erudito, é que se pode argumentar que a cultura vista nas sociedades urbanas brasileiras deste século não se encontram compartimentadas entre cultura popular, massiva e erudita, de uma forma cristalizada, estanque, isolada, mas sim envolvidas numa cadeia complexa de interferências, contaminações, misturas, em que não se pode alimentar uma visão utópica de um popular, de um povo bom, ingênuo, autêntico porque ligado ao passado, ao rural, em detrimento do que é urbano, moderno, visto como ruim. E mais, como se estivessem separados. Deve-se pensar sim, a cultura urbana moderna não só como aquilo que é produzido pelo povo, mas pelo que o povo consome, suas apropriações, seus hábitos de leitura, audição, diversão. Isso tudo sugere a idéia de mestiçagem28, com a complexidade do urbano pondo moderno e arcaico juntos. O que orienta esta reflexão sobre cultura urbana no século XX são as noções de complexidade e pluralidade, configurando situações de dialógico entre rural e urbano, indígena e rural, folclore e popular, popular e massivo, massivo e erudito, erudito e popular, e todas as combinações possíveis. Não se pode esquecer, certamente, que outras formas de conceituações ligadas ao popular estiveram presentes no debate cultural e musical brasileiro ao longo do século XX, principalmente aquelas ligadas ao eixo nacional-popular como cerne da questão da música brasileira, como propunha Mário de Andrade e os modernistas já na década de 20. Este aspecto 28

Jesús MARTIN-BARBERO, Dos meios às mediações :Op.cit. 44

será desenvolvido mais à frente. No entanto, a questão popular aqui é entendida como o popular urbano que incorpora influências das mais diversas, constituindo-se numa música urbana que foi ao longo deste mesmo século travando uma aproximação, um diálogo, uma aderência ao mercado.

Fragmentos da história musical brasileira Desta maneira, para pensar o movimento e estilo musical da Bossa Nova, é necessário compreendê-lo também em sua constituição histórica, em suas matrizes culturais e musicais. Nesse sentido, é que se precisa voltar para as origens da música no Brasil, pelo menos da música considerada não-erudita realizada por aqui, que data do século XVII. Mas é importante grifar que se refere aqui a fragmentos. Isso significa dizer que não se encontrará, nas considerações que se seguem, uma análise total, geral ou completa da música popular no Brasil, mas sim aquilo que – ciente dos riscos decorrentes desta afirmação – tanto a Bossa Nova selecionou como tradição quanto o que – nesta tese -, encara-se como tradição da Bossa Nova. Dito de outra forma, a história musical que se apresenta é “arbitrária” no sentido de ser uma versão possível, uma leitura de tradução daquilo que se considera como sendo as tradições, as origens, as matrizes da Bossa Nova. Como apontam variados manuais de história da música popular no Brasil, o primeiro tipo de manifestação musical popular no país foi o cateretê, um tipo de música e de dança de origem indígena, posteriormente influenciada pela coreografia dos negros escravos. No entanto, poucos registros existem sobre esta música, pois com a catequização jesuítica, foi também difundido o cantochão gregoriano, uma melodia medieval sem acompanhamento em que eram cantados os textos da liturgia católica. A intenção colonizadora de aniquilamento da cultura nativa acabou por fundir o cateretê e o cantochão gregoriano, fazendo com que, paulatinamente, os índios deixassem de praticar suas danças circulares, suas coreografias de volteio do corpo, suas batidas de pés no chão, seu canto coletivo, para entoar hinos religiosos em fila, imóveis e utilizando instrumentos musicais eruditos europeus, como cravo, fagote. Já em meados do século XVII, tem-se o lundu, um tipo de música e dança trazida pelos negros da África; uma espécie de batuque com coreografia sensual que teve seu esplendor no Brasil em fins do século XVIII e início do XIX, tornando-se uma referência na bibliografia sobre música como sendo o primeiro ritmo musical afro-brasileiro. Com muitos movimentos no corpo e

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umbigadas, o lundu agradava a todos os setores da sociedade, mesmo que a Igreja o considerasse imoral, escandaloso. No entanto, ainda não gozava formalmente de uma aceitação e legitimidade por parte da cultura oficial. Tinha uma referência explícita aos negros, como prática destes que era, sempre num tratamento humorístico dos temas cantados; colaborou também na constituição e instituição de uma certa identidade nacional que se formava no século XIX, do que era ser brasileiro. 29 Apenas em 1830 - quando começa a impressão musical no Brasil - é que esta música se transforma, passando a se chamar lundu-canção, nome atribuído pela elite, tendo a partir daí reconhecimento social, sendo praticada nos salões da aristocracia, escrita em partituras e tocada por quem conhecia a teoria musical. Eis aqui uma forma de apropriação do popular pela elite em que ocorrem, é claro, modificações do estilo que se adapta às novas ambiências e às novas finalidades30, com perda de seu caráter mais original de resistência dos escravos, como forma de sociabilidade e integração dos mesmos, passando a ser muito mais comportado, acompanhado não mais por violão tocado nas ruas, mas sim pelo piano nos salões imperiais, sendo então proibido fora deste espaço. O lundu-canção, ao contrário do lundu, passa a prescindir de coreografia, perdendo sua malícia e sensualidade – elementos de resistência social e cultural. Porém, ao se argumentar que não se trata de buscar uma autenticidade ideal nas formas culturais, uma não contaminação das mesmas por elementos externos aos quais foram criadas, o que se pode ver no lundu é uma modificação, uma adaptação a outras esferas sociais, e não uma deformação estética, apenas uma perda. É por meio do lundu que a cultura africana negra dá o seu maior legado à música brasileira e que, mais tarde, dará origem ao samba: a síncope31. O que se tem no lundu é um exemplo de como as características de uma formação cultural – neste caso um estilo musical – podem sobreviver – modificadas, adaptadas – no tempo, o que atesta uma cultura dinâmica, em atividade, não fixa e imutável. Um outro estilo musical contemporâneo ao lundu e muito próximo a ele é a modinha. Gênero de romança de salão, fortemente marcado pela influência da ópera italiana, fez de certa forma, o caminho inverso ao do lundu, pois saiu dos salões e foi para as ruas, num processo de socialização. Há uma certa controvérsia na literatura musical quanto às diferenças/aproximações

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Trecho de Lundu da autoria do poeta Caldas Barbosa, conhecido como Lereno Selinuntino: “Se não tens mais quem te sirva/O teu moleque sou eu,/Chegadinho do Brasil/Aqui está que todo é teu.”. 30 Oneyda ALVARENGA, Música Popular Brasileira. 31 Mário de ANDRADE, Ensaio sobre a música brasileira. 46

entre lundu e modinha. Foi exatamente por Caldas Barbosa – referido acima com um trecho de lundu – que a modinha se popularizou, uma vez que, sendo um gênero musical articulado à aristocracia, possuía traços “eruditos” no ritmo e na sua estrutura musical. Convém compreender que as noções de erudito e de popular na Europa moderna foram tomando características específicas, cindindo a cultura entre estes pólos, e se pautando numa consideração de que o popular estaria restrito à cultura oral, não-letrada, e o erudito pertenceria ao universo escrito. No entanto, não se pode esquecer que estas categorizações não podem ser absolutizadas, pois passam por mudanças nas quais as formas artísticas, antes pertencentes ao universo popular (em oposição à cultura hegemônica) em outros momentos transformam-se em referências cultas, como é o caso da ópera. Talvez seja por esta razão que muito da bibliografia sobre a modinha a toma como um gênero originalmente aristocrático advindo da ópera italiana, hoje considerada erudita. Com Barbosa – um padre negro, poeta, brasileiro que foi para Portugal – a modinha adquiriu um tom mais popular e mais nacional, também no sentido de se afirmar (nas letras) como brasileiro e de se tornar mais malicioso, mais satírico, diferente do tom mais solene com que era feito em Portugal. É neste sentido que se misturou muito ao lundu, pois foi o mesmo poeta que disseminou os dois gêneros, transmitindo-lhes elementos como requebros, letras maliciosas e bem humoradas. Não por acaso, a aristocracia passaria a diferenciar a modinha em duas versões ou dois estilos – um vulgar e o outro aristocrático – numa tentativa de demarcar o que era um produto cultural seu e o que era feito por negros e mulatos com letras mais ousadas. Interessante notar que esta “modinha vulgar” que tomava as ruas sofreu modificações não só nas letras, mas também no ritmo, pois além de assumir outro andamento musical, ficando mais rápido, mais próximo ao lundu, era “tocada por pontos”, o que quer dizer valorizar o ritmo em detrimento da melodia, cantar ou produzir um som staccato. A palavra “moda” servia para designar qualquer tipo de cantiga, mas quando chegou a Portugal, este tipo musical ganhou o nome de “modinha”, o que tanto se refere ao estilo lingüístico luso de falar no diminutivo, quanto a uma forma de rebaixar ou tornar menor as cantigas advindas do Brasil, uma vez que se tornavam ali, um estilo típico da colônia, identificado aos costumes imorais e profanos coloniais. Com a popularização desta música nas ruas, o acompanhamento deixou – é claro – de ser feito pelos aristocráticos pianos e começou a ser feito por violão (que era tido como instrumento menor, ligado aos boêmios e vagabundos). Pode-se perceber na modinha, tanto a tradição oral,

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expressa nas canções executadas ao violão ou viola, como também a tradição escrita, as partituras para canto e piano. No entanto, entre uma e outra há diferenças, pois como aponta Martha Ulhôa32, a escuta dos fonogramas permite uma comparação da versão gravada diretamente da tradição oral com a versão executada tendo como a base a partitura, o escrito, em que a performance, a prática interpretativa mostram-se de maneira diferente, na maneira de cantar e ajustar as palavras e sílabas fortes e fracas na música. O fato de ser acompanhada pelo violão acabou também por colocar a canção como prática social com função de socialização, em que os bares e esquinas onde se reuniam os músicos eram também pontos de encontro, pontos de referência das cidades ou vilas. Os filhos da classe média urbana, ligados às profissões liberais e ao cultivo da literatura, em meados do século XIX, foram um dos grandes responsáveis por esta popularização da modinha. Poetas, escritores, estudantes de Direito reuniam-se no Rio de Janeiro, na Tipografa de Paulo Brito, onde hoje se encontra a Pça. Tiradentes. Neste espaço, que era também livraria, papelaria e loja de chá ao mesmo tempo, reuniam-se Gonçalves Magalhães, José de Alencar, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, dentre outros. Um espaço urbano, portanto, onde encontravam-se os homens cultos, os boêmios, os poetas, mas também os cantadores e compositores de modinha, como Laurindo Rabelo. É importante levar em consideração neste fato, as características e particularidades que interferem num processo comunicativo, como é a canção, tanto em sua composição como em sua execução. Vicente Romano33 afirma que a “atmosfera”, a ambiência geográfica e climática, tem implicações na estética musical e na sua performance, em que o violão seria propício à paisagem carioca – onde o clima quente predomina – por sua facilidade de transporte e aptidão para ser tocado ao ar livre. Por outro lado, embora não deva haver um aprofundamento neste ponto, existem ainda questões ligadas à reverberação e ressonância dos objetos sonoros, que também são influenciadas pela atmosfera. Esta circularidade ou troca entre poetas mais eruditos e compositores populares é algo apontado na história ocidental desde a época medieval por Mikhail Bakhtin34. Peculiar também na cultura boêmia das cidades, proporcionando uma circulação de referências e matrizes culturais, uma vez que os compositores de modinhas acabavam absorvendo elementos do 32

Martha Tupinambá de ULHÔA. Isto é bom! ou Yayá, você quer morrer? – a tradição oral e a tradição escrita no lundu. Texto apresentado na Sessão Coordenada “Etnomusicologia” do XIV Congresso da ANPPOM – Porto Alegre/RS – agosto/2003. 33 Vicente ROMANO, Desarrollo y progresso – por una ecología de la communicación. 34 Mikhail BAKHTIN, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. 48

Romantismo que imperava entre os poetas e estes últimos, mais tarde, acabariam compondo modinhas abandonando o preciosismo rasgado de seus versos e adquirindo uma linguagem mais coloquial. Isso daria origem a uma tradição de pernosticismo das letras do cancioneiro popular brasileiro. Na Bossa Nova, pode-se notar um conjunto de canções que não é comumente associado ao movimento, nem pelo senso comum, e nem pelos próprios participantes do movimento. No entanto, estas canções, ao fazerem parte da obra de alguns dos compositores a ela associados, ressaltam e colocam em pauta elementos de um imaginário social acerca dos sentimentos e relacionamentos amorosos – os quais revelam experiências e visões de mundo - que circulavam naquele momento. Eram referenciais dos integrantes do movimento da Bossa Nova, muitas vezes até numa tentativa de negação e de diferenciação, em que se vê uma linguagem dramática, pessimista, “rasgada”, diferente da maioria das canções do movimento, marcadas pela linguagem enxuta, coloquial e otimista. “Não ! Não pode mais meu coração Viver assim dilacerado Escravizado a uma ilusão Que é só desilusão Ah, não seja a vida sempre assim Como um luar desesperado A derramar melancolia em mim Poesia em mim Vai, triste canção Sai do meu peito e semeia emoção 35 Que chora dentro do meu coração”

Nesta canção, que não por acaso tem o nome Modinha, surge o desespero por não ter o amor correspondido, não suportando a “ilusão que é só desilusão”, em que se percebe uma tentativa de desvencilhamento deste sentimento, dizendo que não consegue mais viver com o “coração dilacerado”. O luar, que em tantas canções traz a moldura para um quadro de realização amorosa e felicidade, tem aqui a conotação desesperada, que derrama “melancolia” e “poesia”, em que para além de rimarem formalmente, as duas palavras tendem a se combinar e se completarem no ideário em questão.

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Tom Jobim e Vinícius de Moraes, 1957. 49

“O próprio Vinícius no início da Bossa Nova fazia “crava as garras no meu peito e esvai em sangue todo o amor ...” e depois o Vinícius começou a sacar isso [falando a respeito da linguagem coloquial da Bossa Nova] e virou um poeta provençal. Acabou aquele poeta romântico, derramado, ensanguentado, porque era morte prá lá, sangue prá cá, acabou aquele troço(...).Mas nós entramos primeiro, nós os trovadores, os menestréis entramos primeiro; e quem são os menestréis? Eu, Tom Jobim(...)porque o Tom Jobim já entra com “Um cantinho, um violão, esse amor ...” que era dele, e depois com “Foi a noite, foi o mar, eu sei ... foi a lua que fez pensar”. E eu venho com “Quando chegares aqui podes entrar sem bater ...” Nós, os músicos, tínhamos muito mais essa visão, que os próprios poetas; os poetas estavam tão preocupados com a linguagem, com a forma, que se perderam do sentimento profundo da coisa, de Provença, que tem as letras de Bossa Nova, e que nós somos os grandes começadores: os músicos, não os poetas. E o Vinícius foi na nossa direto, e aí acabou mesmo, porque com o talento que ele tinha, percebendo esse grande segredo, daí prá frente era só “Se você quer ser minha namorada...”, e aí não precisei mais fazer letra”36

Muitos integrantes da Bossa Nova, portanto, procuravam diferenciar-se dos arroubos de sentimentalismo e da linguagem rebuscada próprias a elementos musicais e comportamentais de uma musicalidade existente anteriormente ao movimento, procurando edificar a sua identidade pela diferenciação, naquilo que não eram. Carlinhos Lyra coloca que a linguagem coloquial surgiu dos músicos e não dos poetas, o que revela que este tipo de discurso estava, muito mais do que se poderia supor, ligado à informalidade, a um tom de prosa, às conversas do cotidiano. Identifica-se neste depoimento, uma construção surgida espontaneamente na fala cotidiana e não (pelo menos no início) uma forma de discurso construída propositadamente. Vinícius de Moraes (citado no depoimento), poeta e diplomata, era mais velho do que outros integrantes da Bossa Nova; tendo nascido em 1913, tinha 45 anos em 1958, momento da explosão da Bossa Nova. Cursou Direito e pós-graduação em Oxford, ingressando em 1943 na carreira diplomática. Tendo publicado vários livros de poesias, sonetos - em que o tema era constantemente a morte, as angústias do homem, a mulher, numa linguagem transcendental e prolixa - seu primeiro contato com a música popular foi a peça teatral Orfeu do Carnaval, musicada por Tom Jobim em 1956 (a primeira de uma série de parcerias). Mais tarde, durante a Bossa Nova, como Lyra destaca, ele se tornaria um poeta do cotidiano, de linguagem coloquial, abandonando a carreira diplomática. Esta herança poética-musical, deixada por Vinícius de Moraes nestas canções, revela um atrelamento do autor a esta experiência nos meios intelectuais e da poesia erudita. O depoimento faz conhecer ainda a idéia de que esta mudança dos discursos musicais, se configurara muito mais como denotativos do sentimento (o “sentimento profundo da coisa, de Provença”) da época, próprio de um imaginário sobre o amor e os relacionamentos que se

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Depoimento concedido por Carlos Lyra, em 24/04/96, no Rio de Janeiro. 50

queriam em modificação, do que como uma preocupação formal ou lingüística. Carlinhos Lyra e Tom Jobim, ressaltados como os “menestréis”, os poetas/cantores, possuíam uma experiência urbana, em que se pode perceber um certo clima de informalidade e uma coloquialidade na linguagem e nos discursos (ali buscados como ícones da “modernidade” que se queria afirmar), sendo realmente, mais músicos do que poetas, revelando em suas letras uma linguagem num tom de prosa cotidiana. Homens do verbo, do som, da oralidade, pela qual se inseriram socialmente. Este hiato, para analisar a Bossa Nova, ressalta o que pode ser um primeiro elemento mais explícito de sua matriz cultural e musical – a modinha – não só em seu estilo musical, melodia, ritmo romântico, de canção, mas também na sua formação social, visto que se constituía como fruto do urbano e da mistura cultural e social proporcionada por este meio, em que músicos ligados a uma tradição popular mantêm relações com os poetas de cunho mais erudito, dando origem a estilos musicais e poéticos frutos desta mistura. Outra questão levantada pela modinha enquanto matriz cultural da Bossa Nova é a relação, já apontada acima, entre poetas e músicos que, no limite, trata da questão sobre a relação poesia/letra na música. Difícil a delimitação e um consenso sobre o fato de a letra da canção ser ou não ser poesia. Ao se pensar na poesia feita para ser oralizada, a questão fica ainda mais complexa, uma vez que ambas trabalham com o material sonoro.37 Mas há que se lembrar que não podem ser confundidas, configuram-se como formas diferentes que contêm linguagens diversas. Forma38, entendida em seu desenvolvimento social e historicamente construído, não sendo fixa, mas comportando uma mobilidade que lhe é intrínseca e sem ser regida rigorosamente pelas regras. Paul Zumthor argumenta que a forma é a regra, a todo instante recriada, pois supõe que a performance (que é mutante, nômade, move-se no tempo e no espaço) a constitua. Importante, assim, reconstruir esta história das formas. 39 Assim, a poesia feita para ser cantada possui características próprias, pois a palavra nas canções está muito impregnada da sua realização sonora, estando associada aos aspectos melódicos, rítmicos, etc. Já a palavra impressa tem outros códigos, como o visual, a materialidade gráfica, por exemplo. Mas guardando-se as especificidades, são linguagens próximas, com suas múltiplas e complexas correspondências.

37

Carlos DAGHLIAN (Org.). Poesia e música. Utilizo-me aqui das formulações de Raymond Williams que, em grande parte, assentam-se no pensamento de Mikhail Bakhtin. 39 Paul ZUMTHOR, Performance, recepção. 38

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A canção se caracteriza pela junção texto melodia, sendo este o seu núcleo de identidade e de sentido. A sua eficácia, segundo Luiz Tatit - compreendida não como uma eficácia mercadológica, mas de significação, traduzindo o êxito de uma comunicação entre destinador e destinatário - depende primeiramente, mas não exclusivamente, da adequação e compatibilidade entre o seu componente melódico e lingüístico, que gera a persuasão do ouvinte, física, psiquica e “decantatoriamente”, reconhecendo uma canção, procurando por ela, gravando-a na memória.40 A canção, a poesia cantada, assim, não pertence nem à ordem da poesia pura, nem da música pura, mas se situa na interface das duas artes expressivas. Martha Ulhôa argumenta ainda que no estudo das canções é central a compreensão da prosódia musical, ou seja, o ajuste das palavras e da música, de forma que o encadeamento e sucessão de sílabas fortes e fracas coincidam com os tempos fortes e fracos do compasso. Deve-se atentar aos elementos de ênfase na canção – seja na letra ou na música –, a expressão musical das emoções, incluindo a observação dos elementos musicais da linguagem falada, quanto o impacto da língua na performance musical e seus parâmetros sonoros (intensidade, indeterminação rítmica, padrões de entonação, entre outros). Ulhôa afirma ainda que em muitas canções, o número de sílabas do verso e seu padrão de acentuação não coincidem com o número de tempos e localização de acento do compasso musical, uma incompatibilidade que pode ser resolvida no momento da performance pela métrica derramada – antecipando sílabas, alongando outras - que se faz necessária para manter a inteligibilidade e naturalidade do canto.41 Mas um aspecto que chama a atenção neste debate sobre letra/música, e que surge como algo fundamental, é a questão do prestígio, do status, do local ocupado por cada linguagem dentro do campo artístico. Ainda hoje - como sugere Nelson Archer42 em artigo publicado recentemente – percebe-se que há um grande debate sobre este tema, sendo que alas da crítica literária não aceitam o “rebaixamento” de sua posição ao admitir que letras do cancioneiro popular sejam consideradas poesia, assim como não aceitam a idéia de ver a poesia misturada à canção comercial. De outro lado, os defensores da letra de música como poesia, buscam elevá-la ao status desta última. Em outros países este debate parece não se colocar, uma vez que os campos estão muito bem delimitados. No Brasil, esta questão ganha contornos que a tornam mais complexa, quando a música popular, a partir dos anos 50 e 60, passou a conquistar uma 40

Luiz TATIT, A canção: eficácia e encanto. Martha Tupinambá de ULHÔA, Métrica Derramada, Brasiliana 2, p. 48-56. 42 Nelson ARCHER, Letra de música é ou não é, enfim, poesia? Folha São Paulo. 05/10/2002. Caderno Ilustrado. 41

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categorização de bem simbólico sofisticado e legitimado, e o músico também passou a ser portador de uma identidade diferente daquela que tinha até então o compositor popular, visto como menor, sem aceitação por parte da elite (embora tivesse muita popularidade), ganhando assim legitimidade e consagração. Este processo de legitimação da música popular será melhor desenvolvido mais à frente. Ainda sobre a modinha, é importante atentar para o fato de que muitas de suas letras não foram consideradas pela crítica e pela história literária brasileira como “literatura”. Talvez isso se deva ao fato de que estas letras eram compostas para serem cantadas, o que era buscado no momento de sua composição era a sua realização oral, a sua “vocalidade”. Na história musical brasileira traçada neste capítulo, destacou-se os elementos de performance43 que estes estilos ou gêneros musicais tiveram no passado. Entender que a modinha era uma poesia composta para ser cantada, vocalizada, dá algumas pistas sobre o ato de sua performance que, por sua vez, sugere indícios acerca de seus ouvintes. Indo além, pode-se chegar a momentos mais remotos em que é percebida a presença desse elemento oral/vocal da modinha (e também da Bossa Nova): nas canções de gesta medievais, “cantus gestualis”. Foi assumido que as culturas se organizam em torno de sistemas de comunicação que devem levar em conta a natureza das técnicas utilizadas para o ato comunicacional e também a natureza de suas formas. Assim, as relações entre músicos e poetas, o conteúdo das letras das canções, entre outros aspectos da modinha podem ser considerados como matrizes culturais da Bossa Nova. Uma matriz cultural do cantar a mulher, o amor, a paixão, as angústias individuais do sentimento não correspondido, como também cantar a noite, o ambiente boêmio. A modinha é apontada como um primeiro gênero brasileiro de música popular urbana juntamente com o chorinho, gêneros fruto da diversidade e do hibridismo próprios à cidade. Um outro aspecto relacionado à modinha, é que ela parece ter sido o primeiro estilo de canção popular no Brasil influenciada pelo Romantismo. O Romantismo na música erudita pode ser caracterizado como uma tentativa de romper com o equilíbrio entre a estrutura formal e a expressividade que se notava até o Neo-Classicismo, por meio da busca de uma maior liberdade na forma, de uma expressão mais intensa das emoções, abandonando as regras, a disciplina, o rigor e a objetividade do estilo clássico44. No que 43

“Peformance”, “vocalidade” e outros conceitos de Paul Zumthor serão melhor trabalhados em outros momentos da tese. 44 Luis ELLMERICH, História da Música. 53

diz respeito à estrutura musical, pode-se notar uma maior riqueza harmônica, com a incorporação mais sistemática de dissonâncias e maior lirismo nas melodias, o que as aproximava das canções. A inspiração dos compositores românticos vinha do sentimento nacionalista (Wagner) ou da natureza, com a noite, o luar, a mata, o mistério. Muitos músicos compunham sua peças tendo como base os gêneros folclóricos de seus países, compondo valsas (Liszt), polcas (Brahms), polonaises (Chopin), noturnos (Schumann), e não mais a melodia ou ritmos clássicos. As peças se tornaram mais curtas, o que também se assemelha às canções. Além disso, o Romantismo como visão de mundo, sugere um voltar-se para o passado, para o mundo arcaico, para uma negação do presente e da modernidade, num refúgio na autenticidade da vida, encerrada na natureza e não nas cidades, na noite e não no dia – visto como espaço do trabalho, da fábrica, da racionalidade. É assim que se cultiva um valor aos espaços noturnos, como a boêmia, o ambiente artístico, etc. Desta maneira, a modinha como gênero que guardava ressonâncias com o Romantismo pode ser vista como a introdutora, na música e na prática musical brasileira, da canção, que é a junção de letra e música, e ainda de diversos outros elementos como uma maior informalidade no jeito da apresentação e na forma de cantar, uma maior abertura para o intérprete da canção, a possibilidade de encontros e sociabilidades em torno da música, uma inclinação a se falar dos sentimentos, dos amores, da mulher amada. Estas características, verdadeiras instituições nessas canções, estavam também presentes na Bossa Nova. O cantar no ambiente da noite, falando do amor, falando à mulher amada, permitiu o aparecimento da serenata. Como lembra Tinhorão, a canção solo não era bem vista, pois levava o violão para as ruas, fugindo ao controle da cultura oficial. O temor era de que os homens, ao cantarem acompanhados do violão, poderiam fazer usos dos gêneros musicais com malícia, alterando letras e ritmos “para corromper as mulheres pela sugestão dos suspiros e dos versos amorosos”45. A junção entre o violão e a flauta, utilizados nestas serenatas, com o cavaquinho, daria origem, mais tarde, ao chorinho carioca. Desta forma, o músico como alguém sedutor que canta à mulher, que pode corromper, deve ser vigiado, controlado, pois torna-se um perigo para as mulheres e para a ordem estabelecida, devendo ser evitado pelas famílias de respeito. Esse status do homem músico já estava colocado desde os primórdios da canção no Brasil e perduraria até a Bossa Nova (claro 45

José Ramos TINHORÃO, Pequena História da Música Popular Brasileira. 54

que modificado, adaptado, com permanências e mudanças). Inúmeros são os depoimentos de participantes da Bossa Nova que afirmam este aspecto. Vale lembrar que a canção ressalta um outro aspecto importante e recorrente na música popular: a musa. O cantar a música popular, bem como a possibilidade de várias interpretações, remete a um sentido metafórico desse verbo cantar, que seria o cortejar, o seduzir. Esta “cantada” é, na maioria das vezes, para a mulher, composta em sua função, usando assim a linguagem do canto sobre o amor.46 A modinha parece, assim, levantar pistas a respeito de uma matriz, de uma tradição na canção popular brasileira: a da figura masculina do autor cantando à mulher. No que se refere ao século XX, vê-se que a forma de canção evidenciada pela modinha perdurou (mesmo que modificada) por muitos anos, transformando-se e dando origem a variadas expressões musicais, como o samba-canção, o sertanejo e outras formas musicais que se valem da canção de apelo romântico, o que daria origem (claro que amplamente relida e juntamente com outras influências) à Bossa Nova. Quando do surgimento das primeiras gravações de canções nas primeiras décadas do século XX, a modinha se popularizou ainda mais, com vozes empostadas como as de Francisco Alves, Vicente Celestino, Silvio Caldas, Orlando Silva. Importante compreender este estilo musical, esta forma musical como uma das matrizes da Bossa Nova, no jeito da canção, na forma poética, nas suas práticas sociais instituintes e na sua performance. Retomando as relações entre modinha e lundu, pode-se argumentar que eles foram contemporâneos e muitas vezes confundidos na literatura musical. Embora o lundu tenha se aristocratizado e a modinha tenha se popularizado, pode ter havido aí um ponto de encontro e até de coincidência dos dois estilos, que se confundiam em alguns momentos. No entanto, há um traço característico do lundu, que o singulariza e que foi – a despeito de toda a modificação que sofreu – sua marca, sua herança deixada à música que viria a se estabelecer no Brasil no século XX: a síncope. Segundo Mário de Andrade47, este é um termo que indica a escrita de um tempo fraco de um compasso prolongado até o outro tempo de maior ou igual duração. A síncope não é uma exclusividade africana ou mesmo brasileira, estando também presente na música clássica européia, em J.S.Bach, por exemplo. No entanto, seu uso clássico se apresentava apenas na melodia, em que, num compasso quaternário se utilizava a soma de duas semicolcheias centrais do grupo quaternário de semicolcheias. Já no lundu, é utilizada como 46

Eliane Robert MORAES, A musa popular brasileira. In: Carmem BARROSO e Albertina O. COSTA, Mulher, mulheres. 47 Mário de ANDRADE, Dicionário musical brasileiro. 55

célula rítmica constitucional absoluta da estrutura musical, assumindo a função de uma entidade de acento e tempo insubdivisível. Está aí a peculiaridade essencial presente em toda a música de origem africana. Síncope que ao quebrar o ritmo, põe em relevo um certo requebrado presente na estruturação musical e também no jeito de dançar. Interessante notar como no lundu - tal qual na modinha -, há sempre um falar à mulher, “cantá-la”, com malícia, humor, unindo muitas vezes uma vez que era uma expressão afro-brasileira - a idéia da mulher e sua sensualidade com as comidas afro-brasileiras, articulando o requebrar do ritmo com o requebrar da mulata. Observando um pouco mais a música africana, nota-se que ela já possuía elementos diferenciadores. A rítmica ocidental se baseia na divisão de uma dada duração em valores iguais, onde tem-se o compasso, em que se tem uma quantidade de tempos pré-estabelecidos, havendo uma semibreve, que se divide em duas mínimas, cada uma destas em duas semínimas e assim por diante. Já a rítmica africana é aditiva, pois atinge uma dada duração por meio da soma de unidades menores, que se agrupam formando novas unidades, que podem não possuir um divisor comum.48 Este tipo de estruturação rítmica não é encontrada na música ocidental, a não ser nas músicas eruditas contemporâneas, que já absorveram elementos de outras culturas, ao contrário da música africana, em que este elemento rítmico faz parte do senso comum, transmitido entre as gerações e freqüente até no universo musical infantil.49 Considerando a tradição africana, a síncope nas músicas brasileiras nada tem a ver com a síncope clássica européia, devendo muito mais a este estilo rítmico africano de compassos mistos geradores de ritmos compostos de três articulações - o chamado tresillo. Este último tem como característica fundamental a marca contramétrica recorrente na quarta pulsação de um grupo de oito, que fica assim, dividido em duas partes desiguais, diferentemente da música ocidental, na

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Carlos Sandroni explica o fato de que nossa teoria musical prevê dois tipos de compasso - os simples e os compostos. Nos primeiros, a unidade de tempo é binária (onde as unidades de tempo são as semínimas que, dividindo-se sempre por dois, são equivalentes a duas colcheias, ou quatro semicolcheias, e assim por diante); e nos segundos, as unidades de tempo são ternárias e representadas por semínimas pontuadas (divididas portanto por três colcheias). Não há, assim, compassos que misturem sistematicamente agrupamentos de duas e de três pulsações, diferentemente da música africana, em que há esta mistura, dando origem a períodos rítmicos pares, por exemplo, 3+3+2 (duas semínimas pontuadas + semínima). Mas a divisão destes períodos pares em dois, dava origem à duas partes desiguais na métrica musical, a chamada imparidade rítmica. Isso era concretizado na música africana por meio de “linhas-guia”, ou seja, representadas por palmas ou qualquer outro instrumento percursivo, dando a linha, a base do ritmo, sendo que nem sempre era igual, mas se modificava, se improvisava, obedecendo o princípio da subdivisão, a decomposição em valores menores. Carlos SANDRONI, Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). 49 José Miguel WISNIK, O som e o sentido: uma outra história das músicas. 56

qual a contramétrica estaria na quinta pulsação, ou seja, no início da segunda metade de um compasso simétrico. O paradigma do tresillo está presente em quase todos os ritmos americanos que incorporaram ou mantiveram contato com a cultura africana, estando presente no lundu, na habanera, no tango, na salsa cubana, no samba-de-roda baiano, no maracatu pernambucano, no partido alto carioca, etc. Um outro tipo de música que também contém esta característica do tresillo é o maxixe, encarado como antecessor direto do samba. Esta dança, do final do século XIX, era urbana, popular e carioca. Surgiu no bairro da Cidade Nova, fruto do aterro do Canal do Mangue, espaço de divertimentos e inclusive de má fama. Pelo recenseamento de 1872, este era o bairro mais populoso da cidade, com 26.592 habitantes, sendo que mais de 22 mil destes declaravam-se fluminenses. Esta concentração populacional parece se explicar pelo fato de a decadência da cultura do café no Vale do Paraíba estar em seu momento mais forte, o que fazia com que o excedente de mão-de-obra escrava fosse atraído para o centro urbano mais próximo: a Corte. Assim, num bairro recém construído, afastado da burguesia urbana em formação, surgia uma Cidade Nova, suja e pobre. Interessante perceber que moravam ali não apenas negros livres ou escravos, mas também portugueses e outros imigrantes recentes, atraídos pelos preços baixos dos aluguéis50. Isso acabou por gerar processos de mestiçagem muito intensos e a configuração de um espaço urbano muito diferenciado e peculiar no Rio de Janeiro; um local com comportamento social e cultura própria, onde, entre outras coisas surgia uma dança nova. Um tipo de dança nascido do esforço de adaptação dos ritmos à tendência que já se esboçava por aqui, de se fazer passos com volteios e requebros, passando a ser praticado nos bailes dos bairros populares do Rio de Janeiro, principalmente nos salões carnavalescos. É possível dizer que o maxixe recuperou a força original do lundu com movimentos sensuais e a criação de passos peculiares como “parafuso”, “balão caindo”, “corta capim”, entre outros51. No entanto, guardava algumas diferenças, ainda que se afirmasse que o maxixe era uma nova maneira de dançar o lundu. No lundu os participantes, inclusive os músicos, formavam uma roda e acompanhavam ativamente com palmas e cantos os casais, feitos por um par de cada vez. Já no maxixe, todos os pares dançam ao mesmo tempo, os músicos são externos à dança, não há mais

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Delgado de CARVALHO, História da cidade do Rio de Janeiro. José Ramos TINHORÃO, Pequena História da Música Popular Brasileira, passim. 57

roda e sim o “salão de baile”, em que os dançarinos não cantam e a música é apenas instrumental. E mais, se o lundu era uma dança de par separado, o maxixe era uma dança de par enlaçado, daí o escândalo que causava. Outro aspecto diferenciado é o de que o lundu guardava suas raízes no mundo rural, no passado colonial brasileiro, enquanto o maxixe era fruto das cidades, do meio urbano moderno52. Não se pode esquecer que a sociedade carioca do momento, já começava abrir maior espaço para este tipo de dança e este tipo de prática. Por esta época, o Rio já vivia os primeiros tempos da República - já não mais Imperial e, talvez por isso, menos formal - onde a aristocracia palaciana perdia espaço e poder para a burguesia urbana e industrial e para as camadas médias emergentes na virada do século. Por outro lado, surgia também o proletariado que iria dançar maxixe em suas gafieiras e levá-lo até as classes mais altas durante o Carnaval. Esta massa urbana habitava os bairros próximos à região portuária da cidade e o próprio centro, em cortiços e habitações conjuntas - pelo menos até a grande reforma urbana que o Rio sofreria em 1905 –, num ambiente cultural, social e político que possibilitava este novo tipo de prática social, embora com reservas, o que é atestado pelas inúmeras vezes em que foi proibido. Há que se pensar sobre as relações que se travavam na sociedade carioca no que tange às festas, ao Carnaval, ao ambiente público, à rua e a família no Rio de Janeiro do início do século. A historiadora Rosa Maria Araújo53 analisa a interação que a família acaba tendo com a cidade e seus espaços públicos, como fruto das mudanças do meio urbano. As mudanças nos valores e atitudes tradicionais da incipiente burguesia urbana carioca acabaram por dar, segundo a autora, uma certa identidade cultural ao Rio, em que não seria cabível falar em “tradicional família carioca” da mesma forma que se fala da paulista ou da mineira. Um processo no qual foi privilegiado o lazer e se produziu uma atmosfera social multicultural mais diversificada, com as diferenças expostas a todo momento nas ruas, constituindo um espaço público que era não só das classes populares, da boêmia, ou dos músicos e poetas, mas também da família nuclear burguesa. Isso parece ser uma característica carioca que tem sua origem neste momento e vai se configurar como permanente na sua identidade cultural, passando por inúmeros momentos de adaptação e modificações, inclusive durante os anos 50 e 60. É importante verificar o quanto isso se mostra exemplar quanto à vida nas cidades: uma dança popular praticada em bailes populares, que acaba

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Carlos SANDRONI, Feitiço decente. Rosa Maria Barbosa de ARAÚJO, A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro republicano. 58

sendo incorporado, ainda que com preconceitos e reservas, pelas camadas sociais mais altas de outros bairros - pela frequência destes últimos em bailes ou clubes Carnavalescos. Na própria Bossa Nova é possível perceber este entrecruzamento. Restrita à zona sul a princípio, seus participantes - muitos deles moradores de Copacabana e Ipanema - foram buscar - num determinado momento e por motivações políticas - aspectos, estilos e práticas musicais da zona norte, no espaço do samba como o bar Zicartola. É desse modo que começam a estabelecer ligações com o samba do morro, com compositores como Zé Keti ou Cartola, trazidos ao ambiente dos barzinhos da zona sul pelo show Opinião de Nara Leão, em 1964 e outros espetáculos músico-teatrais que surgiam. Estaria se configurando já nesta época, aquilo que seria concebido como o popular nos anos 60, resultado de um movimento de setores das camadas médias que se misturavam, trocavam influências, referências com setores das camadas baixas ligadas ao samba. Isto foi motivado por questões políticas e por uma busca de ampliação de mercado. Mas, não seria equivocado dizer que isto foi característico do Rio de Janeiro, próprio de uma cultura que é um tanto particular deste meio urbano. Embora uma discussão sobre a cidade esteja no capítulo 3, cumpre dizer que o meio urbano é peculiar por estar mais propício para que os imaginários se cruzem e entrem em conflito. Neste sentido, vale lembrar que a questão da cultura – ainda mais nas cidades – não pode ser determinada como um campo estático. As noções de cultura erudita e popular têm proporcionado muitas discussões e críticas, principalmente quando são visualizadas como elementos isolados, separados e autônomos. Aqui se propõe assumir que a cultura passa por embates, por movimentos de dominação e subordinação interiores e que, ao se tratar de cultura, nada pode ser afirmado como autêntico, autônomo, independente e interior a si mesmo. Há uma dialogicidade, uma luta cultural, com pontos de contenção e de resistência54. Desta forma, as relações culturais na cidade, entre camadas médias, altas e baixas, são estreitas, tendo por base esta luta, este embate entre pólos, marcado pela apropriação e expropriação de bens culturais e em que nunca se alcançam vitórias definitivas, mas sempre posições que são conquistadas e perdidas. É assim que se coloca, portanto, a idéia de que não existe uma personalidade urbana uniforme, mas, pelo contrário, uma sensibilidade do citadino aos aspectos de reordenação social e cultural. 54

Stuart HALL, Notas sobre la desconstrucción de lo popular. Op.cit.. 59

O maxixe inventado na Cidade Nova teve como veículo de divulgação para as outras áreas da cidade e entre outras camadas da sociedade, os bailes das sociedades Carnavalescas. Estes bailes eram associações de recreio fundadas por indivíduos de comércio, um lugar para dançar durante o ano e sair vestido nos dias do Carnaval, sendo as sociedades as financiadoras dos carros, enfeites e fantasias de Carnaval. Estas agremiações surgiram exatamente neste momento de ampliação e implementação da vida urbana carioca, econômica, política, social e culturalmente, em que velhos e rígidos hábitos patriarcais estavam mais afrouxados, permitindo novos hábitos, como a criação de novas formas de diversão fora do âmbito familiar para os homens das camadas médias urbanas. Nestes encontros masculinos - proibidos às mulheres de família – falava-se sobre mulheres, negócios, política, e se aprendia a praticar a nova dança. Ainda em relação ao maxixe, é possível notar, como aponta o musicólogo Carlos Sandroni, o grau de imprecisão terminológica musical que o acompanhava. Na imprensa, na literatura, nos variados discursos do final do século XIX, há uma grande confusão quanto à denominação dos gêneros musicais: lundu, polca, habanera, tango brasileiro – todos estes nomes e a combinação entre eles eram utilizados para descrever o maxixe, ou o gênero musical que embalava o gênero55. No entanto, o mais importante aqui não é a exatidão da nomenclatura, mas a compreensão de que esta confusão se dava por serem todos os estilos muito parecidos e por possuírem uma matriz, um tronco comum, que é o paradigma do tresillo. Isto quer dizer que todos estes ritmos coexistentes no Brasil em fins do século XIX tinham em comum esta raiz africana, caracterizada pela síncope, o compasso quebrado que originava o requebrado na dança. Aqui, explicita-se o aspecto de miscigenação já posto, em que a mistura de influências, estilos, culturas se dá de maneira muito forte, recorrente e dinâmica na tradição musical do Brasil, sendo difícil e até dispensável a tentativa de estabelecer fronteiras fixas e precisas entre influências e estilos, separando-os. No entanto, havia uma busca - ainda incipiente, mas que teria sua formulação mais consistente na década de 30 do século XX, com o samba - de se estabelecer um ritmo, um estilo, um gênero musical nacional, genuíno o que, naquele momento, foi o maxixe. Buscava-se por uma definição do que fosse o autêntico, o verdadeiramente nacional, associado aqui ao que parecia mais popular, e tido como sucessor direto do gênero musical africano, o lundu. Tem-se, portanto, o esboçar de uma construção da identidade nacional ligada, entre outras coisas, à 55

Carlos SANDRONI, idem. 60

sensualidade, à malícia, ao requebrado da dança e ao elemento negro. Isto se deu dentro de um debate intelectual e cultural que buscava afirmar a identidade a partir do meio e da raça (o que acaba se revelando numa atitude racista em autores como Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha), afirmando o brasileiro como indolente e sensual, a partir de uma apropriação das noções românticas e evolucionistas européias, mas buscando o que lhe era específico.56 O que, de qualquer forma, é necessário reter acerca da história do Rio de Janeiro nesta época, é a compreensão de uma edificação de espaços urbanos que terão relação com os espaços musicais, uma vez que atuam na configuração dos imaginários sociais, em que pontos, locais da cidade expressam memórias, experiências comuns. Daí a importância de atentar-se para os espaços construídos pelos sujeitos participantes do universo musical carioca, locais de prática social. O Rio de Janeiro tem se mostrado como uma cidade peculiar no que diz respeito a sua configuração urbana. Havendo uma cadeia de montanhas atravessando-a como uma espinha dorsal, e ainda o mar e a Baía de Guanabara, percebe-se que a ocupação urbana foi seguindo um ritmo ou um desenho que acabou por parecer isolar as partes (zona sul, zona norte e central), configurando-lhes características específicas, dando-lhes contornos comportamentais e culturais muito próprios. Por outro lado, promoveu um misturar de influências, em que estas fronteiras não são fechadas ou impermeáveis, mas fluidas e nas quais, como já foi discutido, a cidade promove estes desordenamentos culturais e sociais. Assim, considera-se importante ver um pouco da história urbana do Rio. Durante as últimas décadas do século XIX, o processo de consolidação política e nacional brasileira foi acompanhada por uma ênfase no tema da integração brasileira aos parâmetros europeus. Desta forma, grande importância foi dada a assuntos como saúde pública, controle sanitário e regulamentação das habitações populares - os cortiços. O saber e a ciência passavam a ser os parâmetros, em torno do qual se organizava o imaginário dominante brasileiro, pautado no binômio civilização e progresso. Nesse sentido, os médicos, sanitaristas, engenheiros, técnicos tiveram papel relevante, na consolidação e difusão dessa concepção de modernidade, que supunha uma incorporação de todos em direção ao progresso, numa inserção do Brasil na Belle Epòque57. Logo após a Proclamação da República, em 1889, e a instalação do regime

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Renato ORTIZ, Cultura Brasileira e Identidade Nacional. Nicolau SEVCENKO, Literatura como missão. 61

republicano, o Rio de Janeiro passou por uma completa remodelação urbana, em que foram priorizadas obras de melhoramento do porto e do cais comercial, abertura de avenidas, demolição de cortiços do centro da cidade. Tudo tendo como pressuposto as idéias de higienização propagadas e colocadas em ação por Osvaldo Cruz. Era necessário modernizar e embelezar a cidade e, para tanto, a higienização do espaço urbano passou a ser indispensável. Uma higienização com funções estéticas, médicas mas também étnicas e sociais: a “limpeza” da cidade supunha um afastamento dos pobres e dos negros, das camadas baixas, enfim, que por ali viviam, circulavam e habitavam ruas e cortiços. Durante a gestão municipal de Pereira Passos (1903-1906), o Rio passou por uma grande reforma, onde procurava-se, por um lado, enfrentar os problemas de insalubridade urbana e, por outro, embelezar a capital federal. Para isso, dois engenheiros (cujos nomes estão perpetuados em duas famosas avenidas cariocas) colaboraram com seus projetos de planificação urbana: Paulo de Frontin e Francisco Bicalho. Dentre suas principais obras, estão a abertura da Avenida Central (Avenida Rio Branco a partir de 1912) - uma artéria rasgada de mar a mar do Largo da Prainha à Praia de Santa Luzia (hoje, respectivamente, Praça Mauá e Praça Paris) -, a construção do Cais do Porto num aterro da Praça Mauá até a embocadura do Canal do Mangue, a extensão até lá dos trilhos da Central e da Leopoldina e a construção da Avenida Rodrigues Alves, da Beira Mar, entre outras obras. Ao mesmo tempo, procurava-se alargar as estreitas e insalubres ruas do centro, como a Assembléia, a Carioca, a Visconde do Rio Branco, a Frei Caneca, a Uruguaiana, só para citar algumas. A preocupação com o embelezamento da cidade vislumbrou a construção de jardins como o Campo de São Cristóvão assim como a remodelação e ampliação das praças Tiradentes, XV de Novembro, entre outras. Nesse mesmo sentido de planificação urbana, de abertura de vias e artérias que ligassem a cidade, a administração Pereira Passos deu atenção à melhoria do acesso à zona sul, construindo a Avenida Beira Mar que, ligando a antiga praia de Santa Luzia até o Botafogo, foi edificada em aterros. A avenida passou a ligar os diversos bairros da zona sul e facilitou a criação de outros. Nesse período, foi dada atenção à melhoria das condições de higiene, saneamento e estética da Lagoa Rodrigo de Freitas, configurando um novo traçado aos rios da região, construindo praças e

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jardins abertos. Em 1906, foi aberto o segundo túnel até Copacabana58, onde foi construída a Avenida Atlântica ao longo de toda a praia, dando origem ao bairro que mais tarde seria o locus privilegiado da Bossa Nova e de outras expressões culturais. Mas, voltando ao início do século, percebe-se que a zona sul e Copacabana ainda não eram territórios musicais, Isto só viria a ocorrer na década de 40. Naquele momento, o território musical carioca por excelência era o centro e suas circunvizinhanças59. Até aqui, falou-se da música dos negros, a música de origem africana ser designada por diferentes nomes, tendo em comum a umbigada, o ritmo sincopado que dá origem a uma dança requebrada, identificada sempre por um acompanhamento feito por batuques (nome genérico dado a todos os gêneros africanos ou praticados por negros). A partir do início do século XX, é uma outra palavra geral que se teria para designar estas sonoridades – o samba. Esta palavra não é nova, estando presente em documentos diversos desde o século XVIII, referindo-se sempre ao universo cultural negro, ligada a uma tradição rural e não urbana. Quando, no início do século, passou-se a denominar o ritmo “urbano carioca popular de origem africana” que se praticava como samba, isto indicava um duplo movimento: um, ligado ao folclórico das raízes coloniais rurais (principalmente da Bahia), de se denominar samba o que até aí era ligado ao “batuque”; e outro, ligado ao popular urbano carioca, substituindo o maxixe (ou até o tango brasileiro). Essa questão é importante na medida em que salienta um tentativa de definição (depois de inúmeras outras definições e redefinições) de um gênero musical com dupla filiação: uma folclórica, rural, colonial e outra popular, urbana, fruto da modernidade da virada do século. Estas duas filiações fundidas numa única palavra, num único gênero musical, para além de deixarem entrever a dificuldade de se estabelecer separações entre folclórico, popular e mais tarde, massivo, apontando para a miscigenação cultural existente, denota também uma “convergência ideológica”60 do que se queria como o ritmo nacional por excelência – o que só aconteceria, de fato, na década de 30. Esse processo ressalta o quanto a cidade vivia num ambiente difuso de convivência mútua entre o velho e o novo. Formas tradicionais de visões de mundo, práticas e valores e as novas formas culturais emergentes, em que a música popular transitava entre o universo rural ainda 58

O primeiro túnel, o Túnel Velho, foi construído em 1892. O segundo, o do Leme, ficou conhecido como Túnel Novo. Eneida BERGER e Paulo BERGER, Copacabana: história dos subúrbios. 59 Simone Luci PEREIRA, Memórias de Copacabana: um hotel-monumento. Revista Cultura Vozes, n.5, v.91, p.137148. 60 Carlos SANDRONI, ibidem, passim. 63

sedimentado no dia-a-dia da cidade e o mundo urbano em construção. Mas é preciso entender quais as relações que se davam entre estes traços folclóricos e populares num mesmo gênero, o que remete às relações de origem de cada vertente – a primeira na Bahia, e a segunda no Rio de Janeiro. Porém, faz-se necessário entender também a história social desta relação entre a cultura baiana e carioca no Rio de Janeiro na virada do século. Compreendendo a trajetória histórica carioca neste momento, evidencia-se um espaço marcado por um cosmopolitismo repleto de contradições, fragmentado entre o universo rural e o mundo urbano, em que despontariam tensões sociais e culturais elaboradas pelas experiências de negros, imigrantes e indivíduos vindos do campo, a maioria sobrevivendo como sub-empregados, desempregados, ambulantes, pequenos artesãos, operários, etc. Toda esta trama social proporcionou conflitos/encontros sócio-culturais muito peculiares, que acabaram por dar um tom à trilha sonora do cotidiano carioca, uma sociedade repleta de tensões e contradições que se intensificaram na nova realidade em construção a partir de então. Aqui, é necessário lembrar que a música popular é parte de uma realidade urbana com certa diversificação social. No contexto de um país em transformação passando por mudanças econômicas e sociais a partir do ciclo cafeeiro, explicitando um ambiente que se modificava rápida e intensamente, fazse presente também uma vasta população empobrecida e miserável à margem deste processo. Ora, as malhas urbanas não possuindo condições de absorvê-los em atividades produtivas (pois eram negros recém-libertos, imigrantes e migrantes nordestinos), acaba por expulsá-los, fazendo com que passassem a viver numa espécie de semi-legalidade de precária cidadania ao se incorporarem ao pequeno comércio de rua e ao sub-emprego61. Vale lembrar que cada um desses grupos e ainda os cidadãos brancos da cidade já traziam consigo um conjunto de experiências sociais específicas e que, ao se encontrarem nas ruas e em espaços públicos, surgiram diversas situações de tensão, em que as representações culturais estabeleceriam a luta pela permanência e sobrevivência por meio das misturas, associações, formas de solidariedades e conflitos. Parece ter sido justamente nas fusões e confrontos entre essas diversas experiências que o samba iria se estabelecer e se reproduzir. O processo de constituição da música carioca popular oscilava na instabilidade das relações e mútuas influências entre o universo rural e as formas de representação proporcionadas pelo mundo urbano. Isso fica ainda mais claro quando se lembra (como já foi dito) das transformações desta cidade em expansão, que passava por mudanças 61

José M. CARVALHO, Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. 64

estruturais, tendo em seguida ocorrido uma ação e um controle do poder público municipal no sentido de estabelecer uma “nova ordem urbana” preocupada com o embelezamento, o saneamento e a normatização deste espaço, excluindo os personagens que não se conformavam a este projeto, como mendigos, ambulantes, negros, mulatos, nordestinos, prostitutas e os habitantes do cortiços, perfazendo assim, uma prática de segregação, que resultou na divisão da cidade em áreas nobres e pobres. Aí se ressaltam os espaços de convivência que passaram a ser formados pelos excluídos deste projeto. Os muitos nordestinos baianos que migraram para o Rio acabavam por formar uma certa “comunidade baiana” na cidade, mais precisamente nos bairros da região portuária, ligados por fortes laços de solidariedade. Isso se deve em grande parte pelo poder agregador das famosas “tias”, velhas baianas que exerciam liderança na organização da família, da religião e do lazer, promovendo reuniões e ajuntamentos em suas casas. Dentre elas, estão Tia Amélia e Tia Perciliana, mães de Donga e de João da Baiana, respectivamente, que se tornaram famosos sambistas. Foi na casa de Tia Ciata, famosa na história do samba por promover reuniões em sua casa na Praça Onze, que, em 1917 foi composto coletivamente (embora seja Donga seu autor oficial) o primeiro samba gravado: Pelo telefone. Foram estes sujeitos, nas reuniões das tias baianas, nas ruas e nos botequins, que criaram uma produção musical classificada e batizada como samba. Assim, nestes primeiros tempos, samba tinha ainda um sentido de festa, como atesta Oneyda Alvarenga. Era qualquer baile popular com música, dança, comida, bebida, candomblé, e onde tudo era concebido de forma não-separada, expressando aspectos variados da cultura africana, sendo espaço de sociabilidade entre estes sujeitos. Vê-se que aqui se delineia um perfil das festas ou bailes populares no Rio de Janeiro, indicando quais eram esses outros locais de convivência que as camadas populares vinham constituindo, criando novos modos de reprodução e difusão de sua cultura, num momento em que ainda não haviam se configurado as efetivas modificações produzidas pelos meios

de reprodução gerados pela indústria radiofônica e

fonográfica. No entanto, há que se ter cuidado para não cair na armadilha analítica de se compreender o mundo das reuniões de Tia Ciata como algo isolado, impermeável, fechado e, por isso, puro e autêntico, em que haveria, de um lado, o mundo do samba e, de outro, o mundo dos que são exteriores a ele. O que se percebe é que muito do mito que se criou em torno da casa de Tia Ciata tem a ver com o prestígio e a boa fama que ela gozava na sociedade carioca (ainda que em apenas

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algumas parcelas desta). Esposa de um negro baiano que chegou a estudar medicina e trabalhava no gabinete do chefe da polícia da capital federal, ela também era uma referência do universo negro para as elites cariocas: na forma como tecia suas relações, sustentava a formação de uma identidade negra baiana no Rio de Janeiro, ligada ao quitutes, aos orixás, à confecção de roupas e alegorias de Carnaval. Isto aponta para uma não-separação absoluta entre o mundo popular do samba e a pequena burguesia urbana, e parece delinear formas de convivência entre as camadas sociais no Rio de Janeiro, onde a própria espacialidade da configuração urbana proporciona o encontro, o embate e também as maneiras de serem edificadas formas de misturas, pois a moradia das classes populares não fica apenas nas periferias ou subúrbios da cidade mas na própria zona sul atual do Rio, ocupada por condomínios da elite mas também por favelas, o que permite um certo tipo de convivência. Não se trata aqui de afirmar que esta convivência, por este motivo, seja pacífica, ou que se encontrem abrandadas as diferenças sociais, o que se quer é salientar que há o encontro, a percepção da existência do outro de maneira muito mais facilitada, como parte do cotidiano carioca, configurando relações de hegemonia e não tanto de isolamento. Este aspecto iria se constituir, inclusive, em uma das matrizes culturais do encontro entre a Bossa Nova e o samba nos anos 60, em que passa a fazer parte dos estilos de vida das camadas médias intelectualizadas da zona sul carioca um certo flerte com o universo popular, o samba, o Carnaval e suas escolas (o marco paradigmático é a trajetória de Nara Leão). Outro aspecto atesta uma permeabilidade de influências entre diferentes camadas sociais é a organização espacial das festas nas casas das tias baianas. Havia sempre o batuque nos fundos, o terreiro onde acontecia uma espécie de dança mais “primitiva” e “violenta”, algo próximo à capoeira; o samba dançado na sala de jantar, o que significa que ele, como festa com música africana, ficava neste ambiente mais recolhido da casa; e havia também o baile na sala de visitas, que era o local onde os pares dançavam separados. Ora, isto indica uma tentativa de organizar em espaços concretos diferenciados, práticas culturais também diferenciadas, onde da sala de visitas até o terreiro, penetrava-se mais e mais nas raízes da cultura africana e nas práticas cotidianas destes sujeitos. E mais, indica que na sala de visitas, talvez pudessem ser recebidas pessoas cujo acesso à sala de jantar seria negado e,

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inversamente, na intimidade da sala de jantar, as pessoas da casa poderiam se entregar às práticas e comportamentos talvez intoleráveis às visitas formais. A busca por delimitar espaços privados das casas com “biombos culturais”62, como diz Muniz Sodré, era uma tentativa por preservar a intimidade, passando de lugares mais formais, para outros, menos formais e mais “autênticos”. Isso denota, por um lado, que se havia uma preocupação em fazer na sala de visitas um ambiente mais formal e comportado, era porque pessoas alheias àquele universo popular negro freqüentavam também a casa. Por outro lado, indica o quanto os traços europeus e elitizados de concepção arquitetônica e espacial das casas também estavam sendo incorporados nestes locais, onde buscava-se a intimidade, a separação entre áreas mais privadas da casa e outras mais livres à circulação geral. Tinhorão63 conta inclusive que, ao contrário do Café Paraíso e de outros bares que eram pontos de encontro dos músicos das camadas populares, a casa de Tia Ciata não recebia apenas boêmios e negros, mas também profissionais como marceneiros, alfaiates, pequenos funcionários públicos, baianos bem sucedidos no Rio e até repórteres brancos, como é o caso de Mauro de Almeida, autor da letra de Pelo telefone, segundo foi registrado oficialmente. No entanto, vale lembrar novamente, não se pode encarar estes “biombos” como uma interdição, mas muito mais como delimitador de fronteiras, que são, no entanto, fluidas, sutis, permeáveis ou como filtros que selecionam o que deve ser transportado de um lado a outro. Na bibliografia sobre o samba, predominam abordagens que polarizam a visão do samba na sociedade, colocando-o como algo isolado, cultura resistente à dominante, reprimido como algo que tinha que se realizar e ser praticado escondido. Essas teses podem não se revelar consistentes, na medida do que foi formulado acima. Hermano Vianna64 afirma que o grande “mistério” do samba é exatamente compreender de que maneira este gênero musical foi aceito e incorporado pelas elites como coisa de negros. Parece que desde seus primórdios, sempre existiu entre samba e elite um interesse e apoio por parte das últimas, convivendo com a repressão e um certo preconceito. O samba e a cultura africana não foram somente objeto de perseguição, mas parceiros de um diálogo cultural de influências recíprocas como uma espécie de miscigenação, já demonstrada no lundu. Perceber as mediações existentes neste processo é o que há de mais desafiador no estudo do samba. 62

Muniz SODRÉ, Samba, o dono do corpo. José Ramos TINHORÃO, Pequena História da Música Popular Brasileira. 64 Hermano VIANNA, O mistério do samba. 63

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É desse modo que o ouvinte na cidade do Rio de Janeiro vai ganhando contornos próprios, constituindo, desde o início do século XX, uma escuta musical mais aberta, incorporadora de características diversas, em que o nomadismo está presente, mas não sem restrições, conflitos e hegemonias. Quando se vê o bairro da Lapa atualmente e sua ambiência um tanto cosmopolita, onde convivem bares e casas noturnas de diversos estilos musicais, com sujeitos advindos de diferentes locais da cidade e de diferentes gerações, isso fica mais claro. Stuart Hall65, ao trabalhar com o conceito gramsciano de hegemonia, colaborou para a reformulação e crítica de uma teoria funcionalista sobre os meios de comunicação de massas como poderosos e absolutos. Ele defende a necessidade de se pensar – quando se trata de ideologia e do poder – em negociações, compromissos e mediações, evitando a idéia de alinhar mecanicamente as questões culturais e ideológicas às de classe e de base econômica. Segundo Hall, os processos culturais envolvem produção, circulação, distribuição/consumo e reprodução, assumindo formas próprias, ainda que articuladas entre si e mais, é necessário definir maneiras de decodificação das mensagens, entre elas a negociação como uma mescla de elementos de oposição e adaptação, um misto de lógicas contraditórias que representam tanto os valores dominantes, como também as apropriações por parte dos receptores relacionadas com suas formas de vida. Antonio Gramsci66 destaca o fato de não se poder compreender o popular como algo produzido por, pelo povo ou para o povo, mas sim como aquilo que é adotado pelo povo, apropriado por ele, por ser adequado às suas concepções de mundo. Vem daí a noção de não se pensar a cultura popular como algo em si mesmo, algo isolado, autônomo, mas situada num campo mais global, não podendo ser compreendida como pura e livre de contaminações. Há que se notar que a relação da cultura popular com outras, é uma relação de forças, de luta por hegemonia dentro do campo cultural e não algo que já possui as relações de dominação préestabelecidas, como muitas tendências supõem. Quando argumenta que não se pode pensar em blocos isolados, Gramsci não se refere à cultura popular como resistência, como contestatória à cultura hegemônica, mas fala sim de apropriação e decodificação, fala de um campo de luta pela construção da hegemonia movediço, transitório, onde se ganha e se perde posições, enfim, um campo onde nada é dado previamente.

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Stuart HALL, Encoding/Decoding. In : ______ et alli. Culture, Media, Language. Antonio GRAMSCI, Literatura e vida nacional. E também ______ Cartas do cárcere. 68

Nesse sentido, é possível pensar a música urbana carioca, e neste caso específico, o samba, como manifestação popular sim, mas um popular constituído historicamente em relação com o folclórico, com o rural, e também fruto do urbano, de um incipiente cosmopolitismo carioca da virada do século em que conviviam influências culturais rurais, negras, européias e também se percebia um grande nível de diversificação econômica e social. Tomado dessa forma, o samba é exemplar para se pensar numa idéia de “cultura híbrida”67, como sugere Nestor Canclini, aludindo este hibridismo à idéia de uma cidade, onde entra-se pelo popular, sai-se pelo massivo, passa-se pelo erudito, cruza-se com o rural/folclórico. Assim é que se compreende na cidade do Rio de Janeiro, bem como as manifestações culturais nela inscritas, uma trilha sonora das experiências cotidianas das camadas populares. Só assim é que se pode compreender o momento em que o samba se tornou mais popularmente conhecido socialmente, quando de sua primeira gravação em 1917. O primeiro aspecto a chamar a atenção é que a música tem como autor Donga, um dos muitos frequentadores das reuniões em casa de Tia Ciata. No entanto, o que se sabe, é que os sambas ali compostos eram coletivos, feitos por todos juntos, improvisando uma melodia, alterando uma nota ou outra, acrescentando um verso, enfim, compondo conjuntamente, como mais uma atividade de sociabilidade. A definição da autoria se deve às necessidades de um mercado fonográfico em formação, em que a figura do autor era importante para dar legitimidade à nova música, e permitir seu registro na Biblioteca Nacional, garantindo os direitos autorais ao seu compositor. Isso é fundamental, pois compreender a história musical do Brasil até aqui, era tarefa em que se supunha não encontrar (ou encontrar muito dificilmente) o autor das músicas. As reuniões musicais, as apresentações, os encontros enfim, eram eventos coletivos, onde os músicos reuniam-se como amadores, num tom informal e de sociabilidade, sem tanta preocupação comercial ou de mercado, pois a concepção de autoria individual não se mostrava como algo que merecesse atenção por parte dos músicos, uma vez que a música não era propriamente um meio de vida para aqueles frequentadores das reuniões. A partir daqui, com o sucesso alcançado pela gravação, a busca pela afirmação da autoria, com o registro do direito autoral, passou a ser cada vez mais constante e assumida, gerando inclusive brigas entre músicos como Donga e Sinhô. O sucesso da música deveu-se também aos esforços do mercado fonográfico em lançá-la para o Carnaval de 1917 (a letra sofreu alterações, passando a citar o Carnaval). Esta época do 67

Nestor G. CANCLINI, Culturas Híbridas. 69

ano era o momento ideal, no Rio de Janeiro, para o lançamento de canções que almejavam o sucesso popular. Antes chamado “entrudo”, o Carnaval era uma festa que praticamente inexistia nos primeiros séculos de colonização, sendo praticado apenas algo parecido em datas festivas oficiais. Figurando como reminiscência das festas pagãs greco-romanas, sugeria dias em que as regras morais e de conduta seriam afrouxadas, onde escravos saíam nas ruas sujando-se uns aos outros com farinha e polvilho e as famílias da elite ficavam em casa comendo, bebendo, jogando tinas d’água em quem passasse na janela. Porém, não havia música, cantiga ou mesmo um ritmo musical que desse a tônica da festa. Isto permaneceu assim até finais do século XIX, quando as novas camadas médias urbanas começaram a buscar, nestes dias, novas formas de diversão que não se assemelhassem à promiscuidade das comemorações dos negros. Começaram a promover bailes de Carnaval, onde dançavam a polca, dança trazida da Europa e a primeira praticada nos salões carnavalescos do Brasil. Ao mesmo tempo, se instituiu outra prática de Carnaval: o desfile de carros alegóricos. Já entre as classes populares, na tentativa de fugir à repressão policial contra a maneira de brincar nos dias do entrudo, buscaram na tradição religiosa das procissões uma nova maneira de folia: os cordões, formados por uma massa compacta de fantasiados, ao som de instrumentos de percussão, avançando pelas ruas de maneira um tanto anárquica, uma vez que cada folião dançava ao seu jeito. Desta maneira, o Carnaval, tornando-se uma festa cada vez mais popular nos primeiros anos do século XX, necessitava também de um ritmo que o identificasse e o organizasse, pois as músicas reuniam um pouco de tudo: trechos de árias de ópera, músicas folclóricas do nordeste, entre outras. O samba, juntamente com a marcha, foram ritmos muito bem aceitos na musicalidade carioca, entre outros motivos, por darem um rosto, uma identidade ao Carnaval, por se tornarem as “músicas de Carnaval”, pois nos primeiros anos do século XX, essa festa parecia expressar as contradições, multiplicidades e a diversidade social da cidade, onde se misturavam elementos de diferentes matrizes culturais. Haviam as camadas baixas que desfilavam na Praça Onze, as camadas médias que desfilavam em cordões (estes também já incorporados por esta parcela da população) na Avenida Central (hoje Rio Branco) e os ricos que desfilavam nos corsos com automóveis e brincavam nos grandes clubes. Quanto à marcha, vale dizer que ela, com seu compasso binário, marcando o tempo forte, mostrava-se muito adequada ao cortejo de rua, dando ritmo aos passos dos foliões. Vale lembrar que o samba, a partir de 1917, embora tenha alcançado maior popularidade, soava muito rude e

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estranho aos ouvidos das classes médias – devido ao seu toque muito amaxixado. Camadas estas, muito mais ligadas a uma tradição melódica e rítmica mais conservadora, ligada à polca européia, do que ao ritmo sincopado dos negros. Nesse sentido, é que a marcha ou “marchinha” acabou sendo incorporada nos bailes e festas das camadas médias e altas concomitantemente ao aparecimento do samba, como alternativa e até como negação ao ritmo, passando a se desenvolver nos anos 20 e continuando por décadas nos carnavais dos clubes cariocas, tendo também influências do ragtime americano. Desta forma, tem-se a instauração de um ritmo oficial para o Carnaval e a fixação deste como grande lançador de gêneros e de músicas novas, momento em que se passou a compor, gravar e lançar músicas para que fizessem sucesso nesta época do ano. Delineia-se aí um incipiente mercado fonográfico, que será melhor discutido adiante. Detendo-se um pouco mais nos detalhes da gravação do primeiro samba, é possível perceber a modificação de elementos musicais que denotam uma ação do mercado na arte e na cultura. Sandroni68 cita depoimentos dos primeiros sambistas, contando que tiveram – na hora de gravar o primeiro samba – de escolher algo do repertório coletivo com maiores possibilidades de ser aceito na sociedade. Isto pode revelar uma escolha de letras, imaginários e elementos culturais mais adaptados e “arrumados” para virem à tona e terem lançamento fora do circuito das festas das tias baianas. Moldar estes elementos culturais para se adequarem aos meios de divulgação existentes, significava tanto escrevê-los em partituras para piano, identificar-lhes um autor, fixarlhe o gênero ao qual pertencia (o que era inscrito tanto na partitura como no disco), fazer-lhe arranjos para a banda, como também, mudar-lhe inclusive a sua letra. Quanto a este último aspecto convém salientar que a letra original foi modificada por diferentes motivos. Sandroni ressalta que, ao invés de “o chefe da polícia pelo telefone manda me avisar que na Carioca tem uma roleta para se jogar”, foi gravado e impresso “o chefe da folia pelo telefone manda me avisar que com alegria não se questione para se brincar”. Se em lugar de “chefe da polícia” foi colocado “chefe da folia”, isso tem a ver tanto com a tentativa de ressaltar o Carnaval na letra quanto com as intenções mercadológicas de fixar o novo gênero como música associada a este evento assim como também foi uma forma de amenizar uma crítica ao poder e às autoridades, com a letra sugerindo uma possível indiferença ou complacência por parte da polícia frente ao jogo, que era proibido. Outros versos foram mudados em busca de uma rima 68

Carlos SANDRONI, Feitiço dcente. 71

formal, obedecendo às regras de rima tradicionais, algo ausente na letra original por não ser uma preocupação dos sambistas. Verifica-se, desse modo, que o samba, ao entrar para o mercado, modifica-se, perde alguns elementos mais originais, autênticos, ingênuos, espontâneos, fruto da sociabilidade e da informalidade das reuniões na Praça Onze. Como atesta Claudia Neiva Matos69, deixa de ter apenas valor de uso e passa a ter valor de troca, ou seja valor comercial, produto de um mercado fonográfico em vias de se industrializar. Assim, passa a seguir as regras também de um campo cultural em busca de hegemonia, em busca de se afirmar como música popular por excelência, o que traz, invariavelmente, a tentativa de se enquadrar à arte, à produção cultural com regras estabelecidas pelo mercado, ainda que este fosse incipiente70. Entretanto, não se procura firmar aqui uma visão purista acerca da cultura, resvalando numa análise que vê na gravação do primeiro samba, exatamente o momento de sua morte, ou seja, o fim de sua característica espontânea, autêntica, amadora e, por isso, melhor. O que se compreende é que o samba se modificou, sim, alterou-se, ajustou-se, adaptou-se a exigências do mercado, mas continuou a guardar traços de sua matriz cultural, da cultura negra das camadas baixas do Rio de Janeiro, sendo uma das expressões de sua cultura. Mesmo modificado, híbrido, miscigenado, o samba continuaria ativo, inovador, revelando elementos populares que nos lançam interpelações a partir da cultura massiva. Mesmo sem os elementos mitificados da origem, da raiz, ou com estes elementos muito menos aparentes, a cultura negra e o samba se tornariam “popular-massivos”71, ou seja, como exemplares de um campo cultural de contradições, movediço, fluido, onde figuram trabalho e ócio, legalidade e ilegalidade, ordem e resistência, num circuito de entrelaçamentos, de idas e vindas, superposições evidenciadoras de uma outra lógica, repleta de estratégias e táticas que se revelam como o caminho utilizado pelas classes dominadas para o reconhecimento social. Importante destacar aqui um debate que perdurou até a década de 20 em relação ao samba, época em que se pode afirmar como sendo sua fase de definição: a briga existente entre Sinhô e outros músicos fundadores do samba quanto a sua filiação baiana ou sua peculiaridade carioca. Sinhô era um músico considerado erudito, se comparado aos outros, pois conhecia teoria musical, era pianista e foi uma das grandes figuras que ajudaram a consolidar e difundir o samba. 69

Claudia Neiva MATOS, Acertei no Milhar: samba e malandragem no tempo de Getúlio. Pierre BOURDIEU, As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. 71 Jesús MARTIN-BARBERO, Dos meios às mediações. 70

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Muito por sua causa, o gênero passou a ser identificado com a cidade do Rio de Janeiro, num momento em que estava ainda realmente circunscrito ao espaço da cidade, e também por isso, guardando uma certa identidade carioca como gênero musical nascido nesta cidade. Esta filiação era motivo de controvérsias. Entre os próprios sambistas, havia a ala que buscava a filiação baiana da música, ao que Sinhô (na verdade José Barbosa da Silva), se contrapunha72. Coincidentemente com o falecimento de Sinhô, em 1930, o samba entraria em outra fase, a fase de efetivação, onde o debate não se dava mais em função de sua filiação baiana ou carioca, mas sim em torno de seu caráter nacional, como expressão brasileira, não tendo filiação regional dentro do projeto nacional integrador varguista. A partir da década de 20, tem-se o desenvolvimento e a paulatina aceitação deste novo gênero musical, ainda em processo de definição. Note-se aqui a presença de um fator muito importante na implementação de uma cultura massiva no país (efetivada somente na década de 40), que foi o surgimento do rádio. Introduzido no Brasil em 1922, quando da abertura da Exposição Mundial, foi o despertar para uma novidade que se tornaria um dos meios comunicacionais de maior alcance e mais popular. No dia 7 de setembro deste ano, foram distribuídos 80 rádios-galena para captar o discurso do então presidente Epitácio Pessoa na abertura da Exposição, no Rio de Janeiro. O número de emissoras e de aparelhos receptores cresceu rapidamente. Nos anos 20, existiam 19 emissoras; em 1940, elas já somavam 78; em 1944, 106; em 1945, 111; e, em 1950, 300. Do mesmo modo, o número de radio-receptores, que era de 30 mil em 1926, chegou a 659.762 em 1942. Em 1955, trinta e três anos depois da primeira transmissão, existiam, no Brasil, 477 emissoras de rádio, e o número de aparelhos receptores atingia quase um milhão73. Até a década de 30, o rádio no Brasil se organizava basicamente em termos nãocomerciais, com as emissoras se constituindo em sociedades e clubes cujas programações eram sobretudo de cunho erudito e lítero-musical. Mesmo considerando o seu crescimento em números, na década de 20 ainda existiam poucos aparelhos e o ouvinte era obrigado a pagar uma taxa de contribuição para o Estado pelo uso das ondas. Esta década configura-se, assim, como um período de experimentação do novo veículo, não podendo ser considerada uma organização de

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Edigar de ALENCAR, Nosso Sinhô do samba. Luciano KLOCKNEY, O Repórter Esso e a Globalização: a produção de sentido no primeiro noticiário radiofônico mundial. Texto apresentado no GT “Mídia Sonora” no XXIV Congresso da INTERCOM – Campo Grande /MS – setembro 2001. 73

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tipo empresarial, uma vez que o espaço de irradiação sofria contínuas interrupções e não havia programação para todos os horários. Na década de 30, com a introdução dos rádios de válvula, há uma difusão mais ampla junto a um público ouvinte agora em crescimento por conta da queda nos custos de produção dos aparelhos e de uma mudança, em 1932, na legislação que passou a permitir a publicidade no rádio, fixada inicialmente em 10% da programação total74. Isso acabou por transformar o caráter do rádio no Brasil, pois, deixando sua feição mais amadora e transformando-se em uma empresa comercial, anunciantes se tornaram suportes eficazes no financiamento do funcionamento das emissoras, que podiam assim, fixar e estruturar sua programação, com noticiários, programas de auditório, radionovelas, programação musical, concurso de calouros, entre outros. Em outro sentido, o rádio vai assumindo uma função de integração nacional, ligando a todos a partir de uma voz sem rosto. Um som transmitido no espaço, podendo ser ouvido nos diferentes ambientes das casas, para onde o som, os signos periódicos se remetem ao ouvir. Lilian Zaremba destaca que o rádio – de acordo com Marshall McLuhan – pode ser visto como implosão eletrônica, tambor tribal e sistema nervoso de informação. E acrescenta: “de tal forma incrustado no cotidiano, o rádio extrapola o tradicional aparato dos sistemas de comunicação, se apresentando como campo instrumental da ciência, arte e tecnologia (...) um processo [a comunicação radiofônica] que pode ser considerado centenário (...) “a mensagem do rádio é uma mensagem de ressonância e de implosão unificada e violenta. (...) McLuhan, ao mesmo tempo em que desenha a mensagem radiofônica como sistema tecnológico capaz de se constituir como rede poderosa na reversão da direção e sentido da civilização ocidental letrada, admite ser a experiência radiofônica algo particular, onde as profundidades subliminares estão carregadas daqueles ecos ressonantes das trombetas 75 tribais com seu poder de transformar a psique e a sociedade numa única câmara de eco.”

Torna-se, assim, importante compreender a dimensão que a sonoridade ocupa na vida do ser humano, pois é a partir das propriedades e particularidades do som que se funda a relação dos indivíduos com as vozes e os objetos sonoros que vêm do rádio. Como afirma Mônica Nunes76, o rádio, como veículo de comunicação e “ser da cultura”, parece não exercer apenas a função de informar com rapidez e instantaneidade e tampouco se reduzir ao entretenimento, mas também conformar a existência de um outro universo significante, moldado a partir da voz, do som e do ouvir, em que vozes e sons constróem textualidades orais que veiculam signos míticos aptos a

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Renato ORTIZ, A moderna tradição brasileira. Lilian ZAREMBA, Idéia de rádio entre olhos e ouvidos. Revista Ciberlegenda (Prog. de Pós-Graduação em Comuincação da UFF). n.2, 1999. (http://www.uff.br/mestcii/zaremba1.htm) 76 Mônica R. Ferrari NUNES. O mito no rádio : a voz e os signos de renovação periódica.

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ritualizar a escuta radiofônica. Por meio disso, o rádio teria a função de atenuador das perdas trazidas pelo tempo, pela modernidade, pela aceleração da história, trazendo aos indivíduos o retorno ao presente absoluto. Neste momento também, verificava-se o crescimento da indústria fonográfica. Esta, depois de iniciar no Brasil com o repertório clássico/erudito, alguns tangos argentinos e ritmos americanos como jazz e foxtrot, neste momento, já descobria e começava a prosperar com a música popular, com destaque para as marchinhas e sambas cariocas de Carnaval, além de algumas canções sertanejas paulistas. Mas, segundo Nicolau Sevcenko77, foi quando as gravadoras se cruzaram com o potencial do rádio na difusão da música popular que a grande “mágica” se deu, gerando o início da era de ouro do rádio, em que a vibração do público, aos poucos, se ampliava. O rádio se valia dos discos, produtos das gravadoras, que usavam o primeiro como divulgador de sua produção, sendo que muitos proprietários das gravadoras acabaram por comprar também emissoras de rádio. Nesse momento, a produção expandia-se de forma admirável, beneficiada pelo desenvolvimento econômico do setor urbano, em que as tiragens de discos tornavam-se cada vez maiores. Em meio a isso, é importante atentar para o modo como estas mídias sonoras poderiam estar se disseminando para os seus ouvintes, nas suas sensibilidades, nas suas formas de percepção e apreensão do real, salientando uma escuta do mundo mediada pela técnica. E em relação à música não é diferente, pois estas mídias afetam a percepção, as formas de se escutar e de se relacionar com as canções. Segundo Heloísa Valente, “se antes, cada som da paisagem sonora era único e irrepetível, as formas de mediatização técnica do som que foram surgindo e se aperfeiçoando, ao longo dos anos, abalaram tanto a natureza, quanto a produção e difusão do som, uma vez que possibilitavam, pela primeira vez na história, que este se libertasse do espaço e do tempo. Com o advento das mídias, uma obra musical pode, a princípio, soar em qualquer espaço e nas circunstâncias as mais diversas. Por isso, a canção popular urbana comercial, composta para ser fixada tecnicamente (gravada) e transmitida pelas ondas elétricas e eletromagnéticas (telefonia), apresenta características muito peculiares que a diferem da canção popular tradicional ou da canção erudita, especialmente no que diz respeito à sua performance.”78

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Nicolau SEVCENKO, A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: ______ (Org). História da vida privada no Brasil: República - da Belle Epòque à Era do Rádio. v 3. 78 Heloisa de Araújo Duarte VALENTE, As vozes da canção na mídia. São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). PUC/SP, p.29. 75

Nestas primeiras décadas do século XX, vivendo na cidade que se expandia cada vez mais, transformava-se, crescia, expunha as diferenças sociais, permeada pela técnica, com a eletricidade, o telefone, o fonógrafo, o rádio, este ouvinte das canções não deve ser encarado como massa amorfa no cenário metropolitano, massacrada por todos estes elementos, perdida na multidão. É importante considerar que a sua subjetividade parecia trafegar entre a atração e o medo, o espanto e o choque, configurando uma personalidade cada vez mais “sofisticada” do homem das cidades – como dizia Simmel79 – o qual filtra, seleciona e elabora um “ar blasé” na tentativa de se proteger do turbilhão da vida moderna. Uma subjetividade, assim, que encontra a brecha contra a massificação, contra o perder-se na multidão, na sua própria fragmentação, sendo uma subjetividade moderna, que reorganiza os inúmeros choques cotidianos, buscando a experiência que vai aparentemente se perdendo. Talvez, no lugar da técnica, conceito aqui tão utilizado, pudesse se falar em “tecnicidades”80, para ressaltar a apreensão da técnica na subjetividade, pensando nas transformações da sensibilidade e dos modos de percepção que surgem nos indivíduos em função da técnica, re-organizando experiências, modos de ouvir, escutas do mundo. Com este desenvolvimento das mídias sonoras, não demorou até o Estado populista, que se instaurava na década de 30 no Brasil, descobrir no rádio um eficaz veículo para a afirmação de seu poder, passando a se utilizar das qualidades sensíveis da enunciação sonora, em que – como diz o historiador Antônio Pedro Tota – o receptor vivia um momento no qual vários elementos e mecanismos contribuíam para passar-lhe dados necessários ao fortalecimento de uma posição ideológica indispensável ao novo status quo, uma ideologia identificada com o trabalho e com a construção de um Brasil grande, um país do futuro81. O Estado acabou por provocar, assim, a popularização do samba – numa política nacionalista de difusão radiofônica de um sentimento nacional em busca das raízes culturais do Brasil –, usado para legitimar uma cultura nacional por excelência. Um movimento em que “do combate ao samba” dos primeiros tempos do século, passou-se

a utilizar um “samba de

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Georg SIMMEL, A metrópole e a vida mental. In: Otávio Guilherme VELHO (Org.). O fenômeno urbano. Jesús MARTIN-BARBERO, Arte, comunicação e tecnicidade no final do século. Margem- Tecnologia e Cultura, n.8, 1999. 81 Antônio Pedro TOTA. Samba da Legitimidade. São Paulo, 1980. Dissertação (Mestrado em História). FFLCHUSP.

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combate”82, com uso político e ideológico. Passa a haver a partir daí, o intuito de integrar o popular e o folclórico, buscando na raiz negra e colonial do samba, a legitimidade para afirmá-lo como gênero oficial, unindo nacional e popular, trazendo à tona o elemento folclórico, evocando um passado ao qual o samba deveria pertencer. Um nacionalismo musical buscando implantar uma espécie de “república musical platônica, assentada sobre o ethos folclórico”83. Jesús Martin-Barbero oferece ainda mais subsídios para esta discussão salientando que, para se delinear as relações entre massificação e populismo, é preciso compreender que no caso brasileiro não foi só a crise do mercado mundial, com a recessão de 1929, a responsável pela crise nacional, mas sim uma crise de hegemonia interna que colocou as massas frente a frente ao Estado. A partir disso, o Estado procurou resolver a situação se auto-intitulando defensor dos direitos das classes populares e, ao mesmo tempo, dirigente do processo de modernização do país, processo que fez emergir contradições expressas na cultura, particularmente na música84. O nacionalismo seria capaz de encobrir tensões e dissensões da heterogeneidade vividas pela sociedade urbana brasileira naquele período, onde o popular, orientado pelas mãos do Estado e difundido nos rádios em escala agora nacional, legitimava o popular oficial e hegemônico. Na América Latina, o início da massificação coincidiu com a vigência dos governos populistas e com o processo de construção das identidades nacionais, tendo a indústria cultural uma missão das mais importantes. Pode-se afirmar que a implantação dos meios massivos latinoamericanos é concomitante ao ingresso das massas no cenário de reivindicações e de consumo, estando a mídia ligada ao processo de massificação, não sendo sua conseqüência ou sua causa. Estabelece-se assim, a idéia de se depurar um popular em termos de folclore, raiz, origem, lugar idealizado de essência, autenticidade no mundo do passado rural, nomeando o povo como sendo a própria alma da nação, numa tentativa de estabelecer uma tradição – ligada ao passado, à pureza cultural, à autenticidade – que a própria modernidade urbana, massificada e industrial engendrou.85 Importante também, neste momento, era o debate no campo cultural e mais precisamente no musical em torno do popular. Mário de Andrade86, já em 1928, buscava diferenciar o 82

João Ernani FURTADO FILHO, Do combate ao samba ao samba de combate: música, guerra e política (19301945). São Paulo, 1998. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História – PUC/SP. 83 José Miguel WISNIK e Enio SQUEFF, O nacional e o popular na cultura brasileira – Música, p.146. 84 Jesús MARTIN-BARBERO, Dos meios às mediações. Op.cit.. 85 Nestor Garcia CANCLINI, Culturas Híbridas. 86 Mário ANDRADE, Ensaio sobre a música brasileira, passim. 77

“popular” como sendo “autóctone”, do “popularesco, feito à feição do popular, ou influenciado por modas internacionais”, ou seja, o popular urbano, não puro ou essencialmente tradicional. De acordo com Wisnik, as considerações do autor devem ser inseridas num debate mais amplo sobre a cultura brasileira dos modernistas da década de 20, que argumentavam, em linhas gerais, sobre o caráter político-pedagógico da cultura e mais especificamente da música – evocando Platão em A República, em que a música tem um poder agregador de promover a junção da totalidade social, devendo servir como educadora a serviço do Estado. Desta forma, a “república musical” deveria se assentar na idéia do popular folclórico e tradicional e extirpar as manifestações musicais que não fossem genuinamente nacionais87. Opunha-se, assim, no debate modernista, por um lado, a idéia de arte elevada, erudita e disciplinada, que faz bom uso do folclore rural, estilizando estas fontes folclóricas como detentoras da fisionomia genuína da nação e, por outro lado, as manifestações deturpadoras, mercadológicas, insubmissas à ordem e à história, que era a canção popular urbana. No entanto, este argumento modernista deixava de perceber, como argumenta Wisnik, que o popular ali almejado, era assim considerado tão somente quando olhado à distância pelas lentes estetizadoras de intelectuais eruditos, encarcerados em museus reais ou imaginários, preservando a sua busca da pureza. As manifestações de ruas, rebeldes às classificações, fabrica de sons, ritmos e danças a partir da bricolage própria do meio urbano eram desprezadas pelos modernistas. A cultura urbana, com “seu próprio movimento ascendente e pela sua vizinhança invasiva, ameaça entrar por todas as brechas da vida cultural, pondo em xeque a própria concepção de arte do intelectual erudito”.88 Este debate sobre o popular ligado ao nacional e às raízes, contrário ao que vem de fora, foi a tônica de algo muito presente nas discussões sobre cultura brasileira que levou a uma distinção entre a cultura boa (ligada ao folclore e aos intelectuais eruditos) e a cultura má (popular, urbana, comercial ou então erudita ligada ao que é internacional). Desse modo, foi criado um espaço de posição defensiva, em que o projeto de autonomia nacional, visava barrar o avanço da modernidade capitalista na cultura. Isso já estava colocado na década de 30, mas nas décadas de 50 e 60 esta questão se mostraria decisiva.

87 88

José Miguel WISNIK e Enio SQUEFF, O nacional e o popular na cultura brasileira – Música. Idem. 78

Nos anos 60, este debate teve como reforço histórico os “folcloristas da cidade”, ideário corrente ainda na década de 30, conforme salienta Enor Paiano89. Os protagonistas da discussão seriam produtores culturais e jornalistas como Almirante, Ary Vasconcelos, Lúcio Rangel, os quais, à semelhança do Nacionalismo musical de Mário de Andrade, também defendiam a música genuinamente brasileira, contra estrangeirismos e, de uma maneira protetora, buscavam guardar, compilar

e organizar as manifestações populares do país. No entanto, este grupo não

compreendia o popular apenas como expressão regional e folclórica estilizada pela lente erudita (vista como arte superior), e nem se valia dos órgãos estatais dirigidos à intelectualidade, mas sim interferiam nos meios de massa, fazendo com que suas idéias tivessem circulação mais ampla (escreviam em revistas de grande circulação a época), como também viam no samba urbano a manifestação do popular nacional não restrito ao Rio de Janeiro. Assim, é de suma importância localizar a dimensão do debate sobre o popular ligado ao nacional presente na cultura brasileira, considerando suas origens, pois esta discussão será fundamental para a compreensão da Bossa Nova, como música que nasce nos centros urbanos, carregada da tradição musical que vinha ali se consolidando há muitos anos, e se defrontou (em seu público e em sua crítica) com a controvérsia sobre o nacional–popular que se cristalizava naquele momento e chegava ao seu ápice, influenciado pela conjuntura política e também por um acirramento deste mesmo debate nos meios intelectuais e artísticos. Voltando aos cantores do rádio, estes, conscientemente ou não, emprestaram sua fama e prestígio aos interesses do governo, em que as músicas expressavam não só o alcance do rádio e sua difusão, mas também elementos políticos e sociais. Em Cantores do rádio, marchinha composta por Lamartine Babo, em 1936, e gravada pelas irmãs Aurora e Carmem Miranda no mesmo ano, se diz “nós somos os cantores do rádio/levamos a vida a cantar(...)/nossas canções cruzando o espaço azul/vão reunindo num grande abraço/corações de norte a sul”. Fica clara a alusão a um projeto integrador nacional. Ao mesmo tempo, intensificava-se a repressão policial e a censura, havendo um combate ao indivíduo alijado da produção, aos sub-empregados, ao trabalho ilegal, em nome da austeridade, honra do Estado e grandeza do país. Passou a ocorrer também, uma censura prévia às músicas, evitando que temas políticos fossem tratados (exceto os que elogiassem o Estado Novo),

89

Enor PAIANO, O Berimbau e o som universal: lutas culturais e indústria fonográfica nos anos 60. São Paulo, 1994. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, USP, passim. 79

bem como a exposição e afirmação de formas ilegais de vida, como a malandragem, que incitaria à desordem e a não-legalidade, algo que não era condizente com o Estado totalitário e ditatorial que se implantava. Em 1940, por exemplo, o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) órgão do governo que cuidava da censura e das propagandas estatais - proibiu mais de 370 músicas e mais de 100 programas de rádio90. Na tentativa de controlar os mais diversos segmentos da sociedade, o Estado Novo – a exemplo do que fez com os sindicatos, trazendo-os para seu domínio, instituindo o “sindicalismo de estado” – criou também o Dia da Música Popular Brasileira, uma maneira de enaltecer um gênero, oficializá-lo, garantir-lhe as melhores condições de existência, divulgação e, assim, mantê-lo sob sua égide. Mais ainda, o governo Vargas, mesmo antes de ser instaurado o Estado Novo, tratou de oficializar o Carnaval a partir de 1933, com programas organizados pela prefeitura, concurso de músicas de Carnaval, oferecendo subvenções ao concurso das Escolas que começaram a existir a partir de 1928, quando no Largo do Estácio (zona norte do Rio) surgiu a “Deixa Falar” num local frequentado pela malandragem do samba (como se verá mais à frente). Já na década de 30, várias escolas desfilavam, em particular a Mangueira, vencedora dos carnavais de 1932 até 1935. Nesse período, os desfiles das escolas mantidos pelo Estado deveriam apresentar temas ligados à grandeza da nação, em caráter didático, dando origem aos samba-enredos presentes também na forma como é conhecido hoje. Além disso, era de propriedade estatal a rádio mais ouvida na época, a Rádio Nacional, que contratava os artistas mais populares e prestigiados do país. A produção musical, em certo aspecto, ia se tornando expressão deste “Brasil grande”, em que as letras iam pouco a pouco, cada vez mais mostrando as grandezas do país, trazendo o samba-exaltação. Aquarela do Brasil, composta em 1939 por Ary Barroso, talvez seja a mais conhecida dessas expressões. Vê-se assim, a constituição e consolidação cada vez maior da idéia de um Brasil musical, um país afirmado por sua música, encontrando nela sua mais perfeita representação, com destaque para as peculiaridades e especificidades do país, o que fez com que a partir daí, cada vez mais a música revelasse uma identidade diante de outras culturas e nações. É preciso lembrar que o rádio e a indústria fonográfica lançavam músicas que alcançavam cada vez mais ouvintes, muito em função de uma nova sociedade urbana que se instituía no Brasil, fruto do crescimento industrial, caracterizada pelo crescimento e consolidação paulatina 90

KRAUSCHE, Valter. Música Popular Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983. 80

dos setores médios da população. Quando, na canção Cantores do rádio, se diz “de noite embalamos teu sono e de manhã nós vamos te acordar”, isso pode ser lido como um confirmação da presença deste veículo na vida cotidiana das pessoas deste meio urbano, acordando e fazendo dormir o cidadão médio que trabalha e que tem horários a cumprir, ressaltando o público para quem se dirigia esta música propagada no rádio e condizente com as intenções do Estado: o trabalhador. O samba, desta forma, vai passando por um processo no qual deveria ser identificado ao mundo regrado, da ordem, da legalidade, da oficialidade e da organização, e não ao batuque dos negros, à boêmia, à malandragem, ao mundo do não-trabalho. Estaria surgindo aqui a idéia de uma música a ser consumida por todos, expressão da maioria, uma música ligada à cultura de massas, ao “povo brasileiro”. A ideologia populista do Estado Novo se assentava no trabalhismo, secundado por uma intensa campanha discursiva acerca do papel do trabalhador na construção do país, enaltecendo o operário e o próprio trabalho. No entanto, é importante analisar as relações entre o samba e o mundo do trabalho. A música popular parece ter nascido e crescido contemporaneamente à industrialização, ao crescimento das cidades, à diversidade social nas mesmas, ao desenvolvimento do proletariado. Isto tudo era decorrente da política de industrialização imprimida a partir de então, com um inchaço das cidades provocado pelo deslocamento populacional de grandes contingentes que chegavam às aglomerações urbanas em busca de trabalho. Isto porque o país ia abandonando seu caráter agro-exportador91. Ao lado deste mundo da ordem, a música popular esteve também articulada ao desajuste, à desordem, por vezes como uma voz dissonante à ordem social. O samba nasceu dos negros, esta parcela da população que, saída da escravidão foi procurar o seu lugar, o seu espaço dentro desta sociedade, que muitas vezes lhe era adversa. Nesse sentido, como afirma Gilberto Vasconcellos92, o percurso histórico da canção brasileira é contemporâneo do processo local de formação da classe operária; porém, a esfera do trabalho se projeta sobre a espaço da música como uma poderosa imagem invertida, onde há muitas vezes o exercício sistemático de negação dos valores positivamente elevados pelo trabalho. No samba, por vezes, não é ressaltado o

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A população urbana de trabalhadores em 1920 era de 293.673, enquanto que em 1940 saltou para 781.185 e em 1950, seriam 1 milhão de pessoas. A população urbana do Rio, que em 1920 era em torno de 1 milhão, salta para 2 milhões em 1930. José Ramos TINHORÃO, Pequena História da Música Popular Brasileira. 92 Gilberto VASCONCELLOS e Matinas SUZUKI, A malandragem e a formação da música popular brasileira. In: Boris FAUSTO (Dir.). História Geral da Civilização Brasileira: O Brasil Republicano, s.n., 1984. t. 3, v.4. 81

operário, o trabalho, mas sim a malandragem, em analogia à “dialética da malandragem”93, como princípio organizador da vida social brasileira no início do século. Não se trata de construir o universo musical popular como sendo o da vadiagem, em contraposição ao mundo do trabalho, como pólos excludentes, mas o que se coloca é uma relação dialética, entre trabalho e não trabalho, ordem e desordem, legalidade e ilegalidade, em que o universo musical popular carioca se constrói, de um modo que não prescinde da ordem social mas também não consegue estar inserido completamente dentro dela. Ora, os primeiros sambistas das reuniões nas casas das tias baianas viviam de ocupações incertas e aleatórias, sendo por isso tantas vezes discriminados, e sua música vista pejorativamente. A própria letra original de Pelo telefone ilustra isto, mostrando uma relação entre a ordem oficial e a desordem malandra. Já na década de 30, a malandragem tornou-se a temática principal dos sambistas, levando a uma confusão entre a figura do compositor e a do malandro, numa identificação em que os sambistas acabam por se aproximar da malandragem, seja como recurso temático, seja pelo modo boêmio de viver sem horários ou trabalho fixo e remunerado, seja ainda pela observação próxima do malandro e pela convivência com ele. Muitos compositores desta época, como Ismael Silva, Wilson Batista, Geraldo Pereira, entre outros, viviam no reduto do samba àquela época: o bairro do Estácio. Entre estes, a temática da malandragem e do não-trabalho eram freqüentes. Suas vidas eram, em geral, marcadas por esta situação de instabilidade no que tange ao trabalho, sendo “biscateiros no limite entre o exército de reserva e o lumpesinato”94, exercendo funções esporádicas de sapateiros, eletricistas, ajudantes de obras, bombeiro hidráulicos, ajudantes de serviços gerais. Suas músicas pareciam compor o seu habitat natural. Durante a década de 20, o espaço do samba não se limitaria à Cidade Nova, ou à Praça Onze no centro, mas se edificaria também no bairro do Estácio (na verdade, Estácio de Sá). Situado entre Rio Comprido e Catumbi, o morro de São Carlos e a Zona do Mangue, nasceu uma outra famosa escola de samba, que, na década de 30, competia não só no Carnaval com a Mangueira e a Portela, mas também na busca de se firmar como o berço do samba, que era praticado nos botequins e nos blocos de Carnaval - sustentáculos das escolas de samba durante o ano. O Estácio era ponto de encontro de sambistas que se reuniam para fazer músicas, trocar 93

Termo cunhado por Antonio Candido. Apud Gilberto VASCONCELLOS e Matinas SUZUKI, A malandragem e a formação da música popular brasileira. 94 Antônio Pedro TOTA, Samba da Legitimidade. 82

idéias, cantar, tocar, batucar95. Outro local que também começava a despontar nos sambas se auto-intitulando como berço desta música é Vila Isabel, um bairro de classe média mais tradicional que tinha na figura de Noel Rosa e sua vasta obra - um branco, filho de classe média que chegou a estudar alguns anos da Faculdade de Medicina - um exemplo de como alguns de seus botequins também serviam de espaço privilegiado para o universo do samba da década de 30.96 Cantando estes locais, muitos compositores tiveram suas músicas censuradas, como o sambista Wilson Batista e sua canção Lenço no pescoço, que enaltecia a vadiagem, o “andar de terno branco, lenço no pescoço e navalha no bolso”, finalizando com a frase “tenho orgulho em ser tão vadio”. A partir daí, muitos dos sambas passariam a ser veiculados com um cunho de ordem inscrita, valorizando o trabalho, a vida operária, a vida regrada, o casamento, a família, a ordem social. Porém, não se supõe aqui que o samba, a partir da década de 30 tenha se transformado num produto cooptado, inserido na lógica populista, na ideologia do estado trabalhista, seguindo seus preceitos, aderindo as regras do mercado, tendo ficado “desvirtuado” ou tendo perdido suas características de música popular. Claro que as considerações acima têm de ser levadas em conta, pois realmente o samba, em fase de consolidação, transformava-se e se expandia para fora do Rio de Janeiro, contando inclusive com apoio institucional e dos debates dos “folcloristas da cidade”. No entanto, estas considerações não podem ser encaradas como absolutas, numa análise que vê no mundo da cultura apenas os reflexos infra-estruturais da sociedade, estando o samba, e a música em geral apenas reproduzindo as mudanças ocorridas no âmbito econômico e político. Desta forma, além de não se buscar ver no samba da década de 30 apenas um produto cultural contaminado e dissuadido pela lógica do mercado e do Estado, também se busca perceber neste gênero musical, elementos, nuances, traços de suas características elementares – transformadas, re-adaptadas, articuladas às novas tecnologias, é claro, mas ainda assim populares. A começar pelas suas próprias letras, o que se pode compreender é que, embora cerceadas e censuradas, elas continuavam tematizando componentes da vida “malandra’” do compositor popular. De acordo com Wisnik,

95 96

Mônica Pimenta VELLOSO, Mário Lago: boêmia e política. Aldir BLANC, Vila Isabel: inventário da infância. 83

“elas [as canções referidas] serviram para generalizar um fato de maior importância, que foi a emergência urbana de uma cultura negra carioca, mudando a fisionomia cultural e musical do país e do Rio de Janeiro, em particular. As manifestações populares acabaram por emergir para a vida pública com uma gestualidade outra, investida de meios irônicos do cidadão precário que aspira reconhecimento da sua cidadania e acaba por parodiá-la através de seu próprio deslocamento. No momento em que fala, nas letras, do trabalho, do horário do trem, da vida regrada, salienta sempre que mudou, ou “teve que mudar” de vida, ressaltando seus condicionamentos, seus cerceamentos sociais, muitas vezes em tom irônico, de 97 sátira a si próprio, mas expondo, de qualquer forma, e de maneira sub-repitícia, a sua real condição”.

São inúmeras as diferenças percebidas entre o samba do início do século e o samba da década de 30, mais definido e estabelecido como uma música urbana, em suas práticas sociais em torno da música (reuniões nas casas das tias baianas x botequins do Estácio), nos lugares em que era praticado, em seu estatuto como objeto de trocas econômicas (samba como valor de uso x samba como valor de troca), em sua construção de personagens típicos da cidade (bamba x malandro), em seus assuntos e sua temática (malandragem ingênua e assumida x malandragem “arrependida”, em vias de ordenar-se) e em sua aceitação social (negado, perseguido x aceito socialmente, legitimado). Esta forma de sobrevivência dos elementos populares no samba na década de 30, pode ser vista também na sua estruturação musical, em que sentidos sociais e formas musicais necessitam ser compreendidos numa cadeia complexa de relações. Segundo Sandroni98, o samba dos anos 30 consistia num estribilho repetido pelo coro e pontuado por improvisações dos solistas, parte importante na sua composição. O improviso na década de 30 passou a ser muito menos ocorrente, devido à gravação, publicação, direitos autorais, enfim, um conjunto de fatores que exigiam, ao lado do estribilho, a presença de uma segunda parte que fosse propriedade de um dado samba. Fica clara assim, as suas modificações frente aos sambas da época de Pelo Telefone. Novos instrumentos como a cuíca, o surdo, o tamborim passaram a fazer parte do samba “moderno”, em detrimento do pandeiro, prato-e-faca e palmas do início do século. Ainda de acordo com Sandroni, a própria estruturação rítmica parece ter mudado. Os primeiros sambas eram compostos de maneira “rapsódica”, isto é, de pequenas partes, pequenos ciclos dando origem à canção (o que ressalta sua característica mais ligada ao rural). Sua harmonia era mais simples, limitando-se quase que exclusivamente aos acordes de tônica e dominante, e seu acompanhamento era muito mais amaxixado, ligado ao lundu, o que vale dizer que sua rítmica se baseava no paradigma de tresillo, também chamado de “síncope 97 98

José Miguel WISNIK e Enio SQUEFF, O nacional e o popular na cultura brasileira – Música, p.133. Carlos SANDRONI, Feitiço decente. 84

característica”. A partir dos anos 30, a composição harmônica ficou mais elaborada e o ritmo muito mais contramétrico, mais batucado, onde a imparidade rítmica se estabeleceria e seria aceita mais fortemente pelos ouvidos do público e pelos músicos oficiais, afirmando mais fortemente um samba popular urbano carioca, que se transformaria na rítmica por excelência do samba até hoje. Embora se possa argumentar que o samba do Estácio dos anos 30 perdia em autenticidade, perdia as raízes genuínas da música negra, sendo utilizado pelo Estado e se mercantilizando, há que se reconhecer também que ele mantinha, neste estágio, suas características rítmicas da cultura afro-brasileira e popular de maneira inusitada. A própria idéia de “samba de breque”, instituída a partir desta fase, aponta para estas características duradouras e permanentes. Sendo uma “parada” no meio da música (do inglês, break), produzida com o fim da segunda parte da música para garantir o recomeço, com a introdução da fala do intérprete, mostrava-se como um expediente utilizado para dar ares de ironia, malandragem sem dizê-la propriamente, sem assumi-la na letra, mas dando seu toque por meio da estrutura musical. Mostrava-se como uma forma de desvio, de improviso, de fuga às imposições e até de tática, no sentido em que Michel de Certeau99 nomeia a forma de transformar o que é dado pela cultura oficial em astúcia cotidiana de fuga aos padrões convencionais, de maneira subliminar, não assumida e não completamente explícita. Para além disso, o improviso do samba de breque, a volta, o recomeço, parecem sugerir uma noção outra de tempo, um tempo cíclico, reversível, que pode recomeçar, fugindo a uma noção de racionalidade e linearidade a que os padrões morais e ideológicos se filiavam. Relembrando a passagem da gravação do primeiro samba, em 1917, é importante ressaltar algo fundante para a reflexão sobre a música popular midiática: a questão da autoria. Este momento, quando os sambas deixam de ser feitos coletivamente e passam a conter o nome de um autor, é indicado em variados estudos como sendo o seu momento de cooptação pelo mercado, levando-o a perder seus elementos originais. O fato de os sambas serem produzidos coletivamente, apenas vocalmente, sem escritura em partituras, aponta também para uma característica que nos remonta aos tempos “pré-modernos”, medievais, em que a própria literatura escrita passava pelo mesmo processo de autoria e as noções de autor, copista e

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Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 85

intérprete eram nebulosas.100 O debate, tão presente sobre a cultura de massas, em que se discute se é possível ou não a existência do autor num meio com tantos crivos e interferências ditadas pela concentração técnica e burocrática da indústria, faz pensar na força da voz presente até hoje nessa mesma cultura. A canção popular, por exemplo, vai muito além de uma idéia fechada de autoria encerrada na grafia musical, que se quer autêntica e original. Mesmo afirmando-se como locus de força da presença do autor, ela também tem as noções de autoria em dissolução, pois a gravação, a produção musical, os arranjos, e a força do intérprete cantante lhe outorgam papéis de criação, repartindo com os compositores a autoria da canção. A partir deste momento, vê-se a efetivação de uma produção estável da música popular, o que nos permite pensar a Bossa Nova como estilo e movimento nascido num ambiente onde o campo musical se encontrava em vias de consolidação. Não havia um campo plenamente consolidado; muitas de suas regras ainda estavam por ser tramadas entre seus agentes, processo em que a própria Bossa Nova exerceu forte influência. De qualquer modo, alguns cantores e compositores já desenvolviam uma produção estável, o rádio e o disco se afirmavam como seus difusores e propagadores. Havia uma diversificação e ampliação do público potencializando o consumo musical e de outros produtos relacionados, como revistas e jornais. Importante, aqui, uma pausa para explicitar o que chamo de campo musical. Para melhor entender este conceito do sociólogo Pierre Bourdieu, é necessário uma breve exposição de suas reflexões sobre a sociedade. Pode-se tentar compreender o pensamento deste sociólogo como sendo o de uma “sociologia da práxis”101, uma vez que nega qualquer forma de análise que fuja à objetividade, evitando uma análise fenomenológica, mas também propondo algo que avance a discussão. Em outras palavras, seu pensamento busca uma sociologia que integre, que faça a mediação entre objetividade e subjetividade, entre o indivíduo e as determinações sociais que o cerceiam. Ora, parece que o elo de integração é a noção de habitus, entendido como o conjunto de disposições socialmente adquiridas ou inscritas nas formas de conceber o mundo dos sujeitos de um grupo ou classe, pois o modo pelo qual se absorve e adquire os bens simbólicos é comum ao seu grupo. O habitus funciona como um esquema de percepção e ação comum de todos os indivíduos de um grupo, compondo seu “estilo de vida”: as formas pelas quais os indivíduos interiorizam as regras, as estruturas objetivas do social. A gênese das práticas sociais estaria no

100 101

Paul ZUMTHOR, A letra e a voz: a “literatura medieval”. Pierre BOURDIEU, Esboço de uma teoria prática. In: _____ Renato ORTIZ (Org.) Pierre Bourdieu. 86

habitus, no pertencimento a um grupo. Mais precisamente, a prática social seria fruto da relação dialética entre uma situação social e um habitus. 102 O espaço onde os atores sociais agem e manifestam seu habitus é um espaço pré-fixado, denominado por Bourdieu de “campo”, local onde se dá a luta e a concorrência entre os agentes em torno de seus interesses. O campo, sendo pré-determinado, não dá margem de resistência ou subterfúgios aos atores, que só podem executar aquilo que lhes é dado, a partir de condições objetivamente estruturadas. Esse é um espaço onde se manifestam as relações de poder estruturadas a partir da distribuição desigual de “capital social”, determinante das posições ocupadas por seus agentes, divididos entre dominantes, caracterizados pela ortodoxia – executando uma série de mecanismos e instituições que assegurem seu estatuto de dominação e dominados, caracterizados pela heterodoxia, procurando manifestar seu inconformismo por meio de estratégias de subversão e em confronto permanente com a ortodoxia 103. O que é importante ressaltar é que, segundo Bourdieu, não há forma, ou possibilidade de transformação deste quadro, pois mesmo os heterodoxos, não são nada mais do que necessários para os dominantes, uma vez que sua “heresia” não questiona a própria lógica ou ordem do campo, visando apenas à troca de posições em busca da supremacia dentro do campo. A oposição não significa uma oportunidade ou um vislumbrar de mudança, mas apenas o reconhecimento dos interesses que estão em jogo. Nesta discussão, é necessário reconhecer as contribuições de Pierre Bourdieu a uma sociologia dos agentes, de modo a compreender como as formas artísticas constituem relações de força dentro do campo musical, quais suas formas de articulação, como se engendram, enfim, como estão postas num meio social marcado por regras. Esta reflexão nos auxilia em muito do que já foi dito até aqui, mas se faz necessário avançar, tentando interpretar as brechas e as possibilidades de fuga apontadas por Michel de Certeau numa dada sociedade. Embora este autor esteja falando em táticas por parte dos receptores, parece que se pode utilizar esta base conceitual para pensar a criatividade, a margem de manobra possível dentro das instituições, dentro da Indústria Cultural que se formava. É esta perspectiva de análise que se adotará também na discussão sobre a Bossa Nova, mais à frente.

102 103

Pierre BOURDIEU, Gosto de classe e estilo de vida. In: _____ Renato ORTIZ (Org.) Pierre Bourdieu. Pierre BOURDIEU, As regras da arte. 87

Estas improvisações do cotidiano podem ser vislumbrada nas formas destes músicos sobreviverem e manterem suas características dentro do mercado fonográfico e dentro da lógica industrial e mercantil que se impunha cada vez mais à música naquela época104. Os músicos podem ser vistos como aqueles que se utilizam de ações táticas para – sem poderem contar com um lugar próprio, um espaço seu –, assumir o lugar do outro, desenvolvendo artimanhas de modo a reverter a situação a seu favor. Isso pressupõe criatividade, mobilidade, formas de fuga dentro da indústria, por meio de ações parciais, sub-reptícias, individualizadas, microbianas. O Rio de Janeiro era o grande centro da música popular, onde estas relações dentro do campo iam se estruturando, com o funcionamento – além das rádios e gravadoras – de cassinos e hotéis que serviam como palco para a realização dos músicos, cantores, instrumentistas, arranjadores. Isso acabava por atrair músicos de outras partes do país, como Garoto, vindo de São Paulo, Lupicínio Rodrigues, vindo de Porto Alegre, Dorival Caymmi, vindo da Bahia. Como conta Valter Krausche105, muitos iam para o Rio atendendo ao chamado do rádio e do sucesso. Esse chamado atraia músicas e músicos de diversas regiões do país que pudessem ser filtrados pelos meios de comunicação de massa; um espaço que ia dando os contornos de uma profissionalização, parecendo não haver mais lugar ao malandro, à música ingênua, descompromissada, sem autor, fruto das reuniões informais. Nesse processo ia se formalizando uma disciplina no mercado de trabalho musical. A partir da década de 40, pode-se considerar efetivamente a presença de uma série de atividades vinculadas a uma cultura de massas no Brasil, em consonância à existência de uma sociedade urbano-industrial. Como aponta Ortiz106, não é que antes desta época não existissem meios de comunicação, mas neste momento eles começam operar dentro de uma cultura de mercado, a partir da reestruturação também sofrida pela sociedade, como já foi apontado. No início da década de 40, segmentos da indústria fonográfica, sobretudo os que representavam pessoas ligadas indiretamente à produção de discos, mobilizavam-se no sentido de regulamentar suas atuações profissionais neste contexto, em que as empresas multinacionais já dominavam o

104

Renato ORTIZ, Prefácio. In: Marcia Tosta DIAS, Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 105 Valter KRAUSCHE, Música Popular Brasileira. . 106 Renato ORTIZ, A moderna tradição brasileira. 88

cenário, surgindo a Associação Brasileira de Compositores e Editores, e em 1942, a União Brasileira de Compositores (UBC). 107 Se por um lado tem-se o rádio e a indústria fonográfica nesta época já estruturados com grande abrangência, trazendo novos parâmetros para a problemática da cultura e da sociedade, como já foi visto, não se pode esquecer também do cinema. Nesta época, ele se torna um bem de consumo, não só com os filmes americanos ganhando cada vez mais espaço no pós-guerra, mas também com a produção nacional começando a se mostrar a partir da criação da Atlântida, em 1941, e da Vera Cruz, em 1949. Não se pode esquecer também do mercado editorial, com o aumento da tiragem de livros, jornais e revistas. Neste segmento, surgiram as revistas de variedades e também as ligadas ao rádio, revistas de fotonovelas, além de outras que tratavam dos produtos da indústria cultural em formação. A área publicitária vai se efetivando também por esta época, com revistas especializadas e com a criação de entidades profissionais. Em 1950, é inaugurada a TV no Brasil. Enfim, o que também está presente em todos estes setores, e que vai dando mostras da presença de uma cultura de massas, é o desenvolvimento de uma racionalidade capitalista e de uma mentalidade gerencial, com destaque para uma economia que começa a se organizar unicamente com vistas à produção de bens de troca e não mais de bens de uso. Porém, como bem ressalta Ortiz, esta cultura de massas na década de 40 e 50 se caracteriza muito mais pela sua incipiência do que por sua amplitude. Este, é um momento de expansão do capitalismo que se realiza somente em determinados setores, não se estendendo para a totalidade da sociedade. Por esta época, vai-se afirmando e consolidando no país, elementos de uma cultura média, com um padrão médio, o que viria a ser a base para a real efetivação de uma indústria cultural ou um “mercado de bens simbólicos” no Brasil, no final da década de 60. Mas, voltando ao rádio e à área musical: na década de 40, após a estatização da Rádio Nacional e a chegada dos representantes do Bureau Interamericano ao Brasil (órgão americano destinado a coordenar os esforços dos EUA no plano das relações econômicas e culturais com a América Latina) com a difusão de um american way of life, o rádio torna-se um veículo ainda mais cobiçado pelos anunciantes, pois suas atrações de sucesso pareciam ser sinônimo de consumo garantido dos produtos108. Com esta parceria – emissoras e anunciantes – efetivada em termos sólidos, os artistas de rádio teriam trabalho e sucesso, e o rádio viveria, sua fase de ouro, 107

Edison Delmiro SILVA, Origem e desenvolvimento da indústria fonográfica brasileira. Texto apresentado no GT “Mídia Sonora” no XXIV Congresso da INTERCOM – Campo Grande /MS – setembro 2001. 108 Sônia Virgínia MOREIRA, O rádio no Brasil. 89

influenciando hábitos e costumes de milhões de ouvintes, ocupando um espaço cada vez maior na vida das pessoas. Marta Avancini, em seu trabalho sobre os cantores do rádio, enfatiza o processo de popularização destes, chegando aos anos 50 como um dos focos principais de atenção do público. Os auditórios dos programas ficavam lotados de pessoas ávidas por encontrar seus artistas preferidos. Esse público juntamente com os fãs-clubes eram eixos de sustentação e promoção dos artistas. As revistas especializadas ajudavam a criar um clima de curiosidade e euforia acerca deles, catalisando

interesses e incitando o público a opinar e participar da vida de seus

preferidos. Avancini lembra que, para se analisar o papel desempenhado pelos ídolos do rádio nesta época, é preciso observar a complexidade existente no processo de construção destes ídolos, evitando apreendê-los somente como modelos e elementos ideológicos exteriores ao contexto social, mas compreendendo os tipos de relação articuladas a partir de sua presença, percebendo formas de subjetividade, de identificação dos fãs frente aos seus ídolos dentro de um quadro mais complexo da sociedade daquele momento. Tudo isso fazendo parte de uma generalização das formas de sensibilidades em jogo à época.109 O que é fundamental aqui, é ter, no horizonte de compreensão sobre a música desta época, o seu ouvinte, a massa urbana que escutava rádio e a interação que havia entre esta massa e seus ídolos em suas performances. Para complementar esta discussão sobre o rádio, Gisela Ostriwano argumenta que este meio comunicacional fala, onde a linguagem oral pressupõe a presença das virtudes da linguagem coloquial, entra as quais, clareza, objetividade, simplicidade. E, apesar de não funcionar efetivamente com dupla mão-de-direção, o rádio nasceu como um meio de comunicação interativo que se viu limitado nesta sua capacidade à medida que se constituía o sistema econômico de sua exploração. Segundo a autora, “a dupla mão-de-direção permite, por outro lado, o diálogo real entre emissor e receptor. Esta mobilidade – tanto do emissor como do receptor – permitiu que fosse explorada plenamente a característica da instantaneidade, que está intimamente ligada às condições de recepção por parte do ouvinte, simultânea à transmissão (...) o rádio envolve o ouvinte, fazendo-o participar por intermédio da criação de um diálogo mental com o emissor, sendo que a sensorialidade se faz presente. O ouvinte visualiza fatos, acontecimentos, performances artísticas através dos estímulos sonoros que recebe, da entonação vocal, da tonalidade, do ritmo da mensagem. A imaginação é despertada pela emocionalidade das palavras e dos recursos de sonoplastia, permitindo que o receptor dê asas às suas expectativas individuais, à sua imaginação. Nesse sentido, o rádio acaba sendo visto como um amigo, ou o substituto de um amigo ausente. Por intermédio do diálogo mental, os apresentadores, cantores tornam-se íntimos do ouvinte. É a 109

Maria Marta AVANCINI, Nas tramas da fama: as estrelas do rádio em sua época áurea (Brasil, anos 40 e 50). Campinas, 1996. Dissertação (Mestrado em História). IFCH- UNICAMP. 90

característica do intimismo: o rádio fala com muita gente ao mesmo tempo, como se falasse com cada um 110 em particular.”

Mas, voltando para o objeto de análise deste capítulo, a compreensão das origens musicais e culturais da Bossa Nova, é preciso atentar para um tipo de música ou gênero musical que começa a fazer cada vez mais sucesso e imperar no rádio e no disco: trata-se do samba-canção, um estilo musical que foi ganhando cada vez mais importância nas décadas de 40 e 50. Suas origens datam do final da década de 20, quando músicos semi-eruditos que trabalhavam nos teatros de revistas no Rio de Janeiro, começaram a compor músicas para fazer sucesso fora da época de Carnaval, daí sua designação original como “samba de meio de ano”. Inicialmente abarcava composições feitas para figurarem durante o ano, sendo, dessa forma, não tanto de poética alegre, satírica e de ritmo batucado e amaxixado como as do Carnaval, mas músicas que resgatavam a melodia e a canção, herdeira – como já foi visto – da modinha. O samba-canção atendia às intenções dos compositores semi-eruditos de irem deixando de lado o caráter jocoso do samba de até então, em troca de um romantismo melódico de acordo com um gosto mais diversificado das camadas urbanas que passavam a consumir música popular. Lembrando do que já foi dito a respeito da modinha, como um gênero musical que sobreviveu e se conservou no século XX em canções de Vicente Celestino, Francisco Alves e outros, pode-se dizer que o samba-canção é seu herdeiro direto, com expressões de sentimentalismo, inflexões de cenas românticas e

bucólicas, o que está evidente na sua

designação inicial – “samba de meio de ano” – como algo incompatível com a alegria dos sambas de Carnaval. Como aponta Tinhorão111, seu sucesso se deve também ao fato de ser música para ouvir e cantar, atendendo as exigências de lazer das massas urbanas. Para melhor compreender o espaço social desta época de esplendor do samba e do sambacanção, nas décadas de 30 e 40, é necessário recorrer ao bairro da Lapa, mas a Lapa musical, malandra, que no início dos nos 40 passava a ser vigiada, com a intensificação do policiamento e fechamento de prostíbulos, cabarés, dancings e bares além da proibição do jogo em 1946112. Os boêmios que freqüentavam o bairro tinham uma coisa em comum: todos cultivavam a música popular, já que a boêmia constituía um modo de vida musical, juntamente com a bebida e a 110

Gisela OSTRIWANO, Rádio: interatividade entre rosas e espinhos. Texto disponível na Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, 2000. (http://bocc.ubi.pt/pag/ortriwano-gisela-radio-interactividade.html) 111 José Ramos TINHORÃO, Pequena História da Música Popular Brasileira. 112 Alcir LENHARO, Cantores do Rádio: trajetórias de Nora Ney, Jorge Goulart e o meio artístico de seu tempo. 91

dança. O bairro se originou em torno de um misto de capela e seminário erguido no século XVIII em homenagem a Nossa Senhora da Lapa. No início do século XX, entre os anos 10 e 20, a Lapa assumia uma atmosfera esfuziante e dissoluta, características que acabaram por torná-la célebre, identificada com a pulsação parisiense de Pigalle ou Montparnasse, (a zona sul e Copacabana ainda não existiam como centros urbanos), sendo ponto de encontro de intelectuais e boêmios como Di Cavalcanti e Heitor Villa-Lobos. Mas é também a partir desta época que passa a ser tomada por pensões de mulheres, que acabariam se transformando em cabarés, todos concentrados num espaço físico exíguo de no máximo quatro ou cinco ruas. Mesmo que o espaço do samba não se restringisse apenas à Lapa, estendendo-se ao Estácio, à Zona do Mangue, à Praça Tiradentes e à Vila Isabel, é possível afirmar, no entanto, que o bairro era o centro irradiador do mundo do samba113, com seus malandros, prostitutas, policiais e boêmios, e mais, era lá o ponto de encontro de todos, nesta fase anterior a transição da vida noturna para Copacabana, mudança que aconteceria no final da década de 40. O samba-canção, como um gênero musical que se valeu da forma musical da modinha e da influência de outros gêneros musicais (como o bolero, o tango, por exemplo) tomou formas diferenciadas. Foi produzido nos anos 40 e 50, no interior das classes populares, chamando a atenção pelo grau de rebuscamento de suas metáforas, revelando uma tentativa de aprimoramento lingüístico sintomática de um desejo de ascensão social por meio da arte. Uma poética líricoamorosa que ao mesmo tempo que guarda ligações com o romantismo, lhe é distante, por comportar elementos da sentimentalidade e do excesso, sendo uma linguagem da paixão com traços de melodrama, tanto no seu conteúdo semântico, nas suas letras, como também em sua estruturação musical abolerada. O samba-canção contém, segundo Beatriz Borges114, o elemento kitsch, ao operar uma apropriação de padrões de arte culta. Essa apropriação o coloca na fronteira entre produção culta e produção popular, criando um gênero misto que se confunde muitas vezes com o mau gosto. O rebuscamento poético e o derramamento caudaloso e exagerado das suas frases parecem ser tentativas de legitimação, em busca por um status social e cultural. Os principais elementos do samba-canção são o sofrimento, a angústia, o desespero, a desventura no amor, a “dor-de-cotovelo”, a autopunição, o desejo de morte, a linguagem da dor.

113 114

Moacyr ANDRADE, Lapa: alegres trópicos. Beatriz BORGES, Samba-canção: fratura e paixão. 92

Luiz Tatit115 diz que nessa música predominavam expressões de estados emocionais ligados à disforia, com canções modalizadas pelo “ser”, operando tensões passionais tanto na duração das notas como em sua frequência. Segundo este autor, a emotividade, a paixão só tem sentido para quem a viveu, mas se torna cognoscível aos ouvintes, pela experiência transmitida pelo cancionista, na forma de canção e na forma como vai lhe dar os contornos melódicos e enunciativos, sendo aí o ponto máximo dos samba-canções: sua capacidade de ser convincente pela forma melódica, com notas distantes entre si, reveladoras de uma tessitura musical alongada, em que as notas mais agudas são exploradas para enunciar os sentimentos mais dolorosos. Num outro sentido, o samba-canção continha em si elementos que apontaram para caminhos diversos de musicalidade. Quanto a sua estruturação musical, originalmente criada por compositores semi-eruditos e depois apropriada pelos músicos “de ouvido”ar, nascia como uma alternativa mais nobre em relação ao samba de Carnaval, abrindo caminho para arranjos e orquestrações mais ricas, transmitido pela vitrola e depois pelo rádio para ouvintes reunidos na sala e não mais para a multidão delirante nas ruas. Nesse processo, novas formas musicais iam se instaurando para novos estilos de ouvir, cantar, apreciar e consumir músicas. Daí nascia o que se convencionou chamar nos anos 50, de “samba-canção sofisticado”. Pode-se perceber, analisando a história da música, como os meios de acesso à informação modificaram seus modos de fruição, introduzindo novas prática que alteraram, por exemplo, o quando e o onde a música poderia se ouvida, em que situações isso poderia acontecer e que uso se poderia fazer dela. O fonógrafo e o gramofone do início do século, além de pesados e de difícil locomoção, estavam restritos a ambientes pequenos por conta de sua baixa intensidade sonora. A miniaturização dos dispositivos de reprodução e o crescente aumento da potência sonora modifica completamente o modo de apreciação musical. Como descreve o músico Daniel Gohnl116, a fita cassete permitiu, por exemplo, que se pudesse selecionar a música ouvida no carro, e, com o walkman, foi possível levá-la a qualquer lugar. Estas novas tecnologias, levaram a música para grandes ambientes e para um número cada vez maior de ouvintes, permitindo sua integração no cotidiano dos indivíduos.

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Luiz TATIT, Análise semiótica através das letras e Luiz TATIT, O Cancionista: composição de canções no Brasil. 116 Daniel GOHNL, A Tecnologia na Música. Texto apresentado no GT “Mídia Sonora” no XXIV Congresso da INTERCOM – Campo Grande /MS – setembro 2001. 93

É necessário, portanto, que se considere os meios comunicacionais como fatores influentes na composição deste gênero e no seu sucesso. Do mesmo modo como se analisa fatores sociais, políticos e econômicos, é preciso acompanhar a história da tecnologia para compreender os rumos da música. A tecnologia ajuda a delinear o funcionamento das estruturas que regem a música pois, em meio às revoluções tecnológicas, novas idéias ou processos criativos podem resultar em novos estilos de música ou na reformulação de estilos antigos. Michael Chanan117 chama a atenção para as conexões entre o desenvolvimento das gravações, as mudanças na interpretação da música clássica e a proliferação de novas formas de música popular. Ele trata da trajetória da tecnologia na produção sonora, relatando o caminho desde os primeiros tempos das transcrições mecânicas, passando pela elétrica, eletrônica e digital chegando aos dias de hoje, enfatizando o papel das tecnologias na maneira de produzir e , gravar os sons , e no modo como isto afeta também a qualidade do que é ouvido, marcando referências nos padrões de escuta. Assim, compreende-se melhor a consideração já exposta neste capítulo a respeito de os sistemas comunicacionais se ordenarem por questões de natureza da forma e da técnica, em que ambas se influenciam. O sistema de gravação elétrica, introduzido no Brasil no final dos anos 20, contribuiu para uma melhor fidelidade sonora nas reproduções, levando a um desejo de melhorar a qualidade dos arranjos e das orquestrações, visando também a um aumento das vendas. Isso acabou por trazer para o rádio e para as gravadoras, músicos de boa qualidade e de boa formação118. Isto é de fundamental importância para se compreender a Bossa Nova, pois diversos de seus músicos e compositores surgiram neste ambiente de arranjadores nas rádios e nas gravadoras. Tom Jobim e Newton Mendonça são alguns desses exemplos. É nesse contexto também que se compreende – embora neste momento ainda não fosse corrente e usual e nem disseminado no gosto geral – o advento de se cantar mais à meia voz, como fazia Mário Reis. Isso só foi possível por que as tecnologias disponíveis à época favoreciam a captação do som. Nesse sentido é que se pode compreender a possibilidade do aparecimento do estilo de cantar de João Gilberto. .

117

Michael CHANAN, Repeated takes: a short history of recording and its effects on music. 2.ed. London: Verso, 2000. 118 Valter KRAUSCHE, Música Popular Brasileira. 94

O que se verificou ao longo do século XX no Brasil, com o advento da indústria do disco, foi um aprofundamento da segmentação do campo musical. Segundo José Roberto Zan119, é possível notar este fenômeno tanto na música erudita quanto na popular, com o crescimento de seu mercado por meio do sistema elétrico de gravação e expansão da radiofonia baseada no modelo comercial. Após os anos 40, foram definidas duas grandes tendências no campo musical popular, devido a uma reorganização dos espaços musicais, boêmios e artísticos: de um lado, artistas e empresários começaram a se deslocar para a região central da cidade, reativando o Teatro de Revista, definindo uma linha mais explicitamente de massa da música popular com o baião, o xote e até ritmos estrangeiros como bolero, apresentando forte identidade com o rádio; e de outro lado, surgiram as pequenas boates na zona sul, onde artistas, incorporando elementos estéticos mais sofisticados, atraíam as camadas médias e altas, formulando um estilo de música que vinha do samba-canção, na sua versão mais próxima do fox norte-americano. Isto foi configurando, de maneira explícita, segundo Zan, uma hierarquia de gostos e de legitimidade na música popular, reforçada por publicações e revistas voltadas para estes segmentos de mercado, que atuavam como instâncias de consagração do produto musical perante seu público. Ainda quanto ao samba-canção, pode-se perceber, quanto a sua estruturação musical, uma proximidade e familiaridade com as músicas latino-americanas. As versões de músicas estrangeiras eram muito freqüentes no ambiente musical dos anos 40 e nos samba-canções, devido à paulatina penetração e inserção de uma fatia da música portenha, com seus tangos trágicos, apropriados de maneira ainda mais “rasgada”. A música caribenha também se popularizou por aqui, principalmente com o bolero. Sendo mais fácil de dançar, o famoso “dois prá lá, dois prá cá” passou a estar presente nos clubes, boates, dancings, cabarés, auditórios, traduzindo um certo gosto latino que passava a ser cultivado, em forma de samba-canção120. Na verdade, o que parece haver neste momento é uma internacionalização da musicalidade, incorporada num processo mais geral. Músicas francesas passaram a ser muito difundidas no país, bem como as americanas. Da mesma maneira, é fácil perceber uma certa “onda de mexicanização”, que se espalhou na música, nas novelas do rádio, no cinema de lágrimas da América Latina, atestando uma matriz cultural do melodrama121. Antes disso, é

119

José Roberto ZAN, Do fundo de quintal a vanguarda: contribuição para uma História Social da Música Popular Brasileira. Campinas, 1997. Tese (Doutorado em Sociologia)- IFCH/ UNICAMP. 120 Alcir LENHARO, Cantores do Rádio. 121 MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Op.cit.. 95

preciso saber um pouco sobre os locais da cidade do Rio de Janeiro que passavam a tomar conta do cenário musical a partir de então e entre eles está Copacabana. Sua história remonta ao século XVII, quando ali chegaram os primeiros proprietários de terras. Depois, já na virada do século XIX para o XX, o bairro começa paulatinamente a se desenvolver com a expansão da cidade para o litoral. Se até esta época o banho de mar ainda não era um hábito social, mas indicado apenas por recomendações médicas, durante o século XX a ida à praia se populariza, e Copacabana também cresceu, passando a ter, a partir da década de 30 e 40, uma vida noturna agitada com bares e boates. Isso aconteceu tanto porque a Lapa – antigo local preferencial da boêmia – mudara de feição, estando mais violenta e policiada, quanto por conta do fechamento dos cassinos em 1946. Aliado a isso, Copacabana passava a atrair as camadas médias, interessadas no conforto e no status de morar perto do mar e num bairro visto como cosmopolita. Nesse ambiente, nos anos 50, conviviam cantoras como Nora Ney, Sylvinha Telles, Maysa, Dolores Duran, pianistas como Newton Mendonça, Johnny Alf, Luiz Eça, Tom Jobim, intelectuais, jornalistas e boêmios como Antônio Maria, Ronaldo Bôscoli e Vinícius de Moraes. Esse convívio deixa as claras a vinculação e a proximidade existente entre a Bossa Nova e o samba-canção, ressaltando como, por algum tempo, estiveram confundidos, nascidos que eram do mesmo ambiente musical e social. É desse modo que é possível identificar o samba-canção em duas vertentes diferenciadas, sendo uma mais ligada ao derramamento vocal, à expressividade lingüística, ao elemento kitsch, e outra mais sofisticada, que incorporava o cool jazz e formas mais sutis de interpretação. Estas diferenças se refletiam também na segmentação que o mercado de música popular passava a ter. Durante todo essa trajetória, pode-se perceber mudanças significativas na ambiência musical brasileira popular hegemônica. A crescente influência americana trouxe paulatinamente uma crítica a esta própria influência, como se pode ver na canção Chiclete com banana, com sua letra sugerindo uma relação de igualdade entre padrões brasileiros e norte-americanos, mas em cuja melodia e estruturação musical demonstra a absorção dos ritmos americanos. Diante deste quadro, o samba foi se tornando cada vez mais lento e mais lírico, adquirindo uma espécie de refinamento, tornando-se mais rico harmonicamente, virando uma canção de salão, com aspectos adquiridos do jazz, ampliando o arsenal de acordes, possibilitando maiores sonoridades por meio das dissonâncias e dos novos jeitos de se cantar. Quanto a este último aspecto, vale lembrar que as vozes grandiloqüentes de Orlando Silva e outros começaram cada vez mais a competir com

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estilos mais sutis de músicos com Dick Farney e Lucio Alves, que mantinham estreito contato com a música americana, influenciados por Frank Sinatra, Nat King Cole e Chet Baker. Como sugere Krausche122, nas boates de Copacabana, o piano e o intérprete pediam para serem ouvidos, entoando uma canção diferente daquela abolerada para namorados que existia à época, configurando-se assim, como um samba da solidão, da ausência, da tristeza, da “fossa”, em consonância com um padrão ou estilo cool que se difundia no ambiente boêmio de Copacabana, associado a um espírito de tristeza, instrospecção, intimismo. O samba-canção, nos anos 50, transformava-se em música para pequenos espaços, para a boite pequena, apertada, enfumaçada, regada a whisky. Ele era produto de um universo social onde se buscava sofisticação, mas também era produto dos meios de comunicação de massa, em que as técnicas de gravação se aperfeiçoavam cada vez mais e os arranjos com influência dos musicais americanos imperava. Um samba-canção para ser ouvido na intimidade das pequenas salas, com uma reprodução em massa, possibilitando também uma relação de intimidade com o disco, abandonando o vozeirão operístico em favor de uma nova atitude do intérprete com o microfone. Parcelas de ouvintes das canções, freqüentadores desses espaços e consumidores dessa musicalidade, vão acostumando-se a essas novas performances, com volume ou intensidade mais baixa que passam a constituir um elemento a mais em seu repertório musical. A música dos anos 50, mostra-se como um produto híbrido, miscigenado, que guarda suas relações com o samba, com o kitsch associado às músicas aboleradas, mas também como um elemento de sofisticação que, em muitos sentidos, se deve à música norte-americana, sobretudo ao jazz. Assim, parece ir se compondo um quadro múltiplo em que podem ser detectadas as matrizes da Bossa Nova: sua ligação com a modinha como primeira forma de canção popular no Brasil; como o samba e seu ritmo sincopado, expressão popular urbana do Rio de Janeiro; uma forte relação com o samba-canção e seus elementos que falam do amor, da introspecção, da natureza e também de seu ambiente musical, a zona sul do Rio e Copacabana e, finalmente, sua ligação com o jazz norte-americano. Quanto ao jazz, de origem híbrida, mestiça, multicultural, suas raízes podem ser localizadas nas colônias inglesas na América do Norte do século XVII. Os negros escravos, 122

KRAUSCHE, Valter. Música Popular Brasileira. Op.cit.. 97

vindos da África, chegavam às colônias e ali buscavam reconstituir sua tradição musical por meio de seus cantos, da fabricação de instrumentos semelhantes aos utilizados em sua terra natal. Tudo isso, no entanto, era proibido pelos seus senhores, que temiam o uso desses utensílios como meios de comunicação entre os escravos, o que poderia gerar situações de revolta (isso explica, em parte, o fortalecimento de uma tradição vocal na música negra americana – os hollers). As primeiras manifestações musicais dos negros na América – as work-songs – eram entoadas por estes, obedecendo ao esquema de “chamada-e-resposta”, característica que também se verificava na música religiosa protestante. No entanto, entre os negros, a música se construía pela improvisação. Este grito, em estado bruto, foi aos poucos assumindo novas formas, incorporando elementos da cultura branca européia, originado, por exemplo, as gospel songs, uma mistura das work-songs com os hinos protestantes entoados nas igrejas – locais onde os negros eram obrigados a freqüentar – transformando os hinos métricos, de melodia e ritmo europeus, em cantos sincopados acompanhados por palmas e batidas de pés.123 Esta música que vai, desde o seu início, sendo marcada pela mistura de culturas e de influências acabou, nas últimas décadas do século XIX, sendo descoberta por compositores semieruditos, que passam a associar obras clássicas como as Liszt e Chopin, com os ritmos negros, fortemente sincopados, originando o ragtime (ritmo rasgado, destruído). Note-se que o ragtime foi um dos primeiros gêneros musicais consumidos em massa, por meio dos rolos de pianola, antes mesmo da invenção da vitrola. O blues foi outro gênero que influenciou na formação do jazz. Com uma estrutura básica compondo uma estrofe de doze compassos, originária das antigas baladas anglo-saxônicas, este gênero acentua sua origem resultante da fusão entre o grito primal, as canções de trabalho, os acordes dos hinos religiosos e a estrutura das baladas. O blues tem como pressuposto a expressão dos sentimentos, da tristeza, pois sua característica melódica é a blue note, a bemolização, o tom menor (diminuição de meio tom) da terceira e da sétima notas da escala européia, o que lhe empresta o ar triste e também sua beleza e originalidade. Mas se o blues era, no seu início, uma forma essencialmente vocal, mais tarde acabou sendo adaptado para os instrumentos europeus, desembocando no jazz. É preciso estar atento também para o fato de que por esta época surgem as brass bands (bandas de metais), que se desenvolveram em New Orleans, advindas da época da Guerra de Secessão, em que tinham o papel fundamental de encorajar os soldados nas batalhas. 123

FRANCIS, André. Jazz. São Paulo: Martins Fontes, 1987. 98

Juntamente com o aperfeiçoamento técnico proporcionado pela revolução industrial, em que os instrumentos puderam ser aperfeiçoados, melhorados e barateados, estas bandas viveram seu auge na virada do século XX e foram de grande influência na formulação do jazz. Assim, é possível associar o nascimento do jazz à mistura entre ragtime, brass bands e blues, a partir daquele canto primal, e dos anos de mutações, absorções musicais e culturais, modificações na forma, estrutura musical, o que o transformou

num gênero multicultural,

híbrido, mestiço, advindo de várias procedências.124 Desta forma, nas primeiras décadas do século XX, o jazz se estabelecia enquanto tal, como resultado das influências múltiplas já explicitadas. Nesse momento, a sociedade americana passava por inúmeras e profundas mudanças, com alterações nas relações de produção, intensificação do processo de industrialização e de urbanização das cidades e a libertação dos escravos, o que fez com que a população negra se dirigisse a centros urbanos como New York e Chicago, onde passaram a trabalhar no setor industrial. Na falta de postos de trabalho no setor produtivo, eles trabalhavam como cantores e músicos em bares e shows, o que denota que a música, naquela sociedade, já ia adquirindo um caráter de entretenimento comercial, gerando uma indústria musical – com o disco e o rádio – e de entretenimento ligado ao jazz. Eric Hobsbawm125 define o jazz como um tipo de música relacionada à industrialização, aos padrões de consumo, com a indústria fonográfica, o rádio e os espetáculos fazendo parte de um contexto de modernidade e de transformações originadas no espaço urbano. Um espaço urbano que possibilita a diversidade, o contato entre culturas diferentes, transformando tradições e reorganizando a realidade cultural e também a produção e a comercialização cultural. O jazz foi sendo constituído como fruto desta tensão do espaço urbano, entre legalidade e ilegalidade, resistência, adaptações, modificações e reapropriações. Nisso, ele muito se assemelha ao samba: uma música de raiz africana, mas modificada, readaptada, misturada aos elementos brancos, expressão de uma cultura popular urbana mestiça. Tal qual o samba, vai passar de um momento em que era renegado como cultura menor pela elite e pela cultura erudita, para depois se tornar aceito, reconhecido e legitimado. No entanto, se aqui o samba foi legitimado por razões ideológicas de uma política populista, como uma tentativa de associá-lo a um ideal de nacionalpopular, o jazz acabou por se legitimar como música erudita e elitizada, uma música para poucos.

124 125

Roberto MUGGIATTI, Jazz. Eric HOBSBAWN, História social do jazz. 99

Este processo de apropriações do popular e do erudito nas sociedades urbanas mestiças, aponta para o fato de que as designações de popular, massivo e erudito estão constantemente em transformação, como parte das lutas pela conquista da hegemonia. A elitização do jazz é fundamental para esta análise, na medida em que, na leitura bossanovista deste gênero musical, se constrói a idéia de uma música elitizada que viria se somar à tradição popular do samba. Por este motivo, a Bossa Nova foi é ainda criticada como música da classe média da zona sul carioca que, elitista, deixou o samba e os valores nacionais populares de lado para importar e incorporar elementos norte-americanos jazzísticos na construção de sua musicalidade. Bernardete Moraes126 descreve o jazz, em seu caminho trilhado até a década de 60, como uma música caracterizada por uma intensa complexificação de elementos harmônicos consolidados com a expansão urbana, apesar de suas origens estarem no campo e sua raiz ser mestiça. É exatamente essa riqueza harmônica do jazz que seria absorvida pela Bossa Nova nos anos 50. A autora, ao reconstruir a história do desenvolvimento deste gênero musical, desde seus elementos formadores – com o blues, spiritual e ragtime – até o jazz atual, aponta para um primeiro estilo de jazz propriamente dito, o jazz tradicional cujo berço seria New Orleans. Essa região do sul dos EUA tinha uma população bastante diversificada, o que levou as tradições musicais informais dos negros a entraram em contato com a cultura erudita musical dos creoles, descendentes dos colonizadores europeus, resultando nessa mistura que parece ter dado o perfil deste primeiro estilo, em que os elementos musicais se fundiram, gerando uma música pautada pela improvisação, mas também pela leitura e notação musical. O estilo New Orleans mostra-se muito elaborado, com vozes instrumentais se cruzando, gerando polifonias e abrindo espaço para improvisações. Seus instrumentos principais, trompete, trombone e clarinete, geravam um ritmo assemelhado a uma marcha militar, mantendo, porém, uma pulsação de linhagem africana, com o pulso forte no segundo e no quarto tempo, diferente da tradição européia, cujo pulso está no primeiro e no terceiro tempo. É fácil perceber nesta música forte influência negra, tal qual o samba.

126

Bernardete Silveira MORAES. Jazz: as matrizes da mestiçagem. São Paulo, 2000. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, PUC/SP. 100

As mudanças provocadas pela Primeira Guerra Mundial fizeram com que muitos dos músicos de New Orleans tivessem que se transferir para outras cidades, devido às intervenções militares nos bairros musicais de população predominantemente negra. Um dos locais para onde se dirigiram, foi a cidade de Chicago, gerando um segundo momento na história do jazz tradicional. Na verdade, o estilo Chicago, que passaria a vigorar a partir de então, tinha como elemento fundamental o fato de ser gravado e executado no gramofone, levando ao despertar da música solo e à utilização do saxofone como base melódica para a criação de novos arranjos. Com isso, os outros instrumentos de sopro puderam ser utilizados de modo alternativo criando a harmonia completa das músicas. A formação de grupos foi o passo seguinte, gerando a possibilidade de muitos artistas viajarem pelo país, propiciando o contato entre músicos de diferentes procedências e gerando o aparecimento de outros estilos, como por exemplo o swing. Este outro estilo, caracterizado por impulsos rítmicos, tendo por objetivo a movimentação corporal, a dança, coincide com muitas mudanças e implementações ocorridas no campo do entretenimento popular, modificando as formas de contratação dos artistas, gerando monopólios de produção e estimulando as gravações. Para as corporações, torna-se vantajosa a gravação de músicas adequadas ao entretenimento, feitas para tocar em grandes salões, com grandes bandas, as big bands estimulando a dança e o hábito de se frequentar salões cada vez maiores e luxuosos. Isto aconteceu na década de 30, mas já na década seguinte esta fórmula dava sinais de desgaste, em parte pelo abuso e repetição das formas de apresentação127, em parte pela comercialização excessiva, e em parte, também, pela estrutura rígida das orquestras que não dava espaço para a improvisação do artista, algo fundamental no jazz. No meio de tudo isso, surge o bebop, um movimento protagonizado por músicos descontentes com o que era executado pelas grandes orquestras, dando origem ao que passou a se denominar jazz moderno. Surgido dos encontros de músicos nos night clubs de New York em jam sessions – após seu trabalho nas orquestras, para discutir os caminhos da música e também para tocarem ao seu jeito –, o bebop é uma música complexa, difícil e elaborada, que soava a princípio estranha aos ouvidos, sendo considerada “moderna”. Sua harmonia privilegiava os improvisos, o que, se por um lado revelava alta dose de criatividade, por outro requeria muita prática, habilidade e estudo por parte do músico, tendo como base uma musicalidade rápida, complexa com predomínio da improvisação, acrescentando ao jazz a dissonância como elemento 127

Carlos CALADO, O jazz como espetáculo. 101

definitivo a partir de então. Tornou-se corrente no bebop a execução de standards populares com outra roupagem, o que os transformava a partir da improvisação com harmonias dissonantes. Este último estilo é o que mais interessa nesta análise da Bossa Nova, pois parece ter sido ele, juntamente com o cool (um estilo mais intimista), o que mais de perto a influenciou. Suas harmonias dissonantes, modo rápido de ser tocado, improvisação, interpretação de clássicos com outra roupagem e um estilo cool, estão muito próximos do que se pode ver na musicalidade bossanovista, permitindo que se possa considerar o jazz como uma outra influência, uma outra matriz cultural e musical da Bossa Nova.

A Bossa Nova Como defini-la? Ou como interpretá-la a partir de suas origens? Neste momento, está dada a partida para uma compreensão que busca levar em conta todo o processo desenvolvido até aqui. Em primeiro lugar, muito se debate sobre o fato de a Bossa Nova ter sido uma linguagem e um movimento que trouxe uma série de inovações ou, em outro extremo, um movimento de mera continuidade. Tentando responder a essa polêmica, Walter Garcia128 sai em busca de pistas no canto, na “performance” de João Gilberto, um dos principais representantes do movimento. Analisando a “dicção” do cancionista, Garcia diz que a “batida” do seu violão, sua forma de cantar em baixo volume sem efeitos na voz e no contratempo do violão foram criações do artista que se mostraram trangressoras e diferenciadas no contexto da canção brasileira, mas que, ainda assim, guardam influências dos tempos anteriores do cancioneiro nacional. Segundo o autor, a batida rítmica da Bossa Nova,

estruturadora dojogo entre voz e violão, expressa uma

“contradição sem conflitos”, isto porque o caráter da voz de João Gilberto intervém evitando que o mesmo se instale, suspendendo o conflito muitas vezes irreconciliável nas canções e unificando os termos opostos entre canto e fala. O autor analisa também, a relação entre o compositor/violonista/cantor e seu público ouvinte. Sua forma de cantar, que a princípio desagrada e soa estranha, é incorporada aos ouvidos e ao repertório musical desses ouvintes, que acabam estabelecendo com ele, com a sua “conversa cantada”, uma relação de aceitação e de silêncio. Nos shows o único a cantar é o próprio cantor; não pode haver barulho, nem acompanhamento por parte dos ouvintes. Garcia identifica também nesse processo, na relação 128

Walter GARCIA, Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto. 102

entre artista/ouvinte, a existência desta “contradição sem conflitos”. Quanto à relação com os ouvintes, este é um debate que será deixado para os próximos capítulos. Voltando-se para a questão da Bossa Nova e sua tradição, encontra-se esta última como um conceito tantas vezes esquecido pelo pensamento marxista tradicional, que tendia a vê-lo sempre como fator secundário, próprio à superestrutura ou ainda como algo inerte, morto. No entanto, como sugere Raymond Williams, a tradição é a expressão mais evidente das pressões e dos limites dominantes e hegemônicos, uma forma prática de incorporação que segue, porém, intencionalidades referentes ao presente, que aponta para a existência de uma “tradição seletiva”129, a qual é muito operativa no processo de definição e de identificação social e cultural. É o caso de preferir se relacionar e se filiar a certos aspectos, elementos, estilos do passado e não a outros, que são negligenciados, ocultados. No entanto, esta tradição seletiva acaba por passar para a “história oficial”, uma idéia hegemônica da tradição, a versão mais correta do transcorrer histórico de uma forma ou movimento artístico, por assim dizer. Assim, a tradição tem a ver com a organização social contemporânea, isto é, tem a ver com o tempo presente a partir do qual se fala e se seleciona. No caso da Bossa Nova, isso fica muito claro quando se identifica uma tentativa dos agentes produtores de serem considerados herdeiros de uma certa categoria de música brasileira: a música sofisticada, o samba-canção, com influências internacionais, sim, mas um produto nacional, ou ainda quando eles tentam afirmar uma filiação ao samba dos primeiros tempos. Nesse sentido, há também um movimento em direção ao desligamento do samba-canção abolerado, derramado e “brega” que se relatou mais acima. A filiação a esta tradição era (e ainda é) rechaçada por parte dos bossanovistas. É desse modo que a tradição deve ser compreendida no seu sentido ativo e hegemônico como uma tentativa de confirmação histórica e cultural que tem a ver com interesses do presente, e não como algo preso ao passado, o contrário de inovação. Muitas vezes pode-se pensar que a tradição seletiva está estritamente ligada às instituições formalmente identificáveis e estabelecidas no campo social, mas também é possível notá-la – e de maneira mais freqüente – nas “formações”130, que são movimentos, tendências que têm papel no desenvolvimento de uma cultura, mantendo com as instituições uma relação variável, fluida, de incorporação e de resistência. É aí que a Bossa Nova pode ser identificada e compreendida muito

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Raymond WILLIAMS, Tradições, instituições, formações. In: ____ Marxismo e Literatura, passim. Raymond WILLIANS, Formações. In: _____Cultura. 103

mais como formação e não como instituição ou movimento (no sentido mais sociológico do termo), pelo menos em seu início como estilo musical. Por formação, compreende-se as modalidades de auto-organização, como círculos, escolas, agrupamentos, enfim, que definem ou apontam para tendências, intervindo no debate cultural ou, neste caso, musical. Quando a Bossa Nova se inicia, nas reuniões dos apartamentos ou mesmo no trabalho de renovação musical nas boates cariocas, não era mais do que um grupo de músicos e compositores com formações diferentes, vindo de locais variados e em número reduzido, apesar de uma certa tendência de rapidez de aglutinação, compartilhando alguns interesses comuns como a busca por uma música com sonoridade diferente que associasse os elementos sofisticados do jazz com letras mais coloquiais e sintéticas. Esses encontros se caracterizavam por uma ausência de regras específicas para sua formulação, reunindo sujeitos que vinham tanto de tradições poéticas mais clássicas como no caso de Vinícius de Morares; músicos com formação erudita que acabaram misturando em suas composições elementos populares, como fez Tom Jobim; músicos de formação jazzística como João Donato e Johnny Alf; letristas advindos do meio jornalístico, como Ronaldo Bôscoli e até jovens compositores em busca de uma renovação como Carlos Lyra e Roberto Menescal, entre outros. Mais tarde, incorporaria ainda intérpretes como Maysa, Sylvia Telles, Lúcio Alves, pertencentes a uma tradição do samba-canção mais sofisticado. Desta maneira é que o conceito de formação informa muito mais acerca da Bossa Nova, que o de “movimento”, que sugere um projeto coletivo combativo, coeso e uniforme, veiculado por meio de programas, manifestos ou atitudes performáticas próprias, coesas e únicas. Pensando mais sobre esta questão das diferenças dentro do grupo, seria importante atentar para quais tradições este grupo olha, identifica-se e traz como marca. É possível perceber que muitos grupos buscam desvencilhar-se de uma associação ao que foi imediatamente anterior. Neste sentido é que se pode compreender melhor a questão residual e emergente dentro de um movimento, como o que se guarda do seu passado e quais são os elementos novos. Mais uma vez lembrando, residual é um elemento formado no passado mas que continua ativo no presente, como no caso do samba-çanção de nomes como Dick Farney e Lucio Alves que usam elementos deste passado musical. Arcaico é o que sobrevive do passado apenas como passado, ou seja, na rememoração ou na vontade do esquecimento, naquilo que se quer negar, como as músicas dorde-cotovelo, de linguagem rasgada, derramada e exagerada. Por outro lado, o emergente são as

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formas novas que atuam, pressionam mas que ainda não estão perfeitamente articuladas no interior do grupo e que não necessariamente serão forças dominantes. É importante atentar para esta complexidade de uma cultura ou de uma formação musical, sem permitir que os elementos dominantes e hegemônicos encubram suas diferenciações. Esta tendência encobridora, como aponta Raymond Williams, é

comum nas análises de movimentos como as “vanguardas”,

quando se busca apenas os marcos de ruptura, aquilo que as une, destacando, na obra de um grupo, características formais e estilísticas como elementos de unidade. Quando esses elementos comuns não são encontrados, ou se percebe sua recorrência apenas por um curto período de tempo, logo a análise se desarticula e o movimento é visto como algo sem coerência interna. Isto acontece, segundo Williams, porque se esquece de olhar para as características externas à obra, nas quais podem ser compreendidas inúmeras questões relativas ao mesmo. Mas ainda no campo da forma, José Estevam Gava131, num estudo recente sobre as inovações harmônicas da Bossa Nova frente ao samba, ressalta algumas características que podem ser elencadas como sendo seus princípios estilísticos, dentre os quais se destacam alguns como uma empostação de voz mais natural e relaxada; um estilo camerístico caracterizado pela economia e sutileza; uma certa independência entre a estrutura rítmica do acompanhamento em relação à melodia; atenção aos detalhes nas gravações e, consequentemente, a retirada do papel centralizador do intérprete da canção, abrindo espaço e dando importância para arranjador e técnicos; desenvolvimento de uma linguagem violonística de acompanhamento; redução e concentração dos elementos poéticos e musicais numa linguagem mais enxuta; caráter mais coloquial desta narrativa musical e poética sem preciosismos vocais, entre outros. Segundo o autor, o estilo musical da Bossa Nova apoiava-se em bases muito claras e definidas, onde qualquer “deslize” ou variação na composição ou na interpretação, comprometiam esta solução formal bem delineada. Ora, baseando-se estritamente nestas características para compreender a Bossa Nova, acaba-se por classificá-la como uma vanguarda. Embora estas características apontadas sejam absolutamente pertinentes, este olhar estrito para a forma, acaba por lhe dar (como alguns autores colocam) um caráter de movimento efêmero, tendo um fim prematuro, circunscrito a um período muito curto e delimitado da história, excluindo a possibilidade mais ampla de encará-la como

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José Estevam GAVA. A linguagem harmônica da Bossa Nova. São Paulo, 1994. Dissertação (Mestrado em Artes - Musicologia). Unesp/SP. 105

formação, com diferenciações internas e sem uma necessária coesão, que dá, por isso mesmo, margem à constituição de novas formações, ou até à permanência e conservação desta musicalidade sob outras leituras e interpretações, geradoras de outras formas. É difícil atribuir aos bossanovistas uma identidade única. Seu ar informal, descrito como um “grupo de amigos que se reuniam para compor, tocar e cantar”, nas palavras de seus participantes, é algo próprio das formações, que, a partir desse estado de fluidez, permite o reconhecimento de diferenciações internas, de aspectos diversos que dariam, logo em seguida, origem a outras formações, como foi o caso de compositores com temáticas mais sociais e de protesto. Estes acabaram por se desligar da formação original, procurando e fundando formas musicais mais adequadas ao ideário de engajamento e participação ligadas à questão nacional– popular tão presente naquele contexto. Desta modo, esse estado fluído, próprio às formações, é favorável às rupturas, o que é mais difícil de acontecer nos processos de institucionalização, em que as características hegemônicas parecem se sobressair sobre as diferenças. Outrossim, na modernidade, as formações tendem a ser mais comuns em épocas de transição e de intersecção no interior de uma história cultural. No caso da Bossa Nova, ela vai apontar para uma série de elementos culturais e musicais que eclodiriam nos anos 60, o que a torna elemento chave para o entendimento da cultura musical brasileira. É assim que se pode compreender que o “racha” – já tão comentado – da Bossa Nova, que teria ocorrido em 1961/62 a partir da sua “ala politizada”, não teria sido uma quebra, um desvirtuamento do movimento (como alguns querem destacar), que perdeu sua direção, ou em que se perdeu como movimento. É necessário compreender que estas diferenciações estavam na sua origem, em que setores das camadas médias urbanas já se alinhavam numa ideologia nacionalista de valorização do popular e se valeram desta formação musical com características modernas e populares para virem à tona. Em outras palavras, estes elementos estavam ativos e em conflito desde o começo, fazendo parte e compondo suas feições. Assim, se por um lado a Bossa Nova inovava em seus aspectos musicais, por outro também guardava inúmeras relações com seu passado, não podendo ser encarada como ruptura. Seu caráter sofisticado, como uma música de cunho camerístico, alta elaboração e complexidade formal nas harmonias e no ritmo, apresenta várias ressonâncias com a música que já se fazia no Brasil, permitindo que sejam identificados fortes elementos em sua linguagem que a vinculam a uma tradição popular da música brasileira de fala coloquial e de canto falado. Num outro sentido,

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não são poucos os autores que a articulam a uma matriz musical impressionista. Esta influência, aliás, passou muitas vezes despercebida pois considerou-se que a harmonia triádica moderna (supertertian harmony)132 utilizada pela Bossa Nova fosse de origem americana, quando, na verdade, era uma prática comum nas composições francesas da passagem do século XIX para o XX em compositores como Claude Debussy133. Tom Jobim foi um compositor em que é possível perceber, em muitas de suas obras, esta matriz impressionista, possuindo acordes com notas “estranhas”, como nonas, décimas primeiras, décimas terceiras. Sem um aprofundamento maior sobre o impressionismo musical, cumpre dizer que ele está relacionado com a figura do francês Claude Debussy, criador de um sistema de acordes isolados que juntos formam o todo, livres da rigidez da harmonia tradicional, baseado mais no ouvido e intuição do que nos tratados de harmonia e composição. Esses acordes, compostos dessa forma, levaram seus contemporâneos a associá-los às pinceladas soltas dos pintores impressionistas; daí essa denominação comum. A música impressionista é entendida como galáxia sonora, parecendo uma nebulosa, sem contornos definidos e onde mar, vento e nuvens sugerem imagens musicais. Na sua composição passam, a ter importância os acordes isolados, os timbres e as pausas, com cada detalhe meticulosamente anotado, cada nuance de ritmo, harmonia ou textura exatamente calculados, numa vontade de que o efeito sonoro fosse de improvisação. Um estilo, portanto, que valorizava não tanto o caráter pragmático ou organizado da música tradicional, mas sim a evasão das sensações, aquilo que os órgãos e sentidos captam. 134 Entretanto, como já foi dito, uma análise isolada de um estilo musical ou movimento, parece ser um tanto quanto obscura, seja analisando sua obra, seu conteúdo, seja analisando o grupo, a formação. Faz-se necessária, uma análise mais geral da sociedade, buscando identificar e interpretar as condições que tornaram possíveis tais formações, tanto num âmbito mais geral, político e econômico, quanto nas miudezas, nos cacos cotidianos, em profunda relação com a totalidade. A Bossa Nova parecia conter um ideário de modernidade, como sugerem as palavras de seus participantes e sua configuração para além das fronteiras estritamente musicais, colocandose, entre outros aspectos, no âmbito da experiência urbana dos sujeitos nela inseridos. Aqui parece importante recuperar proposições mais abrangentes reveladas a partir de idéias de 132

Idem. Eric SALZMAN, Introdução a música o século XX. 134 Idem. 133

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“modernidade”, de novos modos de ser e agir, em que esta música não se colocou apenas como um novo estilo musical, mas se queria também como um novo estilo de vida.135 Considerando a experiência musical destes sujeitos – que cantam, compõem, tocam, improvisam e se reúnem - para discutir, cantar e fazer shows – como inserida num conjunto mais amplo de suas vidas urbanas, parece ser revelador o fato de essas experiências ocorrerem em ambientes específicos como bares, universidades, e nas casas de seus participantes. Esta análise busca contemplar a experiência bossanovista articulada ao meio social/cultural/econômico dos anos considerados, partindo dos lugares e dos ambientes dos acontecimentos. O que se procura desvendar são aspectos deste novo viver urbano proposto pelos bossanovistas, rastreando a idéia de um “ser moderno” nos anos 50. A parte da cidade onde a Bossa Nova nasceu - em que viviam grande número de seus agentes –, a zona sul, mais precisamente, Copacabana, também colaborava para construir este ideário de modernidade. A discussão específica sobre a cidade será retomada e melhor discutida num dos próximos capítulos. No campo musical, a idéia de “ser moderno” estava também presente. Havia uma tentativa de colocar o movimento como algo inovador, que rompia com a musicalidade estabelecida, tanto nas letras, como também nas melodias, harmonias e, fundamentalmente, no ritmo. Em relação a esta questão, era corrente na época avaliar a Bossa Nova e essa sua “modernidade”, como algo inventado unicamente por João Gilberto, responsável por uma outra maneira de cantar, sem os arroubos interpretativos que marcaram a sua passagem pelo conjunto vocal Garotos da Lua, em 1950. Agora, ele cantava em baixo volume, dando a nota exata sem vibrato, acentuando os tempos fracos da música e, no violão, acentuando a famosa “batida” 136, que pode ser caracterizada pela introdução do uso dos acordes compactos, de elevada tensão harmônica: a marcação dos beats em defasagem. Dentro desta idéia de modernidade, estava contido um certo “ar despojado”, percebido na memória da experiência de seus integrantes e dos ambientes frequentados; cores de uma sociabilidade e de convivências que se queriam mais soltas, mais informais. Muitos de seus participantes, em suas lembranças, não se cansam de falar sobre a “turma da Bossa Nova” como 135

Simone Luci PEREIRA, Bossa Nova é sal, é sol, é sul: música e experiências urbanas (Rio de Janeiro, 19541964). São Paulo, 1998. Dissertação (Mestrado em História Social) – PUC/SP. 136 “A chamada ‘batida clássica’ (tradicional, baseada no grupo semicolcheia, colcheia, semicolcheia)” é diferente do que se considera a “batida da Bossa Nova”, “um defasamento no tempo físico entre os acentos tônicos periódicos da linha melódica e os do acompanhamento causado pelo uso reiterado de síncopas.” Brasil Rocha BRITO, Bossa Nova. In: Augusto CAMPOS, Balanço da Bossa e outras bossas. 108

um grupo de espírito irreverente.137 Aqui também se faz presente uma espécie de promoção dos valores e preceitos juvenis que se espalhou pelas culturas ocidentais no pós-guerra, como parte de um processo de formação não só das camadas médias, mas de um padrão médio de consumo e de estilo de vida, em que a aquisição de bens não demarca apenas um fator econômico mas também, como sugere Pierre Bourdieu, a estruturação de uma diferenciação social, a configuração de um estilo de vida, demarcando um gosto próprio ao capital cultural formado pelo habitus dos sujeitos, mapeando a posição de cada indivíduo na sociedade138. Em resposta, ocorre uma setorização também da produção de bens de consumo, especificando roupas, eletrodomésticos, cosméticos e também músicas para estes novos setores sociais que entravam para o mercado de trabalho no pós-guerra, e que também poderiam consumir, como as mulheres e os jovens. Um consumo de caráter real e simbólico. No entanto, há que se olhar para esta questão de uma maneira mais ampla. Não se pode negar que haja realmente uma massificação da sociedade, onde a cultura também foi modificada a partir do desenvolvimento das sociedades modernas ocidentais, em que as massas urbanas passaram a ter acesso a um novo padrão de vida, entrando cada vez mais no universo do bem-estar, lazer, consumo, antes prerrogativa das classes altas. O desenvolvimento do trabalho assalariado e as facilidades trazidas pela tecnologia, possibilitaram ao homem um menor tempo de trabalho e, consequentemente, um maior tempo para o lazer e para a vida privada, gerando um alto grau de individualização das pessoas. Em outras palavras, como diz Edgar Morin, “a seiva da vida encontra novas irrigações fora do trabalho. As vivências vão se refugiar no lazer e vão acentuar o movimento mais geral no sentido da vida privada”139. Desta maneira, há que se entender o desenvolvimento da cultura de massas também em função das necessidades individuais que emergem, fornecendo à vida privada as imagens e modelos aspirados por estas pessoas. Estas aspirações, não podendo ser satisfeitas na racionalidade das grandes cidades, necessitam da evasão trazida pela cultura de massas, na procura por um universo imaginário da realização, liberdade, amor e felicidade.

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Cf. Luiz Carlos MACIEL e Angela CHAVES. Eles e eu: memórias de Ronaldo Bôscoli; Luiz Fernando FREIRE (Org.), Bossa Nova: som e imagem. Rio de Janeiro: Spala, 1996. Em ambos os livros, existem muitas citações de histórias dos personagens da Bossa Nova que ressaltam sua informalidade, jovialidade, salientando estes aspectos como característicos da vida no Rio de Janeiro. 138 Renato ORTIZ (Org.), Pierre Bourdieu. 139 Edgar MORIN, Cultura de massas no século XX : o espírito do tempo I – Neurose, p.89. 109

Os teóricos da Escola de Frankfurt já apontavam para esta questão ainda na década de 30. Mas para além de uma “dialética da negatividade”140 ali proposta – em que se pensa a cultura de massas como possuidora de uma “ideologia intrínseca”, alienando os indivíduos, mascarando o real –, procura-se aqui enxergar na cultura de massas um componente do imaginário humano. Novamente lembrando Edgar Morin, sua concepção de estética incorpora este imaginário, sendo que na cultura de massas, esta magia – parte constitutiva da subjetividade do sapiens – faz-se presente e atuante como parte dos mecanismos de identificação e projeção comuns a qualquer cultura, mesmo a de massas (como uma “terceira cultura”), constituindo um corpo de símbolos, mitos, imagens concernentes à vida prática e à vida imaginária, acrescentando-se à cultura nacional, religiosa, humanista, deixando de ser vista apenas como uma invenção do capitalismo e sinônimo de manipulação. Ainda, segundo o autor, não há uma dicotomia entre real e imaginário ou entre objetividade e subjetividade. Estas noções estão interligadas nos indivíduos, constituindo sua complexidade e inacabamento; uma objetividade, assim, que já contém a dimensão imaginária, da qual emerge a noção de “duplo”141. Segundo o autor, a análise da cultura de massas não pode ser descolada da noção de que o homem possui em si a dimensão imaginária, que é o que pode explicar muitas das escolhas, motivações que os sujeitos demonstram em sua relação com o consumo cultural massivo. Para Morin, “o movimento que a impulsiona [a cultura de massas] não é só do real para o imaginário, mas também do imaginário para o real; ela não é só evasão, ela é ao mesmo tempo, e contraditoriamente, integração.”142 É por esta objetividade/subjetividade própria ao homem, que se estabelece sua ligação com a cultura de massas, numa relação que é de diálogo e não de manipulação ou constituída por um gosto de classe encarcerado dentro do habitus. A partir desta universalidade da subjetividade e da sua não separação do real e do mundo objetivo é que se pode compreender as relações entre as pessoas e essa cultura, estabelecendo um consumo em seu caráter imaginário, o que pode ser interpretado como uma brecha possível ao indivíduo diante da sociedade de massas. Essa brecha pode ser identificada a partir de diferentes formas de diálogo com estes elementos massivos, não sendo possível conceber o real sem o traço multiforme e multidimensional do imaginário. O consumo estaria evidenciando aquilo que já é constitutivo do indivíduo e os bens, reais ou 140

Susan BUCK-MORSS, Origen de la dialectica negativa, passim. Edgar MORIN, O enigma do homem, passim. 142 Edgar MORIN, Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo I - Neurose. Op.cit.. 141

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simbólicos, consumidos estariam expressando características já existentes no imaginário, e não criando novas necessidades e desejos. Muito se argumenta sobre o fato de este consumo imaginário apontar para a questão do espetáculo, definindo uma sociedade em que o olhar tem preponderância, é mais estimulado, e também mais falseador, redutor, não permitindo leituras variadas por parte do receptor. No entanto, é importante lembrar que a cultura auditiva, a audição, não ficam imunes às considerações sobre sua possível característica alienante. Theodor Adorno trata a arte como a antítese da sociedade, contendo elementos de tensão que a caracterizam como fato estético e social, estabelecendo uma relação dialética entre o prazer e a totalidade, propiciando a síntese entre o parcial e o essencial. Nela, estão internamente presentes as contradições da sociedade – o “mascaramento intrínseco do real”143 e a possibilidade de sua negação. A arte deve ser algo que rejeita esta realidade ao mesmo tempo que a apresenta criticamente ao mundo. Seria a arte a possibilidade de fuga, de antítese de um mundo imperfeito, massacrado pela ideologia e pela falsidade intrínseca.144 No entanto, segundo Adorno, a arte na sociedade burguesa (e, neste caso, a música) assimila o modo de produção capitalista. Partindo dessa afirmação, o autor desenvolve o conceito de “fetichismo” musical, no qual considera que o processo de publicização e circulação de bens culturais passa a ter precedência sobre aquele no qual as obras ganham sentido. É assim que o elemento de aparência sensível dos objetos estéticos, de uma obra musical, perdem-se naqueles que caracterizam sua possibilidade de intercâmbio num contexto capitalista. O valor de uso é sobrepujado pelo valor de troca na medida em que a função do estético incorporou à sua estrutura uma função de justificação da própria lógica da produção. O caráter fetichista da música produz, por meio da identificação dos ouvintes, o que é lançado no mercado, o seu próprio mascaramento. A partir dessa concepção fetichista, o ouvinte desenvolve uma sensibilidade auditiva absolutamente atômica e desarticulada. O ouvinte, na sua descontração (que, aliás, é a tônica da vida sob a égide da indústria cultural massificadora com o lazer e o “tempo livre”), dá margem à armadilha estratégica da ideologia dominante, uma vez que esse modo de percepção musical – por meio do qual se prepara o esquecer e o rápido recordar da música de massas – permite que se estabeleça uma situação de

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Theodor ADORNO, O conceito de Iluminismo. In: Os Pensadores, passim. Theodor ADORNO, Teoria Estética. 111

alienação. É nesse sentido que Adorno argumenta que na sociedade capitalista ocorre uma "regressão da audição"145, caracterizada na música popular (ou "música ligeira") pelo afastamento daquilo que está implicado em sua fruição como um exercício de percepção da totalidade quando toda a obra se exprime. No caso da música de consumo, esta apreciação é essencialmente parcial e dirigida para um gozo que é alienante e reforçador das estruturas sociais que sustentam este modo de produção. O prazer estético possível é um mero fetiche, um falso prazer e, por conseguinte, uma falsa realização, pois, por seu intermédio, aquilo que é reafirmado e reificado são as forças sociais que ditam as regras do gosto e que, ao mesmo tempo, são a sede de uma lógica industrial de produção. A escuta regressiva, seria, assim, uma audição incapaz de articular as obras no plano de uma totalidade conceitual, estando permanentemente tomada pelo contingente. Para Adorno, a melhor caracterização possível deste fenômeno regressivo está na desconcentração típica da relação com o jazz e com a música ligeira em geral. No entanto, a perspectiva de se trabalhar com a escuta musical neste trabalho, segue por outros caminhos, apontando para seu caráter polissêmico e fabulativo, aberto às múltiplas formas de sentir e re-organizar a visão e escuta do mundo, incorporando a lógica própria das apropriações e dos usos do receptor, compreendendo a sua capacidade de produzir significados. Uma

música construída de formas, sons, gestos e conceitos, numa estrutura de

multisensorialidade, não admite valores definidos e verdades absolutas, ao contrário, comporta liberdades (embora não absolutas), em que o ouvinte pode vir a tomar parte do trabalho musical, como uma espécie de co-autoria, uma vez que a música só se completa na sua escuta. Como argumenta Silvio Ferraz146, existe, na música, o “ritornelo” que, ao mesmo tempo que é uma repetição demarcadora de um território, traça suas linhas de fuga. A repetição é o elemento unificador da composição musical que, sendo algo complexo, possui a diferença bloqueando uma repetição do mesmo. A diferença também está entre obra e ouvinte, destacandose na relação do compositor com outras obras, na relação entre tradição e tradução – quando o autor se vale de seu repertório musical para compor, imprimindo uma marca própria e também no âmbito da escuta musical, que produz sempre uma diferença diante do fator determinante formulado pelo compositor, isto por conta das linhas de fugas presentes em toda obra musical.

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Theodor ADORNO, O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Os Pensadores, passim. Silvio FERRAZ, Música e repetição: a diferença na composição contemporânea. 112

Além disso, a música estando inserida no campo do som, da voz, articula um outro tipo de textualidade, o da oralidade. Lembrando Paul Zumthor, o termo “vocalidade” 147 é mais indicado para o que será analisado: a função da voz, seu uso e sua historicidade. Zumthor revela, em suas considerações sobre a oralidade, esta dimensão da comunicação que incorpora a fala humana e o engajamento do corpo no

processo, montando uma teatralidade em que vários elementos

cristalizam-se em uma e para uma percepção sensorial. A este complexo, Zumthor dá o nome de performance.148 Mais precisamente, para além de trabalhar aqui com a fala e com a voz, com os sons e com a música, está também em questão a palavra cantada, a canção, que é a junção entre letra e música. O encontro da palavra com a música estabelece o canto, o cantar, elemento fundamental na música popular urbana deste século, suscitando harmonias, dissonâncias, contradições, conflitos e junções149. Na canção, para além de uma gestualidade oral e vocal de quem canta, com seu timbre e sonoridade, há uma gestualidade corporal, um jeito de se comportar, gesticular, mover os lábios, fechar os olhos, que tem comunicação com o ouvinte, tornando-o co-autor da obra. O termo “performance” parece ser de muita importância para compreender, para além da canção e de seus significados, a forma como aquela é percebida sensorialmente por seus ouvintes e o modo como estes se relacionam com aqueles símbolos corporais emitidos, numa situação em que tato, peso, volume, sonoridade e visão, entre outros, são elementos de composição e recepção. Desta maneira, este conceito de performance, intimamente ligado ao que é chamado de sujeito receptor, deve ser acionado na tentativa de compreensão deste ouvinte, de sua escuta e de suas maneiras de percepção. Neste sentido, a performance bossanovista, intimista, sutil, econômica, mas ao mesmo tempo ritmada, cadenciada, parece propor esta aproximação com seu público. Quando se imagina os primeiros shows bossanovistas nas universidades cariocas, é necessário levar em conta que este seu caráter intimista aproximava, criando elos entre os intérpretes e seu público. Tendo em vista, de modo sempre presente, este elemento informal de aproximação, é possível identificar um tom arrogante e distante de uma música difícil e elitista, exigindo concentração e conhecimento por parte do ouvinte mas também uma música que embalava situações cotidianas.

147

Paul ZUNTHOR, A letra e a voz: a “literatura” medieval, passim. Paul ZUMTHOR, Performance, recepção, leitura, passim. 149 Cláudia Neiva de MATOS; Fernanda Teixeira de MEDEIROS; Elizabeth TRAVASSOS (Orgs.). Ao encontro da palavra cantada – poesia, música e voz. 148

113

Ainda dentro dos elementos de sua performance, suas letras simples, coloquiais, por vezes até ingênuas e o seu ritmo que guarda aspectos do samba, proporcionavam este élan com seu público jovem, como será discutido mais à frente. Desta maneira, é importante frisar que aqui não se busca uma interpretação da Bossa Nova como movimento de curta duração, por não ter alcançado popularidade imediata ou por não ter unidade e coesão estilística, mas sim suas muitas diferenciações internas. Este tipo de perspectiva puramente formal impede que seja olhada como música que se completa na escuta, em que se pode interpretar elementos que vão muito além das amarras das análises de “escolas” ou “movimentos” formalmente estruturados. Assume-se que a Bossa Nova, entre os anos de 1958/59 até 1963, existiu como um “movimento” reconhecido socialmente desta forma pela imprensa e pela crítica, mas, compreende-se a Bossa Nova como formação e, neste sentido, pensa-se suas diferenciações internas de onde se originaram outras formas musicais. Também não se pretende classificá-la como música camerística, elitista e sofisticada, com dificuldade para alcançar um público mais amplo exatamente por exigir concentração e ouvido educado, entre outras solicitações. O que se pretende é toma-la em suas múltiplas mediações com a vida cotidiana destes jovens ouvintes, buscando perceber os elos, as formas de escuta que contrariam qualquer tendência redutora e classificatória, como se verá nos próximos capítulos. A Bossa Nova, dentro dessa perspectiva, deixa de vista como música para ser ouvida e entendida apenas por um grupo específico – as camadas médias educadas e com formação musical – cujas práticas são fruto da constituição de seu habitus de classe ou grupo. Este modelo de conduta, formado no processo básico de socialização, operaria uma relação dialética entre as condições externas estruturais e as disposições e tendências internas, envolvendo também as subjetividades e as práticas objetivas, constituindo uma “experiência subjetiva”. Estando implícitas, estas práticas não precisariam ser ditas, isto quer dizer que são práticas para as quais nenhum modelo explanatório ou discursivo é necessário. É assim um “sistema internalizado de estruturas estruturadas e estruturantes”, como sugere Pierre Bourdieu150. Pode-se até argumentar que o pensamento desse sociólogo considera uma certa mobilidade, no sentido de que as estruturas são estruturantes, possuem um componente dado, mas também estão em movimento, em andamento, fazendo-se e refazendo-se. No entanto, para ele, não é possível ao sujeito fugir

150

Pierre BOURDIEU, Esboço de uma teoria prática. In: _____ Renato ORTIZ (Org.) Pierre Bourdieu. Op.cit.. 114

do destino social e cultural de seu grupo, nem mesmo lhe é possível driblar ou reinventar as regularidades impostas pelos esquemas reprodutores. A análise social de Bourdieu é de grande valor para o entendimento da sociedade e de suas práticas por reconhecer a existência de um campo simbólico, uma autonomia para o campo cultural e a existência de lutas por hegemonia, mas, é indispensável que seja superada, uma vez que acaba enquadrando de modo redutor os sujeitos e as práticas. Embora não se deva perder-se numa análise que projeta uma infinita criatividade nos receptores e busca encontrar esta “criatividade” de maneira concreta, declarada, organizada, ainda assim é necessário interpretar o cotidiano dos sujeitos. Mesmo reconhecendo que possuem um pertencimento cultural e social, não se pode fazer deste uma amarra que não permita compreender as práticas que diferem, que são fluidas, fragmentárias, que subvertem a ordem, a estrutura, em que os os sujeitos podem se aproveitar exatamente do que as instituições formalizadas oferecem, para utilizá-las e apropriálas de maneiras diferentes. Como bem argumenta Michel de Certeau151, seria o caso de valorizar as táticas desses sujeitos, como ações conscientes, determinadas exatamente pela ausência de um lugar próprio, valendo-se de uma espécie de calculismo, apesar da ausência de poder, trabalhando assim, com as condições objetivas que lhe são dadas, reconhecendo a existência e força dos sistemas reprodutores, mas traduzindo-se como a arte do fraco, que busca subverter a ordem dada por meio de pequenas ações próprias ao cotidiano. As táticas se diferenciam das estratégias, que são os movimentos estruturados da instituição, tendo como lugar o poder. Os ouvintes da Bossa Nova parecem estar inseridos muito mais num processo dinâmico, entre práticas e estruturas variáveis e fluidas que se realizam no cotidiano, do que encarcerados em gostos de classe. Se a própria Bossa Nova continha em si, elementos populares, eruditos, residuais, emergentes, constituindo-se como algo plural, não é possível pensar que seus ouvintes eram também únicos, fechados em um grupo, compartilhando um único estilo de vida. Avançando nesta reflexão, ainda que a Bossa Nova tenha tomado como hegemônica sua sofisticação, as mediações possíveis com seu público podem não ter confirmado esta questão. Volto a lembrar, não é o caso de dar ao âmbito da recepção um caráter absolutamente autônomo e criativo, mas de pensá-lo em articulação com as instituições e sistemas reprodutores, perfazendo esta relação dinâmica e complexa do cotidiano. 151

Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano : 1. Artes de fazer. 115

Para compreender ainda mais esta relação, cumpre retomar a questão da performance. Zumthor, ao designar a performance mediatizada152 como a que prescinde da coincidência entre espaço e tempo, separando o momento da interpretação do de sua recepção graças à utilização de aparatos técnicos como o microfone de amplificação, o rádio, o disco, afirma também que isto não significa necessariamente perda, pois os elementos vocais e as gestualidades próprias da performance continuam, embora alteradas, presentes e interagindo na recepção. Pensando-se, mais uma vez, no canto-falado de João Gilberto, que foi preservado como primeiro plano em todas as suas gravações, revelando que sua performance entoativa e rítmica se preservou e reverberou (de modos diferenciados, é claro) nos ouvintes. A partir dessa discussão sobre performance e performance mediatizada é que se compreende esta sonoridade bossanovista em relação ao desenvolvimento da cultura de massas no Brasil, à instauração de um mercado de bens simbólicos, à industrialização da cultura e, mais precisamente, em relação ao desenvolvimento das mídias sonoras. Atenta-se, assim, para o modo como a técnica se relaciona com as sensibilidades e como as afeta. Heloísa Valente ressalta que a introdução das tecnologias trouxe consigo questões inovadoras, dentre elas, a alta-fidelidade que, para além de uma transformação puramente técnica, foi uma transformação social, fazendo com que as performances ao vivo deixassem de ser referência diante das performances mediatizadas. Segundo a autora, “seu advento (o hi-fi - abreviação do inglês high fidelity) nos Estados Unidos, coincide com a popularização da televisão, seguida da estereofonia. A conquista da alta-fidelidade e da estereofonia constitui uma das razões que dinamizam o efeito da performance no receptor. A década de 1950, dentre outros, é o momento do cool jazz e também dos crooners, e a característica intimista desses gêneros, 153 certamente seria incrementada com a aproximação tátil que a alta-fidelidade passou a oferecer.”

Por conta dessas transformações, é possível afirmar que a estética do canto popular urbano ocidental contemporâneo está intimamente ligada à questão tecnológica, a sua mediação, à midiatização, e não apenas aos instrumentos, uma vez que uma das novidades trazidas pela modernidade foi a “transcrição eletromagnética” 154 dos sons, representada pelo microfone, pelo registro fonográfico e sua difusão.

152

Paul ZUMTHOR, Introdução à poesia oral. Heloisa de Araújo Duarte VALENTE, As vozes da canção na mídia, p.57. 154 Felipe ABREU, A questão da técnica vocal ou a busca da harmonia entre música e palavra. In: Cláudia Neiva MATOS. et alli. (Orgs.). Ao encontro da palavra cantada – poesia, música e voz. 153

116

Tomando o canto intimista de João Gilberto e de outros bossanovistas que entrariam para a cena musical, percebe-se essas mudanças de modo claro. No entanto, não se pode reduzir o entendimento sobre a adoção deste volume mais baixo a uma

determinação, pura e

simplesmente, do incremento das técnicas – como se as vozes de alta intensidade tivessem desaparecido com as técnicas de gravação. Esse modo de cantar faz parte de um projeto estilístico, associado às possibilidades dadas pelo desenvolvimento tecnológico. Antes disso, o mais valorizado na canção popular urbana era o nome do intérprete e a qualidade de sua voz, associada a sua capacidade de empostação. A partir daqui, passa a ter importância a famosa “ficha técnica”, em que estão não só instrumentistas, arranjadores, maestros, mas também produtores, técnicos de gravação, engenheiros de som, layoutmen, entre outros profissionais que participaram do projeto de gravação e edição do disco. Todos estes aspectos, anteriormente desvalorizados, uma vez que se pensava no disco como algo muito mais solo – ligado ao estrelismo e às vaidades pela potência vocal –, com a Bossa Nova, assumiram posições de destaque em função da atenção aos detalhes e em função da idéia de que a feitura de um disco é um trabalho de equipe. Essa mudança de perspectiva ajudou a dissolver a noção de autoria e a elevar o nível técnico das gravações, passando a ser objeto de atenção tanto os detalhes da gravação quanto a voz do cantor, num trabalho que buscava o equilíbrio entre voz, instrumento e play-back. A exploração mais consciente das possibilidades e recursos da gravação, como argumenta Augusto de Campos, “suas novas bases de tratamento como coisa em si e não como registro passivo da execução musical”155 permitiu o surgimento de novas empresas ligadas ao meio fonográfico. Várias empresas nacionais já imprimiam e/ou distribuíam catálogos internacionais. Desde 1929, a empresa norte-americana Columbia CBS era representada no Brasil pela Byington e Cia, através do selo Columbia do Brasil e, após sua instalação no país em 1953, através do selo Continental. Também a Chantecler, gravadora nacional, iniciou suas atividades em 1956, distribuindo discos e utilizando o conhecimento adquirido por meio de seu contato com a RCA. A partir da década de 50, muitas das majors internacionais que hoje dominam o mercado iniciaram ou ampliaram suas atividades no país. A “Phillips-Phonogram (depois Poly Gram e, atualmente, parte da Universal Music) instalou-se em 1960 a partir da aquisição da CBD; a CBS

155

Augusto de CAMPOS. Balanço da Bossa e outras bossas, passim. 117

(hoje Sony Music) – instalada desde 1953 – se consolidou a partir de 1963” 156. E, paralelamente, a indústria como um todo foi alcançando alto nível de organização institucional em busca da defesa de seus interesses, fato atestado pela criação da ABPD (Associação Nacional dos Produtores de Disco), ainda em 1958. Em meio a este contexto da indústria fonográfica nasceu a Bossa Nova. Quando surgiu esta “nova” música, a imprensa e a crítica musical buscaram torná-la cada vez mais pública. Nos shows universitários e nos clubes cariocas, logo surgiram empresários, homens de marketing e estrategistas da indústria, dispostos a lançá-la comercialmente. Identificada como música jovem, a Bossa Nova foi considerada um produto perfeito para este segmento de mercado que crescia juntamente com o desenvolvimento urbano, industrial e o consumo. No Brasil, até os anos 50, a segmentação do campo musical tinha como base uma cultura de massas ainda incipiente e um mercado de bens simbólicos não unificado que permitia um trânsito maior entre grupos de artistas eruditos e populares. A partir da Bossa Nova, isso começa a mudar. Este movimento buscava se colocar – e de alguma forma assim também reverberava socialmente – como algo distante do mau gosto hegemônico das rádios, apresentando-se como um padrão estético mais adequado às aspirações das camadas médias desejosas de se sentirem modernas e cosmopolitas. Vai operando-se, assim, uma cisão entre uma produção fonográfica destinada ao grande público e um outro segmento auto-proclamado culto e sofisticado, que buscava se legitimar pelo aprimoramento técnico e estético de suas produções em oposição ao mero comercialismo. José R. Zan aponta para um certo posicionamento do músico bossanovista em querer se caracterizar por um certo amadorismo, que não era de fato, mas uma convenção de gênero, onde o descompromisso com relação à profissionalização e ao mercado passava a ser uma categoria, um sinal de distinção na luta simbólica dentro do campo musical.157 O primeiro a descobrir o potencial de mercado da Bossa Nova foi André Midani, diretor artístico da Odeon (multinacional) que, já em 1959, apressou-se em contratar os jovens artistas para a gravação de um disco que seria lançado em seguida, acompanhado de diversas matérias na imprensa, publicidade e programas de rádio. No ano anterior, a Odeon havia editado dois compactos de João Gilberto, os quais pareciam ser a síntese do que buscava a nova música. No ano seguinte, a Phillips (binacional), outra gravadora de grande porte tratou de sinalizar com 156

Eduardo VICENTE. Música e disco no Brasil: a trajetória da indústria nas décadas de 80 e 90. São Paulo, 2001. Tese (Doutorado em Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, USP, p.67. 157 José Roberto ZAN, Do fundo de quintal à vanguarda. 118

Carlos Lyra – já a esta altura representante de uma ala mais politicamente engajada da Bossa Nova – a elaboração de um outro disco, em paralelo ao da Odeon. Por esta época, as duas gravadoras colaboraram para o acirramento dos ânimos entre os bossanovistas, convidando Lyra para outra gravação, e financiando os shows das universidades num mesmo dia, dividindo o público. Como conta Marcos Napolitano158, este primeiro “racha” da Bossa Nova já apontava para o que seria o eixo fundamental dos embates da música popular nos anos 60: de um lado, uma música como veículo ideológico e de outro uma música de conteúdo comercial, embora esta divisão não possa ser compreendida em termos absolutos, numa relação de completa exclusão. Essa divisão parece se mostrar como uma investida das gravadoras na diversificação de suas posições, num mercado em que o rock já entrava com muita força. Embora seja impossível, pela distância temporal, realizar uma “etnografia da produção” da indústria fonográfica da época, é preciso compreender aspectos deste processo de produção musical. O desenvolvimento da indústria fonográfica implicou também em formas mais racionais de divisão do trabalho dentro das gravadoras, em foram constituindo-se departamentos com finalidades específicas como as diretorias artísticas, comercial e de divulgação. Até os anos 50, a coordenação geral das gravações era uma das funções acumuladas pelo diretor artístico da gravadora, mas o crescimento do mercado acabou por impulsionar o surgimento de um outro cargo, o de assistente de produção. Este, deveria selecionar o repertório, reunir maestros e músicos, designar arranjadores, providenciar a autorização dos autores, marcar estúdio, dentre outras coisas. Com o aumento da complexidade de todo este processo, esse “assistente de produção” acabou por se tornar o “produtor artístico”, responsável por todos os aspectos envolvidos na gravação do disco. A ele cabia fazer a ponte entre o artista e a gravadora, subordinando-o, até certo ponto, à racionalidade do mercado, mas também deixando margens para o desenvolvimento de sua criatividade. Como aponta Rita Morelli159, esse profissional, na década de 70 já contava com um poder de decisão maior do que o próprio artista, sendo uma espécie de mediador entre os aspectos artísticos e mercadológicos do trabalho. Para a Bossa Nova, o papel destes produtores foi fundamental, aglutinando músicos, idealizando discos, convencendo as gravadoras a investir em discos distantes dos padrões de

158 159

Marcos NAPOLITANO, Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959/1969). Rita MORELLI, Indústria fonográfica: um estudo antropológico. 119

sucesso da época, mas aceitos por segmentos mais refinados e sofisticados do mercado. Aos poucos, conforme esse processo ia se desenvolvendo, outros sujeitos do interior da indústria também iam buscando utilizar a nova música como produto para o mercado. Aloysio de Oliveira, recém-saído da Phillips e da Odeon em 1961, que também era músico (acompanhou Carmem Miranda no Bando da Lua), compositor (fazendo músicas inclusive com Tom Jobim) e produtor de shows nas boates cariocas como o Bon Gourmet, acabou por fundar, em 1962, uma nova gravadora, a Elenco, cujo objetivo era conquistar mercado com base na qualidade musical, só produzindo discos de Bossa Nova, um processo, aliás, acompanhado pela fundação de outros dois selos, o Forma e o Som Maior. Entre 1963 e 1967, a Elenco lançou mais de 60 discos, todos caracterizados pela qualidade técnica e estilística, com capas cuidadosamente elaboradas com apuro estético e artístico. Esse não era um selo que funcionava dentro de uma gravadora – o que lhe garantiria boa distribuição e comercialização – mas sim uma gravadora independente que se utilizava de estúdio, fábrica e esquema de distribuição da RCA, com autonomia para gravar o que quisesse160. O mercado se dinamizava, a indústria descobre novos rumos e aponta para um certo tipo de relacionamento entre as majors e as indies no país, as gravadoras nacionais, que tiveram todas um curto espaço de duração sendo absorvidas pelas grandes empresas.161 Num outro sentido, para refutar esta questão, é necessário pensar também sobre o rádio durante o fim dos anos 50 e durante os anos 60. A sua importância para a Bossa Nova – no Rio de Janeiro – pode ser considerada pequena, pelo menos nos seus primeiros tempos e, principalmente, se comparada ao papel que tinha na divulgação de outros estilos musicais. O incremento e crescimento da indústria fonográfica não retirou ou diminuiu a importância do rádio no âmbito musical, mas provocou um reposicionamento de mídias, uma vez que a Bossa Nova se valia muito mais dos shows e dos discos. O rádio, no entanto, foi o veículo que a levou para fora do Rio de Janeiro, atuando como propulsor inclusive no momento em que o mercado consumidor paulista passou a comprar os discos e frequentar os shows universitários produzidos no Teatro Paramount. A inserção da Bossa Nova em São Paulo deveu-se muito à atuação de um DJ famoso à época, Walter Silva, o “Pica-Pau”, um apreciador da nova música. Este paulistano atuava como locutor em rádios do estado desde 1952 e, em 1958, quando começou a comandar seu programa

160 161

José Roberto ZAN, Do fundo de quintal a vanguarda. Eduardo VICENTE, Música e disco no Brasil. 120

Pick-up do Pica-Pau, na Rádio Bandeirantes, acabou por ser seu principal divulgador, executando maciçamente as composições cariocas, tornando-as muito conhecidas por aqui, isto se for considerado que seu programa, em cinco anos de duração (1958-1963), teve uma média de 22 % de Ibope, marca até hoje não superada no rádio brasileiro. O papel de Silva em São Paulo, como divulgador da Bossa Nova é de extrema importância, uma vez que, ele passou também a produzir os famosos shows no Teatro Paramount na capital paulista162, trazendo os bossanovistas, e dando espaço para outros artistas que se incorporariam ao novo estilo musical. Tudo isso mudou um pouco a feição de intimismo que era uma das características iniciais da Bossa Nova, introduzindo-lhe a idéia de espetáculo, de música cênica para grandes públicos. Assumindo o papel de agente musical na Bossa Nova, Silva passou a trabalhar também como produtor musical na TV Excelsior, inaugurada em São Paulo no início dos anos 60. Essa emissora caracterizou-se pela busca de qualidade, tendo como alvo central na sua programação as artes e, fundamentalmente, a música, o que a levou a produzir o primeiro festival de música popular, em 1965, de uma maneira muito influenciada pelo sucesso que alcançavam os espetáculos do Paramount. 163 Indo mais além nesta discussão sobre o mercado consumidor da Bossa Nova, vale a pena atentar para as formas de organização das gravadoras em seus esquemas de distribuição e divulgação naquele momento. A Odeon produziu os dois compactos 78 r.p.m. de João Gilberto em 1958, que continham, no primeiro – lançado em julho – Chega de Saudade e Bim Bom, e no segundo – lançado em novembro – Desafinado e Hobalalá, os quais, a princípio, demoraram para se popularizar no Rio de Janeiro. As rádios em que essas músicas eram executadas eram a Tamoios e a Eldorado, conhecidas por sua sofisticação, mas que, no entanto, tinham um público muito limitado. A Odeon, com estrutura de grande gravadora, teve a habilidade de planejar estrategicamente o lançamento do primeiro compacto em São Paulo, buscando o interesse tanto do responsável pela gravadora na cidade, quanto do gerente de vendas de uma loja de eletrodomésticos e discos, financiadora de um programa de rádio comandado por Hélio de Alencar, a Parada de Sucessos, da Rádio Excélsior-Nacional, que passou a executar o novo compacto. Além disso, o programa Pick-up do Pica-Pau, de Walter Silva, dava prêmios a quem 162

Ao mesmo tempo, em São Paulo, outros jornalistas e publicitários, como Moracy do Val, Franco Paulino, Renato Corrêa de Castro passariam também a produzir shows como o Noites de Bossa, no Teatro de Arena. 163 Walter SILVA, Vou te contar – histórias de música popular brasileira. 121

telefonasse para a rádio e cantasse a música da mesma forma que seu intérprete: com o ritmo “atravessado”164. Intensificando as estratégias de lançamento, nessa mesma ocasião, João Gilberto veio a São Paulo, onde participou de alguns programas de TV, cantando e dando entrevistas. No ano seguinte, em 1959, Tom Jobim começou a gravar semanalmente um programa na TV Paulista chamado O Bom Tom. Em todas essas ações, percebe-se a configuração de estratégias de mercado fundamentais para a expansão do novo gênero musical. Essas estratégias envolviam gravadoras, executivos, divulgadores, DJs, as TVs e também a produção de shows em faculdades a princípio, depois em boates e, em seguida, nos grandes teatros. Apesar desta pesquisa ter como objeto de análise a Bossa Nova e sua recepção no Rio de Janeiro, não é possível esquecer São Paulo, como o local que a popularizou e lançou as bases (nos shows nos teatros e nos programas musicais com a participação dos bossanovistas) para a estruturação dos programas musicais e dos festivais televisivos. Na capital paulista, estavam concentradas as emissoras de televisão, fundamentais no trabalho de divulgação da Bossa Nova nos anos 60. Embora se considere tudo isso, não parece possível, no espaço desta pesquisa, realizar um histórico do campo artístico e musical, bem como do meio social urbano de São Paulo, tal qual foi realizado até aqui sobre o Rio de Janeiro. De qualquer forma, uma reflexão sobre o ouvinte paulista também é considerada, uma vez que foi nesta cidade que sua popularidade alcançou níveis de expressividade destacáveis. Nesse contexto, é preciso considerar o papel da Bossa Nova na instauração de um novo significado que o conceito de “popular” passaria a imprimir na canção brasileira, introduzindo um processo de institucionalização da mesma que viria a se completar no final da década de 60, transformando-se na sigla MPB (Música Popular Brasileira). Esta sigla parecia carregar traços do grande impasse vivido durante toda a década de 60 entre a ideologia do engajamento nacionalpopular e a indústria fonográfica com seus interesse de mercado. Dilema que parece ter se resolvido somente após os festivais e sobretudo após o Tropicalismo, com a entrada de um novo estrato social para o panorama musical popular, tanto no campo da criação quanto no de seu consumo. Setores mais altos das classes médias passaram a encarar essa música como algo respeitável e, mais à frente, faixas das camadas mais baixas também foram incorporadas, principalmente a partir do advento e da crescente veiculação desse tipo de música pela TV.

164

Depoimento de Walter Silva apud Ruy CASTRO, Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. 122

A trajetória da institucionalização da MPB, como aliada à idéia de algo de gosto sofisticado, engajado e crítico, foi marcada pelo engajamento político e pela inserção na indústria cultural numa dinâmica de resistências e incorporações, configurando as lutas por hegemonia próprias ao campo musical. No entanto, não se pode radicalizar a noção polarizada, pondo a MPB de um lado e o popular de outro, pois nos anos 70, estes campos iriam se encontrar por muitas vezes.165 O que se percebe é que dentro da multiplicidade de questões que envolviam a Bossa Nova, estava também a questão política. Se o debate sobre o popular e o nacionalismo na música já vinha há muito tempo se estruturando (como já visto), parece ser com a Bossa Nova que ele ganha cores decisivas. Como aponta Enor Paiano166, se os “folcloristas da cidade”–

maneira

como ele se refere aos agentes deste após o nacionalismo musical de Mario de Andrade, os quais já admitiam a manifestação musical urbana como legítima – ainda não tinham um discurso que lhes permitisse atuar no debate intelectual, também porque a música da época não lhes dava estas condições, com a Bossa Nova estes elementos não faltavam, pois era uma música feita, em parte, por uma juventude intelectualizada em busca de uma forma musical que superasse os impasses de termos como “alienação” e “colonialismo” trazidos à tona e discutidos pelos intelectuais do ISEB. Um polo aglutinador destas tendências dentro da Bossa Nova foram os CPCs (Centros Populares de Cultura) da UNE, a partir de uma crença no papel conscientizador e transformador do intelectual orgânico, atitude inspirada nas idéias de Antonio Gramsci (trazidas para cá exatamente por conta desse debate). Embora se possa argumentar a arbitrariedade ou o equívoco das posições cepecistas em relação ao povo, eleito como personagem principal do debate e das lutas políticas mas na verdade ausente de todo o processo, é preciso atentar para os elementos colocados em pauta que acabaram influenciando posturas, debates e criações, interferindo no jogo de forças de consolidação do campo artístico167 e, mais particularmente, do musical. Primeiramente, o CPC deve ser entendido dentro de um contexto mais amplo de estruturação de um ideário de nacionalismo, manifesto na política do nacional-popular, verificada tanto no nacional-desenvolvimentismo da era Juscelino Kubitschek (1956-1960), como no

165

Eduardo VICENTE, Música e disco no Brasil. Enor PAIANO, O Berimbau e o som universal, passim. 167 Heloísa Buarque de HOLLANDA, Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde – 1960/70. 166

123

nacional-reformismo do governo João Goulart (1961-1964).168 Tendo isso claro, utilizando-se das considerações de Renato Ortiz169, é importante atentar para a própria noção de cultura popular posta em evidência pelos Centros: uma idéia desvinculada da noção de folclore, uma vez que este último era visto como um conceito paternalista, referindo-se às culturas tradicionais como algo de raiz. O popular, defendido pelos cepecistas, era o urbano, instituído de um caráter transformador, aliado à idéia de vanguarda, parte do ideário reformista do grupo. A cultura popular não era a expressão da visão de mundo das classes subalternas, mas um projeto político que utiliza a cultura como elemento de sua realização. Neste sentido, sua filiação aos conceitos gramscianos se encerra, na medida em que não vêem essa cultura como manifestações das classes subalternas, como assumia o pensador italiano. Para os cepecistas, ela se manifestava nas ações dos agentes dos centros de cultura. A correlação com o pensamento de Gramsci se mantém somente no que diz respeito ao papel dos intelectuais e na organização da cultura, ainda que não de maneira absoluta, pois para Gramsci, o intelectual é expressão das massas, estando organicamente vinculado à ela, enquanto nos CPCs, o intelectual nunca sai de uma posição de exterioridade em relação às essas massas. Outra questão relevante dentro da ideologia dos CPCs é a idéia do nacional compondo com o popular as faces de uma mesma moeda, fazendo-se necessária uma conscientização sobre a dependência aos países imperialistas. Este ponto pode ser considerado como herança do pensamento isebiano. Assim, coloca-se em termos de “autenticidade”, a independência aos padrões culturais que vinham de fora, e este componente autêntico só seria encontrado nas manifestações tradicionais regionais. Desta maneira, os cepecistas recaíam na mesma armadilha dos folcloristas, buscando achar uma cultura original, pura, livre de contaminações. Embora algumas das proposições dos CPCs sejam criticáveis o fato é que a música popular se viu – a partir da grande inserção de seus agentes neste ideário – pela primeira vez, como personagem principal de uma articulação ideológica de grande porte, estando presente nas discussões acadêmica e no debate da crítica musical, como polo aglutinador desta questão, o que contribuiu em muito para a sua consolidação no campo musical170. Não por acaso, sujeitos (compositores e intérpretes) da Bossa Nova como Carlos Lyra, Nelson Lins e Barros, Sergio Ricardo, Nara Leão, Geraldo Vandré, inseridos que estavam neste 168

Marcos NAPOLITANO, Seguindo a canção. Renato ORTIZ, Cultura Brasileira e Identidade Nacional. 170 Enor PAIANO, O Berimbau e o som universal. 169

124

debate, buscaram ainda no início da década de 60, composições que tratassem dos elementos regionais, bem como músicas que revelassem a preocupação com o nacionalismo contra a alienação e o subdesenvolvimento, ou ainda uma articulação com o samba urbano do morro, visto como “de raiz”, trazendo à tona não só as composições, mas também a presença, nos shows, (lembrar do Opinião) de artistas como Zé Keti, Nelson Cavaquinho, Cartola, entre outros. Desta maneira, acabou se dando o rompimento com a Bossa Nova, que passou a ser considerada como alienada e elitista. Essa atitude buscava confirmar uma noção de música popular aliada à idéia de protesto e engajamento político, posição que viria a se acirrar depois do golpe de 1964. Assim, no famoso “racha” ocorrido na Bossa Nova no início dos anos 60, dividida entre a ala romântica, intimista, que cantava o amor, o sorriso e a flor, e a ala engajada, com preocupações sociais e políticas, estão também presentes os interesses da indústria cultural e do mercado, em que as posições ideológicas assumidas se davam também em função da lógica do campo. Os músicos da chamada Canção de protesto queriam ser vistos como amadores, que negavam o mercado. Esta atitude revelava uma busca por distinção e diferenciação em relação à produção comercial, considerada alienada, que competia com o ieieiê, com os boleros que ainda resistiam, com as versões italianas e com as baladas românticas. Uma negação do mercado, como aponta Zan, a partir desse mesmo mercado, na busca por distinção.171 Havia, no entanto, um dilema dentro das formulações destes artistas, pois seu discurso e teoria, que ressaltavam o engajamento, o compromisso político, o resgate das tradições regionais nacionalistas, contrastavam com o alto grau de elaboração de suas composições, fato que acabava vinculando-os à Bossa Nova. Parece que só em 1964, no show Opinião de Nara Leão, com a participação de músicos do samba carioca do morro, bem como de um músico - João do Valle de tradição regional, é que este impasse começou a ser superado (embora ainda fosse motivo de discórdia durante toda a fase dos festivais), com a aceitação de que uma proposta artística de conteúdo transformador não precisava, necessariamente, estar desvinculada de sofisticação na sua forma musical. Neste show também convergiram riqueza musical, teatralidade e veemência performática de palco em espetáculos de grande público. A substituição de Nara (por motivos de saúde) por Maria Bethânia, com sua interpretação que se diferenciava do estilo contido da Bossa Nova, lançou as bases das performances dos festivais televisivos que viriam a seguir, dentro da chamada 171

José Roberto ZAN, Do fundo de quintal a vanguarda. 125

“música de protesto”. Esta, como fator aglutinador do estilo musical popular que se instauraria nos anos 60 constituindo o campo da MPB, tinha, por um lado, o legado da Bossa Nova e, por outro, a função transformadora da canção. É preciso lembrar que após o golpe militar de 1964, um outro dilema se colocava para a canção política: a dúvida sobre o que se cantar, para quem e onde. A dupla situação do artista, como criador cultural engajado e criador cultural para o mercado foi sendo administrada dentro do pressuposto de que seu público era o “povo” e a juventude universitária (segmentos ainda vistos como à margem do mercado). Desta forma, os shows universitários nos grandes teatros, eram uma maneira de ampliar o público ainda reduzido da Bossa Nova. Realizados em São Paulo172, após o sucesso do show Opinião, esses eventos reuniam um público estudantil e apresentavam músicas que se queriam “samba autêntico”, mas que, na verdade, eram Bossa Nova. Estes shows, no Teatro Paramount, se configuraram, conforme aponta Napolitano, como o “elo perdido entre o círculo restrito da primeira Bossa Nova e a explosão da MPB nas televisões”173, isto por conta da vibração do público e do modo como se concebia como a afirmação da cultura nacional frente ao entreguismo aliado à ditadura militar. Não se pode esquecer, também, do advento da TV no Brasil, na década de 50, momento em que se instaurava o devir de uma sociedade imagética, visual. O potencial de público para a música brasileira tributária da Bossa Nova, demonstrado por estes shows em São Paulo, foi percebido pelos produtores e empresários da TV que fizeram desse veículo espaço para elementos de encenação, gestualidades e performances mais expressivas já presentes nos eventos ao vivo como nos shows de Elis Regina, por exemplo. Trazer essas perfomances para a televisão, significava a possibilidade de ampliação de um público massivo que a música de protesto dos shows universitários, ou do teatro musical (como Opinião, Liberdade, liberdade, Arena canta Zumbi, entre outros). não conseguia alcançar. A televisão, em processo de desenvolvimento e de estruturação, assimilava a música popular, num momento em que sua programação necessitava de produtos novos. Os programas, a princípio importados, e depois de música popular, firmaram-se nos anos 60, fazendo deste meio de comunicação um de seus principais divulgadores. Foi na TV que se promoveu o evento musicalmais significativo da década: os festivais. Em 1965, a TV Excelsior de São Paulo,

172 173

No Rio, a cena estava voltada para o “samba de morro”. Marcos NAPOLITANO, Seguindo a canção. 126

organizou o I Festival de Música Popular, revelando talentos da Bossa Nova ou à nascente MPB, para quem esses festivais foram palco de resistência e um local de afirmação de sua identidade diante do ieieiê, que ocupava cada vez mais espaço no campo musical.174 Por conta do sucesso de Elis Regina no Paramount e no primeiro festival da Excelsior, foi criado um programa semanal de música brasileira, O Fino da Bossa, apresentado por ela. Esse programa não só ampliou o público de música popular, como aumentou sua faixa de consumo para além da juventude, uma vez que era visto por toda família, o que acabou por permitir a presença de outros artistas, de gêneros musicais e temporalidades diferentes e até contrastantes com a imagem hegemônica da Bossa Nova A partir da mediatização promovida pela TV, ocorreram modificações e re-arranjos dentro da própria recepção da Bossa Nova, decorrendo em mudanças nas suas formas de audição e de escuta, pois agora estava presente também o elemento visual. Ao contrário do que se possa pensar, a escuta, nesse processo, não perdeu importância ou foi esquecida, ao contrário, ganhou outros e multifacetados contornos. Com a instrumentalização da interpretação, a performance das músicas se modificou, assumindo novas possibilidades estéticas, com vozes mais volumosas e expansivas, coreografias e expressões faciais extrovertidas, o que abriu uma certa distância em relação àquele padrão intimista dos primeiros tempos e introduziu interpretativas

de

cunho

cênico,

visual,

corporal,

apontando

para

novas habilidades uma

linguagem

multidimensional, “protoplasmática” da canção, como sugere Edgar Morin175. Nesta análise da elaboração do campo176 musical, pode-se utilizar as formulações de Bourdieu, no que se refere às lutas culturais, que informam sobre as estratégias de discursos, as maneiras de atuar no campo, a acumulação do capital cultural, buscando compreender como a história da MPB parece ser a história de uma luta por legitimidade, consagração e reconhecimento, empreendida por um certo grupo, dentro da indústria e do mercado cultural177. Retomando Gramsci, pode-se entender o processo de instauração da MPB nos anos 60, por meio do conceito de hegemonia, em que a cultura popular e, neste caso, a música, deve ser compreendida em uma relação de forças com a própria indústria fonográfica em fase de 174

Zuza Homem de MELLO. A era dos festivais – uma parábola. Edgar MORIN. Não se conhece a canção. In: Linguagem da cultura de massas: televisão e canção, passim. 176 Pierre BOURDIEU, As regras da arte. . 177 No entanto, Bourdieu analisa o contexto europeu, no qual ocorreu uma autonomização do campo artístico erudito em relação a outras esferas da sociedade, não se referindo à indústria cultural, com a qual entram em jogo questões como sucesso, popularidade, lucro. Já no caso aqui analisado, a luta por legitimação não está separada das questões da indústria e do mercado, mas, muito pelo contrário, estão intimamente ligadas. 175

127

estruturação e profunda articulação com o debate sobre o popular. Essa relação de forças e busca de hegemonia, na formação da MPB, encontrava-se num espaço de luta entre um movimento de autonomia por parte dos músicos populares, e um reordenamento da realização industrial e comercial da canção, na efetivação de um mercado de bens simbólicos. Neste jogo dinâmico e conflituoso, feitos de avanços, recuos, convergências e divergências, a idéia de que tenha havido cooptação dos músicos pela indústria acaba se tornando obscura. Desta maneira, na trajetória percorrida até aqui, de compreensão da própria Bossa Nova e dos caminhos abertos por ela, busca-se atentar para a construção histórica de um produto cultural complexo e híbrido, nas suas relações com as questões mais gerais pelas quais passava a sociedade brasileira, e o Rio de Janeiro em particular, bem como a sua contribuição para a constituição de um campo musical. É possível afirmar, assim, que este estilo musical expressa aspectos relevantes das transformações que vivia a sociedade da época, no que tange, principalmente, à midiatização. Um movimento musical que começou com um apelo essencialmente sonoro, com uma forte ênfase nos detalhes técnicos da gravação, ajudando a alavancar a indústria e o mercado fonográfico, com menor utilização radiofônica, e que foi tomando, pouco a pouco, características de espetáculo, passando a ser fazer presente não mais apenas nas mídias sonoras, mas também nas audiovisuais, apontando também para outras direções que a (agora já) MPB tomaria. Por outro lado, a Bossa Nova também expressa as transformações daquela sociedade não apenas no que tange aos fenômenos midiáticos, mas também nas questões subjetivas, culturais – o que, é claro, ocorria paralelamente ao, e imbricado nos, processos midiáticos. Desta maneira, se a nova paisagem sonora parecia ser cada vez mais (já neste momento) entrecortada pelo ruído e pelo polimorfismo com a inserção cada vez maior do rock e da música eletrônica, dela também fazia parte, naquele seu primeiro momento, a sutileza, a delicadeza e o antibarulho sugeridos pela Bossa Nova, propondo uma outra noção de tempo, menos apressado, agressivo, violento, ruidoso no qual começava a viver a sociedade daquele período. A Bossa Nova pode ser considerada como uma tentativa de pausa, de recolhimento no meio desse turbilhão que fazia os indivíduos começarem a se perder, inseridos na modernidade. Nesse sentido, o impressionismo que a caracteriza adquire um sentido especial como uma tentativa de sugerir mais do que dizer, pincelando notas e acordes mais do que efetivando graves e agudos contundentes, num meio urbano que estimula o anonimato, a perda em meio à multidão, onde a aceleração da história e os

128

choques cotidianos quase não permitem mais o encontro, a comunicabilidade, a possibilidade da experiência. Assim, feito este trajeto, e tendo apontado as questões fundamentais no que tange à Bossa Nova, é hora de olhar, ou escutar, os seus ouvintes. Várias destas questões já levantadas sobre a sociedade dos anos 50 e 60 são fundantes na compreensão da memória dos seus ouvintes, constituindo cada parte dos capítulos seguintes como itens que dão pistas sobre a sociedade que se vivia. Entendido o campo social em que esta audição se deu e seu contexto de recepção, é que se pode, agora, compreender sua audição, sua recepção, na busca por reconstruir uma escuta musical que ajudou a fundar um jeito de ouvir música, uma certa escuta do mundo. Uma tentativa, assim, de captar o instante, o presente específico do ser, aquilo que ainda não foi precipitado, mas está em solução, fluida, fugidia, fragmentária, não organizada e não fixa ou já elaborada. Entre o que se sabe sobre as instituições, formações, tradições, e a maneira já cristalizada e institucionalizada com que reverberam no meio social, é preciso captar o que está em processo, em latência, as “estruturas de sentimento”178 de um grupo ou de uma geração; formas materiais e concretas de se sentir e de re-organizar o que é dado mas que, no entanto, não estão evidentes, claras, articuladas, necessitando de um olhar que as capture, enquanto estão sendo elaboradas. Uma procura por uma escuta musical em solução, em andamento, que é também uma escuta do mundo.

178

Raymond WILLIAMS, Estruturas de sentido. In: ____ Marxismo e Literatura. Op.cit.. 129

PARTE II – Memórias de escutas “O imperfeito é o tempo da fascinação: parece vivo e no entanto não se mexe: presença imperfeita, morte imperfeita; nem esquecimento nem ressurreição; simplesmente o cansativo engano da memória. Desde o princípio as cenas tomam posição de lembrança, ávidas de representar um papel: frequentemente eu o sinto, eu o prevejo, no exato momento em que elas se formam. – Esse teatro do tempo é exatamente o oposto da procura do tempo perdido; porque me lembro pateticamente, pontualmente, e não filosoficamente, discursivamente: me lembro para ser infeliz/feliz – não para compreender. Não escrevo, não me fecho para escrever o enorme romance do tempo do tempo reencontrado.” Marcel Proust

A parte II da tese trata da recepção da Bossa Nova, sua escuta e seus ouvintes. Neste segundo capítulo, serão discutidas teoricamente a memória e as premissas metodológicas estabelecidas e utilizadas. Este é o momento de refletir sobre a recepção e sobre o modo como está sendo abordada nesta pesquisa. Aqui também se contará um pouco das experiências realizadas no trabalho com os depoimentos: o modo como foram feitos, as dificuldades, as descobertas, os questionamentos e as inquietações surgidas durante todo o processo. Neste momento, será tratada também a especificidade de ter a memória como fonte, num processo que busca estabelecer um diálogo com autores clássicos em suas reflexões sobre a construção memorialística, além de chamar para a discussão pesquisadores que realizaram trabalhos sobre o tema. Ressalta-se a questão da oralidade, da memória oral e suas particularidades a partir das formulações conceituais de Paul Zumthor e dos estudos que se valem das metodologias da História Oral como fonte. Ainda considerando Zumthor, elabora-se a maneira como será trabalhada a música e a escuta musical nos capítulos seguintes, buscando uma orientação que se deixa atravessar por noções como performance, vocalidade, tradição e movência. Por fim, este é um espaço de reflexão sobre o próprio processo de conhecimento, uma vez que trabalhar com memória é também ofício de um pesquisador memorioso, no qual a distinção entre memória e história e a estreita relação existente entre as duas, por vezes, leva a uma fusão ou a uma separação e, às vezes, a um novo encontro, sendo o trabalho do historiador, também algo que se utiliza da memória histórica, da tradição da qual se é herdeiro, mas em que se faz necessária uma

130

releitura deste passado à luz do presente. Parece ser esta a tarefa de um “narrador”1 que se deixa envolver pela globalidade, força e poesia dada por Walter Benjamin a este conceito.

Cap. 2 A trama da memória “Somente quando a alma e o espírito estão unidos num devaneio pelo devaneio é que nos beneficiamos da união da imaginação e da memória. É nessa união que podemos dizer que revivemos o nosso passado. Nosso ser passado imagina reviver. (...) Quanto mais mergulhamos no passado, mais parece como indissolúvel o misto memória-imaginação(...) No devaneio que imagina lembrando-se, nosso passado redescobre a substância.”

A poética do devaneio, Gaston Bachelard Memória: ato de lembrar, reter o que já passou. A reminiscência, o esquecimento. No ato do memorioso, lembrar e esquecer, recuperar e apagar articulam-se num jogo dialógico fruto do presente, um ato de reconstrução, restituição, restauração dos tempos pretéritos cuja base está no momento atual, aquilo que se tem como importante, preponderante, no imaginário de hoje. A memória reconstrói a própria relação entre passado e presente, o sentido que se dá à história. Nesta complexa trama, presente está a memória que se analisa, interpreta: a dos depoentes. Está também a memória do próprio pesquisador, daquele que se debruça sobre um passado, uma terra estrangeira, a fim de recuperá-la em fiapos, cacos, fragmentos. A tradição, a memória histórica, o horizonte de compreensão ao qual o pesquisador pertence e é herdeiro, é fundante na compreensão das memórias que analisa e do passado em geral. Neste sentido, ao estudar a Bossa Nova e sua escuta nos anos 50 e 60, é impossível livrar-se das próprias considerações, memórias e da tradição cultural e histórica que se tem sobre este movimento musical e sua época. Desvinculando-se de uma ilusão positivista de total e absoluta neutralidade, isenção, objetividade na análise dos tempos pretéritos, assume-se que não há nenhum demérito em incorporar estas questões na narrativa histórica, ressaltando o fato de o pesquisador estar inserido no seu tempo, no fluxo insondável dos fatos que o rodeiam, no seu meio social, carregado da visão de seu próprio momento. Aqui, aborda-se as narrativas. Narrativas historiográficas do pesquisador no presente, que, valendo-se de outras narrativas já realizadas sobre este momento histórico na elaboração de sua

1

Walter BENJAMIN, O Narrador. In: Obras escolhidas Vol.1. 131

própria interpretação do passado. Narrativa também de homens e mulheres que viveram este passado e que, ao contarem suas experiências, constróem sua memória, tramando também novas narrativas. Esta tese lida com estas várias camadas de sentido – interpostas, sobrepostas – narradas. A

interpretação

do

passado

requer

uma

inserção

do

pesquisador

em

sua

contemporaneidade, em que, entabulando com o passado um diálogo entre seus conceitos presentes e os conceitos imbuídos nas suas fontes, pode-se chegar à compreensão de fragmentos deste vivido. O diálogo estabelecido nesta pesquisa é entre uma pesquisadora no presente, ouvinte de Bossa Nova, intérprete de seus sentidos, e os ouvintes de Bossa Nova na temporalidade delimitada (anos 50 e 60). Nesta “fusão dos horizontes de compreensão que se desloca sempre”2, é que parece ser possível interpretar as escutas da Bossa Nova daquele período, uma vez que não são visíveis e não estão evidentes, são rastros do passado encobertos pela história oficial que urgem ser resgatados. Uma história oficial que, embora se possa argumentar que não é única, ainda assim é hegemônica e tem força. Note-se aqui, a utilização do termo hegemonia, conceito que comporta a idéia de relação, num jogo de forças em que nada é definitivo e no qual as posições encontram-se em permanente dinâmica e interpretações e outras estão a todo momento aparecendo e disputando espaço. Mas, como disse Walter Benjamin, “se o inimigo vencer, nem mesmo os mortos estarão a salvo dele”, isto é, as imagens da história “apagadas” pela história oficial ou por um sentido unívoco da Bossa Nova, só aparecerão se seus “cacos” dispersos, suas vozes não ditas, suas ruínas puderem ser resgatadas, num jogo em que não se pode reconhecer a experiência passada como esta foi efetivamente, mas pode-se captar constelações de imagens momentâneas, suas fissuras, pode-se, enfim, captar “uma lembrança como ela fulgura num instante de perigo”3, ou no momento em que é reconhecida com outras interpretações que burlam a hegemonia da visão preponderante do passado. A relação entre presente e passado é dialógica, possui a “aura” de um encontro, no qual um resgate do passado só adquire sentido na medida em que possa ser restaurado no presente, havendo uma recognoscibilidade entre ambos. Este encontro pressupõe a idéia de um tempo que explode com o continum da História (diferente da idéia de série encadeada de fatos da história 2

Maria Odila Leite DIAS, Hermenêutica do quotidiano na historiografia contemporânea. Projeto História Trabalhos da memória, n.17. 3 Walter BENJAMIN, Sobre o conceito da História. In: Obras escolhidas Vol.1. 132

oficial), contendo ruptura e descontinuidade. Assim, num salto, momento desse encontro, os “sofrimentos do presente podem criar ouvidos para que se ouçam gemidos sufocados no passado.”4 Desta maneira, ressalta-se a figura do historiador indo ao encontro deste passado em ruínas, como a figura de um narrador restaurando e atualizando os tempos pretéritos no presente. Neste narrar, lida-se com um tempo outro, diferente de nossa contemporaneidade. Parece ser nesta relação dialógica – que permite múltiplas mediações – entre o “eu” de pesquisador presente e o “outro” dos tempos passados (objetos de estudo) que a narrativa aflora, onde é mister interpretar o outro numa perspectiva relativista confrontando nossos conceitos presentes com os do passado. Mais do que lidar com o tempo propriamente delimitado sobre o qual se debruça, a narrativa do historiador traz também a marca de outras narrativas já realizadas, que chegam por meio da historiografia escrita ou da tradição oral, as quais vão ajudar a formar a narrativa atual contendo esta marca própria de quem narra. Assim como Mnemosyne – a deusa grega da reminiscência - era também a deusa representante da poesia épica, pode-se argumentar que o ofício do historiador-narrador está ligado ao exercício de uma narrativa, de uma poética, em sua maneira de conhecer o mundo, de um modo aberto, capaz de suscitar outras e sempre novas leituras, sem espaços e considerações fixas, fechadas e explicativas. Uma poética presente na base, na origem da própria História com seu “pai-fundador”, Heródoto, produtor de uma textualidade em que as fronteiras entre história, memória, narrativa, poesia épica pareciam tênues ou até inexistentes. Quando surge a vontade de explicar o passado, baseando-se em fontes confiáveis, empiricamente verificáveis, separa-se a História da memória, bem como da narrativa e da poética5. Porém, o ideal de memória infinita é contestado pela inorexabilidade e necessidade do esquecimento – indispensável para se poder lembrar –, uma vez que a memória comporta sempre a seleção. Neste jogo entre lembrar e esquecer, tece-se a narrativa historiográfica, em que elementos são destacados mais que outros, incorporados, retirados, iluminados, apagados, imaginados. Esta relação entre memória e História vai ganhando contornos e delineando uma diferenciação.

4 5

Flávio KHOTE, Poesia e proletariado: ruínas e rumos da História. In: _____(Org.). Walter Benjamin, p. 17. Jeanne Marie GAGNEBIN, O início da história e as lágrimas de Tucídides. 133

De acordo com Julio Pimentel Pinto, a história começa quando “a obsessão apaixonada da memória é posta em suspenso e o passado é percebido pelo filtro da razão”6 do presente. Há que se elaborar uma linguagem que, discursando sobre os tempos pretéritos, articule as muitas temporalidades que dão corpo à memória, compondo assim uma “poética da memória” por meio do estudo crítico do presente. A importância de refletir sobre esta questão reside no fato de que tanto a história como a memória trabalham com o passado, possuindo fronteiras movediças, mas ainda assim diferenciadas. Segundo Márcia D’Alessio7, os estudos da memória acabaram por trazer modificações na própria historiografia, fazendo com que o conhecimento histórico e seu discurso acabassem por incorporar uma preocupação não apenas com o vivido, mas com o próprio conhecimento histórico, dessacralizando não só o vivido, mas seu próprio discurso visto como tradição. Assim, é imperioso perceber que tanto quanto o discurso, a escrita também é permeada pela memória, memória histórica da qual se herdeiro. Pierre Nora afirma que história e memória se relacionam mas também divergem. Esta última é a experiência vivida, carregada pelos grupos vivos, em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, visando a sentidos coerentes, lineares e unívocos. Já a história, é sempre desconstrução, uma operação intelectual e laicizante exigindo análise e discurso crítico, apontando para as diferenças, as tensões e os interditos8. No entanto, isso não significa operar o conhecimento sobre o passado numa noção de “memória como sagrada e de história como profana” 9. O que se busca é fugir dos padrões estigmatizados da História oficial, compondo um trabalho historiográfico que se afaste dos esquemas objetivistas e racionalizantes que estabelecem a distinção entre memória e história em termos absolutos, enfatizando, ao contrário, a relação móvel, dinâmica entre elas. Isto reitera a idéia do fazer historiográfico como um trabalho artesanal de atualização sempre renovada de uma tradição, numa trama em que se tecem momentos diferenciados, temporalidades diversas, lembranças e esquecimentos, continuidades e descontinuidades, objetividades e subjetividades.

6

Julio P. PINTO, Os muitos tempos da memória. Projeto História - Trabalhos da memória. n.17. Cf: Marcia D’ALESSIO, Memória: leituras de Maurice Halbwachs e Pierre Nora. Revista Brasileira de História História – Memória, História, Historiografia. v.13, n.. 25/26. E também Marcia D’ALESSIO, Intervenções da memória na historiografia. Trabalhos da memória - Revista Projeto História, n.17. 8 Pierre NORA, Entre memória e história. Op. cit. 9 Marina MALUF, Ruídos da memória, 1995.

7

134

Rio de Janeiro, início do século XXI, assistimos aos noticiários impressos e eletrônicos povoados de matérias dando conta de uma cidade violenta, perigosa, ruidosa, ameaçadora, desordenada, caótica, distante dos ideais de anos dourados tão hegemonicamente construídos no nosso imaginário sobre o Rio: aquela cidade tranquila, bela, praiana, embalada por um ritmo cheio de bossa e por uma atmosfera de otimismo e felicidade própria aos anos 50. Em meio a tudo isso, assistimos a um filme, Bossa nova, de Bruno Barreto que, com uma trilha sonora essencialmente bossanovista, conta belas e divertidas histórias de amor, dominadas pelo acaso, vividas num Rio de Janeiro atual. Encontros e desencontros de personagens em meio aos cartões– postais da cidade como o Corcovado e o Cristo Redentor, as praias, o Pão de Açúcar, o Hotel Copacabana Palace, o Morro Dois Irmãos, a Lagoa. Tudo numa atmosfera em que se sobressai o lado tranquilo, sem conflitos e leve, transportando para a atualidade a beleza de um tempo a ser guardado, recuperado, restituído e eternizado. O que se tem ali é um Rio de Janeiro e – por que não? – um Brasil feito para ser visto no exterior, para ser elaborado, edificado e talvez fixado fora daqui como um símbolo de suas belezas naturais, onde seus habitantes simpáticos e cordiais e a sua bela música encantam os estrangeiros do filme. Não são poucos os trabalhos (inclua-se aqui filmes, livros, etc.) que valorizam esta idéia, esta construção da cidade como lugar belo, tranquilo, rememorando os anos 50, como se vê abaixo. “Tudo isto - violência sexual, gangues juvenis, drogas – é apenas um mergulho nos porões de uma cidade que ainda não existia de fato. Todo esse mal que se escondia nos corações humanos se parecia mais com a cara dos dias de hoje do que com a multidão sorridente que, paralelamente, transformava as matinês de Tom e Jerry, no Metro Passeio, em um acontecimento de alegria espetacular.(...) nos dias 31 de dezembro de 1950, haviam sido registrados apenas quatro assaltos. (...) [Em 1958] reproduz-se estatísticas de pouco mais de um assalto a cada hora em toda a cidade. (...) com a perspectiva do tempo, os números parecem o 10 livro de ocorrências de uma delegacia no Céu. Mesmo na zona norte a violência ainda era folclórica.”

Mesmo não se constituindo e se assumindo como um texto historiográfico, temos neste trabalho acima citado a tentativa de explicar e analisar os fatos e a história daquele momento, tido como “dourado”. O fato de dizer que os crimes e os fatos ligados à “juventude transviada” não eram senão coisas do “porão” da cidade, parece revelar uma tentativa de perpetrar uma imagem de cidade e de tempos ideais, em que estes elementos do “porão”, “de uma cidade que ainda não existia”, seriam apenas coisas que não se encaixavam no lado ou no substrato da memória

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Joaquim Ferreira dos. SANTOS, Feliz 1958: o ano que não deveria terminar, p.143. 135

escolhido pelo autor sobre a época, que seria uma “vida sorridente nos cinemas”. No intuito de desconstruir as camadas de sentido atribuídos aos tempos passados (e no caso desta pesquisa, os anos 50 e 60), é importante deter o olhar sobre este trecho do livro de Joaquim Ferreira dos Santos, como um exemplo de que muitas vezes a memória histórica hegemônica sobre um período pode encobrir as tensões presentes nas experiências do cotidiano. Como afirmou Edgar de Decca, “os fios da memória histórica são muitas vezes quase invisíveis, uma vez que é próprio dessa memória apagar os rastros de sua própria constituição”11. Desse modo, na busca de uma história que não apenas reafirme os mitos e dogmas da memória histórica sobre um período, procura-se, aqui, desconstruir as interpretações do passado enredadas na “teia do fato”12, levando em conta uma crítica elaborada a partir do presente, e por isso mesmo constituída de fragmentos. É necessário um diálogo crítico quanto às visões hegemônicas do passado, construídas no tempo, considerando estes mesmos marcos históricos dados, legitimados, mas fazendo uso destes para torná-los objetos críticos de reflexão histórica. Outras vozes surgem, porém. Ao nos depararmos com depoimentos, histórias de vida, memórias, atribuições de sentido dos também habitantes da zona sul emergidos em outro filme, Edifício Master, de Eduardo Coutinho, impossível não associá-los aos objetivos deste trabalho. Pessoas comuns, com histórias de vida, à primeira vista, também comuns, trazendo à tona o viver nas grandes cidades, a experiência contemporânea da solidão da metrópole, dos fluxos contínuos e descontínuos da experiência urbana, da multidão, convivendo naquele mesmo espaço urbano carioca – Copacabana – tão edificado em nossa memória. Podemos até argumentar que este último filme deixa transparecer toda esta complexa trama cotidiana por se tratar de um documentário, o que não é aqui refutado, uma vez que já há algum tempo se questiona os limites e separações existentes entre ficção e realidade numa obra artística. Assim, sem jamais buscar uma hierarquia de valores entre as obras fílmicas citadas (como se uma fosse a verdade e a outra não, ou algo que o valha), o que se quer aqui destacar são os olhares, as percepções e as inserções no presente diferenciadas, delimitando o que se quer registrar de uma cidade, de um tempo e de um imaginário. A questão poderia ser resumida, então, da seguinte forma: como desenvolver uma leitura de um passado do qual se é herdeiro, como chegar a uma outra compreensão de uma tradição à 11

Edgar de DECCA, 1930, o silêncio dos vencidos: memória, história e revolução, p.18. Carlos Alberto VESENTINI, A teia do fato: uma proposta de estudo sobre a memória histórica. São Paulo, 1982. Tese (Doutorado em História) FFLCH - USP.

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qual se pertence? Não se trata de negar ou lançar mão do passado e das interpretações feitas sobre ele, afinal, isto constitui a tradição herdada e transmitida. Faz-se necessário um confronto com esta tradição histórica como uma espécie de desafio crítico lançado por ela mesma. Neste processo de confronto entre nós e nosso passado, é permitida a entrada de outras visões, que vêm à luz pela mediação do antigo, através da interpretação13. Compreensões diferenciadas que podem ser perseguidas ao se interpretar os tempos idos à luz da história e do presente numa tentativa de revê-los, traduzindo a tradição utilizada para a sua compreensão em algo revelador das diferenças e de outras leituras possíveis. No estudo deste estilo musical, a fala de um dos seus autores tornou-se representativa, estando autorizada a partir de uma experiência tida como legítima, por ter se dado dentro da própria Bossa Nova. O fato de Ronaldo Bôscoli14 ser chamado a narrar suas memórias numa tentativa de também contar a história do movimento colabora com esta visão de autoria como a leitura oficial. Pensando-se na Bossa Nova como “monumento”15, algo cristalizado, idealizado, marco histórico ligado a um Rio de Janeiro dos “anos dourados”, não se pode deixar de refletir sobre a figura de Bôscoli, como um de seus integrantes que também acabou por se constituir na memória histórica como um símbolo do movimento, seu ícone, o “senhor Bossa Nova”16. Nesse sentido, em seu relato é possível perceber uma tentativa de resguardar este movimento, fixando-o num “lugar da memória” 17. “A Bossa Nova é, hoje, parte da história da cultura brasileira. Mas não só isso - uma memória. Vejo que ela continua viva, numa dimensão planetária, pois é uma das expressões mais poderosas da música popular brasileira. Concluo que a Bossa Nova precisa ter seu espaço natural, adequado à vitalidade de sua música e sua poesia. (...) Eu tenho um sonho ... Quero ver esse sonho realizado. Quero um lugar, um espaço, uma casa, em que a Bossa Nova possa ser apreciada, estudada, debatida, guardada, revitalizada. (...) [que 18 chama de] Casa da Bossa.” (grifos meus)

Bôscoli tanto afirma a pujança da Bossa Nova e seu valor como momento mais importante da música brasileira, quanto demonstra uma certa preocupação com o seu esquecimento, com um possível apagar de sua memória. Ele reconhece nos tempos atuais a 13

Hans-Georg GADAMER, O problema da consciência histórica. Bôscoli foi jornalista, cronista, letrista, boêmio, produtor musical, homem ligado ao showbusiness e, acima de tudo, um dos grandes divulgadores do movimento. 15 Jacques LE GOFF, Documento/Monumento. In: Enciclopédia Einaudi - Vol. 1. Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional, s.d. 16 Este é o título de um livro escrito por um amigo próximo a ele, a partir das memórias que guarda do chamado “Senhor Bossa Nova”. 17 Pierre NORA, Entre memória e história, Projeto História, n.10. 18 Ronaldo BÔSCOLI, Eles e eu: memórias de Ronaldo Bôscoli, p. 283-5. 14

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necessidade de criação deste “lugar da memória”, num tempo em que a aceleração da história parece não permitir mais o tempo de lembrar. A rapidez e o processo de globalização (ou mundialização, ou pós-modernidade – assuma-se a designação e o arsenal teórico decorrente que se quiser adotar), características da atualidade, impelem a viver em um mundo que parece se tornar um só, comprimido temporal e espacialmente; onde o efêmero e o incessantemente novo imperam, a duração de um fato histórico tem a mesma duração de uma notícia e a história tornase eternamente contemporânea. É esta a “aceleração da história” sugerida por Nora19, em que o tempo de lembrar se dilui, o passado se perde em favor do presente, ameaçando os referenciais, seus traços e seus vestígios. Assim, imperiosa é a busca pelo passado, por meio da memória. Não por acaso, o final do século XIX e início do XX, foi o momento em que vários autores, na filosofia, literatura, sociologia, voltaram-se para essa questão. Um momento em que a industrialização e outras características da modernidade pareciam evidenciar uma aceleração dos tempos, uma sensação de iminente perda ou atrofia da “experiência”, no sentido posto por Benjamin20, como sendo matéria da tradição, da inscrição das narrativas e dos fatos na própria experiência individual, no compartilhar, enfim, em que conseguimos apenas “meras vivências”. Benjamin e também Zumthor21 apontam para a época anterior à modernidade, como sendo um tempo em que narrativa poética e memória caminhavam juntas, tratando da mesma matéria: a tradição. A narrativa acontecia espontaneamente, a memória não era perseguida pela atenção, esforço e racionalidade, como na modernidade, pois a experiência, integrada à tradição e à memória, afloravam naturalmente. No turbilhão da modernidade, a busca pela memória torna-se indispensável – como uma tentativa de reconstrução da própria experiência – encontrar a figura do narrador, aquele que ao contar experiências as integra em sua própria vida, imprimindo sua marca, sem isenção ou exatidão, mas atualizando a tradição na modernidade, operando a sua restauração, valendo-se de sua memória. Maurice Halbwachs22 já no início do século XX escrevia sobre a importância da memória em resguardar traços do passado como forma de se contrapor aos efeitos desintegradores da rapidez contemporânea. Segundo ele, é o grupo que a sustenta, ela é social, coletiva, e acaba 19

Pierre NORA, O retorno do fato. In: Jacques LE GOFF e Pierre NORA (Orgs.), História: novos problemas, São. A este respeito, conferir: O Narrador, Experiência e pobreza, A imagem de Proust. In: Obras escolhidas Vol.1. São Paulo: Brasiliense, 1985. E também: Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Obras escolhidas Vol.3. São Paulo: Brasiliense, 1989. 21 Paul ZUMTHOR, A letra e a voz: a “literatura” medieval. 22 Maurice HALBWACHS, A memória coletiva.

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quando não tem mais o grupo como suporte, seja ele físico ou afetivo. O importante é a pertença, o fato de a memória social ser vivida. O esquecimento ocorre quando não há mais o grupo, nem fisicamente nem como pertencimento afetivo e o tempo da memória, conforme observa Halbwachs, é o tempo longo contínuo, sem rupturas ou descontinuidades, aquele conservado no presente. Podemos considerar a reflexão de Halbwachs fortemente influenciada pelo positivismo de Emile Durkheim, sobrepondo o grupo ao indivíduo e, mais ainda, considerando a memória sempre como uma imagem viva, como um ato consciente. Embora aponte para o aspecto do imaginário, das lembranças que não são reais – e ressalte que no trabalho com a memória dificilmente obtém-se verdades absolutas e sim interpretações parciais, – o autor declara que a imagem, quando concebida de maneira consciente, assume a identidade de coisa viva, transforma-se em lembrança, deixando de ser nebulosa, fragmentária, involuntária ou inconsciente. Tomar consciência das lembranças, significa estar vinculado a um grupo (enquanto consciência). Assumindo uma lembrança como própria, o indivíduo se fixa afetivamente a um coletivo cuja identidade é de suma importância. Segundo Michael Pollak23, memória e identidade caminham juntas, são construídas mutuamente, estando em constante transformação, deslocamentos e adaptações. Este autor já concebe a idéia da existência de processos inconscientes e involuntários na memória. Mas as primeiras pistas dadas em direção ao trabalho com o imaginário na memória, foram elaboradas por Henri Bergson, ainda no século XIX. Em comum com Halbwachs, Bergson desenvolve a idéia do passado como conservação no presente. Sua obra se localiza no interior de um debate da metafísica e da psicologia, ressaltando as subjetividades, o espírito, os aspectos pessoais, individuais. Bergson não trabalha com memórias de sujeitos específicos e como elas se dão, a partir de suas imbricações com o mundo social, como Halbwachs. Ele reflete sobre a memória em si mesma, seu processo como fenômeno do espírito humano, partindo da idéia de que as imagens da lembrança, do tempo contínuo, estão intimamente ligadas à corporeidade, ou seja, à percepção que o indivíduo têm do seu mundo físico e de sua consequente ação sobre o mesmo. Daí é que Bergson observa dois tipos de cadeias percorridas por estes estímulos corporais no momento da lembrança. A primeira, mais motora, articula imagem-cérebro-ação, relaciona imagens exteriores, corpo e as modificações deste sobre as imagens. Aqui, é como se as sensações levadas ao cérebro fossem 23

Michael POLLAK, Memória e identidade social. Estudos Históricos, n.10, p. 200-212. 139

sempre restituídas aos nervos e músculos, gerando movimentos e ações, num caminho de ida e volta. Quando este percurso de ida e volta não se cumpre, quando há um caminho só de ida dos estímulos ao cérebro, sem que haja a volta destes às partes periféricas do corpo, parando no cérebro, constitui-se a segunda cadeia, imagem-cérebro-representação, que já não é mais motora e sim um esquema perceptivo24. Esta idéia de percepção é fundamental para se pensar a memória pois, neste vazio deixado pelo caminho de ida e volta interrompido, abre-se o espaço para o imaginário, os signos da consciência. Porém, há que se lembrar sempre: ação e representação caminham juntas, têm em comum um ambiente, um mundo físico presente, gerador dos seus impulsos, em que o esquema corporal é o responsável pela captação de imagens. Necessário frisar que a percepção aludida por Bergson não deve ser confundida com a memória. Se a “percepção pura” depende do meio físico atual, é um ato presente, então há outras formas de percepção passadas, ligadas a outros estágios de psiquismo, outras experiências, outras imagens captadas. Ele opõe a percepção pura, ligada à matéria, às idéias, nascida no interior de um presente corpóreo contínuo ao fenômeno da lembrança, que é a memória. Esta oposição está presente no título de seu livro, Matéria e memória. Mas como a memória surge? Bergson argumenta que o esquema perceptivo não é mero resultado de uma interação de um mundo físico com o sistema nervoso, estando presente também a lembrança, impregnando as representações. Na sua explicação, ele traz à luz um outro conceito, o de “conservação”, apontando para a nossa capacidade de guardar toda a vida psicológica já decorrida, em que este passado se combina com a percepção do momento atual, misturando-se com percepções reais do presente e com imagens já sentidas e evocadas. Assim, a memória interfere em todo o processo subjetivo humano, fazendo a ponte entre o corpo presente e o passado, alterando o processo atual de representações. Desta maneira, Bergson opõe memória e percepção, mas argumenta que são inseparáveis, caminham juntas, sendo impossível a percepção pura, uma vez que no momento em que esta ocorre, está também baseada em estados psíquicos conservados em nós. A partir da consideração de um passado conservado e atuante no presente, Bergson faz uma análise interna desse processo, ressaltando que a memória não é homogênea e se divide em dois tipos básicos: “memória-hábito”, a dos mecanismos motores, em que o corpo guarda esquemas de comportamentos dos quais se vale muitas vezes automaticamente. Está ligada ao 24

Henri BERGSON, Matéria e memória. 140

nosso processo de adestramento cultural, requerendo a atenção para a repetição de gestos e palavras; é o saber comer conforme regras sociais, dirigir, falar um idioma, etc. De outro lado, temos a “memória-sonho”: as lembranças independentes de quaisquer hábitos, as lembranças isoladas, singulares configuradas como “ressurreições do passado”, como lembra Ecléa Bosi25. Seria o devaneio, no qual surgem as evocações espontâneas de imagens, revelando momentos únicos, não-repetidos, irreversíveis. Bergson se ocupava em entender as relações entre a conservação do passado e sua articulação com o presente, a confluência entre memória e percepção, entre memória-hábito e memória-sonho, pois o indivíduo equilibrado integra os dois tipos de memória. No entanto, valoriza o estudo da memória-sonho como pertencente ao reino privilegiado do espírito livre, da “indeterminação”, chamando-a de “memória-pura”. É esta memória que retém e alinha todos os nossos estados, dando a cada fato o seu lugar. Neste sentido, fica uma questão: em que medida os conceitos bergsonianos podem nos auxiliar na compreensão da memória e no seu tratamento metodológico. Silvia Borelli26 traz mais elementos para este debate, ao se referir ao conceito bergsoniano de “intuição”, fundamental para a metafísica e o “método intuitivo” do filósofo. Desenvolve assim, uma reflexão acerca das idéias de Bergson, com importantes considerações sobre o uso da memória como fonte, comparando, por exemplo, esta noção de “memória pura” com a idéia benjaminiana de ir ao encontro de um passado em cacos e restituí-lo no presente, numa espécie de salvação. O conceito de “intuição” é construído pelas categorias do “eu superficial” e do “eu profundo”. O primeiro se refere às atividades intelectuais voltadas para o que é útil e cômodo, geradoras do hábito e em que a apreensão do real se faz pela relação entre diferentes objetos, e não por aquilo que cada objeto tem de essencial. Já o segundo diz respeito a uma apreensão do real que é dada por uma relação de intimidade com o objeto, em que sujeito e objeto estabelecem uma relação sem mediações, denominada por Bergson de intuição. Neste método intuitivo, ressalta Borelli, fulguraria uma análise da memória e do passado baseada em representações móveis, fluidas, fugidias, exigindo a interpretação (que se vale da intuição), sem interesses utilitários, mas buscando compreender tudo o que é dinâmico e criativo apontando para o devir, retendo do passado aquilo que já não é e antecipando o que ainda não é.

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Ecléa BOSI, Memória-sonho e memória-trabalho. In: _____ Memória e sociedade : lembranças de velhos. Silvia Helena Simões BORELLI, Memória e temporalidade: diálogos entre Walter Benjamin e Henri Bergson, Margem, n.1. 26

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Na elaboração de uma metodologia no trabalho com a memória, o esquecimento surge como algo que a integra, tanto quanto a lembrança. Como nos sugere Pollak27, esquecer é a ruptura, a lacuna, o vazio que pode ser uma defesa, uma vontade, mas que de suas incongruências, pode gerar coisas novas, novas interpretações, possibilidades de releitura. Benjamin28 argumenta que é importante olhar para o trabalho de rememoração e do esquecimento, compreender como uma tradição foi construída ao longo do tempo, como as camadas de sentido sobre o passado e as compreensões sobre ele acumulam-se como num palimpsesto, ajudando a conformar a nossa visão presente sobre este passado. Nestas camadas, estão presentes os esquecimentos, os ocos, os vazios requerendo um olhar apurado de um “historiador materialista” que, ciente de que o momento presente – a modernidade – só possibilita meras vivências e não mais experiências, vai ao passado na tentativa de salvá-lo, de recuperar esta experiência perdida; um passado em ruínas, em cacos, exigindo seu esforço interpretativo. Neste contexto, deparamo-nos com as formulações de Marcel Proust, autor que mantinha intenso contato com a obra de Bergson, e que teve sua obra devidamente trabalhada por Benjamin. Em Proust29, tem-se a narrativa como espaço privilegiado de análise – o seu tecer, sua lógica interna em que aparecem três vidas articuladas: a vida vivida, a vida lembrada e a vida narrada. Esta narrativa que articula tudo é o cerne da sua obra Em Busca do Tempo Perdido, cuja base é a memória. Esta última é dupla, faz-se num jogo, é voluntária e involuntária, ação e experiência, respectivamente, e remete às várias experiências da memória, a epopéia do lembrar que se faz e refaz no presente. Uma narrativa construída no encontro entre temporalidades, na textualização. A memória voluntária é aquela buscada conscientemente por motivações do presente, o qual, estando empobrecido, necessita dos tempos pretéritos para obter respostas num passado que nunca aparece em si mesmo, mas é sequenciado e linear. Este passado é recriado, resgatado para dar outras definições e contornos ao presente, construído para ser a determinação do presente que se deseja, sendo portanto uma busca causal, utilitária. No personagem de Proust, há uma busca angustiada pela rememoração, dando a entender que este passado se perdeu, não faz ecos e nem se conserva no presente.

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Michael POLLAK, Memória, esquecimento, silêncio, Estudos Históricos, n.3, p. 3-15. Cf. Walter BENJAMIN, A imagem de Proust; Experiência e pobreza; O narrador ; Sobre o conceito da História. In: _____ Obras escolhidas. 29 Marcel PROUST, O tempo redescoberto.

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Já a memória involuntária é fruto do imponderável, um passado que surge fragmentado, descontínuo, em flashs, instantâneo, onde muitas vezes não se sabe onde ele se articula, a que se vincula, onde se situa, sendo a incerteza seu indício maior, advindo de uma memória afetiva, sonora, onde sabores, cheiros, sons, sensações táteis têm papel preponderante no processo. A partir desta memória involuntária retoma-se a origem, em que os eventos surgem sem serem solicitados, frutos do acaso, do aleatório, mas que contêm a “memória pura”, o tempo perdido, redescoberto que aparece em lampejos, destituído de totalidade. No jogo de reflexos distorcidos nesse espelho da memória, cabe ao historiador a capacidade de lidar com estas diversas temporalidades, diversas imagens refletidas, organizando relatos e experiências, organizando o tempo. Este é o ofício do narrador. No entanto, não se deve encarar a memória voluntária e involuntária como separadas; ao contrário elas estão articuladas. No rememorar involuntário aparecem cacos do passado que dão conta da experiência na sua origem, mas para que isso ocorra é preciso o esforço consciente do presente, a memória voluntária ajudando a atribuir sentidos a este tempo redescoberto. Os fragmentos contidos no passado de quem recorda, encontram-se encravados, engastados na memória coletiva, necessitando, dessa forma, de articulação. Assim, feito este preâmbulo, é que se pode tratar mais propriamente do conjunto de fontes mais importante desta pesquisa, que são as memórias dos ouvintes, a construção memorialística oral de mulheres e homens que ouviam Bossa Nova nos anos 50 e 60. Estes depoentes foram selecionados e analisados com os seguintes critérios: a pesquisa está centrada na cidade do Rio e Janeiro, tendo sido selecionados moradores da cidade (na época em estudo) que não necessariamente precisariam viver nela até hoje, nem tampouco terem nascido lá, embora isto seja levado em conta para a interpretação dos depoimentos. Parece relevante analisar a memória sobre a cidade do Rio e a construção no presente que se faz dela em relação à Bossa Nova por quem ainda a habita e quem a deixou, por diferentes motivos, por quem lá cresceu, por quem só chegou na juventude, etc. A pesquisa envolveu 16 pessoas, resgatando tanto mulheres quanto homens. Esses indivíduos eram jovens (por volta de 20 anos) no período de existência da Bossa Nova como movimento assim reconhecido socialmente (1958 a 1964). Assume-se assim, que a categoria juventude é fundante na reflexão, como já exposto. A maioria pertence às camadas médias da sociedade, vários deles moram na zona sul do Rio de Janeiro, sendo que alguns sempre ali

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viveram e outros vieram de outras partes da cidade já na juventude. Outros moram na zona norte e central. E outros, ainda, moram em outras cidades, tendo deixado o Rio na década de 70. Importante destacar que, na tentativa de compreender a recepção da Bossa Nova também nos anos 60 – momento em que se tinha muito a mediação da TV para divulgação da música popular, com vários movimentos musicais eclodindo, como as músicas dos festivais, a Jovem Guarda, o Tropicalismo –, foram selecionadas pessoas dez anos mais jovens do que os anteriormente citados, ou seja, os que têm por volta de 50 anos atualmente (e tinham por volta de 20 no final da década de 60). Essa decisão permitiu uma comparação entre o meio musical e cultural do final dos anos 50 e início dos 60 e o final da década de 60, quando a indústria de bens simbólicos e o campo musical popular já se instauravam concretamente no Brasil. Outra questão relevante, é que foram escolhidos os ouvintes comuns da Bossa Nova, os não especializados, ou conhecedores de música, ou necessariamente apreciadores do estilo. Enfim, não se buscou a crítica especializada da Bossa Nova, mas os sujeitos comuns. Foram selecionados homens e mulheres independentemente do gosto musical que têm ou tiveram em relação à Bossa Nova, bem como depoentes que habitam a zona sul (local onde nasceu o estilo e que é mais identificado com as camadas médias e altas) como também moradores de outros locais da cidade. Mais ainda, se buscou uma certa variedade de históricos de vida como os que trabalham ainda hoje, os que não trabalham, pessoas com profissões variadas, etc. A forma de pesquisa no momento da entrevista foi a de “história de vida”, ou memória livre, sem um questionário previamente produzido e sem uma sequência ordenada de assuntos a serem tratados. A conversa girou muito mais em torno da compreensão de memórias de juventude na cidade do Rio de Janeiro, de narrativas sobre cotidianos permeados de questões, normas, mas também táticas e subversões, do que em torno de opiniões cristalizadas ou técnicas sobre a Bossa Nova. Nesse sentido, é que se tornou necessária uma interpretação profunda destas memórias, pois o objetivo central da tese não estava dito claramente pelos depoentes, mas requeria interpretação. Assim, o depoente pôde falar, sendo interrompido poucas vezes, apenas quando era necessário ressaltar alguma questão, pedir maiores esclarecimentos, pontuar algo que não foi dito, estimulá-lo a narrar alguma passagem, etc. Há que se atentar para as especificidades das “histórias de vida”, pois ao rememorar a sua trajetória de forma mais completa possível, o depoente se esforça na construção de sua própria identidade, num resultado de apropriação simbólica do real, contando suas experiências, emitindo

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suas opiniões. Dando sentido aos gestos e fatos, o memorioso se torna sujeito de seus próprios atos, percebendo seu papel singular na totalidade social. Por serem dotados de força narrativa, apresentam aspectos da realidade vivida insuspeitos ao pesquisador, o que os torna elementos de uma riqueza incomparável30. A metodologia utilizada na seleção dos depoentes foi por aproximação e indicação, uma vez que os assuntos tratados são muitas vezes de cunho privado, requerendo uma certa dose de confiança mútua entre pesquisador e depoente. Preferencialmente, a entrevista foi realizada na casa do depoente ou em qualquer outro lugar a sua escolha e, em algumas vezes, houve mais de um encontro. Assim, delimitada a metodologia, a pesquisa foi iniciada. A partir de algumas indicações obtidas com pessoas que moram no Rio de Janeiro, foi feito o contato com estes sujeitos. Alguns deles, prontamente se declararam dispostos a falar, demonstrando, inclusive, muito interesse em participar do trabalho, em serem ouvidos, em rememorar, o que demonstra a vontade de lembrar, a sensação de perda do passado e da tradição em favor do presente. Outros, entretanto, se negaram, completamente, ou então se negaram a princípio, concordando depois, pois afirmavam que não teriam nada a contribuir, não entendiam de música ou não gostavam de falar do passado. Algo bastante interessante no decorrer dos depoimentos foi que, aqueles que os concederam, falaram de sua juventude, infância, casamento, entregaram-se ao ato memorioso, gostaram muito da experiência, ao perceber, aos poucos, que o trabalho buscava muito menos saber sobre a Bossa Nova, dentro de um discurso elaborado, sobre considerações relativas à música, mas procurava muito mais, na história de vida de cada um deles, indícios de uma época, fragmentos de uma escuta. Alguns se entusiasmaram tanto com o trabalho que se dispuseram a indicar outros nomes, levando em consideração os que “gostam de falar” e não pensando em pessoas que “conheçam muito sobre música”, como a princípio interpretavam que esse era o objetivo do trabalho. A antropóloga Teresinha Bernardo aponta para a necessidade e a importância de se estabelecer um clima amistoso e de confiança entre depoente e pesquisador para se ter acesso a estas vidas vividas, em que um trabalho com emoção se perfaz, uma vez que, por vezes, há

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Antonio Torres MONTENEGRO, História oral, caminhos e descaminhos. Revista Brasileira de História – Memória, História, Historiografia, n.. 25/26. 145

grande alegria por parte dos entrevistados, tanto por se sentirem importantes, como também pelo fato de terem alguém de fora do ambiente familiar para contar suas histórias e experiências.31 No entanto, algo deve ficar muito claro: estas memórias que se tornaram visíveis na pesquisa como “fontes históricas”, não substituem de forma alguma a interpretação feita no presente. Em outras palavras, não se toma estes discursos produzidos na atualidade como a verdade dos fatos ou a verdadeira significação da audição naquele tempo. É necessário ter como pressuposto que, muitas vezes, a memória pode muito mais encobrir sentidos do que desvelá-los, uma vez que o tempo, a tradição e as leituras da Bossa Nova já produzidas pela memória histórica, muitas vezes podem permear hoje a construção memorialística destes ouvintes. As diferenças nas memórias de homens e mulheres ouvintes são dialogadas, nas suas formas específicas de atribuir significados, nos seus conceitos presentes sobre a Bossa Nova, nas suas formas de articulação daquilo que ouviam em seu cotidiano diferenciado. A historiadora Marina Maluf afirma que “a rememoração feminina está engastada nas experiências e nos papéis que as mulheres exercem tanto na vida familiar quanto na social, assim como no sistema de valores e representações extremamente diferenciado, no qual o masculino é construído de maneira positiva, em oposição ao feminino, que se 32 edifica de maneira negativa”

Desta forma, impossível não atentar para o fato de que as memórias femininas – por exemplo – poderiam apenas reafirmar ideologias e pressupostos prontos no que tange às diferenças de gênero. Da mesma maneira, difícil não levar em consideração também o fato de que estas memórias (tanto de homens como de mulheres) poderiam estar refutando conceitos e estereótipos cristalizados sobre a Bossa Nova: um movimento nascido num local belo, tranquilo, em que imperavam os “anos dourados”, entre outras visões unívocas. Outro aspecto importante no que se refere às memórias de homens e mulheres, é que as últimas, em todas as abordagens feitas para a obtenção do depoimento, se mostraram muito mais abertas a falar, prontamente se dispondo a rememorar e contar suas experiências, enquanto que os homens apresentaram maior resistência (com exceções) a fazer o mesmo, ou se negando a falar, ou ainda, quando concordando, acabando por ficar presos a uma tentativa de “explicar” a Bossa Nova, não se permitindo muitas vezes, falar sobre suas próprias experiências. Isso se deve, em parte, ao fato de a pesquisadora ser uma mulher, o que por si só já coloca alguma distância e 31 32

Teresinha BERNARDO, Memória em branco e negro: olhares sobre São Paulo. Marina MALUF, Ruídos da memória. op.cit. p. 102. 146

reserva por parte deles em falarem de suas vidas particulares. Mas parece se referir também às próprias características do gênero masculino, de maior fechamento e interiorização das subjetividades. No entanto, isso não faz com que a memória seja uma fonte menor, ou menos confiável. Neste trabalho há sempre a possibilidade da ruptura, de surgimento de ecos do passado que não correspondem a uma noção de continuidade e repetição. Assim, o fato de os homens falarem ou rememorarem menos, buscarem explicações sobre a Bossa Nova, seus silêncios, seus não-ditos foram levados em consideração e usados como motivo para reflexão. Para compreender estes aspectos, é necessária uma interpretação das entrelinhas, dos pormenores, dos detalhes, não se deixando envolver pela narrativa como se ela trouxesse a verdadeira noção sobre os fatos ocorridos. O que se quer assumir é que o discurso memorialístico é lembrança e esquecimento, contendo aquilo que o memorioso julga importante ser registrado. Valer-se da memória destes ouvintes deve ser o trabalho de ler textos, de tentar compreender este vivido em diálogo com outras fontes ou linguagens (imprensa, dados sobre a produção, e outros) sempre numa perspectiva de interpretar e não de encontrar as verdades já prontas. Seria o caso, portanto, não de abrir mão da “vontade de verdade”33 a que as ciências sempre estão de alguma forma atadas, mas de criticar o conceito de verdade no qual, por vezes, nos baseamos, pautado em mensurações, critérios de verificações, empirias e visibilidades objetivas. Desta forma, pode-se analisar os depoimentos destes ouvintes da Bossa Nova, como um processo de recordar que permite identificar o que pensam que eram no passado e o que pensam que são no presente, sendo que as histórias narradas não se configuram como representações exatas do seu passado, mas trazem sim, aspectos desse passado, moldados de forma a se ajustarem às suas necessidades e aspirações do presente, isto é, à imagem atual que o indivíduo tem sobre si ajuda a moldar suas reminiscências onde fatos julgados como importantes dão sentido às aspirações atuais criando consonância entre passado e presente34. A matéria-prima aqui é a memória oral, o depoimento falado. De partida, isto já é uma ruptura com a hegemonia das fontes escritas consideradas preponderantes ou mais confiáveis para dar conta do passado. O depoimento oral traz em si uma pluralidade de aspectos subjetivos que o diferencia das fontes escritas, envolvendo uma forte carga emocional, o contato com o 33

Jeanne Marie GAGNEBIN, Verdade e memória do passado. Trabalhos da memória -Rev. Projeto História, n.17. Alistair THOMSON, Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história oral e as memórias. Projeto História – Ética e História oral, n.15. 34

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depoente, fatores que interferem na narrativa e na sua interpretação. Fornecem, assim, informações acerca das emoções, sentimentos, crenças e motivações do depoente, proporcionando, por sua vez, uma pesquisa qualitativa, rejeitando uma suposta objetividade e neutralidade do investigador, mostrando-se como um fazer científico que se deseja alcançar. Neste ponto, surge um dos principais problemas para quem opta por este método: a verificação do grau de veracidade do que está sendo dito. No entanto, nunca é demais lembrar que trabalhando com estes instrumentos de pesquisa, está-se lidando com a subjetividade dos indivíduos, com o que ele deseja revelar, ou prefere ocultar e com a imagem que ele quer formular no presente, sendo que a personalidade, a postura e as atitudes do pesquisador também interferem no tipo de resposta obtida. A narrativa oral sobre si mesmo não é apenas um depósito passivo de fatos, mas um processo ativo de criação de significados, em que é preciso atentar para as inúmeras modificações do passado forjadas pela memória, evitando uma possível confusão dos testemunhos orais como a própria história. É preciso compreender assim, o porquê daquela construção memorialística, de modo a não estabelecer julgamentos sobre verdade ou falsidade das informações. O trabalho com depoimentos parece ser de grande valia e utilidade ao favorecer alguns aspectos, como o fato de pesquisador e depoente estarem juntos num processo de interação, em que o contato direto favorece uma maior flexibilidade para a obtenção de informações. Este contato também é importante por permitir ao pesquisador a observação do depoente e a situação geral de quem responde, com seus sentimentos e feições. Isso possibilita ainda um envolvimento entre pesquisador e pesquisado, em que as emoções e os sentimentos percebidos podem, muitas vezes, contradizer o que está sendo dito. Por outro lado, a experiência da oralidade parece ser mais motivante, com o pesquisado estando mais impulsionado a falar, sem as tantas travas postas pela narrativa escrita, liberando o fluxo da memória35. Entretanto, há que se tomar alguns cuidados e levar em conta algumas técnicas no trabalho com a história oral. Uma delas é a relação pessoal, uma vez que o sucesso do trabalho depende fortemente da criação de uma atmosfera amistosa e de confiança, sendo importante não se criar um clima de desconfiança, antagonismo ou superioridade nas abordagens. Num primeiro momento, durante os depoimentos, as atitudes e opiniões do pesquisador não devem aparecer, tentando ser o mais neutro (o quanto possível, posto que neutralidade absoluta não existe), 35

Paul THOMPSON, A voz do passado – História Oral. 148

evitando induzir ou sugerir as respostas, permitindo que o depoente sinta-se livre para construir sua narrativa36. Aqui, estamos tratando da oralidade, algo diferente intrinsecamente de outras formas de tradição, de linguagens, de formas de expressão, possuindo uma especificidade própria. Muitas vezes, no momento da transcrição, a tendência é a de transformar uma narrativa oral em escrita. Isto resulta na perda de elementos essenciais como o tom, a velocidade, o ritmo, impossíveis de serem expressos por traços da linguagem escrita e suas pontuações. Sendo o discurso oral uma narrativa, muitas vezes a duração dos eventos descritos não coincide com a duração da narração. Desta forma, é importante deter o olhar na obra do estudioso da cultura, Paul Zumthor – por exemplo, o seu trabalho sobre a literatura medieval37 ao compreendê-la sobretudo como um estudo da voz e muito menos da palavra escrita – que traz considerações sobre a oralidade, a tradição oral e a transmissão oral. Um dos pontos nodais de sua obra é seu interesse não pela palavra oral em si, mas pelo seu suporte vocal, seu elemento realizador, a voz humana, como local privilegiado para o estudo das culturas, como a fonte de energia que as anima. Voz que implica em corpo, seu uso, seu engajamento, sua presença. Ele a considera em sua ação num tempo/espaço específicos, determinada ao mesmo tempo no plano físico, psíquico e sóciocultural. Zumthor, prefere, ao termo oralidade, a palavra “vocalidade”, que é a historicidade dessa voz, considerada como portadora de linguagem, já que por ela e nela se articulam sonoridades com significados. Estas considerações são importantes tanto para a análise da memória oral dos depoimentos dos ouvintes (como já foi bastante explicitado), como também para se refletir num outro âmbito da oralidade que também é central neste trabalho: a canção. Pois, para além de oralidade e da vocalidade, Zumthor fala em performance38, e a define como uma ação complexa pela qual a mensagem ocorre no hic et nunc, transmitida e percebida simultaneamente, tendo emissor, destinatário e circunstâncias se confrontando concretamente, onde o gesto e o corpo têm papel preponderante, numa espécie de teatralidade. Quando, enfim, comunicação e recepção coincidem no tempo, acontece uma situação de performance, dizendo respeito às diversas manifestações da oralidade, tomando emissor e receptor como realizadores da “obra poética”39 – um “drama à três”, envolvendo emissor, texto e receptor. Desta maneira, os gestos, a entoação da 36

Alessandro PORTELLI, Algumas reflexões sobre ética e história oral. Projeto História–Ética e História oral, n 15. 37 Paul ZUMTHOR, A letra e a voz: a “literatura” medieval. 38 Paul ZUMTHOR, Performance, recepção, leitura. 39 Paul ZUMTHOR, Introdução à poesia oral. 149

voz, o olhar, a respiração estabelecem uma situação comunicativa que põe em ação e em contato, o emissor, o texto e o receptor, o qual tem também um papel ativo no processo de comunicação. Isso fica claro se pensarmos no contato pessoal entre cantor/músico e ouvinte, como num show, por exemplo. Mas e a performance mediatizada tecnicamente? A performance encerrada no disco, no rádio, na TV? Zumthor também fala sobre este tipo de fenômeno, ressaltando que esta oralidade deve ser entendida como uma situação em que não há necessariamente a coincidência entre espaço e tempo e o momento da interpretação não é o mesmo da recepção. Ao necessitar de aparatos técnicos para a emissão da mensagem, ou ainda, para a emissão e recepção, a performance da oralidade mediatizada tem seus aspectos alterados com a abolição da presença física de quem traz a voz, estabelecendo uma recepção que muitas vezes deixa de ser sempre coletiva, tornando-se individual, pressupondo um ouvinte em movimento. Aliado a isso, a performance se interioriza, e o ouvinte participa com suas fantasias, pois o suporte midiático tende a apagar as referências espaciais da voz viva – o espaço em que se desenrola é artificialmente composto. A mediação eletrônica fixa a voz, abole seu caráter efêmero, fugaz, retira-a do puro presente cronológico, pois a voz que transmite é também reiterável indefinidamente, embora de maneira abstrata. Segundo Zumthor, a mídia retirou a corporeidade da performance, produzindo uma desencarnação, com perda de tatilidade, peso, volume, olfato, com perda da presença do corpo, enfim. Porém, a presença do corpo se transforma mas não deixa de existir. A mediatização não faz com que deixe de existir performances ou vocalidades. Numa gravação, no rádio, na canção mediatizada, por trás da voz gravada há uma gestualidade, uma plasticidade da voz, há a presença de um corpo, de qualquer forma. Não se pode mais vê-lo, mas suas pulsações estão presentes, respirações, sentimentos, energia vital. Tem-se, de qualquer forma, um corpo, e isso é que é definidor da performance. Embora se possa argumentar que a performance mediatizada está destituída de presença, de “aura”, há que se lembrar que mesmo a gravação (com todo seu aparato técnico) contém elementos que lhe são característicos, próprios, não sendo apenas uma perda. Ela se modifica, claro, mas nem por isso é algo a ser desmerecido e visto como menor ou como falseador. A interpretação feita pelo cantor tem comunicação com o ouvinte. Por trás dos recursos técnicos, do

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timbre do cantor, há uma gestualidade oral; por trás da voz que canta, há uma voz que fala40 e é esta palavra cantada que produz em quem ouve a formulação de sentidos, daí a importância em se analisar a interpretação do cantor, mesmo mediatizada tecnicamente, pois ainda assim, há a assinatura própria do intérprete, seu traço característico nos arranjos, no processo de captação sonora, na utilização do microfone, etc.41 É necessário lembrar, ainda, que o ruído de fundo da nossa época, constituído por canções midiáticas, é o lugar onde vive a nossa oralidade cotidiana, possíveis produtoras do engajamento corporal ressaltado por Zumthor como peça fundamental na performance. Assim, as canções da Bossa Nova nesta pesquisa são entendidas em sua performance, ou seja, por meio dos discos e gravações da época, numa tentativa de interpretar a sua comunicação com seu público, com seus ouvintes, compreendendo de que maneira afetavam sua percepção e como dialogavam neste encontro. Privilegia-se, assim, o uso da voz – a vocalidade –, a linguagem em sua função dialógica na performance, chamando a atenção sobre o aspecto corporal (em que entram voz, imagem e o próprio corpo) desta voz cantada, seu modo de existência como objeto de percepção e de escuta. Segundo Zumthor, “a transmissão da boca ao ouvido opera o texto, mas é o todo da performance que constitui o locus emocional em que o texto vocalizado se torna arte e donde procede e se mantém a totalidade das energias que constituem a obra viva.”42 Vem daí a procura por ouvintes que tivessem escutado e assistido à Bossa Nova no final da década de 60 pela TV e as diferenças em relação àqueles que a ouviram principalmente (ou apenas) no rádio ou disco. Mas, se os ruídos do fundo de nossa época são as canções, há que se indagar como estes ruídos foram constituídos, de que paisagem sonora estamos falando. De acordo com Murray Schafer43, a escuta é percebida como o centro de um complexo relacionamento entre o ouvinte e seu meio ambiente, em que todos os sons pertencem a um campo contínuo de possibilidades dentro do domínio da música, incorporando sons, ruídos. Isto tudo daria origem à paisagem sonora, que é a tradução de soundscape, em analogia à landscape e se refere a qualquer ambiente sonoro ou qualquer porção dele visto como campo de estudos, podendo ser este um ambiente real ou construções abstratas, como música, programas de rádio, etc. Assim, os sons presentes na 40

Luiz TATIT, O cancionista: composição de canções no Brasil. Heloisa de Araújo Duarte VALENTE, As vozes da canção na mídia, São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). PUC/SP. 42 Paul ZUMTHOR, Introdução à poesia oral, p.33. 43 R. Murray SCHAFER, O ouvido pensante; e também A afinação do mundo. 41

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paisagem sonora interferem diretamente nos órgãos sensórios, colaborando para a constituição de novas formas de sensibilidade e novos hábitos. Desta forma, importante atentar para quais efeitos têm os sons do ambiente, ou quais relações se estabelecem entre eles (os sons) e a música de uma época, que diferenciações existiriam numa musicalidade composta num meio urbano, na metrópole ruidosa, ou no campo, ou ainda à beira do mar. Importante perceber que cidade, que espaço urbano era aquele habitado pelos músicos compositores de Bossa Nova, e mais ainda, que territórios eram vivenciados por seus ouvintes, que ajudavam a conformar uma paisagem sonora fundamental para estabelecer uma escuta musical. Encarar este ouvinte como alguém que passeia, compondo uma narrativa urbana, sonora, uma experiência na cidade como o flaneur44 benjaminiano que se constitui no ondular da massa metropolitana, fazendo parte dela e ao mesmo tempo negando-a, olhando-a de fora. Um caminhar pela cidade formulador de uma experiência por meio de seus fragmentos, um indivíduo que admira as vitrines, o consumo, assiste à TV, ouve o rádio, os discos, mas que também vai à praia, e se fascina diante das montanhas e da natureza. Ele vive a aceleração do tempo, a desenfreada proliferação dos prédios, o extremo processo de super-povoamento de Copacabana ainda nos anos 60. Tudo isso parece contribuir para uma melhor compreensão desta escuta da Bossa Nova. Se a paisagem é o signo preponderante para este habitante da cidade moderna que o Rio de Janeiro já se tornara, a paisagem urbana, repleta de imagens e choques que estimulam o olhar e a contemplação não está separada da paisagem sonora que também compõe este ambiente, onde luzes, cores, vitrines, prédios, montanhas, cheiros, ruídos, presenças físicas, músicas vão delineando o tempo em questão, na percepção multi-sensorial que tem dele o ouvinte da Bossa Nova. De acordo com Heloísa Valente, tem-se assim, “uma sincronização do tempo social expresso na música, que termina por se elaborar na escuta desta música e desta paisagem sonora. A tecnologia e os instrumentos musicais, seus ritmos, intensidades, volumes, também ajudam a expressar esta paisagem sonora na música, sendo necessário perceber suas permanências, modificações, que se salientam como fundamentais para uma história das mídias sonoras. No entanto, a mudança por que passam as mídias sonoras não dependem exclusivamente das tecnologias, mas sim dos códigos culturais que determinam o conjunto de valores que organizam internamente a sociedade, onde alguns estilos ou gêneros musicais parecem exprimir um tempo e seu espírito, uma sociedade, contendo os elementos sonoros próprios à ela (...) “o exemplo da música e da canção, particularmente, revela-se como uma fonte privilegiada de textos e subtextos (culturais, musicais) (...)Estas 44

Walter BENJAMIN, O Flanêur; Sobre alguns temas em Baudelaire. In: _____ Obras escolhidas. 152

razões parecem suficientes para crer que a música – e dentre as músicas, a canção - seguirá como valioso 45 testemunho do espírito do seu tempo”.

Bem, ao tratar da Bossa Nova, impossível deixar de lado (como já se falou no início deste capítulo) sua imensa e profícua edificação no imaginário brasileiro, que a faz ser lembrada sempre como marco da MPB, música-símbolo do país, símbolo de uma cidade, de um tempo. Foi dessa forma que se tornou um monumento na música brasileira, lembrada, cultuada, vista como marco fundador. A questão posta é: como trabalhar sua performance, se esta não é mais original? Como trabalhar a primeira impressão, a primeira forma de escuta, se há um distanciamento temporal? Segundo Zumthor, a performance, encarada como emergência/fenômeno que sai de um lugar, atinge plenitude e volta para o seu mesmo lugar, ultrapassando o curso comum dos acontecimentos e tornando-se obra poética, envolve cinco momentos: 1. Produção; 2. Transmissão; 3. Recepção; 4. Conservação; 5. Repetição. O momento da performance se refere aos itens 2 e 3, ou seja, à transmissão e à recepção, sendo às vezes referente também à produção, no caso das improvisações. Isto é o que o autor caracterizava como “transmissão oral”, diferentemente da “tradição oral”, que se refere aos itens 1, 4 e 5: produção, conservação e repetição46. Aqui, Zumthor se referia ao modo de existência da poesia oral fora da performance, fora do momento único de seu acontecimento irrecuperável, e de que maneira se determinariam sua conservação. O discurso oral é pouco durável. Exatamente por seu dinamismo, ele está a todo momento, a cada nova performance, se re-elaborando, adaptando-se, possuindo uma falsa reiterabilidade, numa potência criadora e recriadora do passado e do presente, qualidade que Zumthor chamava de “movência”47 das obras. Esta característica é articulada ao nomadismo dos textos orais, seu poder de migrarem para tempo e espaços diversos, aderindo e sendo incorporados a outras culturas. Daí a noção das performances não possuírem formas fixas, estáveis, mas serem flexíveis, “inautênticas”, fazendo com que noções tão caras, firmadas e definidoras da cultura escrita, tais como autoria, plágio, percam-se ou se desloquem.48

45

Heloisa D. VALENTE, O espírito do tempo, os tempos do espírito: nos (com)passos dos beats dos hits. Revista Eletrônica de Semiotica, Cultura e Midia (CISC) n. 1. (http://www.cisc.org.br/ghrebh/artigos/01heloisa28092002.html) 46 Paul ZUMTHOR, Introdução à poesia oral. 47 Idem. 48 Paul ZUMTHOR, A letra e a voz: a “literatura” medieval. 153

Ao se moverem, as performances se modificam não apenas em seu conteúdo, mas também na sua função social, pois são liberadas aos caprichos do tempo, oscilando na indeterminação de sentidos feita e refeita por ela a todo momento. A performance se refere não à idéia de completude, mas ao desejo de realização, comportando sempre o inacabamento. A sua forma só é percebida nas situações em que está se processando, pois a cada uma nova situação, a “forma se transforma”. Zumthor chamava de “tradição”49 esta capacidade de guardar do passado os seus rastros, para que nos ajudem e colaborem conosco no presente. Nas sociedades midiáticas, a tradição se configuraria nas respostas múltiplas dadas pelas culturas ao desafio que nos lança a rapidez, a fugacidade do tempo, a aceleração da história, a presentificação incessante. Este passado, construído na tradição, não é contínuo ou linear, ao contrário, comporta a ruptura que é o esquecimento, escolhendo aspectos, encobrindo outros, sendo seletivo. No seu processo de transformação, a tradição se move, se modifica, cria hiatos que servem ambiguamente para conservar os dados e para possibilitar tensões criadoras, com energias próprias. A tradição, assim, é como um saber cumulativo que as culturas têm de si próprias e que empregam nas linguagens, nas poéticas, na oralidade. Pode-se falar, desta maneira, em tradições presentes no ato de rememoração das poesias orais, como também de tradições presentes na própria poesia oral, ou seja, aquilo que, dentro das formas variadas de oralidade poética, está saturado, carregado de passado. A partir do que foi dito sobre a tradição, pode-se compreender suas formas de conservação. Entra-se, assim, na idéia de duração e memória proposta por Zumthor, em que a conservação pode ocorrer, por um lado, na memória direta ou indireta das gerações, e também nas formas de oralidade. Uma memória gerando sempre outras performances, nunca iguais, mas re-interpretações. Por outro lado, a conservação pode ocorrer na utilização de arquivos, como o escrito, o disco, o filme, o vídeo, etc. Tem-se a vontade de fixar, registrar, de não se deixar perder, de encerrar em lugares salvaguardadores do tempo infinito, transmutando-se no atemporal. Isso advém da própria sensação de fragilidade que a poesia oral possui, de sua fugacidade, de sua capacidade de captar o instante, de se modificar, de possuir uma instabilidade radical. Seria a tentativa, assim, de assegurar as “frágeis” performances de sua condição temporal inexorável. 49

Paul ZUMTHOR, Tradição e esquecimento. 154

Neste sentido, retoma-se a questão metodológica traçada acima: como – apesar do distanciamento temporal – captar performances que já passaram, performances de outros tempos, uma vez que não há mais a pretensa originalidade? Aqui entram em cena os arquivos e a memória, as maneiras de conservação. As tecnologias, as mídias sonoras podem cumprir este papel como fontes históricas, prestando-se ao papel de “lugar de memória”, de documentos/monumentos para guardar a realização da obra “tal como foi”. A tradição guardada nos discos, nas gravações, nos arquivos estão saturadas de elementos que, ouvidos no presente, suscitam diversas formas de percepção e, por que não, de novas performances. As mídias sonoras, e neste caso, o disco, podem assumir esta função documental. Na busca pela escuta da Bossa Nova feita por seus ouvintes hoje, podemos nos valer destes objetos que guardam a memória de um tempo, de uma paisagem sonora, de um mundo, de uma experiência. Retomando Bergson, a percepção que o ouvinte faz hoje desta música já não será a mesma daquela feita em outros tempos, pois o presente é outro, a cidade é outra, a paisagem sonora também. No entanto, a memória está latente e no momento em que esta percepção é ativada, outras formas perceptivas guardadas podem vir à tona por meio da memória-sonho, ou da memória involuntária. O sujeito, ao ouvir música, têm suscitadas impressões, sentimentos, lembranças de sua infância e juventude, acionando seu imaginário como numa viagem em busca das origens, podendo ter a experiência do sujeito que passeia pela paisagem sonora de seu tempo, como um flaneur. Neste sentido, é que a música e seu registro midiático podem servir como lugar de memória, local de guardar experiências fixadas que, no entanto, não estão estáticas, mas sempre relidas no presente de quem escuta. A tradição guardada nos discos, as canções da Bossa Nova, possuem esta característica de nomadismo e movência em que se adaptam, reintegram-se e se modificam em locais e épocas diferentes, num tipo de miscigenação saturada de elementos que, ouvidos no presente, suscitam diversas formas de percepção e também novas performances. Não por acaso, hoje se pode escutar no rádio e nas pistas de dança, a obra de Bebel Gilberto e mesmo a canção Só tinha de ser com você, de Tom Jobim, tocada numa roupagem moderna, eletrônica, mixada pelo

DJ Patife,

incorporando drum’bass, e cantada por Fernanda Porto. Ao que tudo indica, esta é a forma audível e possível para o grande público – e principalmente para os mais jovens – da Bossa Nova, num momento em que a calma, o tempo mais lento, sugeridos pelo estilo “original” não parecem encontrar lugar num mundo acelerado e numa paisagem sonora tão diferente. Jovens que a

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escutam e que se identificam como algo que lhes faz sentido, algo que os afeta. Assim, talvez seja a partir de uma performance específica da Bossa Nova que esta mediação apareça. Desta forma, é que se chega à idéia de recepção e de apropriação, ou seja, ao modo como os sujeitos percebem, de que maneira, por que caminhos, por quais elementos. É daí que o conceito de medição parece ser apropriado. O que interessa aqui, no entanto, é a apropriação feita por jovens de outrora, os ouvintes adultos de hoje, em suas memórias. Assim, é preciso buscar compreender que elementos podem ter sido estes que fizeram com que estes jovens nos anos 50 e 60 se identificassem, gostassem, consumissem esta música. Compreender quais recursos performáticos, midiáticos, subjetivos, imaginários podem ter sido facilitadores deste encontro. Para isso, é necessário recorrer a alguns conceitos trabalhados pelos estudos de recepção. Deixo claro que embora existam várias correntes de pensamento, de variadas áreas trabalhando com recepção – como a teoria de usos e gratificações, a estética da recepção, entre outras – aqui estamos dialogando com o pensamento latino-americano, mais precisamente as formulações de Jesús Martin-Barbero50. Partindo de um ponto de vista sobre cultura de massas e comunicação diferente do frankfurtiano – hegemônico até então – , o autor utiliza a idéia de apropriação, e percebe a recepção como prática complexa de construção de sentido que se dá no cotidiano. O autor desloca o foco de análise dos meios comunicacionais, reposiciona o seu papel e privilegia as mediações próprias da recepção, entendida agora como o meio, a possibilidade e a forma de encontro entre emissor e receptor, em que se enfatiza a posição da cultura no cotidiano. O processo comunicacional deixa de ser visto apenas como uma relação de dominação da indústria cultural ditando padrões a receptores apáticos. Verifica-se a participação de mais elementos que devem ser compreendidos neste complexo jogo: as mediações. Assim, ocorre um desligamento das análises tão correntes que vêem o receptor como alguém indefeso e apático diante do poder absoluto da mídia. Ao chamá-los de sujeitos receptores, Martín-Barbero lhes dá um papel de agentes do processo (apesar de não serem livres, absolutos e independentes das ideologias), com capacidade de diálogo, negociação e formulação de sentido. A isso tudo está articulado o conceito gramsciano de hegemonia, como já exposto no primeiro capítulo, envolvendo negociação, poder, re-arranjos de posições, assimilações, incorporações de elementos culturais diversos, como popular, massivo, erudito, em que ora há contenções, ora resistências. 50

Jesús MARTIN-BARBERO, Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 156

O conceito de mediação supõe o entendimento do todo do processo de comunicação, configurado como um lugar de interação entre o espaço da produção e o da recepção, uma estrutura incrustada nas práticas sociais e no cotidiano das pessoas.51 As mediações seriam formas de percepção da realidade, maneiras pelas quais uma mensagem, no caso musical, chega ao seu ouvinte e lhe afeta, gerando uma formulação de sentidos. É o modo como, enfim, este ouvinte se apropria desta música, pressupondo que não acontece uma mera reprodução do que lhe é posto, mas sim de leituras diferenciadas com uma produção de sentido também plural sem que, no entanto, isto signifique um receptor completamente autônomo a tudo que lhe é direcionado pelos meios. Isto supõe uma apropriação historicizada, em que cada grupo analisado deve perceber as medições próprias e específicas do modo de apropriação das mensagens. É importante recuperar, entre outras, como forma de mediação, a situação de escuta e contato com a Bossa Nova: como a música era ouvida, se era no rádio, se em família, com amigos, no trabalho ou só; se a partir dos discos, se em reuniões em casas de amigos, se em shows; ou ainda, se a partir das críticas na imprensa, etc. Pode-se levar em consideração, como também sugere Martín-Barbero, a competência cultural do receptor, o que ele está acostumado a ouvir, a quais performances musicais está familiarizado e com as quais se identifica, qual o seu repertório. O conceito de mediação, no entanto, não se refere apenas à cultura formal, engloba também a cultura dos bairros, das cidades, das tribos urbanas, sendo uma marca cultural viabilizada pela experiência cotidiana. Desta forma, é necessário estar atento às leituras diferenciadas que estes ouvintes podem fazer da Bossa Nova, dependendo de sua educação formal, mas também de seu repertório musical, dos lugares da cidade em que habitam, etc. Com o referencial teórico e metodológico acima traçado, e com os depoimentos realizados, é que se tem o capítulo 3, em que interpreta-se estas memórias. Cada um de seus subitens, mostram os aspectos que foram mais relevantes nos depoimentos que serão analisados: a cidade, a juventude e a política, a questão de gênero, e a questão da escuta e do olhar.

51

Maria Immacolata LOPES et alli, Vivendo com a telenovela: mediações, recepção, teleficcionalidade. 157

Cap. 3 – Ecos da Bossa Nova “Aquela senhora tem um piano Que é agradável mas não é o correr dos rios Nem o murmúrio que as árvores fazem... Para que é preciso ter piano? O melhor é ter ouvidos E amar a natureza.”

O guardador de rebanhos, Fernando Pessoa

Ecos, repetições sonoras. Entre os tipos de sons existentes num dado local, podemos distinguir o direto, aquele que vem do emissor (seja ele um instrumento ou uma voz); o precoce, que resulta dos primeiros reflexos a alcançarem nossos ouvidos, advindos do esbarrar nos limites do espaço em que se está; e finalmente, o eco.1 Este, aos poucos se forma e desaparece, enquanto ondas de som ricocheteiam em todas as superfícies. Entre os especialistas em acústica, o segredo para se obter um local em que se possa ouvir perfeitamente as sonoridades, seria fruto do equilíbrio entre os ecos e os sons diretos e precoces, a fim de que se alcance uma melhor definição sonora. Sem o eco, dizem os especialistas, a sonoridade fica “seca” demais, pois ele é como um pano de fundo para as harmonias, apoiando o processo no qual o cérebro combina sons subsequentes e dá-lhes ligação, tendo como ajuda esta tela de fundo, para lembrarmos por mais tempo os sons passados e combiná-los com os seguintes. Esta noção de eco parece auxiliar na compreensão das escutas musicais de outros tempos. Por ela é que se vislumbra interpretar as escutas da Bossa Nova como experiências já passadas, que chegam somente através de reverberações suscitadas pela memória. Ondas sonoras, vidas vividas, cotidianos talhados de experiências que são interpretados hoje, depois de muito ecoarem no tempo, se combinarem e recombinarem com outros sons, outras experiências, outras interpretações, necessárias para esta que ora se apresenta. Ecos da Bossa Nova, assim, que seguirão soando, dando telas de fundo para outras e futuras composições e interpretações sobre esta música. Este terceiro capítulo busca analisar os depoimentos dos ouvintes, as suas memórias. Dividido em cinco sub-capítulos, seus títulos, bem como seus conteúdos, têm como base aquilo que foi mais recorrente nas vidas lembradas durante o trabalho de reminiscência – aquilo que mais reverberou e ecoou no tempo. O que se compreendeu desses depoimentos será trabalhado

1

Robert JOURDAIN, Música, cérebro e êxtase: como a música captura nossa imaginação. 158

em trama com outras fontes como as canções, os depoimentos dos bossanovistas e o material publicado pela imprensa da época, numa tentativa de interpretação do cotidiano da época. Cap. 3.1. – Entre escutas e olhares “Inventei a cor das vogais! – A negro, E branco, I vermelho, A azul, U verde. - Regulei a forma e o movimento de cada consoante e, com ritmos instintivos, nutri a esperança de inventar um verbo poético que seria um dia acessível a todos os sentidos. Eu me reservava a sua tradução. Foi, antes, simples estudo. Eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens.”

Alquimia do verbo, Arthur Rimbaud

Refletindo sobre os dias atuais, é notória a presença daquilo que é veiculado pelos meios de comunicação em nossa vida e no cotidiano, delineando uma cultura e até uma percepção do mundo diversa das tradicionais, sejam elas, eruditas ou populares. Uma “cultura das mídias”, como aponta Lúcia Santaella2, evidenciando as estreitas relações entre cultura e comunicação e onde a regra é a mutabilidade, em que se arranjam e rearranjam – acelerada e incessantemente –, elementos eruditos, populares e de massas. A linguagem propagada pela cultura das mídias possui uma natureza altamente híbrida, misturando elementos de níveis culturais variados, bem como matrizes de pensamento e linguagens também diversas como a sonora, a visual e a verbal. Desta maneira, as peculiaridades que podem ser criadas por estas interações entre as linguagens, produzem efeitos diferenciados na percepção do receptor, em seus dados cognitivos, psicofísicos e no seu cotidiano. Em muitos depoimentos, esta experiência cotidiana em meio às percepções do mundo permeadas pelas mídias vinha à tona, exigindo a compreensão da formas como se articulava e se estruturava a cultura das mídias nos anos 50 e 60, o modo como foi percebida pelos seus receptores – mais precisamente pelos ouvintes da Bossa Nova – e como isto foi guardado por suas memórias. Ouvintes convivendo com mídias variadas em seu cotidiano, passeando entre escutas e olhares, com percepções variadas do mundo compondo sua experiência. É isto que se busca interpretar neste sub-capítulo. Como já apontado no capítulo 1, a cultura de massas foi se estruturando no Brasil na década de 40 e 50, potencializando formas de consumo que, para além de sua concretude e objetividade, possuem um caráter imaginário, segundo Morin.. Indo além, este consumo 2

Lúcia SANTAELLA, Cultura das mídias. 159

imaginário aponta em mais uma direção: a do espetáculo, cujo fundamento hegemônico é a imagem, o olhar. É possível afirmar que neste momento estudado, esta dimensão imagética vai tomando características muito peculiares e intensas na sociedade moderna – aqui pensamos mais especificamente na carioca por ser o interesse específico desta pesquisa – onde a visão vai se tornando o sentido mais estimulado na cultura de massas e de consumo, como se pode notar, por exemplo, na imprensa da época principalmente através de seu fotojornalismo. Segundo Ana Maria Mauad, a fotografia documental teve grande importância no século XX. Nesse período se destacaram nomes como Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, Bruce Davidson, Ernst Haas, George Rodner, Denis Stock, Sebastião Salgado, dentre outros que realizaram, de formas distintas, esse tipo de fotografia, subentendida como evidência, comprovação oficial. Acompanhada deste atributo, a fotografia passou a ser considerada, ao longo do século, a testemunha ocular da história.3 Embora saibamos que entre o fotógrafo e a imagem que elabora – com todas as etapas de edição e publicação da foto – existam muitas outras questões em jogo, o mito da verdade científica positivista foi reforçado com o ideário do olhar neutro da câmara fotográfica, cuja capacidade de tirar instantâneos da realidade forneceu à fotografia documental o estatuto de uma verdade anunciada. O que estaria exposto na imagem seria um pedaço da realidade congelada no tempo e, por isso mesmo, isenta de qualquer contaminação. Assim, segundo Mauad, “reedita-se a ilusão oitocentista com a qualidade técnica do século XX, com a autoridade de testemunha irreprimível que a imprensa ilustrada adquire a partir dos anos trinta, devido a este suposto poder de convencimento das imagens instantâneas”. Reforçando esta idéia , a presença do fotógrafo junto com o repórter na cobertura dos acontecimentos era realçada, originando o fotojornalismo como uma tentativa de exprimir, por imagens, a realidade objetiva e literal do evento retratado de um modo mais fiel do que com as palavras.4 No Brasil, o fotojornalismo teve como ponto de partida e desenvolvimento a primeira revista ilustrada, O Cruzeiro. Publicada a partir de 1928, dentro dos padrões internacionais da Life, Time e Paris Match, esta revista adotaria, desde o início dos anos quarenta, a idéia de reportagens fotográficas, nas quais trabalhavam fotógrafos e repórteres, coordenando o texto escrito com o texto visual. Dentre as duplas mais famosas, responsáveis por matérias impactantes 3

Ana Maria MAUAD, Imagens da terra: fotografia, estética e história. In: Primeiros Escritos. n° 7- julho de 2001. Helouise COSTA, Aprenda a ver as coisas: fotojornalismo e modernidade na revista O Cruzeiro. São Paulo, 1992. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, USP. 4

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sobre o Brasil, seus problemas, mas também suas belezas e riquezas, estavam Davi Nasser e Jean Manzon5. Segundo Helouise Costa, “o redimensionamento de O Cruzeiro a partir da inclusão da fotografia como elemento ativo da reportagem, a variedade dos assuntos abordados e o surgimento de uma fotopublicidade atuante foram a mola para a sua expansão. Expedições à floresta amazônica para contatar tribos indígenas, o carnaval e as praias cariocas, os esportes e a polícia, o glamour das atrizes, os acidentes automobilísticos, os crimes famosos a vida das nossas grandes cidades. Tudo era motivo para uma boa fotoreportagem, satisfazendo plenamente o gosto da classe média brasileira. Em 1952 explodem as vendagens desta revista: 700 mil 6 exemplares vendidos!”

A revista, responsável pela crônica social, política e artística do Brasil e do mundo, trazia, já naquele momento, vários elementos que hoje caracterizam esse

mercado editorial: um

planejamento de marketing agressivo, investimento técnico, uma preocupação com o padrão visual e com o esquema de distribuição e de publicidade. Esse quadro sugere que daquelas páginas despontava – com grandes fotografias – uma idéia de um país projetado para o futuro, grande, em desenvolvimento, industrializado, moderno. Surgia também em O Cruzeiro, a tentativa de consolidar uma história oficial e unívoca do país, comprovada pelas imagens fotográficas que registrariam o instante exato dos acontecimentos, buscando sem dúvida a projeção de uma certa unificação da nação por meio da comunicação e cultura de massas, como nos aponta Maria Celeste Mira.7 Inúmeras são as matérias, reportagens, e mesmo peças publicitárias, recheadas de fotografias que ocupam a quase totalidade da notícia não só em O Cruzeiro, mas também nas revistas Manchete, Fatos e Fotos, bem como no jornal Última Hora. Essas matérias tratavam de assuntos variados, tais como descobertas científicas, transplantes de órgãos, descobertas de locais de consumo e tráfico de drogas, expedições antropológicas, belezas naturais, ou ainda a exploração da tristeza e desconsolo da família da jovem Aída Curi, morta em 1958, depois de violentada e jogada do alto de um prédio residencial da zona sul por dois rapazes da chamada “juventude transviada”. Notícias que apelavam para o fantástico, sensacional, emocional, dramático, choroso, em forma de “denúncia”, ou “furos”, que se valem em grande parte do

5

Marialva BARBOSA, O Cruzeiro: uma revista síntese de uma época da história da imprensa brasileira. In: Revista Eletrônica UFF. 6 Helouise COSTA e Renato RODRIGUES. A fotografia moderna no Brasil. Apud Ana Maria MAUAD. Imagens da terra: fotografia, estética e história. LOCUS: Revista de História. (Versão eletrônica indisponível atualmente). 7 Maria Celeste MIRA, O leitor e a banca de revistas: a segmentação da cultura no século XX. 161

conteúdo imagético para “explicar” os acontecimentos e dar-lhes a versão definitiva, verdadeira, comprovada e atestada através das fotografias. Já desde o século XIX, é possível perceber no campo do jornalismo o uso e a difusão de almanaques de humor devassos, panfletos sobre crimes pavorosos, enfim, uma imprensa sensacionalista se valendo da promoção do fait divers. Expressão que significa, “fato do dia” ou “notícias diversas”, remetendo à idéia de notícias variadas com importância circunstancial, se constituindo num elemento relevante para a promoção e alimentação do entretenimento no noticiário. Um tipo de notícia onde “desgraça pouca é bobagem”8, aberto a várias definições, espaço no jornal para tudo o que não se classifica, buscando ser um atrativo para o leitor formado após a consolidação da imprensa industrial. Uma de suas características é a de um tempo homogêneo e vazio, em que os fatos ali mostrados não se relacionam entre si e com outros aspectos da vida cotidiana, conformando um tipo de informação efêmera como o tempo e a vida na modernidade e no meio urbano9. Configura-se ainda, muitas vezes, como um jargão da imprensa, designando toda e qualquer notícia que implique rompimento insólito ou extraordinário do curso cotidiano dos acontecimentos, buscando ter alto potencial de atração para o leitor. É importante atentar para a definição do semiólogo francês Roland Barthes, que transformou o termo em um conceito analítico. Segundo ele, “o fait divers é uma notícia de ordem não classificada, dentro de um catálogo mundialmente conhecido (políticas, economia, guerras, espetáculos, ciências, etc); em outras palavras, seria uma informação monstruosa, análoga a todos os fatos excepcionais ou insignificantes, breve, aquele normalmente classificado, modestamente, abaixo da categoria de Variedades.(..) uma informação total, ou mais precisamente, imanente, que contém em si todo o seu saber: não é preciso conhecer nada do mundo para consumir um fait divers; ele não remete a nada além dele próprio; evidentemente, seu conteúdo não é estranho ao mundo: desastres, assassinatos, raptos, agressões, acidentes, roubos, esquisitices, tudo que remete ao homem, à sua história, à sua alienação, a seus fantasmas, aos seus sonhos, aos seus medos [...] no nível da leitura, tudo é dado num fait divers: suas circunstâncias, suas causas, seu passado, seus desenlace; sem duração e sem contexto, ele constitui um ser imediato que não remete a nada de 10 implícito”.

Este tipo de informação é constituído por duas notações: causalidade e coincidência, onde as notícias convergem para estas idéias, através das quais o discurso jornalístico e ficcional manejam uma certa idéia de destino. Constitui-se em um signo que se fundamenta como uma informação auto-suficiente, sem duração e sem contexto.

8

9

Marlyse MEYER, Folhetim. uma História.

10

Susan SONTAG, Diante da dor dos outros. Roland BARTHES, Estrutura da notícia. In: Crítica e verdade, p.58. 162

Edgar Morin, quando observa a existência de “vasos comunicantes” no interior da cultura de massas, aponta para o fato de que em um espetáculo de cinema, num filme romanesco, por exemplo, existe também uma parte de atualidades e de informação. Por outro lado, na imprensa, ao lado do caráter informativo, existe também o romanesco, o que faz a cultura de massas extravasar o imaginário e ganhar a informação jornalística. O romance-folhetim e o conto foram introduzidos no jornal desde o século XIX, mas é no auge da cultura de massas no século XX que se forma uma imprensa periódica de cunho sentimental, aventurosa, policial, baseada nos fatos variados, no sensacionalismo. A fórmula do fait divers reúne informação e invenção ao mesmo tempo, a ponto destas se confundirem, com uma tênue linha separando real e imaginação. Informação e entretenimento, assim, se comunicam, se interpelam na cultura de massas, não possuindo fronteiras rígidas, pois no fait divers, “as proteções da vida normal são rompidas pelo acidente, catástrofe, crime, paixão, ciúmes, sadismo. [seu universo] tem em comum com o imaginário (o sonho, o romance, o filme) o desejo de enfrentar a ordem das coisas, violar os tabus, levar ao limite, à lógica das paixões”.11 Dessa maneira, pode-se afirmar que o fait divers se caracteriza como um elemento catalisador e estimulador do entretenimento, da espetacularização, pois carregando em sua essência o humor, o espetáculo e a emoção, põe em relevo aspectos do imaginário humano, seus sonhos, fantasias, mitos, medos, tal qual um filme, uma telenovela ou uma série, sendo que hoje inúmeros estudos indicam sua presença não apenas no jornalismo impresso, mas também na TV. Na cultura de massas, este tipo de informação acabou por se manifestar mais constante e explicitamente nas imagens, seja nos noticiários de TV, seja nas novelas, em função de sua característica de espetacularização e de sua aptidão por se tornar imagem, o que sugere a força que esta possui nos imaginários, produzindo sentidos determinados pela autoria, e por isso mesmo ideológicos. Barthes analisa a mensagem fotográfica da imprensa12 como um sistema próprio, que possui dois sistemas prévios, nela aglutinados: um propriamente fotográfico, cujos constituintes imediatos são linhas, superfícies e tonalidades; e outro, o texto escrito que a acompanha em forma de título, legenda ou artigo. Este último, possui um código – o lingüístico – cujas regras obedece, onde, entre a coisa que fala e a mensagem falada, se interpõe um código que não reflete

11 12

Edgar MORIN, Cultura de massas no século XX : o espírito do tempo I – Neurose, p.100. Roland BARTHES, A mensagem fotográfica. In: Luís Costa LIMA (Org.), Teoria da cultura de massa. 163

a realidade objetiva, mas lhe impõe elementos conotativos, ou seja, junta à mensagem uma mensagem segunda, mergulhada num código (que é a língua). Já o primeiro, o fotográfico, é uma mensagem à princípio sem código, pretendendo-se a pura transcrição do real, análoga àquilo que fotografou, ou seja, pura denotatividade ou “plenitude analógica” que esgota completamente o seu ser em objetividade. No entanto, é claro, Barthes não se restringia à esta explicação da fotografia, mas aludia à esta uma conotação, isto é, a imposição de um sentido segundo à mensagem propriamente dita, que se elabora nos diferentes níveis da sua produção (escolha, tratamento técnico, enquadramento, etc), e produz o seu “estilo”, o qual é o responsável por introduzir o caráter conotativo na fotografia. Ora, é exatamente esta idéia – esta separação entre o que se quer que seja a fotografia, por parte de seu emissor e de seu canal (pura analogia do real, denotativa), e aquilo que ela acaba se tornando no receptor (conotação – embora esta não se dê apenas na recepção) – que faz Barthes percebê-la como algo que presta serviço às mitologias contemporâneas da cultura de massas, que buscam afirmar a pretensa isenção, objetividade e analogia do real nas imagens fotográficas. Observa-se na imprensa na década de 50 características que podem ser apontadas como exemplares para o reconhecimento do fait divers. Embora não se refira somente à imagens, há inúmeras reportagens e matérias buscando colocar na imagem fotográfica a explicação dos fatos, esvaziadas de qualquer sentido mais profundo, de contexto, de característica “política”, sem ligação com outros fatos, imanente, contendo em si todo o seu saber. Imagens muitas vezes com um cunho insólito, atípico, excepcional, na intenção de atrair o receptor para consumir uma informação por ele reconhecida como espetacular e auto-explicativa. Isto apontaria para esta questão da visão como matriz de linguagem privilegiada, em que, pela imagem, se tinha a pretensão de traduzir de maneira infalível os desejos e ambições daquela sociedade. Um tempo/espaço em que o olhar, é preponderante, um sentido estimulado, formulando uma certa “sociedade da aparência”, como aponta Alexandre Godoy13, no momento de nascimento da cultura visual na sociedade brasileira em geral, com o papel preponderante das camadas médias tanto neste processo, como na passagem de uma sociedade burguesa para uma sociedade de massas.

13

Alexandre Pianelli GODOY, Imagens veladas: a sociedade carioca entre o texto e o visor (1952-1957). São Paulo, 2000. Dissertação (Mestrado em História) - PUC/SP. 164

No entanto, há que se entender esta valorização da imagem não por ela mesma, ou como fruto da modernidade e da tecnologia, mas também como experiência do imaginário. Nela, estão presentes a dimensão mitológica, ancestral e constitutiva da subjetividade humana – o olhar – , não sendo portanto, algo exterior ao indivíduo, independente e por isso manipulador, fruto de um mundo dominado pela técnica que valorizou o que é visível. Muitas tendências de análise têm procurado destacar este possível caráter redutor da imagem em detrimento de outras formas sensoriais e de percepção do mundo, polarizando a questão, argumentando que, por exemplo, a escuta seria melhor do que a visão, por ser mais fabulativa ou criativa. Essas afirmações

se

colocam numa perspectiva que identifica sempre uma perda em relação à cultura de momentos anteriores. Paul Zumthor14 aponta para este fato, ao analisar a oralidade e a escrita como tradições culturais, afirmando que não se deve colaborar para uma idéia de nostalgia e perda em relação à oralidade – como se ela tivesse sido completamente sufocada e diluída com a hegemonia da escrita e depois da imagem e estando presente apenas em culturas “primitivas”. Exatamente por sua característica de “movência”, a força da oralidade e da voz se faz presente na cultura de massas. Não se pode deixar de considerar que o olhar passou a ter hegemonia sobre outros sentidos, numa época do Racionalismo no mundo das idéias, do desenvolvimento da imprensa, e ainda do Renascimento no mundo das artes, com seu apelo ao uso da perspectiva que incita o olhar. Todos estes fatores ajudaram a configurar a visão como sentido humano mais aguçado, fonte de informações sobre o mundo, que se não embotava os outros sentidos, pelo menos diminuía sua preponderância. Murray Schafer chama a atenção para este fato, ao destacar as modificações sobre a forma como o homem do Renascimento passou a conceber a idéia de Deus :se antes desse período Deus era concebido como som ou vibração, não sendo permitido aos homens o verem sob pena de morte, é na Renascença que Ele se torna retratável, visível, passando a ser representado nos quadros, telas e murais das igrejas, exposto ao olhar.15 Muitas análises procuram compreender a imagem e o olhar como mais fixadores, autoexplicativos, redutores, sendo a sonoridade, a escuta, a audição como mais amplificadoras, polissêmicas, onde, a cada nova escuta se reorganiza a percepção do mundo, aberta à novas interpretações, encontrando brechas para a lógica racional linear, que valoriza o empírico, o

14 15

Cf. Paul ZUMTHOR, Introdução à poesia oral. R. Murray SCHAFER, A afinação do mundo, passim. 165

concreto, o visível, o aparente e a imagem, tônica dominante da cultura ocidental moderna. Perfaz-se assim uma contraposição entre o olhar e a escuta onde, na tentativa de encontrar uma brecha a este suposto domínio da imagem visual – algo que se desprenda e supere a lógica dominante ocidental, iluminista e racional –, recai-se numa análise que entende a escuta como única lacuna possível, possibilitadora das bifurcações, dando vazão às incertezas, às interpretações, às subjetividades. Não se procura aqui referendar esta contraposição, e nem elencar hierarquicamente as matrizes de linguagem em graus de possibilidade de elaboração por parte do receptor, mas sim compreendê-las como formas de percepção do mundo em constante articulação e dinâmica, sem associar a imagem apenas à modernidade ocidental racional. É possível localizar a presença da imagem visual como constitutiva da experiência humana no mundo desde os primórdios, nas origens do Homo sapiens. Longe de ser algo exterior ao indivíduo, a imagem é própria do humano, lhe é intrínseca, estando na base de sua experiência de percepção do mundo. Claro que para olhar figuras em perspectiva, ou mesmo a fotografia, nos é requerido um conhecimento, um treinamento prévio mas a experiência da visão como sentido apurado e preponderante, surge na constituição do homem. Como aponta Edgar Morin, a novidade trazida com o surgimento do Homo sapiens é aquilo que se julga como sendo espiritual, o seu lado imaginário, mítico e não tanto seu lado objetivo/racional/técnico, uma vez que naquele momento de surgimento da espécie sapiens, o homem já era “socius, faber e loquens”16. Convém examinar melhor este percurso, apontado por Morin, para compreendermos a constituição desta subjetividade do humano. Segundo ele, é no aparecimento da sepultura e da pintura que podemos localizar a irrupção desta “consciência subjetiva”17. Os neanderthaleses foram os primeiros a construir sepulturas, onde os corpos são postos em posição fetal (indicando um novo nascimento) ou sobre flores (que indica uma cerimônia fúnebre), por vezes pintado, outras vezes enterrado com utensílios (sugerindo uma crença em relação a continuidade da vida). Ora, isso revela não só a irrupção da idéia de mortalidade para o homem, mas mudanças na sua consciência que permitiram esta irrupção, indicando uma concepção diferente da morte, onde ela não é apenas sentida e ressentida como perda, lesão irreparável (pois os animais também possuem esta faculdade) mas percebida como transformação

16 17

Edgar MORIN, O enigma do homem, passim. Idem. 166

de um estado em outro, perfazendo uma consciência da noção de tempo (presente, futuro e passado). Ao mesmo tempo, a partir da idéia da possibilidade de uma outra vida, surge também, no sapiens, o imaginário, a idéia do mito, do irreal, do subjetivo, do que não se pode ver mas imaginar. A partir daí, imaginário e mito passam a ser produtos e produtores do destino humano. Nesta proteção contra a consciência e a inexorabilidade da morte – que os rituais funerários, o mito e a magia sublinham – está presente a interação entre uma consciência objetiva (reconhecer a mortalidade) e uma consciência subjetiva (afirmando a imortalidade ou a transmortalidade), constituindo a base do homem de maneira inseparável e integrada. Neste sentido surge, para Morin, a “brecha antropológica”: a coexistência desta dupla consciência, variando mais para um lado ou outro dependendo da cultura e da sociedade.18 Já no caso da pintura, esta consciência subjetiva aflorada fica ainda mais notória. São muitos os indícios da presença de elementos gráficos dos mais variados entre os neanderthaleses. Pinturas e desenhos no corpo, nas pedras, nas paredes compreendem a grafologia do sapiens. Aqui se pode notar não apenas o nascimento da arte, algo estético com finalidade em si mesma, mas também o nascimento dos rituais, magias expressas em seus desenhos, ideogramas, etc. Estes dois tipos de fenômenos – artísticos e mágicos – não se dissociam, mas são a base daquilo que Morin chama de “estética”19, que articula arte e magia, representação do mundo e ritual de invocação mágica, ritualística, imaginária, trazendo à presença algo ausente. Assim, tal qual na sepultura, o imaginário e a magia irrompem no homem também na pintura. Aqui é necessário compreender a questão do “duplo” aludida por Morin. O homem toma consciência do duplo, atestada pela sombra móvel que o segue, pelo desdobramento da pessoa no sonho, na lembrança, no reflexo na água. Enfim, pelo atestar da imagem20. A partir daí, esta não é algo simples, mas contém a presença do duplo do ser representado e permite a ação sobre este ser. Na consciência do homem, os objetos passam a ter existência mental mesmo sem a sua presença material. Fica mais clara, assim, a idéia deste duplo, onde o mundo exterior, os seres, os objetos, o ambiente à volta passam a adquirir uma segunda existência, “uma existência da sua presença no espírito fora

18

Idem. Edgar MORIN, Os campos estéticos. In: Cultura de massas no século XX : o espírito do tempo I - Neurose. 20 Cf. Edgar MORIN, O encanto da imagem. In: ____ Cinema ou o homem imaginário. 19

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da percepção empírica, sob a forma de imagem mental, análoga à imagem que forma a percepção, visto que não se trata senão desta imagem relembrada”.21 Enfim, o que a pintura revela, é a ligação imaginária do homem com o mundo além da objetiva. Por um lado, o grafismo vai a todo momento invadir o espírito, invadi-lo com objetos, cenas, seres do mundo exterior (mesmo quando ausentes) e por outro lado, as imagens mentais vão invadir o mundo exterior. Para organizar ideologicamente e concretamente nossa ligação com o mundo exterior e para transpor esta “confusão”, criaria-se o mito e a magia. Imagem, mito, rito e magia são fenômenos interligados e indissociados no homem, presentes desde sua constituição fundamental, como ser imaginário e imaginante, se manifestando também na relação ambígua entre o cérebro humano e o ambiente, que corresponde à diferença entre subjetividade e objetividade, imaginário e real presentes em nós. Desta maneira, a imagem visual nos é intrínseca, constitutiva como seres imaginários. Não é portanto, algo exterior, fruto da modernidade que privilegiou o olhar ou a imagem em detrimento de outros sentidos e perceptos humanos. No processo de rememoração isto está muito presente. “Morei numa casa em Botafogo, numa rua sem saída, cheia de amendoeiros, com uma pracinha no fundo, minha infância foi maravilhosa, foi “a infância”. A minha rua era cheia de crianças, a minha casa está praticamente intacta até hoje, então sempre que eu passo lá, saio da rua São Clemente que é uma rua super movimentada, é na altura do número 139, fica... à esquerda tem a rua Estácio Coimbra, casa número 40, de tijolinho, com janelas brancas, em frente tinha um terreno baldio que a gente chamava ‘a obra’, que tinha sido uma demolição (...) Em frente desta rua tem a Casa de Rui Barbosa, que existe também até hoje... e eu ia pra lá com a babá de manhã, eu levava miolinho de pão para jogar no laguinho e os bichinhos que eu achava que iam virar sapo... e também... puxava um cabelo com raiz porque diziam que quando colocava cabelo com raiz lá dentro virava cobra. Minha infância foi muito encantada....” (Glória)

Estas são lembranças que testemunham um tempo vivido num espaço da cidade, lembranças que evocam imagens em detalhes da rua, das casas da vizinhança, da casa materna com seus ornamentos, sua fachada, dos locais próximos onde se brincava, e onde, para Glória, as imagens lembradas são cruzadas com os elementos imaginários, míticos da infância e suas “estórias”. Um rememorar por imagens que, no entanto, não se fecha e se autoexplica, mas se abre à fabulação, remetendo àquilo que não era palpável e objetivo nestas imagens, mas às suas características subjetivas, imaginantes e imaginárias: a infância “encantada”, aludida por Glória. A memória espacial da casa dos pais, é de fundamental importância na rememoração da infância, nos lembra Ecléa Bosi.22 A partir dela, organizamos as ruas em volta, a cidade, o 21

Edgar MORIN, O enigma do homem, p.99. 168

mundo. Um espaço reduzido como a casa, a rua, o terreno vizinho vazio são possibilidades de aventura, de sonhos, de imaginação. O espaço vivenciado pela criança na casa materna/paterna é mítico, repleto de fábulas, com locais na mesa bons para se comer, porões repletos de memórias contadas, habitadas por monstros, fantasmas, etc. A importância destas passagens na vida de Glória mostra que lembrar de tudo isso é voltar àqueles tempos e recuperá-los com sentidos especiais para o seu presente, em que os pais já se foram, mas lhe deixaram marcas profundas no cotidiano infantil, nas histórias contadas, nas brigas com os irmãos, entre outros fatos comuns à infância, tecendo o fio condutor de sua vida, a “explicação” buscada por ela para ter se tornado escritora e poeta, para ter a vida que tem. Bergson argumentava sobre a importância da percepção para a formação de lembranças, buscando compreender as relações entre a percepção e a memória, em como a conservação do passado se imbrica na articulação do presente. A “memória-pura”, distinta da memória-hábito, se atualiza na imagem-lembrança, e traz para a consciência, um momento único da vida, irrepetível, sendo evocativa, não mecânica, presente nos sonhos, no devaneio, na poesia. O passado conservado no espírito, assim, irrompe através de imagens da memória ou memória de imagens.23 Muitos são os especialistas em psiquiatria ou neurologia que têm atestado o fato de que rememoramos prioritariamente por imagens.24 O nosso aprendizado, como também coloca a psicologia cognitiva, se faz através da elaboração de imagens mentais, ponto de encontro dinâmico entre a emoção, a percepção e a memória, uma vez que o conhecimento factual, necessário para o raciocínio e para a tomada de decisões, chega à mente sob a forma de imagens, as chamadas “imagens perceptivas”, assim como a reflexão, a lembrança de alguém, ou de um lugar; qualquer desses pensamentos é constituído por imagens construídas pelo cérebro. Apesar de a palavra imagem não se referir apenas às imagens visuais e nem apenas aos objetos estáticos – sempre formados por percepções –, a noção de imagem está ligada sobretudo à experiência visual, pois os olhos, como órgãos de visão, constituem um espaço privilegiado da construção de imagens. No plano neurobiológico as concepções tendem a confirmar a existência de dois pólos na atividade mental: um ligado às funções de linguagem mais abstratas e outro à visualização. De acordo com o neurologista Antonio Damásio25,

22

Cf. Ecléa BOSI, Memória e sociedade: lembranças de velhos. Cf. Henri BERGSON, Matéria e memória. 24 Cf. Antonio DAMÁSIO, O Erro de Descartes – Emoção, Razão e Cérebro Humano. 25 Idem, p. 363. 23

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“as imagens parecem ser geradas por uma maquinaria complexa constituída por percepção, memória e raciocínio. A construção é por vezes regulada pelo mundo exterior ao cérebro, pelo mundo que está dentro do nosso corpo ou à volta dele, com uma pequena ajuda da memória. As imagens não são armazenadas sob a forma de frames de coisas, acontecimentos ou palavras; ele não arquiva fotografias de pessoas nem armazena filmes de cenas da nossa vida; ele faz, antes, uma interpretação, uma nova versão reconstruída do original. Temos no entanto a sensação de que podemos evocar nos olhos ou ouvidos da nossa mente, imagens aproximadas daquilo que experienciamos anteriormente, podendo ser sonoras ou visuais, táteis, gustativas ou olfativas mas são predominantemente visuais. Diz-se frequentemente que o pensamento não é feito apenas de imagens, que é constituído também por palavras e por símbolos abstratos não imagéticos. Ninguém negará que o pensamento inclui palavras e símbolos. Mas o que essa afirmação não dá conta é do fato de tanto as palavras como os outros símbolos serem, eles próprios, imagens. Se não se tornassem em imagens, por mais passageiras que fossem, não seriam nada que pudéssemos saber”.

Segundo Santaella, não se pode negar uma hierarquia em níveis de complexidade entre os sentidos humanos, sendo a visão o mais elaborado deles, uma vez que nenhum outro sentido goza do mesmo tipo de intimidade e proximidade que o olho mantém com o cérebro, podendo-se afirmar que ele é uma parte do cérebro em interface direta com o mundo externo, conectado direto à ele, pelo sistema nervoso central.26 Em outro depoimento, a memória da infância e da casa materna também evoca imagens mentais visuais. “Nós morávamos numa casa na rua Sorocaba, uma casa antiga [no bairro de Botafogo]. Que agora, há pouco tempo, pouco tempo que eu digo deve ter uns 5 anos, é que se transformou num belíssimo prédio. Até eu me lembrei muito de Cecília Meirelles, quando eu passei lá...Que a Cecília tem uma poesia muito bonita em que ela diz: - Levaram as grades de prata da minha varanda [se emociona] - Aí eu me lembrei disso, que as nossas grades não eram de prata, eram escuras. Como é que eu posso chamar aquilo? Eram tão conhecidos na época...Mas aquilo pra nós, representava assim um mundo.... Quando papai veio de São Paulo pra cá, ele ficou muito tempo lá, nós ficamos muito tempo lá. Casa alugada; até ele comprar uma casa aqui nessa rua Álvaro Ramos, ali mais a diante, uma casa de três andares, linda. Foi até... eu soube outro dia pelo jornal, foi tombada a Vila. Imagina que beleza! Que é uma Vila linda, estilo normando. Linda a Vila...e nós moramos lá muito tempo. Eram três andares. (...) antes de ir pra lá, nós moramos nessa casa alugada, uma casa enorme, com quintal, com varanda.” (Maria Amélia)

Para a Psicologia, geralmente as emoções fortes suscitadas pela visão ou por alguma sensação perceptiva, fazem o indivíduo ir em busca do passado que se assemelhe àquela sensação presente27. Mesmo não tendo sido diretamente provocada pela visão da casa da infância, Maria Amélia parece impelida a buscar no passado uma imagem que se associe ao seu sentimento presente de emoção. Ao lembrar das diferentes moradas dos pais, quando criança, da vila com casas em estilo normando, ou do gradio do portão que não existe mais – fosse ele escuro, de 26

Cf. Lúcia SANTAELLA, Matrizes da linguagem e pensamento: sonora visual verbal. Lucia Maria COELHO, Imagens da memória: na prova de Rorschach e na obra de Proust. Revista Imaginário – Memória, n.2, Jan/1995.

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prata, ou não – ela descreve imagens, sem conseguir lembrar ao certo seus detalhes ou qualidades específicas, com muitas reticências, pausas, comunicando apenas a idéia geral, pois a verbalização da imagem afetiva e subjetiva interfere na filtragem dos termos descritivos. Uma memória das imagens visuais da infância e juventude que aflora não por imagens presentes, mas por outras vias, como por exemplo a escuta, uma vez que esta rememoração surgiu no momento em que ela escutava a pesquisadora perguntar sobre sua infância. Uma pergunta inusitada para Maria Amélia, cuja expectativa se voltava para uma conversa específica sobre Bossa Nova. Dessa surpresa, é possível inferir que daí decorram suas pausas, reticências, dificuldades em elaborar estas memórias num fluxo verbal contínuo, trazidas à tona tanto conscientemente, voluntariamente, na busca pelas lembranças da infância, mas também interpeladas pelo componente involuntário do lembrar, com a poesia que a emociona ou os esquecimentos, ambos compondo a trama complexa da memória. Da mesma forma que o mergulho da madeleine no chá de tília – aludido por Proust28 – pode proporcionar a sensação do sabor do pequeno bolo, mas também o resgate de todos os personagens, aromas, sabores, flores do jardim de Swann, as casas, a igreja e toda Combray, também aquele gradio escuro – que Maria Amélia não recorda de que material era feito – representava-lhe o mundo e, ao ser rememorado, evoca passagens de sua vida, mudanças de casa. O portão que era também o contato com o mundo externo à família, com amigos e namorados, que aciona os vários sentidos, provoca a lembrança de uma poesia e a faz se emocionar. Parece assim, que o captar de outros tempos, seja na memória ou até no ofício historiográfico se dá muitas vezes por constelações momentâneas de flashs que nos atravessam velozes, nos interpelando e nos inspirando as “imagens proustianas”29, onde a memória associase às imagens, numa atitude semelhante a do anjo da História benjaminiano que olha o passado como catástrofe, acumulação de escombros, ruínas, mas é impelido pelo vento do paraíso em direção ao progresso.30 No entanto, a memória opera também pelos sons, pela audição e escuta. As lembranças também estão povoadas de sonoridades. Mesmo sem a complexidade da visão e estando mais distante do cérebro que aquele sentido, os sons captados pelo ouvido – apesar de seu poder

28

Cf. PROUST, Marcel. O tempo redescoberto. Walter BENJAMIN, A imagem de Proust. In: Obras escolhidas, passim. 30 Walter BENJAMIN, Teses sobre a filosofia da História. In: KHOTE, Flávio (Org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1991. 29

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referencial mais frágil, e da impossibilidade de poder representar algo que está fora dele31 – apresentam alto poder de sugestão e de evocação, tendo grande força na constituição de memória. Até agora falamos em imagens mentais, ou seja, quaisquer sensações cognitivas que se valem de imagens visuais, que ocorrem na ausência ou não de estímulos externos, como a lembrança da casa da infância ou a evocação de metáforas ligadas a imagens para se alcançar o passado. No entanto, as imagens mentais ou representações mentais, podem ser também auditivas, onde se pensa por sons, em seu ritmo, frequência, intensidade, altura, diapasão, harmonia, dissonância, ruídos. Uma experiência mental, muitas vezes difícil de ser expressa verbalmente. “eu tenho dois filhos, um é fechado, é sério, o primeiro. Tem 25 anos, casado, com uma filha, fazendo doutorado nos Estados Unidos. O segundo, por contingências da vida, eu não sei porque... é tão adorável quando o primeiro, mas é inseguro, é inseguro e me preocupa (...) é que ele mexe muito comigo, ele é um menino muito bonito, depois eu te mostro o retrato dele, sempre teve um problema de relação com o irmão muito grande, porque ele sempre se achou menos que o irmão, como não é [enfática], e ele hoje em dia faz vestibular para Medicina, mas ele já terminou Desenho Industrial na PUC... e aqui nas formaturas, eu não sei como é que é em São Paulo, mas nas formaturas agora aqui, a comissão de formatura, na hora em que eles passam cumprimentando todo mundo, eles pedem, a comissão de formatura pede que cada aluno diga uma música que o defina (...) Quer dizer, a música define [gagueja]... define realmente a coisa (...) Bom...aí eu perguntei pra Leandro: - Leandro, qual é a tua música? - Ah não! Isso é surpresa! - Fui eu lá pro auditório da PUC no dia da formatura dele ... e .... claro, já é um momento de...de stress...de stress não, de alegria... Você está com um filho se formando, missão cumprida na vida, né? E na hora que Leandro Falcão de Araújo: “Eu fico com a beleza das respostas das crianças, é bonita, é bonita e é bonita...” [canta com emoção]. Olha, Simone, o que eu chorava, mais o que eu chorava... E eu buáaaa..... [risos] “Viver e não ter a ver..”. Isso é tudo o que eu quero pra ele! ... Mais uma vez você vê o quanto você ... essa música diz tudo.... o que eu quero é que ele seja .... que ele não tenha medo de ser feliz. O que eu quero é que ele vá em frente, que ele entenda que não tenha que ter vergonha de ser o eterno aprendiz. Porque nós somos eternos aprendizes, né?.... É a verdade....que a vida é saúde e sorte, né? Que é melhor do que a morte, porra! [chora muito]” (Eliane)

Deste belo trecho das memórias de Eliane, alguns elementos indicam a força da sonoridade na sua vida e percepção do mundo. Ao usar músicas para descrever as pessoas, não apenas por suas letras – das quais não se lembra tanto quanto das melodias, que lhe “pegam” mais -, mas por sua sonoridade, para “definir realmente a coisa”, ela deixa entrever sua experiência de maternidade com os sons dos filhos, suas canções na infância ou na formatura, e também o fato de não cantarem – o que, segundo nos conta, era motivado por uma espécie de tristeza, situação que a preocupou em variados momentos da vida. Uma vida lembrada através de músicas e sonoridades, presentes na sua forma onomatopaica de falar, denunciando a presença da oralidade como um dos fundamentos de sua linguagem. Passagens importantes de sua trajetória, como o nascimento dos filhos, a infância deles, o divórcio, a morte dos pais, são lembradas 31

Lúcia SANTAELLA, Matrizes da linguagem e pensamento. 172

através de canções que ajudam a exprimir o que sente. Isto se dá de modo bastante explícito quando o depoimento de Eliane se faz acompanhar por LPs postos por ela durante o depoimento. Essa canções servem como ferramentas de memória, ajudando a nomear seus sentimentos e lembranças. A afirmação de que a música expressa tudo aquilo que deseja para o filho, abre as portas para a compreensão de que os sons e a escuta perpassam toda

sua experiência.

Importante registrar que apesar do depoimento de Eliane ter durado mais de três horas, ela se mostrava cada vez mais disposta e entusiasmada com o ato de rememorar, entregando-se ao que – a seu ver – não fazia parte do interesse primordial desta pesquisa, “fugindo da Bossa Nova” e falando sobre a própria vida. A partir daí, memória involuntária, emoções, elaborações do presente e dos caminhos apontados pelo próprio ato de rememorar foram lhe mostrando questões de sua vida atual, o que a levou a encerrar o depoimento dizendo que “teria de contar tudo isso prá analista”, pois no momento em que foi rememorando, a partir das sonoridades que pontuaram-lhe a vida, o presente adquiriu novos sentidos como, por exemplo, o desejo de voltar a se dedicar ao estudo da música. De acordo com a psicologia cognitiva e a neurologia, as imagens mentais32 (visuais ou auditivas) ocorrem em áreas do cérebro voltadas para a percepção, onde o córtex visual ou auditivo são estimulados quando surgem as suas imagens mentais correspondentes. Daí a idéia de que mesmo os surdos ou cegos possuem imagens mentais, que são ativadas ao serem evocadas em áreas específicas de seus cérebros. Desta forma, há a percepção, mesmo que não possa haver a sensação de ver ou ouvir. 33 Ora, para compreendermos percepções, sensações, imagens mentais, temos que partir da idéia de que se tratam de atividades do sistema nervoso iniciadas com a experiência sensorial derivadas dos receptores sensórios: os órgãos humanos. Assim, entendamos melhor como funciona a audição. Primeiramente, há que se saber que o som existe como ondas vibratórias que se propagam no ar, ou seja, necessitam de um meio físico para se expandirem, se agitarem e assim gerarem as vibrações denominadas sons (isto pode ocorrer também na água e em outros meios, embora de maneiras diferenciadas). O som como onda, ocorre no tempo sob a forma de uma periodicidade, isto é, uma ocorrência repetida dentro de uma certa frequência; seqüências rapidíssimas de impulsão e repouso, ascensão e queda destes impulsos, seguidos de sua

32 33

Michael POSNER, Images of mind. Cf. Oliver SACKS, O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. 173

reiteração. Sendo um sinal oscilante e recorrente, os sons se dão em pulsos de acordo com uma periodicidade e uma frequência que se apresentam basicamente em duas dimensões: as de duração (rítmicas) e as de altura (alturas melódico-harmônicas). Como aponta Wisnik34, a onda sonora se faz de oscilações entre presença e ausência, som e pausa registrados pelo tímpano como compressões e descompressões, sem as quais ocorreria um espasmo. O som pode ser medido em ciclos por segundo, isto é, a quantidade de vezes num segundo que uma molécula de ar capta energia das ondas sonoras que vêm em sua direção e passa para outras moléculas, recomeçando o ciclo em seguida. Os sons nascem da colisão de moléculas entre si, sendo um fenômeno mecânico. Um tambor, ao ser tocado, é um pulso rítmico, podendo ser percebido em suas freqüências como recortes de tempo, com suas variações e recorrências. Mas se as freqüências rítmicas forem tocadas por algum instrumento acelerador, acabam mudando de caráter, passando de um estado de granulação veloz, saltando para o patamar de altura melódica.35 A partir daí, os ciclos delimitam o diapasão do som, a sua altura. Nesse processo, a faixa audível humana fica mais ou menos entre 16 e 20.000 ciclos por segundo. Imaginando as teclas de um piano, abaixo da mais grave (16 ciclos), não ouvimos nada, apenas sentimos vibrações. O mesmo acontece acima da tecla mais aguda, o nível superior da faixa audível. Ele não pode ser captado por nossos ouvidos, mas continuam escutáveis por animais como cães ou gatos, por exemplo. Além disso, as ondas de som, ao se movimentarem no ar, vão se enfraquecendo, sua intensidade (que comumente chamamos de volume) vai diminuindo. Medida em decibéis, a intensidade do som que o ouvido humano consegue captar, desde o mais baixo ao mais alto fica em torno de 120 decibéis36. Para além das propriedades de altura e intensidade, o som ainda possui mais duas outras: as durações – referentes ao tempo, ao ritmo– e os timbres, que são a multiplicação colorística das vozes ou instrumentos. Voltaremos à este assunto mais à frente. Embora estas informações sejam importantes e se para a Acústica – área da Física que estuda os sons – o que interessa é apenas a forma como estas ondas vibratórias se propagam no ar, aqui interessa saber como elas funcionam no ouvido e na percepção humana, considerando que o som físico é diferente da sensação sonora. No intricado processo de audição e escuta, os sons se fazem diferentes daqueles que foram produzidos. 34

Cf. José Miguel WISNIK, O som e o sentido: uma outra história das músicas. Idem. 36 Cf. Murray SCHAFER, O ouvido pensante. 35

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Cumpre saber que, dentre os sentidos humanos, o auditivo foi o último grande sistema sensorial a surgir, seguindo-se à visão, o toque e o paladar, já bem desenvolvidos. No entanto, a complexidade fisiológica do olho e do ouvido, faz destes órgãos decodificadores de informações que não se exaurem no ato perceptivo, ou seja, podem criar matrizes de linguagem e de pensamento e, além do mais, suas percepções podem ser armazenadas na memória com certa persistência, sendo que esta faculdade é ainda maior para o olho do que para o ouvido, e muito maior do que a dos outros sentidos. 37 Entendamos melhor o ouvido. Após vir como onda de pressão no ar, o som entra primeiro no sistema mecânico-receptivo do ouvido, envolvendo a vibração mecânica da membrana timpânica (tímpano) após passar pelas orelhas e o canal do ouvido, que servem como ressoadores do som. Ao bater no tímpano, é acionado o sistema ossicular (três ossos presos a ligamentos), inicialmente empurrando o martelo – primeiro osso–, que puxa a bigorna (segundo osso), o qual por sua vez, esbarra no estribo (terceiro osso). Neste sistema mecânico – que lembra um piano –, o som já está no ouvido médio onde se dá a adaptação e conjugação das ondas mecânicas de gás (o ar) e de um fluido, como o que se encontrará mais adiante, no ouvido interno. O último osso, o estribo, é alavancado pelos dois primeiros e entra neste ouvido interno, (ou cóclea), transmitindo vibrações sonoras neste líquido coclear. 38 Sistema de tubos enrolados (vem do latim cochlea – caracol), a cóclea contém uma membrana basilar em cuja superfície está o órgão de Corti, os receptores celulares ciliados, sensíveis a estímulos mecânicos. Estas células realizam sinapses com uma rede de terminações do nervo coclear, as quais se dirigem para o gânglio espiral de Corti que, por sua vez, envia axiônios (parte prolongada dos neurônios) dali até o sistema nervoso central. É neste momento que, da mera função fisiológica, o som passa à função de estímulo sensorial, ou impulso nervoso. Em outras palavras, do ato fisiológico do ouvir, passa-se à experiência sensorial de escutar. É neste ouvido interno, no órgão de Corti, que existem agrupamentos de neurônios especiais, as células capilares, com sensibilidade para discriminar freqüências de sons diferentes, mais agudos ou mais graves. Interessante notar que todo este processo do sistema auditivo utiliza um órgão e suas subdivisões, infinitamente pequenas, se comparadas a outros órgãos sensoriais humanos, como por exemplo a visão. 39 37

Cf. Lúcia SANTAELLA, Matrizes da linguagem e pensamento. Cf. Arthur GUYTON, Fisiologia humana. 6.ed. 39 Cf. Robert JOURDAIN, Música, cérebro e êxtase. 38

175

Todo este percurso de esforço de entendimento dos processos fisiológicos da audição humana, tem como objetivo compreender como escutamos os sons, como eles nos interpelam, como nos fazem sentido. Roland Barthes40 fez uma importante e valiosa reflexão acerca da escuta, distinguido-a do ato fisiológico e mecânico de “ouvir”, conferindo-lhe um estatuto de ato psicológico que só se define por seu objeto e por sua intenção. Barthes elencou ainda três tipos de escuta: a primeira, cuja atenção é dirigida para “índices”, servindo de alerta à presença de alguém, de um perigo ou do objeto amado. Opera também com um princípio de seleção, avaliação e apropriação da situação espaço-temporal, captando graus de distanciamento e proximidade do mundo em volta, fazendo com que se possa distinguir o que era confuso e indeterminado, transformando-o em algo pertinente e distinto, garantindo, assim, uma certa segurança, uma vez que ajuda a definir o espaço territorial, o que é familiar e que é estranho. Já a segunda escuta, refere-se à decifração. Ocorre quando o ouvido busca captar signos mediante determinados códigos e a escuta se afasta da mera função vigilante para se tornar criação. Com o ritmo – a pulsação regular de incisões rítmicas longamente repetidas, uma característica humana que remonta ao período pré-histórico – vai se tornando possível a existência da linguagem, pois o signo está baseado entre um ir e vir do marcado e do não marcado, aquilo que Barthes chama de paradigma. A transformação do índice em signo é a característica básica da segunda escuta, que é a do sentido, da decifração não do possível (como uma presa ou o objeto de desejo), mas daquilo que está escondido, imerso na realidade – o mistério, o obscuro que espera por nossa decodificação a partir de códigos para vir à consciência. Uma escuta que acaba colocando em relação dois sujeitos, uma interpelação total de um indivíduo a outro, como um cantor que com sua voz entra em contato quase físico com o ouvido do sujeito que o ouve, em que escutar quer dizer também tocar, saber da existência do outro. Esta escuta decifradora transforma o homem em ser dual, numa interlocução na qual o silêncio do ouvinte é tão ativo quanto a palavra do emissor, onde a “escuta fala”. Por fim, a terceira escuta, para a qual Barthes dá uma abordagem moderna – comparandoa com a escuta psicanalítica – onde o que interessa é menos o dito ou emitido, e muito mais quem fala e emite, não esperando signos determinados ou classificados, desenvolvendo um espaço intersubjetivo não concebível sem a intervenção do inconsciente estruturado como linguagem, num jogo de transferências, em que escutar é escutar-se. A escuta da voz inaugura a relação com 40

Cf. Roland BARTHES, A escuta. In: O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. 176

o outro, processo em que o movimento corporal tem muita importância. Pela voz, conhecemos a maneira de ser do outro, seu estado de alegria ou tristeza, transmitindo por vezes apenas a imagem do corpo do outro. Aqui a voz muitas vezes pode encantar mais do que o conteúdo do discurso. De acordo com Barthes, o que se ouve nesta terceira escuta é aquilo que não é dito, varrendo espaços desconhecidos, é implícito, indireto, retardado, disperso numa abertura polissêmica, desfazendo a lei de uma escuta única e entrando no âmbito do ele chama de “significância”. Nesta escuta total, inusitada, criativa, há um processo de fruição permitindo que o indivíduo conheça melhor o outro e, fundamentalmente a si próprio; numa escuta do não decifrado, do desejo, da vida. Além de refletir sobre a escuta, cumpre compreender como ela é armazenada na mente e na imaginação, compondo imagens mentais que são acionadas numa nova escuta ou mesmo por emoções que as recuperam de alguma forma, trazendo-lhes à tona. Assim, adentramos no campo da memória, uma vez que as imagens mentais guardam com ela intensas relações por serem interiores ao cérebro. Em primeiro lugar, é preciso saber que não existe um lugar no cérebro destinado ao armazenamento de lembranças. Não há um neurônio ou um feixe deles destinados a guardar idéias, coisas, pessoas, lugares diferenciados. O cérebro lembra por categorização e não arquivando algum tipo de instantâneo fiel. Cada percepção sentida pelo cérebro (visão, cheiro, som, sensação) é dissecada, em busca de suas relações mais profundas, sendo esta rede de relações aquilo que é guardado e acionado na lembrança. Desse modo, lembranças não são exatamente resgatadas, mas recriadas, processadas a cada vez de maneira diferente pelas ligações entre as diferentes áreas do cérebro que entram em ação no momento da interligação dos neurônios destas diferentes partes cerebrais. 41 É assim que se compreende as relações múltiplas estabelecidas no momento da lembrança, quando são acionados os perceptos variados dos cinco sentidos humanos, quando, por exemplo, se recorda a voz de uma pessoa ou de uma canção, e os cheiros, os sabores envolvidos naquela situação em que se escutou, são também lembrados. Isso decorre em parte porque a região do cérebro onde se dá a percepção sonora está na área da medula espinhal, localizada no tronco cerebral. Isto quer dizer que antes de chegar ao córtex, os sons passam pelo tronco cerebral e é ali que se realiza a localização do som e sua associação a outros perceptos, momento de encontro com a visão, com o toque, manejando os movimentos dos olhos e dos ouvidos. 41

Robert JOURDAIN, Música, cérebro e êxtase. 177

Atualmente existem muitas pesquisas demonstrando que nas camadas mais profundas do tronco cerebral, os mapas dos diversos sentidos humanos estão em intensa relação, combinando informações advindas de todos eles e interligando-os em nossa percepção, lembrança, memória.42 Por outro lado, e intimamente relacionado à tudo isso, a memória, para além de ser uma faculdade orgânica ou uma função do espírito humano,como queria Bergson, é também social, um dado coletivo, inscrita na cultura, num tempo e num espaço. Se estamos tratando neste subcapítulo das experiências de sujeitos que viveram na sociedade carioca dos anos 50 e 60, em meio à sons e imagens, escutas e olhares, é importante atentar para a paisagem daquele local, uma paisagem visual da cidade com suas ruas, prédios, praias, florestas e uma paisagem também sonora, o ambiente acústico em que se vivia. O conceito de “paisagem sonora”43 diz respeito ao universo de sons do ambiente e a forma como os indivíduos se relacionam com eles. Segundo o formulador do conceito, o compositor canadense Murray Schafer, a audição é um sentido especial, uma vez que não pode ser fechado, como os olhos, “pois não tem pálpebras”. Desta maneira, sua única forma de se resguardar, seria o desenvolvimento de um mecanismo de proteção contra sons indesejáveis, denominados por ele de ruído. A preocupação central do autor está centrada numa “ecologia acústica, que busca um projeto mundial de orquestração da paisagem sonora mundial”, formulando “ouvidos pensantes”, isto é, que refletem sobre o que escutam e conseguem distinguir sons de ruídos. Ora, se a escuta não é um ato passivo, mas implica em compreender significativamente os estímulos sonoros levando em consideração todo o contexto envolvido, é importante, na análise de uma sociedade, a interpretação ou compreensão de sua paisagem sonora, composta de suas músicas, canções, ruídos das ruas, máquinas, e sons naturais, como o do mar, dos pássaros, das vozes humanas. A paisagem sonora da modernidade mudou muito. Na paisagem sonora rural se tinha um sistema hi-fi (alta fidelidade), em que os sons separados podiam ser claramente ouvidos em razão do baixo nível de ruído ambiental, onde também havia uma sobreposição menos frequente. Fazendo uma alusão à imagem, é uma paisagem que contém perspectiva, com figura e fundo distinguidos, onde os sinais se sobrepõem claramente aos ruídos. Já na paisagem sonora urbana, fruto da modernidade, temos um sistema lo-fi (baixa fidelidade), onde os sinais acústicos individuais são obscurecidos em uma população de sons super densa. Assim, os sons

42 43

Arthur POPPER et alli. Mammalian auditory pathway: the neurophisiology. Murray SCHAFER, Op. cip.. 178

fundamentais são mascarados pela ampla faixa de ruído, perdendo-se em perspectiva – o que vem em primeiro plano, em segundo e fundo –, num estado de aglomeração, difíceis de serem distinguidos.44 Convém discutir aqui o conceito de ruído. Entendido como qualquer som negativo, indesejável ao som musical, colaborando para destruir o que se deseja ouvir, algo que interfere na comunicação. É uma categoria mais relacional do que natural; é uma categoria histórica, variando segundo culturas, épocas ou situações. Seria um som que desorganiza outro, sinal que bloqueia o canal, desloca o código, uma “desordenação interferente”45. Tudo isso dá ao conceito um caráter complexo. Ora, a música é constituída sempre de som e ruído, num jogo que tenta organizar os sons caóticos existentes no mundo. Para o canto gregoriano medieval, timbres, notas diferentes soavam como ruído, uma vez que era uma música feita para ser cantada em uníssono, por homens e sem acompanhamento. Na música clássica erudita européia dos séculos XVI a XIX, barulhos em salas de concerto, por exemplo, seriam considerados ruídos. Já na música do século XX, o ruído (que vem à tona pela própria configuração da vida moderna) passa a ser encarado de uma outra forma: barulhos de todo o tipo são concebidos como integrantes efetivos da linguagem musical, como se pode verificar nas obras de Igor Stravinsky, Arnold Schoenberg, Eric Satie e tantos outros.46 Importante pensar, neste sentido, o quanto as dissonâncias elaboradas, fruto da pesquisa harmônica dos compositores da Bossa Nova podiam ser consideradas pelos ouvintes como ruídos, bem como o timbre da voz de João Gilberto ou de Nara Leão, por exemplo, também poderiam ser assim compreendidos, uma vez que o que imperava nos rádios e na escuta musical da época eram as vozes potentes e empostadas de um Orlando Silva ou Francisco Alves. Desta maneira, a música contemporânea passou por transformações, abrindo espaço para incorporar aquilo que convencionalmente se chamava de ruído; numa mudança organizada pelos próprios músicos em suas atividades de criação, redefinindo este conceito. John Cage, por exemplo, ao abrir a sala de concertos e permitir a invasão de suas composições por sons da rua, indicava que a música devia resultar dos sons que vem de dentro e de fora dos locais destinados à ela. Com isto ele anunciava uma concepção musical moderna, dizendo que “música são sons, sons à nossa volta, quer estejamos dentro ou fora das salas de concerto”.47 É assim que a música

44

Cf. Murray SCHAFER, A afinação do mundo. Cf. José Miguel WISNIK, O som e o sentido. 46 Idem. 47 Apud Murray SCHAFER, O ouvido pensante, p.120. 45

179

contemporânea, impulsionada pelas pesquisas da música concreta e da eletroacústica, vai incorporando os ruídos, que até então não pertencia ao âmbito musical. Voltaremos à este aspecto mais adiante. Tudo isso permite compreender que as canções de uma época, de uma cidade mantêm relações com a paisagem sonora deste local, cuja intervenção chega, inclusive, às performances musicais com maior ou menor amplitude, com modos mais graves ou mais agudos, mais intimistas ou não e mais, interfere também na escuta musical e do mundo. Os ruídos passam a estar presentes nas músicas, dentro delas, na textura de sua linguagem, mas também no ambiente que lhe é externo, no habitat urbano-industrial de quem escuta, na paisagem sonora da cidade moderna. Mas como analisar esta paisagem sonora? Segundo Schafer, em primeiro lugar, descobrindo seus aspectos significativos, importantes por sua individualidade, quantidade e preponderância. Distingui-los entre “sons fundamentais”, “sinais” e “marcas sonoras”. Por som fundamental, entenda-se o som básico, o referencial, que em música é a tonalidade; eles não precisam ser ouvidos conscientemente, são hábitos auditivos. Aludindo novamente à idéia visual, seria o fundo, o segundo plano num quadro. Eles estão presentes relacionando-se de alguma forma aos nossos estados de espírito, aqueles criados pela geografia, clima, pela natureza: barulho do mar, do vento, da chuva, etc. Já os sinais, são os sons destacados, ouvidos conscientemente, os que emergem ao primeiro plano; deve-se dar atenção a eles pois são recursos de avisos acústicos, como sinos, apitos, sirenes, buzinas, etc. E por fim, as marcas sonoras, os sons de uma sociedade ou comunidade que são únicos, ou que possuam qualidades peculiares que os tornam significativos ou notados pelas pessoas do lugar.48 A vida nas cidades produz uma paisagem sonora com mais elementos do que estes acima descritos. Estes são oriundos da vida industrial, ou artificialmente construídos, contínuos, que não mais nascem e morrem como os sons naturais, mas permanecem indefinidamente, como zunidos de máquinas, por exemplo. Outro elemento introduzido na paisagem sonora moderna é a separação do som de sua fonte original, amplificando-lhe e dando-lhe vida independente, a chamada “esquizofonia”49. A análise da nova paisagem sonoro-musical, portanto, deve incorporar todas as potencialidades sonoras expressivas, fazendo-as interagir. Essas potencialidade são

48 49

Cf. Fátima Carneiro SANTOS, Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua. Cf. Murray SCHAFER, O ouvido pensante. 180

ritmo, textura, melodia, amplitude, timbre, e também silêncio e ruídos. Para se compreender a música, é necessário analisar também a paisagem sonora onde foi composta e escutada e as relações deixadas por esta na canção e na sua performance. Pensando-se em como a “paisagem sonora” pode se prestar a traduzir elementos ao mesmo tempo sonoros e visuais, é que se busca compreender quais relações se estabelecem entre a sonoridade bossanovista – tão ritmada, calma, sem deixar de ser também dissonante; com uma poética que lembra o concretismo, mas também cheia da prosódia carioca de falar no diminutivo, com expressões coloquiais – e as imagens por ela construídas, sugerindo impressões, sentimentos, e, ao mesmo tempo, imagens, que são da cidade, da natureza, da mulher amada, do cotidiano carioca, nesta sociedade que passava por transformações, num processo em que a cultura visual passava a ganhar muito espaço. Lembrando de momentos da história das artes em que estes elementos visuais, sonoros e verbais encontram-se intimamente ligados, podemos compreender melhor isto. Na música Impressionista do século XIX e início do XX, por exemplo, os sons sugerem impressões, com notas e acordes soltos, como se fossem pinceladas aparentemente aleatórias, apontando para uma relação próxima entre a pintura e a música, artes visuais e sonoras. Podemos interpretar em que sentido a Bossa Nova também está expressando esta relação intrínseca à sociedade carioca daquele período, entre sons, escrituras e imagens, em meio a um caminho de transformação para uma sociedade de massas, de consumo e audiovisual, estruturada já no final da década de 60. Estabelecendo uma estreita e complexa relação entre os sentidos humanos, é necessário lembrar que as imagens e os sons se complementam.. “Mas pra que? Pra que tanto céu? Pra que tanto mar, pra que? De que serve Esta onda que quebra E o vento da tarde? De que serve a tarde? Inútil paisagem Pode ser que não venhas mais Que não venhas nunca mais De quem servem as flores Que nascem pelo caminho? Se o meu caminho sozinho é nada É nada, é nada”

(Inútil paisagem)

181

“Eu, você, nós dois Aqui neste terraço à beira mar O sol já vai caindo E o seu olhar Parece acompanhar a cor do mar Você tem que ir embora A tarde cai, em cores se desfaz Escureceu, o sol caiu no mar E aquela luz lá embaixo se acendeu Você e eu Eu, você, nós dois Sozinhos neste bar à meia luz E uma grande lua saiu do mar Parece que este bar já vai fechar E há sempre uma canção para contar Aquela velha história De um desejo Que todas as canções têm pra contar E veio aquele beijo Aquele beijo Aquele beijo”

(Fotografia) Canções que evocam imagens, sonoridades e poesias que remetem à experiência visual. Em Inútil paisagem, o próprio título é visual, descreve imagens que, no entanto, não adiantam ao narrador, por ele estar se sentindo sozinho à despeito da bela paisagem. Em Fotografia, a descrição visual da cena onde ocorre o encontro amoroso se mistura com os sentimentos do autor. A canção se coloca como uma linguagem híbrida entre a matriz sonora e a verbal, mas ao ser executada ao vivo, num show, por exemplo, ou ainda na TV, traz para a cena também a matriz visual.50 Uma fala que se torna música e vice-versa, e onde o som, inseparável da letra, por vezes se limita a acompanhar o potencial sonoro da fala, com suas durações, articulações, entonações e ritmos. Ambas as canções possuem uma estrutura temporal lenta, mais introspectiva, sugerindo uma velocidade que está em consonância com as paisagens visuais descritas, com imagens do mar, dos ventos à tarde, do entardecer, etc. Estas imagens sugerem uma idéia de tempo lento, devagar, em contraposição à um tempo acelerado que a cidade moderna carioca já vivia àquela época. O ritmo é próprio ao ser humano em sua sensação de temporalidade, com os ritmos vitais de batimentos cardíacos até a sensação dos ciclos da natureza, como dia e noite, por exemplo, ou as mudanças de estação, etc. Por isso o ritmo, na música, se coloca como a dimensão primeira de

50

Lúcia SANTAELLA, Matrizes da linguagem e pensamento. 182

percepção, uma imediaticidade sensível, aquilo que primeiro se percebe ao ouvir, pois é o seu próprio sistema nervoso, em sintonia com os ritmos vitais, biológicos, naturais; tanto é assim que podem existir músicas sem melodia ou harmonia. Por ser tão vital, acaba-se pensando sobre ele, isto é, a formulação de leis ou estruturas rítmicas nas músicas, parece ser uma tentativa de interrogar o tempo, desenhar suas formas.51 O ritmo ainda está ligado a corporeidade, imbricado no corpo e em seus pulsos, impelindo a um acompanhamento, daí sua articulação com a sonoridade e com a dança. Quando associado à noção de tempo, pode expressar tempos evolutivos, como acontece nas sonatas de Beethoven; ou tempos cíclicos, em músicas modais; ou ainda tempos reversíveis, em músicas circulares ou que sugerem paradas para se recomeçar novamente. O ritmo sugere a direção da música, articulando seu percurso, lembrando a função da linha, do traço na pintura e no desenho. Dentro da noção de ritmo musical, temos outros fatores, como a duração e o acento (a ênfase em uma nota para soá-la por mais tempo), sendo que a combinação de ambos gera a complexidade rítmica na música. Na música ocidental dos séculos XVI ao XVIII, a organização rítmica buscava a regularidade, com acentos colocados no primeiro pulso de cada medida ou compasso recorrentemente e durações também regulares entre notas mais longas e breves. No entanto, a música do século XIX e XX incorporou cada vez mais a rítmica irregular, advinda tanto da música erudita como também da popular, com a influência da música africana e da síncope, como já foi discutido. Segundo Santaella, a revolta contra os metros estandardizados da música clássica surgia juntamente coma ruptura do verso na poesia, da figura na pintura e escultura, da linearidade narrativa no romance, num contexto mais amplo de contestação às simetrias tradicionais das artes em favor do inesperado.52 Nas canções da Bossa Nova, já foram apontados alguns aspectos relativos ao seu ritmo, a saber, a utilização da estrutura tradicional do samba de umamaneira diferenciada, assimétrica, com acentos em pulsos inesperados. O samba e o samba-canção, anteriores a Bossa Nova e cultivados nas canções brasileiras no século XX, possuem compassos fixados em 2/4, sendo alguns

mais

lentos

outros

mais

rápidos,

baseados

no

esquema

semicolcheia/

colcheia/semicolcheia. A estruturação rítmica na Bossa Nova se tornou mais diversificada e complexa, criando uma nova célula rítmica, quaternária – como aponta Júlio Medaglia53 – e 51

Idem. Idem. 53 Cf. Júlio MEDAGLIA, Música Impopular. 52

183

articulando a estruturação melódica. A chamada “batida bossa nova” se refere a uma defasagem no tempo físico entre os acentos tônicos periódicos na linha melódica e os do acompanhamento causado pelo uso reiterado de síncopes, causando uma certa impressão de birritmia, superposição de duas partes da obra, ambas com a mesma métrica de tempo, mas com acentuações de pulso diferentes.54 A isso se acrescente a maneira da interpretação das canções que produzia acentuações de pulso inesperadas a cada performance, como se pode verificar até hoje nas gravações de João Gilberto, por exemplo, onde uma canção é repetida várias vezes, e cada vez se produz uma acentuação rítmica diversa. Uma noção de tempo – suscitada no ouvinte – de reiterabilidade, de reversibilidade, e mudanças, em que uma música de pulsos lentos, mas que é executada em um curto espaço de tempo, pode dar a sensação no ouvinte de algo demorado, lento, pois a duração “‘real” não coincide muitas vezes com a sensação de duração de quem escuta. Se tomarmos uma das primeiras gravações da canção Fotografia, feita em 1959 por Sylvinha Telles, podemos perceber este aspecto rítmico, em que as frases, os versos, vão sendo pronunciados de maneira inesperada, com uma pulsação que parece produzir sempre uma sensação de adiantamento, em que a defasagem do acento da melodia cantada, em relação ao acento e duração dos instrumentos que acompanham a interpretação vocal, sugerem a resolução da situação descrita pelas palavras evocadoras deimagens, compondo a fotografia, a representação visual da cena em que o amor e o encontro se desenrolam, culminado com um beijo. O mar tão fortemente presente na fotografia deste ambiente e seus ritmos de continuidade e descontinuidade dos sons, com suas ondas com pulsações rítmicas reiterantes, bem como o dia que acaba com o sol, que cai no mar e é sucedido pela noite, vai sendo contraposto ao ritmo sincopado da voz que canta. Esta estrutura vai dando os contornos e a direção temporal para onde deve seguir o caminho das imagens, da resolução dos conflitos de maneira não igual, mas diversa, recriada a cada nova escuta. Muitos são os ouvintes que ao rememorarem a Bossa Nova, sua escuta e a época vivida, permitem interpretar questões relativas às impressões sobre o tempo e as durações daquele momento histórico. Lembranças de canções sempre associadas à calma, ao que é lento, alegre, harmônico sublinham o papel da memória na sensação das músicas, aspecto ligado a importância

54

Cf. Brasil Rocha BRITO, Bossa Nova. In: Augusto de CAMPOS, Balanço da Bossa e outras bossas: antologia crítica da moderna música popular brasileira. 184

do ritmo nas mesmas. Muitas vezes podemos perceber na Bossa Nova, interpretações e performances rápidas, com toque rápidos do piano ou do violão, com forte cor jazzística; no entanto, o que a memória retém, a duração nela inscrita, é a de uma temporalidade calma, contínua e sem sobressaltos. Isso sugere uma sociedade que já não era mais tão sossegada e lenta, onde o turbilhão da modernidade parecia impulsionar uma certa reação representada exatamente pelo tempo lento bossanovista, uma impressão de tempo recolhido, calmo, dos encontros à beiramar, numa cidade que já os fazia perderem-se na multidão, no desencontro. A memória é o que possibilita a “ação do ouvinte na obra e a ação da obra no ouvinte” 55, em que o tempo é o alvo e objeto de manipulação e controle por parte de quem cria a música e por parte de que a recria – seus ouvintes – , de acordo com as dinâmicas temporais sentidas ou buscadas. Um outro aspecto de maior importância dentro da música é a melodia, estrutura que se refere aos sons consecutivos que variam de altura e duração, formando a idéia musical, seu fraseado. Analogamente ao ritmo – como direção da música como um traço no desenho de maneira horizontal – a melodia pode ser vista como o elemento vertical da música, sua altura, extensão do diapasão dentro da canção, desde sua nota mais grave até a mais aguda. Na Bossa Nova, esta dimensão é muitas vezes curta, com notas próximas, e intencionalmente pouco variadas, como se pode perceber, por exemplo, em Garota de Ipanema, que pode soar – pelo menos em seus versos iniciais e estandardizados – até como uma melodia de desenho um tanto repetitivo. Ou ainda em Samba de uma nota só, que vai narrando o “samba” que se apresenta numa mesma nota. Esta pouca variabilidade nas melodias pode ser compreendida como a tentativa de jogar o foco da canção sobre uma harmonia cada vez mais complexa. Em Fotografia, mais uma vez, as notas se apresentam na maioria das vezes próximas, compondo um desenho melódico que se reitera. Outras canções, no entanto, mostram uma tessitura melódica bastante ampla, com intervalos de notas distantes, passando dos agudos aos graves e vice-versa, dando uma característica mais lírica às canções. De maneira universal, como aponta Murray Schafer, “sons agudos nos sugerem os céus, assim como os graves, o inferno”56, isto é, as notas agudas nos sugerem a inflexão da euforia, das resoluções dos conflitos, assim como os graves, nos sugerem a disforia, a tristeza, melancolia, como podemos interpretar na canção Inútil paisagem, a qual já se

55 56

Eduardo SEINCMAN, Do tempo musical. Murray SCHAFER, O ouvido pensante, p.82. 185

inicia com uma sucessão ascendente de notas na pergunta do intérprete sobre o porquê da existência de todas as imagens visuais narradas. Na descrição das mesmas, a melodia vai caindo em escala de notas descendentes, numa constante indagação que possui um mesmo desenho melódico sugerindo que as imagens, a bela paisagem visual não lhe servem de nada, são uma inútil paisagem, ponto em que a melodia é mais grave.57 No entanto, a melodia não se resume à sua dimensão, à extensão e distância de suas alturas, ela também possui a característica do ritmo, que surge na Bossa Nova, muitas vezes com as antecipações nos acentos de pulso (como já descrito). Outro elemento das melodias é a sua progressão, que é o intervalo entre as notas, o modo como a melodia se move entre elas. Na Bossa Nova, ela é pontuada por notas dissonantes, que se combinam com a harmonia complexa que se tinha, com notas estranhas à tonalidade original que se sustentam por longos períodos dentro das canções, alcançando a resolução dos acordes apenas no final da música, onde a melodia volta para as notas dos acordes centrais pelos quais se organizam a canção. “aí eu fui apresentada à um compositor de Bossa Nova que me encantou.... Carlinhos Lira... que música dele mesmo que me encantou? ‘O tempo passa e a chuva cai de mansinho...’ e aí vai, eu sei que no final é ‘pobre barquinho, velho amiguinho de papel, vai, vai, barquinho, triste, sem vida por...’ enfim, Carlinhos Lira me tocou, mas por que? Porque não era aquela coisa marcada [como achava que era João Gilberto]. Era mais lírico, e aí eu curtia...(...) Então eu lembro do Sérgio Rodrigo [refere-se a Sérgio Ricardo], eram músicas lindas... essas músicas ao mesmo tempo, mexiam também, o Trio Tamba, com Luizinho Eça, enfim, tinham determinadas músicas que mexiam muito com a gente por causa do lirismo, era o lirismo. Era muito mais a escuta do que a letra, tá? O lirismo era uma coisa... era bonito demais, eram músicas muito bonitas.” (Eliane)

Eliane afirma várias vezes que se identifica com uma canção, e a memoriza mais facilmente quanto mais lírica esta for. Ela guarda a melodia, e quase sempre a rememora com detalhes, mas a lembrança das letras, seu conteúdo, o nome do intérprete muitas vezes são esquecidos. É a sucessão de notas que se faz presente, pontuando todo o depoimento, que se torna algo cantado. A melodia, na canção popular, é o conjunto de notas articuladas entre dimensão, ritmo e progressão conformando o tema musical; é aquilo que é vocalizado, cantado pelo intérprete. Aliado à noção de melodia, o timbre é o que diferencia eidentifica um som. Uma mesma nota, numa mesma frequência e amplitude (volume) ao ser entoada por instrumentos variados produzirá sempre sons diferentes, o mesmo acontece com as vozes humanas. É a especificidade dos timbres que individualiza os sons cantados, conferindo-lhes cores, 57

matizes especiais,

Cf. Luiz TATIT, O Cancionista: composição de canções no Brasil. 186

ajudando a preencher o espaço entre as linhas horizontais do tempo rítmico e as linhas verticais da melodia. Essas cores podem ser quentes, e se dirigirem até o ouvinte, ou frias, movimentandose a partir dele, com características mais emocionais ou sintéticas. Este aspecto musical, juntamente com os outros, pode ser considerado como de fundamental importância para a formulação de imagens mentais – visuais e auditivas – no momento da escuta, evocando imagens musicais que se desenrolam no tempo em seus traços horizontais, compondo uma noção de temporalidade e arranjando-se verticalmente entre os sons graves e agudos da melodia, delineando estados de espírito e sentimentos, começando a sugerir o preenchimento destas linhas com cores e tonalidades diversas. A forma de interpretação mais intimista e discreta dos intérpretes da Bossa Nova gerava críticas e muitas vezes rejeição por parte dos ouvintes, que criticavam essa postura, considerandoa por demais relaxada, uma interpretação feita por cantores “que não tinham voz”. Ora se escutarmos a canção O barquinho, gravada por João Gilberto em 1960, podemos compreender algumas questões. “Dia de luz, festa do sol E um barquinho a deslizar No macio azul do mar Tudo é verão e o amor se faz Num barquinho pelo mar Que desliza sem parar... Sem intenção, nossa canção Vai saindo desse mar E o sol Beija o barco e luz Dias tão azuis! Volta do mar desmaia o sol E o barquinho a deslizar E a vontade de cantar! Céu tão azul ilhas do Sul E o barquinho, coração Deslizando na canção Tudo isso é paz, tudo isso traz Uma calma de verão e então O barquinho vai A tardinha cai”

Com uma letra também eminentemente visual, sugerindo uma paisagem diurna do mar, do céu, do sol, com um ritmo sincopado e uma melodia com notas muito próximas, o resultado se alinha muito mais a um comentário coloquial do que a uma declamação emocional. O timbre de João Gilberto parece coroar estes elementos, com uma empostação vocal extremamente

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pesquisada e elaborada para soar sem vibratto, num canto quase falado, sem nenhum efeito na voz – na época julgada como inadequada para o canto. Esse timbre parece evocar cores frias, distantes ao ouvinte. “olha, eu sinceramente, particularmente, eu não gosto de João Gilberto, sabe, eu não gosto. Eu gosto muito mais de Roberto Menescal, de uma Wanda Sá cantando, Edu Lobo. Eu acho que era uma coisa... meio que só prá ele entender, muito metida (...) Como as primeiras músicas falavam muito de céu, sol, essas coisas, era uma coisa muito perto da gente, né? As músicas, era uma coisa...você adolescente, romântica, as primeiras letras era uma coisa assim muito mais perto da gente do que, sei lá, Frank Sinatra, Ray Connif. Eu achava uma coisa muito perto, era uma coisa que tocava por isso...”. (Marta)

Interessante perceber como Marta vai rememorando sua juventude e como era ser jovem na zona sul do Rio nos anos 60, curtindo a praia, o dia, a cidade. A Bossa Nova lhe fazia sentido por isso, pelos elementos que ressaltava e que eram identificados com a sua experiência. O que havia de mais interessante nisso tudo era o ideário trazido por aquelas canções, representado através das imagens visuais que compunham. Essa relação se constituía em detrimento de seus intérpretes. João Gilberto, com sua complexa elaboração timbrística e voz anasalada, era considerando distante de tudo aquilo que a Bossa Nova parecia ser para ela. Seu timbre frio, “seco”, segundo suas memórias, não lhe alcançava, não lhe era acolhedor, não lhe fazia sentido em meio àquilo por ele cantado, isto sim completamente familiar. Outro depoimento que evoca esta mesma música parece revelador. “a Bossa Nova, ainda não tinha me pegado... aí eu escutei o “dia de luz, festa de sol e um barquinho a deslizar (..) do mar”... já comecei a gostar... “tudo é verão, amor se faz num barquinho pelo mar”... E aí, essas músicas me tocaram muito... eu achava alegre. Por exemplo, do João Gilberto, eu acho que, não sei nem se é dele, mas eu acho que é dele, eu acho que era a Astrud que cantava, aquela, como é que é? “Chega de saudade, a realidade é que”... apesar da dissonância do tom. E, eu curtia, comecei e curtir terrivelmente Vinícius, Vinícius é maravilhoso, é indescritível, eu acho... ele e o Tom era uma coisa pra mim. Músicas como “Mas pra que, pra que tanto céu, pra que tanto mar, pra que?”( ...) enfim, eram músicas que eu curtia...” (Eliane)

Embora tenha admitido que não gostava de João Gilberto, considerando-o muito hermético e sem comunicação com o ouvinte, Eliane associa ao intérprete as músicas que tanto “curtia”, com tons felizes, com imagens ressaltadas da cidade e da alegria que ela percebia, se identificava e guardava na memória. Indo além, ela associa músicas aparentemente tão diferentes como O barquinho (otimista e alegre, onde a paisagem natural se associa com a felicidade) e Inútil Paisagem, (uma canção triste, onde a beleza da paisagem se torna inútil diante da tristeza relatada), numa narrativa em que ambas parecem ser alegres, pois na construção memorialística o que se registrou com maior clareza foi o estado de alegria, embora a tristeza se faça presente, 188

mesmo que de outro modo, numa adolescência e juventude lembrada por Eliane que, em meio a festas, namoros e estudos, atividades comuns à vida juvenil, são pontuados também momentos conturbados, como os da prisão do pai militar, e as perturbações familiares decorrentes de tudo isso. As dificuldades da vida vivida estão presentes, mas o que se destaca com maior frequência é a harmonia da vida na juventude articulada à música também lembrada como feliz. No entanto, a interpretação da mesma música por Maysa, no ano de 1963, com bastante sucesso e repercussão à época, provoca outras sensações sonoras. Mais ligada ao samba-canção – assim como Sylvinha Telles – Maysa possuía um timbre que emprestava a O barquinho de maneira diferente. Uma sonoridade mais densa, sensual, áspera até, provocando uma espécie de aproximação entre intérprete e ouvinte, pondo cores mais quentes e fortes a este quadro da natureza.. Maysa era reconhecida como uma mulher triste, deprimida, uma cantante cujo timbre expressava esta dor, marcada por uma vida pessoal conturbada (o que era público) e que se articulava às canções “dor de cotovelo” tão comuns a época. Podemos lembrar das considerações feitas por Roland Barthes sobre o contato entre a língua e a música, onde uma língua encontra uma voz, o “grão da voz”58, assumindo uma postura dupla: a de ser língua e a de ser música. Aquele lado abstrato prazeroso, agradável, em que a voz do cantor é individual, fazendo com que se ouça um corpo que, desconhecido seu nome ou sua personalidade, é um corpo destituído de materialidade, mas transporta para a simbologia expressiva da materialidade de um corpo falando, na “volúpia de sons-significantes”, fazendo brotar o gozo que chega até o ouvinte. O sucesso de uma performance vocal e gestual mais densa e associada à canções tristes em músicas edificadas na memória como alegres, faz emergir sensações diferentes e até contraditórias nas memórias das canções, constituindo um rico processo de descoberta da complexidade do ato memorioso. Embora os compositores declarassem e ainda hoje declarem a Bossa Nova e O barquinho, em particular, como símbolo de alegria e luminosidade que o estilo queria significar, a escuta parece evocar sentidos outros não necessariamente correspondentes às intencionalidades da autoria. Talvez muitos ouvintes escutassem esta música e sentissem outras emoções, não tão alegres assim, pois este mesmo barquinho no sol está, também, deslizando num mar à deriva, sem rumo, solitário, no fim da tarde, talvez esperando um dia seguinte melhor.

58

Roland BARTHES, O grão da voz. In: O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III, passim. 189

Tomando-se esta afirmação como procedente não é à toa que a performance vocal, gestual e comportamental de Maysa agradasse mais do que a forma “seca” de João Gilberto. Embora não faça parte do universo de pesquisa os ouvintes de São Paulo, importante registrar outras memórias relativas à esta mesma canção. Como já foi dito no capítulo 1, a Bossa Nova teve grande repercussão em São Paulo a partir de 1959, com a divulgação promovida pelo DJ Pica-pau, o radialista Walter Silva, o que levou muitos ouvintes de classes sociais variadas e moradores de diferentes regiões da cidade a ouvirem canções da Bossa Nova. A paulista Vania, com 18 nos em 1963, moradora da zona norte de São Paulo, como até hoje e na época empregada numa fábrica de espelhos, oferece ricos elementos pra se pensar na escuta e suas emoções em meio ao trabalho. “a gente não falava Bossa Nova, mas sim a ‘nova bossa’ ... porque tudo que era novo era a nova bossa, era o contrário, a gente usava bastante este termo, entre nós. Nos trabalhávamos ali em 7 mulheres... e quando ia tocar ... o ritual de ouvir O barquinho, que mais mexia com a gente era à tarde, a gente até ouvia durante o dia, mas nunca era igual à ouvir à tarde, não sei se era pela hora, ou pelo serviço que se fazia naquela hora, pois era a hora de se queimar o espelho, mas cada uma largava o que tava fazendo e ia prá perto do rádio... era um lugar grande e um rádio de madeira e só duas ou três pessoas ficavam bem próximas ao rádio, as outras ficavam longe .... e eu deixava tudo o que tava fazendo ... nessa época eu era contadora da empresa e largava tudo.....a gente ia prá perto do rádio, aumentava o radio e se fazia silencio total...só se voltava a trabalhar depois...lembro do vestido verde que eu estava usando... que era o mesmo que eu tinha usado dias antes, quando sai com meu namorado(...) uma vez que a gente tava ouvindo e as meninas estavam passando o fogo, passava-se uma tocha de fogo feita na ponta de um ferro, e passava-se assim.... [faz o gesto] quando elas passavam assim, o mar lembrava aquela tocha de fogo passando..... o mar e o fogo, a gente associava.... quando terminava eu e a Lucia, a gente falava - Eu pensei a mesma coisa que você,- essa tocha de fogo lembrando o mar - Não era em linha reta, elas não passavam a tocha com a mão durinha, era leve, parecia um onda, fazia a gente lembrar muito do mar. Um pingo que caía e ficava mais escuro, aquilo representava o barquinho e ficava ondulado... nossa a gente lembrava muito... era tão nítido aquilo que parecia que a musica falava dentro da gente [se emociona]

Ela conta que telefonavam para a rádio durante o trabalho, pedindo para tocar esta música, que tinha de estar sempre entre “10 mais”. Vania afirma tantas vezes seu desagrado em relação aJoão Gilberto, considerado “seco, cáustico, frio, distante”. Maysa, ao contrário, agradava e era ouvida repetidamente todos os dias, numa espécie de ritual, em que o ritmo mecânico, racional e burocrático da fábrica entrava numa outra temporalidade, instaurando uma escuta silenciosa, aberta à imaginação, à elaboração de imagens e sentidos. Esta situação era potencializada pela associação entre a hora do dia que mais lhe comovia – o fim da tarde – com a tardinha que caía na canção. Este estado de melancolia evocado por Vania e pela canção dá a sensação de uma espera sempre renovada pelo novo dia para se ouvir novamente, na esperança de uma escuta já

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em outra situação. Após o ritual da escuta, voltava, em seguida ao ritmo do trabalho, só que num tempo que já se ritualizara e parecia ser reversível. Parece que mesmo a voz de Maysa era, para a memorialista, também seca, áspera, doída até, mas para aquelas moças isto fazia sentido, estabelecendo uma identificação com os sofrimentos. Vania lembra em várias passagens que esta música expressava o momento difícil pelo qual passava em sua vida sentimental. É importante notar como na sua construção memorial presente, isso ainda é muito forte, trazendo à tona os sofrimentos amorosos e as desilusões de um ideal de amor romântico. Em vários outros depoimentos de mulheres, o amor, o primeiro namorado, o romantismo são evocados, bem como detalhes sobre as roupas usadas, os adereços, e todos os outros elementos que fazem parte do mundo feminino. Embora esteja aí presente a vontade de lembrar, buscando recordar a Bossa Nova, o componente involuntário se coloca na imagem do vestido verde – o mesmo usado dias antes com o namorado – , que ao aparecer sorrateiramente em meio às lembranças da música, causa-lhe uma grande pausa, um silêncio que parece revelador. Nas suas lembranças tão imagéticas, com as cores e os formatos da tocha queimando, o desenho do fogo ondulado no espelho, a disposição dos móveis na sala da fábrica, pareciam evocar nela as imagens do mar, do céu, do sol todos tão distantes do local onde se encontrava. Um mar, assim, contrastado com o fogo e ao mesmo tempo à ele associado, como fluidos obscuros, atraentes e amedrontadores, objetos dos devaneios, das sensações, como sugere Bachelard59. Um barquinho representando o imponderável, o insondável, o acaso, o imprevisível, o que está à deriva, furando o que é contínuo, a repetição da vida mecânica. Um outro aspecto que aqui se explicitará como componente da análise musical é a harmonia, seu aspecto mais complexo, que apareceu na música ocidental apenas no século XI. Ela se refere à combinação de sons simultâneos dentro da música, a combinação de notas em contraposição à sucessão de notas que é a melodia. A harmonia compõe uma idéia de profundidade na música (como se verá também com a amplitude ou volume do som), como uma terceira dimensão da a imagem mental. Funciona como a perspectiva de um quadro, podendo ser mera acompanhante da melodia ou, em outro extremo, sua cúmplice, sustentando e guiando a mesma, dando sua forma, conduzindo os desenhos de suas curvas, como é o caso da Bossa Nova. Duas ou mais notas soando juntas, simultaneamente, acabam por criar o intervalo harmônico de 59

Gaston BACHELARD, A chama de uma vela, passim. 191

uma música, vindo de duas ou mais vozes num coral, ou de instrumentos tocando juntos notas diferentes, ou ainda de um mesmo instrumento – com capacidade de soar mais de uma nota simultaneamente (piano, violão, etc).60 A harmonia tem sua origem na música ocidental com os cantos dos monges na Idade Média. Ali, cantava-se sempre uma sucessão de notas, em uníssono, separadas apenas por linhas vocais – partes – idênticas de todas as maneiras, exceto por serem separadas por vários graus, divididas em “meia oitava” e formando intervalos considerados perfeitos, consoantes, esquecendo-se do trítono (o intervalo de três tons que divide a oitava ao meio) que causava estranhamento, visto como ruído, dissonância61. Mas a partir do século XI, as partes individuais deste modo de cantar – chamado organum – começaram a seguir por trajetória diferentes, a parte superior por caminhos mais ornamentados no agudo e a parte inferior em direções contrárias ao agudo, onde as vozes saíam por vezes de sincronia e se encontravam no decorrer da música em uníssono. Nascia assim a polifonia, com várias linhas independentes cantadas simultaneamente ou com linhas idênticas cantadas com uma separação de vários compassos, quando a primeira voz já estava no quinto compasso ou noutro, a segunda voz começava o primeiro compasso. Um exemplo disso pode ser visto na famosa gravação da canção Pela luz dos olhos teus, com tom Jobim e Miúcha cantando uma mesma linha melódica em turnos distintos. Esta polifonia medieval lançou as bases para o sistema harmônico ocidental do período clássico, ajudada pelo desenvolvimento dos órgãos nas igrejas, que sustentavam notas diferentes para se combinarem com as vozes. Isso permitia a concepção da música não apenas como vozes em movimento, mas com notas sobrepostas. Desta maneira, se desenvolvem os acordes, as notas agrupadas em três ou mais, soando juntas, numa música com forma vertical. Isso aparece na história ocidental em concomitância à modernidade, como uma linguagem capaz de expressar o mundo através da profundidade e do movimento, da perspectiva e da trama dialética.62 No entanto, estas notas soando simultaneamente, não são quaisquer notas aleatórias, mas compostas em intervalos definidos entre si pelas convenções musicais da harmonia, podendo ser os mais simples, como as tríades que são três notas com dois intervalos de terça entre elas (como por exemplo do-mi-sol), formadas pelo primeiro grau da escala, que será a tônica da música, o quarto grau da escala, que será a subdominante e o quinto grau, que será a dominante, até as 60

Lúcia SANTAELLA, Matrizes da linguagem e pensamento. José Miguel WISNIK, O som e o sentido. 62 Idem. 61

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combinações mais complexas. Isso formaa tonalidade da música, o centro tonal com três notas que dará a base para toda a composição. Foi a partir desse tipo de acorde que se desenvolveu a música ocidental até o final do século XIX, quando compositores passaram a buscar novas fórmulas para a estruturação dos acordes.63 Com o desenvolvimento dos instrumentos da música de concerto e das orquestras de sinfonia no século XIX, as harmonias evoluíram ainda mais. Há que se compreender aqui uma outra propriedade da harmonia musical, que é a forma de construção de progressão dos acordes (passagem de um a outro), dividindo-se entre consonância e dissonância. A consonância é um combinação de notas cujos intervalos resultam consoantes, estando com notas próximas ao centro tonal da música, o acorde que a origina, sugerindo uma sensação de repouso, organização e relaxamento. Já a dissonância, ocorre quando surge um intervalo não previsto entre as notas e será mais dissonante quanto mais intervalos desse tipo houver no acorde, sugerindo a idéia de tensão dinâmica que faz a música se movimentar com notas distantes do centro tonal. A música se faz assim neste jogo entre tensão e repouso, com a dissonância criando a atividade e incompletude e a consonância levando ao preenchimento e repouso. No entanto, o sentido de consonância e dissonância é cultural e histórico, havendo sempre um alargamento no sentido harmônico de modo a haver maior tolerância às notas diferentes e distantes dos centros harmônicos. Se na estruturação harmônica tradicional, a idéia é sempre obter um sucessão de acordes que se movimente em progressões ritmadas, em tempos específicos da música e com poucas alterações de notas, dentro do acorde inicial que é o centro tonal da música, as inovações de compositores como Wagner ou Mahler buscavam transições harmônicas alongadas, prolongando as resoluções dos acordes durante atos inteiros de suas óperas em modulações de um tom para outro, sugerindo apenas leves notas do centro tonal da música. Mas foi com Claude Debussy que a pesquisa harmônica da música ocidental tomou outros caminhos. Inspirado também pela música oriental, Debussy começou a elaborar uma música que fugia da arquitetura tonal habitual, se afastando dos acordes que gravitassem em torno dos centros tonais, passando a usar a escala de seis graus (e não mais de cinco), com intervalo de segunda maior, evitando o quarto e o quinto tom da escala, decisivos harmonicamente para a tonalidade tradicional e acrescentando notas como sétimas, notas, décimas segundas, etc. A partir dele, foi desenvolvida toda a inovação 63

Robert JOURDAIN, Música, cérebro e êxtase. 193

harmônica na música ocidental do século XX, desde a aventura neo-clássica de Stravinsky (que tinha liberdade harmônica, mas limitando outros aspectos da música às formas tradicionais) até as abordagens radicais que descartaram por completo a tonalidade clássica em favor de um novo sistema harmônico, o dodecafonismo de Schoenberg.64 Segundo José Estevan Gava65, a Bossa Nova, se caracteriza por uma harmonia que usa intervalos “raros”, novidade trazida do jazz e da música impressionista francesa, mais especificamente com Debussy, transcendendo os acordes básicos da harmonia tradicional presentes na música popular brasileira. Essa composição é resultado de pesquisas e do uso intenso de acordes alterados, uma tendência ao alargamento tonal e às modulações, mudanças de tonalidade dentro da canção, com recursos de inclusão de notas estranhas aos acordes como nonas, décimas primeiras, décimas terceiras, por exemplo. Trazendo novos elementos para esta discussão, Brasil Rocha Brito ressaltava já em 1960, a conciliação, na Bossa Nova, de modos maiores e menores na harmonia, notas de regiões maiores e menores do centro tonal se interpenetrando, o que se explicita ainda mais porque se fazer acompanhar pelas notas da melodia, que incrementam a complexidade harmônica. A melodia auxilia na sustentação das dissonâncias por um longo período de tempo, igual ou superior ao da resolução que é muitas vezes utilizada com diminuto valor de tempo, dando lugar ao início de um novo fraseado.66 Juntamente com a harmonia, como indício de uma terceira dimensão há que se considerar os arranjos e a amplitude, na formação de uma textura musical. A amplitude também ajuda a constituir a idéia de perspectiva e profundidade, através dos volumes, dos sons fortes ou fracos diferenciados nos temas, ressaltando o que está em primeiro plano ou ao fundo, compondo a dinâmica musical. A Bossa Nova, ao primar pela economia e discrição na interpretação vocal do cantor equaliza os arranjos instrumentais com essa voz, colocando-os na mesma amplitude. O mesmo se dava durante a mixagem. Quanto aos arranjos, vale destacar alguns aspectos. Em geral as músicas populares da época eram compostas para voz e violão e ou voz e piano, com a orquestração surgindo posteriormente, realizada por outra pessoa que não o autor. Essas orquestras entravam acompanhando o intérprete de um modo discreto, evitando estabelecer qualquer tipo de contraste com a voz do cantante. Na Bossa Nova isto se intensifica, onde as

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Júlio MEDAGLIA, Música Impopular. José Estevam GAVA, A linguagem harmônica da Bossa Nova. São Paulo, 1994. Dissertação (Mestrado em Artes Musicologia). Unesp/SP. 66 Brasil Rocha BRITTO, Bossa Nova. In: Augusto de CAMPOS, Balanço da Bossa e outras bossas. 65

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canções em geral possuíam a característica de integrar melodia, harmonia, ritmo, contraponto, com os arranjos na realização da obra e na sua gravação, de maneira a não permitir a prevalência de qualquer um destes elementos sobre os demais, originando uma não hegemonia entre os elementos da canção, dando igual atenção e importância à todos. Colocadas as características e os elementos principais que compõem uma canção (ritmo, melodia, harmonia, timbre, amplitude, etc.), é possível compreender, de um modo mais claro, a sua ligação com as imagens mentais visuais, com a sensação de espacialidade suscitada pela música no ouvinte. A escuta parece acionar em nossa mente, a elaboração de imagens mentais que são auditivas e também visuais, em que sons sugerem cores, profundidades, alturas, grafismos em vertical, horizontal, perspectiva, elaborando um quadro imagético que interage com os sons. Deve-se levar em conta que da mesma forma que ao olho é mais fácil perceber as dimensões espaciais de altura e largura se ajustando aos padrões da retina do que perceber a profundidade ou terceira dimensão, assim também a direção do tempo musical e a altura de seu diapasão são mais facilmente percebidas pela cóclea e pelo tronco do cérebro – facilitando a memorização e a identificação de melodias e ritmos –, do que a harmonia, dos acordes e das tonalidades.67 Mas, para além das características da linguagem musical e de seus elementos estruturais, importa aqui entender como se dava a sua performance, a interpretação do artista no ato do cantar, o modo como isto era percebido, sentido e apreciado ou não pelos ouvintes. Compreendese que a escuta da Bossa Nova se dava num ambiente sônico onde conviviam sons diversos, isto partindo do pressuposto de que a escuta das canções e todos os seus aspectos técnicos e estruturais de sua linguagem, devem ser entendidos como estando no meio de sons do cotidiano. As músicas chegavam aos ouvintes através do rádio, do disco, da TV ou até pelo microfone, configurando uma situação mediada pela técnica que, por si, impõe e contém seus próprios ruídos. Além desses ruídos, outros se faziam presentes como os sons da cidade, das tarefas da casa, das conversas, do mar, entre tantos outros. A paisagem sonora do cotidiano destes ouvinte é uma paisagem formada por sons da vida e também por sons musicais, compondo esta escuta que se pretende interpretar. Paisagem sonora e linguagem musical se interpenetram e compõem o universo sônico daqueles que escutavam a Bossa Nova nos anos 50 e 60.

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Robert JOURDAIN, Música, cérebro e êxtase. 195

“o primeiro namorado que eu tive, fora besteirinha de infância, eu estava indo para um baile de formatura com a minha mãe... e ele arranjou o carro do pai dele e nós fomos pro baile, eu sentada na frente, mamãe atrás com duas amigas minhas, não... uma amiga minha e a mamãe e eu ouvi no rádio do carro pela primeira vez “Chega de saudade”, da Elizete Cardoso, então isso foi marcado assim.. o primeiro baile que eu fui, baile de vestido de baile... uma música diferente, que depois tocou também no baile e passou a ser um símbolo assim, de começo de vida, de namoro de verão, de juventude... então a Bossa Nova acompanhou, vamos dizer... não os melhores anos da minha vida, porque todos eles são bons ou ruins, mas significava tudo o que é sol , é sal, é chuva, é namoro, é luar, é romance, é aventura, é liberdade, é paixão, é romantismo, é a coisa romântica que pra mim transformou o Brasil...(...) Aí que eu ouvi “Chega de tristeza” [sic] cantada pela Elizete, eu senti que algo diferente tava acontecendo na minha vida ... uma batida diferente... Olha, era tão diferente tudo naquele dia que eu não sei... nessa época eu tinha 18 anos.”

(Glória) Glória lembra-se de ter ouvido Bossa Nova pela primeira vez no rádio. Ela recorda de Chega de Saudade cantada por Elizete Cardoso com acompanhamento de João Gilberto que, ao violão, já introduzia as inovações harmônicas e rítmicas que o tornariam singular e famoso. Esta gravação, de abril de 1958, fazia parte de um LP lançado em maio do mesmo ano, que trazia parcerias de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, com arranjos de Tom Jobim. João Gilberto está presente em apenas duas faixas: Chega de Saudade e Outra vez. Lançado pelo selo “alternativo” Festa, o LP fez pouco sucesso, com tiragem de apenas duas mil cópias. No entanto, acabou sendo reconhecido como o marco histórico do “nascimento da Bossa Nova” ainda que somente algum tempo depois, isto porque Elizete ainda era considerada uma intérprete tradicional do sambacanção e muitas das canções ali interpretadas ainda continham letras com forte ligação ao ideário do samba-canção como Modinha, O que tinha de ser e Serenata do Adeus, todas com forte apelo emocional, poesia rebuscada e alto teor de sofrimento. Somente alguns meses mais tarde, João Gilberto gravaria seu 78 rotações, onde dava a Chega de Saudade e Bim Bom, sua própria interpretação cantando de maneira diferenciada, provocando um real impacto nos meios de comunicação, na crítica musical e no público. No entanto, na construção da memória de Glória, foi Chega de Saudade cantada por Elizete que lhe causou impacto como representante da nova música, uma música associada a alegria, ao início da juventude, às festas, aos namoros, à vida na praia. No movimento da memória de Gloria, “tudo naquele dia era tão diferente”. Os aspectos de sua vida que entrava numa outra fase – pelo menos na memória de hoje – se misturam aos elementos musicais que ouvia, mesmo numa gravação citada que não apresentava ainda aspectos totalmente inovadores. Mas para a memorialista, a batida diferente já estava colocada ali, pois no trabalho de rememoração, a música lhe aciona lembranças da vida, da experiência do debutar -na juventude,

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com o primeiro namorado, o primeiro baile, o primeiro vestido, iniciando a vida de amores, romance, paixão, liberdade. A Bossa Nova, para ela, representa tudo isso. Esquecimentos ou confusões em relação a quem era o intérprete da canção ou ainda a troca da expressão “chega de saudade” por “chega de tristeza”, põe à vista o involuntário, que nos interpela, surgindo sem que nos demos conta do porquê. A tamanha alegria construída na rememoração de Gloria, para quem aquela época significava tudo o que era “sol, mar, amor, liberdade” contraria a fixação, no presente, de “tristeza” ao invés de “saudade” e também de Elizete Cardoso, no lugar de João Gilberto. Embora a memória procure dar um sentido à juventude como momento feliz, fica latente a melancolia, principalmente quando, em outras passagens de seu depoimento, ela nos conta sobre a grave doença que teve na juventude, uma hepatite rara que a deixou internada por quase um ano, e mais outro ano de convalescência em casa, sob austeros cuidados médicos, sem poder sair, dançar, trabalhar, estudar. Pode ser ressaltado ainda, o fato de que a escuta da canção citada se deu em meio aos ruídos que a circundavam, como o barulho das conversas no carro, e no baile, das outras músicas também tocadas ali, os sentimentos envolvidos neste dia, tudo isso sendo recordado como acontecimentos importantes da vida. Não foi uma escuta solitária, atenta aos pormenores estruturais da canção, com seu ritmo, melodia, harmonia, mas uma escuta em meio à vida, permeada de emoções e descobertas. Na escuta de Glória, se faz importante para articulação de suas memórias hoje, os elementos circunstanciais que a envolviam, os aspectos emocionais que influíram na forma como elaborou esta canção em sua percepção e na forma como é lembrada hoje. Glória, hoje uma psicanalista, tem consciência das emoções contidas nas lembranças e no modo como se percebe o mundo, tendo compreendido, desde os contatos iniciais com a pesquisadora que, o que se buscava era a experiência dos ouvintes, as vidas vividas atravessadas pela Bossa Nova, e não uma explicação sobre o movimento, embora na memória involuntária isto tivesse surgido diversas vezes. Uma paisagem sonora, assim, evocada nas lembranças por Gloria, onde o sons da canção se misturam aos sons das conversas, dos namoros, da ambiência do baile, impedindo uma escuta atenta e especializada, compondo imagens mentais visuais e sonoras em que harmonias, melodias, ritmos da canção e do cotidiano, ritmos orgânicos e do tempo da vida parecem estar se interpenetrando. Mais ainda, esta escuta se dava com os sons do rádio, que à esta época e ainda num rádio de carro deveria produzir muitos chiados, indicando uma baixa fidelidade sonora. Entretanto, era um aparelho que possuía um valor incomparável nas

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experiências cotidianas nos anos 50, revelando formas de se ouvir e de se dialogar com o que se escutava. Mônica Nunes aponta para a importância de se compreender a dimensão que a sonoridade ocupa na vida do ser humano, pois é a partir das propriedades e particularidades do som que se funda a relação dos indivíduos com as vozes e os objetos sonoros que vêm do rádio. Este, como veículo de comunicação e ser da cultura, parece não exercer apenas a função de informar com rapidez e instantaneidade, tampouco se reduzir ao entretenimento, mas parece também ressaltar a existência de um outro universo significante, moldado a partir da voz, do som e do ouvir, onde vozes e sons constróem textualidades orais que veiculam signos míticos aptos a ritualizar a escuta radiofônica. Por meio disso, o rádio parece ter a função de atenuador das perdas trazidas pelo tempo, pela modernidade, pela aceleração da história, permitindo aos indivíduos “modernos”, o retorno ao presente absoluto, com a ritualização do calendário e uma repetição sempre renovada a cada dia..68 “nós tínhamos, por exemplo, uma amiga que morava em Copacabana, Maria Lúcia Peixoto, foi minha colega de faculdade. A Maria Lúcia recebia na casa dela o Luís Carlos Vinhas, tocava piano na casa da Maria Lúcia de graça, o Normando que você deve conhecer pelos seus estudos. Normando tá cantando em Paris, morando em Paris há muito tempo. Mas Normando também foi um desses precursores da Bossa Nova. Então Normando cantava lá na casa da Maria Lúcia. Quem mais? Luís Carlos Vinhas, Normando...Roberto Menescal! Imagina, como é que vou esquecer do Menescal. Com esses todos, a gente convivia assim... eu ia nessas reuniões todas, e às vezes não tinha nem reunião. No domingo ela me ligava:Maria Amélia, olha, Normando hoje vem cantar aqui - Aí o Menescal ia pro piano, o Vinhas, quer dizer, olha, é uma história...Quando você me falou pelo telefone [sobre o depoimento], eu disse: - É...realmente eu acho que eu tenho algo pra contar - Porque é um privilégio! Você viver uma época dessa e ter contato...Deixa estar que aos 15 anos eu já tinha tido contato com Carlinhos Lira, que também, pra mim, é um dos maiores se não o maior. Eu ouvi nos jardins do Clube da Aeronáutica, ‘Lobo Bobo’ e ‘Maria Ninguém’ cantado por ele. Entendeu ? Lá nos jardins. Tava muito barulhenta a música lá no salão e ele disse: - Quer ver as músicas que eu faço? Ce quer ver? Ele tinha 23 anos, né. Aí nós nos afastamos um pouquinho ali no jardim do Clube da Aeronáutica e ele cantou ‘Maria Ninguém’”. (Maria Amélia)

Temos assim, duas diferentes lembranças de escutas da Bossa Nova. Glória, cuja primeira audição é mediada pela técnica das ondas hertzianas, e Maria Amélia que se recorda de conhecer a Bossa Nova, por meio de seus músicos, no contato direto com os mesmos, sem mediações tecnológicas, em locais mais privados. Diferentemente da escuta radiofônica, temos a lembrança de escuta de Maria Amélia, que se dava nas reuniões com os músicos em casa de amigos ou nos clubes. Essa proximidade, tanto física quanto sentimental, com os intérpretes reverberam nesta percepção e na lembrança da mesma. O músico, o intérprete parece ser alguém de suas relações, 68

Mônica R. Ferrari NUNES, O mito no rádio: a voz e os signos de renovação periódica. 198

como um colega de faculdade, o namorado de uma amiga, tornando o ambiente mais informal e a música ouvida mais próxima, mais ligada ao seu cotidiano, aos seus afetos e sentimentos. Importante atentar assim, para as especificidades desta performance ao vivo. Nela, todo o universo, a ambiência, a atmosfera, o todo circunstancial faz parte de uma obra. Não se pode apreendê-la apenas em seu nível semântico, verbal, mas em sua completude, constituída como forma – que não é fixa nem estável, mas uma “forma-força” –, constituindo um dinamismo que só se realiza na performance, seu elemento constituinte. Os elementos da canção, sua harmonia, melodia, ritmo, timbre do cantor, etc, só fazem sentido juntos numa situação de performance, onde conjugam-se o tempo, o lugar, a finalidade da transmissão, a ação do locutor, a resposta do público. Parece assim, que as regras (sempre dinâmicas) da performance importam mais que as regras textuais. 69 As maneiras de escutar, perceber e compreender esta música também serão diferentes. Maria Amélia se recorda ainda que ouvia no rádio muito mais Angela Maria e outros cantores da fase áurea do rádio, do que Bossa Nova. Mas na sua escuta da Bossa Nova, interpunha-se as emoções resultantes da proximidade com o intérprete. Nas suas memórias desta escuta, se percebe uma tentativa em rememorar a Bossa Nova voluntariamente, naquilo que ela participou do movimento, buscando por seu passado, num esforço consciente e voluntário de lembrar de algo a ser dito à pesquisadora. Isto a levou a selecionar aspectos reveladores de sua proximidade com os músicos e autores, os “verdadeiros” participantes da Bossa Nova, se esquecendo, ela própria, que também era uma co-autora, participante, ouvinte. Um esquecimento deflagrador da idéia de que a autoria é a fonte mais autorizada a falar. Nesta escuta da Bossa Nova lembrada por Maria Amélia, o ambiente afeta a percepção, assim como os ruídos externos à música que aqui parecem ser menores do que os descritos por Glória. Em reuniões nas casas ou apartamentos, os ruídos, os sons externos talvez se impusessem menos, uma vez que as reuniões aconteciam em torno da música, era ela o mote para os encontros, onde também se conformavam várias formas de relacionamento como longas conversas e namoros. Outros poderiam ser os ruídos desta paisagem sonora, talvez internos às próprias músicas, algo soando estranho, diferente, inovador, dissonante, des-ritmado, cantado em volume baixo demais – características todas da Bossa Nova.

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Paul ZUMTHOR, Op.cit. 199

Segundo Zumthor, performance implica em competência, estando ligada ao conhecimento que transmite, afetando-o, modificando a mensagem. O intérprete assim tem papel fundamental, pois comunicando, marca um saber que implica e age sobre as condutas, configurando valores encarnados num corpo vivo, estabelecendo um tipo de cumplicidade entre os atores envolvidos. Se faz presente aqui, a idéia de eficácia deste intérprete, uma vez que performance implica também em reconhecimento, a realização de um material reconhecido como tal pelos receptores, ressaltando um intérprete que assume sua responsabilidade na mensagem emitida, sua marca. Enfim, reitera uma noção de “saber fazer” e também de “saber ser”70. A performance se encontra atada a um contexto cultural e situacional em que a ação se desenvolve num tempo e num lugar. Liga-se também a um corpo e à sua competência como também a um corpo que recebe, que pulsa e emana calor. Isto, por se tratar de um drama à três: interprete, texto e ouvinte, em que este último é co-autor da obra. Não foram poucos os depoentes que admitiram em suas memórias que não gostavam de João Gilberto, com seu timbre e forma de cantar e tocar violão, achavam-no estranho, o que no presente adquire ares de algo muito hermético, elaborado demais, feito para ser entendido apenas por ele. Claro que entra aí a distância temporal, quando a Bossa Nova e ele já foram consagrados na história e na memória oficial como símbolos de qualidade musical, de inovação. O que estas memórias permitem perceber é que aquilo que hoje é assumido como algo que não se gosta apenas de maneira muito particular e declarada até com alguma reserva, poderia ser à época algo considerado ruim, rechaçado, rejeitado, algo desagradável aos ouvidos e às sensibilidades. Entram em cena assim, para se compreender a memória das escutas, aspectos relacionados às percepções ligadas aos cinco sentidos humanos. A performance da oralidade mediatizada tem seus aspectos alterados com a abolição da presença física de quem traz a voz. A mediação eletrônica fixa a voz, retira-a do puro presente cronológico, tornando essa voz transmitida reiterável indefinidamente, embora de maneira abstrata. Zumthor argumenta que apesar da mídia ter retirado a corporeidade da performance, produzindo uma espécie de desencarnação, este corpo não desaparece totalmente, estando os cinco sentidos ainda presentes, embora de outra forma. Com a mediatização, a performance ou a vocalidade são mantidas ainda que a partir de um corpo transformado.71

70 71

Paul ZUMTHOR, Performance, recepção, leitura. Paul ZUMTHOR, Ibidem. 200

Embora os cinco sentidos sejam importantes na percepção do mundo, na maneira como nos relacionamos com o mundo exterior, é preciso destacar que entre os sentidos humanos, a visão e a audição, e seus órgãos correspondentes, como os olhos e os ouvidos, estão muito mais codificados que os outros. Por estarem mais diretamente conectados ao cérebros, podem estabelecer sistemas de linguagens e de pensamento e também de memórias. Tato, olfato e paladar, ao necessitarem de outros aparatos para se conectarem ao cérebro e assim às sensações, buscam apoio em outros códigos, não gerando, por si próprios, linguagens ou memórias72. A questão que aqui se levanta é como esta experiência se concretizava nos anos 50. Importante verificar, na lembrança dos próprios bossanovistas, jovens que eram nos anos 50 e 60, traços desta formação cultural que passava pelo cinema, pelo consumo de elementos culturais advindos da cinematografia norte-americana, traduzido em imagens e sons. “era tudo muito reprimido e você vivia muito era o que ? Era o cinema americano, que impunha todos os conceitos. Você tinha uns padrões assim: Sinatra, aquele chapéu, aquele cigarro, aquele copo de uísque. Então as pessoas viviam muito esse clima, e ficava ... dava aquela olhada, e tal. E aquilo demorava dias pra falar com a pessoa. E eu me lembro que , eu devia estar no mesmo clima, todo mundo vivia esse clima, e eu tava numa festa no Leblon, e tinha uma moça, que depois ficou muito amiga minha, que tava com o Sérgio Ricardo conversando, e eu tava fazendo aquele tipo desprotegido... Aí, daqui a pouco, a moça me deu uma olhada assim ... aí acabou de falar com o Sérgio e veio na minha direção. Eu já fiquei espantado, porque era tudo que eu queria, mas fiquei espantado, entende? Achava que eu é que tinha que ir na direção dela. Ela sentou e : “Tudo bem?” E eu : “Tudo bem.” E ela: “O que que você quer comigo?” Aí eu quase caí da cadeira. Ela falou: “Claro que quer, você tá me olhando há meia hora, tá fazendo caras e bocas...” Quer dizer, foi a primeira pessoa já com a cabeça diferente, dizendo: “vamos conversar, vamos quebrar 73 isso...” (Roberto Menescal )

Um consumo cultural entre elementos sonoros e visuais com as músicas e o cinema, onde os modelos culturais que se evidenciavam na cultura de massas e no cotidiano, circulavam socialmente contribuindo para a formação dos imaginários sociais. O cinema, com o modelo de masculinidade repleto de charme e glamour com Frank Sinatra, e tantos outros personagens compondo a “mitologia moderna”74 dos anos 50, compondo as cores da construção de um imaginário de mundo ideal (conjugado ao avanço tecnológico dos anos pós-segunda guerra), “acima dos conflitos terrenos, voltados para o amor, a fantasia, o deleite, projetados nas telas dos cinemas como extensão do imaginário do povo, sob um clima musical catalisador das emoções eufóricas”75. Igualmente as moças, inspiradas na promoção dos valores femininos, buscavam 72

Cf. Lúcia SANTAELLA, Matrizes da linguagem e pensamento. Depoimento concedido em 25/01/96, no Rio de Janeiro. 74 Edgar MORIN, Cultura de massas no século XX : o espírito do tempo I - Neurose. 75 Luiz TATIT, O Cancionista: composição de canções no Brasil. 73

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padrões comportamentais inovadores que supunham ousadia e liberalidade. A Bossa Nova, por sua vez, em suas canções e na memória de seus participantes, se correspondia e se deixava penetrar com e por estes imaginários, revelando nuanças de uma visão de mundo otimista e “moderna”. Por outro lado, esta própria idéia de modernidade, ressaltada no depoimento, contrasta com elementos comportamentais referentes a um imaginário mais conservador, onde o comportamento de uma mulher mais liberalizada, que toma a iniciativa diante dos relacionamentos amorosos, se não era tido como errado, ou digno de reprovação, pelo menos “assustava”. Na trama da memória, o retido é a modernidade, mas nos seus interditos, nas suas entrelinhas, podemos identificar aspectos que entram em choque frente à mesma. Recorrendo aos pressupostos mcluhanianos – que atestam que “o meio é a mensagem”76, isto é, uma mensagem não se reduz ao conteúdo manifesto, mas ao contrário, comporta um outro, latente que emana da própria natureza do medium que a transmite – não podemos negar as particularidades ou especificidades das mídias. No caso das mídias sonoras, seu aparecimento ocorre e se difunde na modernidade, num momento em que se opera uma separação entre os sons ouvidos e as suas fontes originais, num corte livre do som e sua origem natural, a “esquizofonia”77. No entanto, há que pensar este corte, esta quebra, não por sua pretensa malignidade, mas como parte de algo maior, a saber, o desenvolvimento de utensílios e ferramentas que o homem a todo momento cria e recria para seu próprio uso, para auxiliá-lo nas tarefas mais diversas. Utensílios , que em sua relação com o ser humano, são recriados, e modificados ao mesmo tempo que alteram sensibilidades, percepções, maneiras de ver, ouvir, sentir o mundo. Segundo Santaella78, as mídias sonoras e audiovisuais surgem como máquinas que funcionam como extensões dos sentidos humanos – as máquinas sensórias – dotadas de uma inteligência sensível, na medida em que corporificam um certo nível de conhecimento teórico sobre o funcionamento do órgão por elas prolongados como o olho e o ouvido, por exemplo. Máquinas que são cognitivas, tanto quanto os órgãos humanos e sua sensorialidade. Nas culturas latino-americanas, segundo Martín-Barbero, o que se pode perceber, é que o rádio exerceu o papel de promotor da “primeira modernidade”, fazendo a ponte entre uma cultura oral, rural, tradicional e uma cultura de massas, urbana, industrial, introduzindo nesta última, a 76

Marshall MCLUHAN, Os meios de comunicação como extensões do homem. Murray SCHAFER, O ouvido pensante. 78 Lúcia SANTAELLA, Cultura das mídias. 77

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expressividade daquela, possibilitando a passagem da “racionalidade expressivo-simbólica à racionalidade informativo-instrumental organizada pela modernidade”79. Enquanto na Europa houve – muito claramente – uma passagem da hegemonia da cultura oral para uma cultura escrita, por aqui esta cultura oral primordial foi sendo entrecortada pela tecnologia audiovisual. Nesse processo, oralidade e imagem, escuta e olhar não se excluem. Dito isto, há que se compreender as transformações dessa cultura a partir da articulação de todas estas matrizes, perfazendo uma “segunda alfabetização” ou “oralidade secundária” latino-americana, passando de uma cultura oral para uma cultura audiovisual, sem deixar de lado seus traços orais, vocais e auditivos. Desta maneira, se relativiza o papel da imagem como totalizante, manipuladora e absoluta, ainda mais porque a canção – forma de poesia oral – iria, nos anos 60, tomar a dianteira no debate sobre a cultura, compondo um campo onde a música popular teria hegemonia. Assim, é necessário indagar sobre a relação mantida entre alguns ouvintes da Bossa Nova com os meios comunicacionais do momento: a TV, o rádio, o disco, os jornais, as revistas de variedades repletas de imagens, publicidade, entre outros, buscando descobrir como, enfim, caminhavam em meio a isso elaborando sua percepção do mundo. “só vim pra zona sul quando já... na primeira adolescência. E o meu contato com a Bossa Nova foi durante os anos 60. É...em meados dos anos 60, exatamente quando eu estava entrando na adolescência, tive o contato não só com a Bossa Nova mas com toda a música que, que na época, enfim, fazia sucesso; música dos Beatles, da Jovem Guarda, né, nós gostávamos disso tudo (....) nessa época de Beatles, Jovem Guarda e etc, tomar uma garrafa de Coca-cola era um luxo, quer dizer, nós ainda não estávamos dominados inteiramente pelo consumismo. Nós não éramos uma sociedade, uma sociedade de consumo, ainda. Estávamos ingressando nesse mundo. Mas foi pela televisão que eu cheguei a Jovem Guarda. Pela televisão, os programas da TV Record, se não me falha a memória, a turma da Jovem Guarda, né. Agora, eu percebia que os meus amigos paulistanos e paulistas, eles eram muito mais influenciados pela Jovem Guarda do que nós, aqui do Rio. Muito embora, o Roberto Carlos quando saiu do Espírito Santo, tivesse vindo pra cá. Era da Tijuca também, da rua do Matoso. Ele, Erasmo Carlos e todo mundo. A gente chegou a vê-los, né, e tudo. Garotos ainda, eu estudava ali perto, no colégio Lafayette... Mas foi pela televisão. Beatles, Beatles, pelo cinema. O filme “Help” foi decisivo pra isso, provocou uma série de novidades. O cinema, que era um sacrário, onde no máximo uma piadinha durante o filme de um gaiato pra todo mundo rir(...) De repente, todo mundo dançava dentro do cinema. Eu vi o filme “Help” 16 vezes .... 16 vezes que eu vi o filme “Help”! Era o filme ? Não, não era o filme. Era a farra. Quer dizer, eu estava indo a uma festa quando eu ia ao cinema ver o “Help”, né. E os Beatles nos pegaram, a mim, eles pegaram dessa forma. O Vinícius de Moraes, ele disse uma coisa...que ache genial. Ele falou assim: - Não, o Iê-iê-iê é assim... é terapêutico. E era, era. A gente...o processo da carnavalização, da exorcização, os negócios do demônio, a dança e coisa e tal (rindo)(...) Então os Beatles pelo cinema, Jovem Guarda pela televisão. Pelo disco, Bossa Nova. Nossa opção era aquele disco de Bossa Nova..... Ah ! Sim. E música americana. Música americana! Frank Sinatra, Nat King Cole... eu comprava, comprava disco. Sem dúvida.” (Carlos

Alberto)

79

Jesús MARTIN-BARBERO, Os exercícios do ver, p.42. 203

Carlos Alberto, ao dar sentido à trajetória de sua vida, recorda-se da música como algo estruturante. Embora no início do depoimento tenha frisado a sua vinculação à cultura letrada, se apresentando como professor de literatura e de teoria literária, e contando que havia tentado seguir carreira diplomática além de ter cursado, duas faculdades, deixa entrever que na sua juventude, a cultura midiática advinda do cinema e da TV, as músicas jovens como o rock and roll, a Jovem Guarda, música americana e também Bossa Nova, ocupavam grande espaço como elemento constituinte dos imaginários dos jovens nos anos 60. Um consumo de músicas, canções em forma de discos e rádios, mas muito fortemente, um consumo de imagens visuais midiáticas num momento em que a TV começa a se fortalecer como meio de comunicação. O relato de Carlos Alberto deixa claro que a segunda metade dos anos 60, por conta de todas esses acontecimentos, apresenta fortes diferenças em relação ao universo midiático da década anterior. “eu era muito ligada mesmo nessa coisa de música e ver show de samba (...) Íamos muito pra Mangueira e aí a gente tinha uma turma ali em Botafogo, e íamos pra festas, pra carnaval e íamos pra escola de samba... E aí tinha... começou a aparecer Nara Leão, Bethânia, né, ainda era bem garota, depois Nara Leão que eu era apaixonada.... ela foi assim uma gracinha da história, né? E então a gente, e essa casa dessa família vizinha que a gente andava muito junto, também se dançava o fim de semana inteiro. As pessoas perguntavam se era um clube a casa. Porque era uma casarona também daquelas de Botafogo e nós dançávamos, dançávamos, sempre sabíamos todas, todas as músicas, todas as danças, todas aquelas coisas. Hooly Goolly, sabíamos todos os passos, todas aquelas danças que vinham, né, trazendo, novas, e nós sempre treinávamos e dançávamos muito. E de ensaio em escola de samba e tinha aquelas coisas daqueles shows do Arena, em Copacabana e o Opinião. Depois Vinícius de Moraes, eu era apaixonada, completamente apaixonada (...) meu irmão, um dos meus irmãos fazia cinema, era fotógrafo de cinema, e então, eu era garota, tinha uns 16 anos, eu e a namorada dele éramos muito amigas. Então tinha festas no Cinema Novo, aquilo tudo, a gente sempre era convidada. Nós éramos as garotinhas que éramos figurantes de festa de Cinema Novo daquela época (...) E uma coisa muito engraçada que eu já era apaixonada pelo Vinícius, achava o Vinícius assim uma coisa e era amigo do Andrade Neves, amigo desse meu irmão, dessa turma de cinema. E uma vez nós fizemos uma gravação, nos chamaram no Zum zum ; e era o Baden tocando e nós éramos as ‘meninas’ do bar, estávamos com o Vinícius e ele cantava e conversava com a gente (....) E o Vinícius, que nem é pra gente da minha idade, né? Não sei, não sei. Não sei como que é essa faixa mas pra mim, quer dizer, meu grande, meu primeiro ídolo musical foi o Elvis Presley, era assim uma paixão, com a coisa da sensualidade (....) Eu me lembro de Leila Diniz, era aquela coisa do cinema novo, mas não era assim... quer dizer, ela era o ícone da liberdade sexual, assim... mulher, liberada, era o auge ela era o ícone disso mesmo... eu achava isso tudo o máximo, desde a Brigit Bardot, eram os meus ícones assim, era uma coisa muito sensual, pra mim era tudo muito sensual (...) Olha, lá em casa rolava Seleções, se você quiser saber. Rolava muito, é engraçado, né? Eu adorava ver fotonovela, já garota, né? O barato era fotonovela que era uma coisa meio escondida mesmo, era fotonovela, era proibido, aquilo ali tinha interesse total . .” (Rita)

As memórias de Rita se constróem também entre aquilo que ela via prioritariamente. Suas lembranças sobre o que ouvia no rádio ou nos discos, embora se coloque como uma ouvinte assídua, é pouca, o que faz com que suas recordações sobre as músicas sejam sempre em torno das imagens cinematográficas, dos seus ícones sensuais, das danças coreografadas que se 204

aprendia na TV, nos filmes ou nas festas. E a lembrança da própria Bossa Nova se apresenta de uma maneira fortemente imagética, através da presença nos shows de Nara Leão e Vinícius de Moraes. Um consumo cultural diversificado, incorporando cinema francês, americano, TV, música brasileira e rock and roll, os almanaques e as fotonovelas, numa experiência, que ia sendo montada a partir destas várias linguagens midiáticas. Interessante notar que entre os programas juvenis musicais lembrados por Rita, estava também o samba de escolas como a Mangueira, o que atesta uma aproximação dos jovens da zona sul com a cultura do “samba do morro”, se não tanto, no caso de Rita, por uma questão político e ideológica de resgate de uma cultura pura, nacional e autêntica – como este não dito de Rita nos deixa interpretar – pelo menos como uma matriz cultural musical marcante na vida destes jovens. Rita, e também Carlos Alberto e Roberto têm hoje por volta dos 50 anos, o que significa que são de uma geração mais jovem, ouvintes da Bossa Nova nos anos 60, momento em que a TV e o cinema tinham ainda mais penetração entre a sociedade carioca e entre os jovens do que na década anterior, com outros movimentos musicais também ocorrendo. É necessário pensar sobre o papel das mídias audiovisuais tanto na performance das canções como nas maneiras de percebê-las, senti-las, enfim, escutá-las e vê-las. Muitos dos ouvintes entrevistados se lembram de ter escutado a Bossa Nova por meio dos discos e do rádio, especialmente aqueles que viveram sua juventude ainda nos anos 50, quando o meio principal de divulgação deste gênero musical eram as mídias sonoras. Eles entravam em contato com vozes, sonoridades e performances que lhes chegavam por meio de uma escuta destituída do olhar, em que rostos, corpos, posturas, atitudes e gestualidades do intérprete eram imaginadas. Canções que em sua maioria eram de letras coloquiais, criando uma atmosfera intimista que se transmitia ao ouvinte, na sua escuta em casa, nas festas, sozinhos ou em grupos. Porém, como já indicamos no capítulo 1, a partir de 1964, começaram a ser promovidos, principalmente em São Paulo, mas também no Rio, shows de Bossa Nova que começavam a se diferenciar daquele intimismo até então predominante. Realizados em teatros para um público maior, e promovidos pelos centros acadêmicos das universidades, estes shows começaram a apontar para um novo caminho que a Bossa Nova tomaria. Realizados em palcos grandes, para o grande público, num contexto histórico e político marcado pelo recente Golpe Militar que implantava a ditadura no país. Esses eventos, como aponta Napolitano80, desempenharam um 80

Marcos NAPOLITANO, Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959/1969). 205

papel, de intermediários institucionais entre estes novos artistas e seu novo público, a juventude universitária, ampliado após o Golpe. Transformando-se em arena para a resistência e crítica ao regime político que se instaurava, esse público tinha características e importância ideológica, o que acabava por modificar também a performance bossanovista, deixando o intimismo, a economia de gestos, para assumir uma gestualidade corporal mais marcada por parte do cantor, ajudando a empolgar a juventude que lotava os teatros, movidos pela paixão política e pelo que aqueles eventos representavam. Estes shows serviram como base ou espécie de protótipo para a entrada da Bossa Nova na TV, tanto com programas musicais como “O Fino da Bossa”, como nos festivais da canção. Este novo meio de comunicação, como aponta Zan81, veio alterar a natureza da produção musical e estabelecer um novo patamar nas relações com o consumo de música popular no Brasil. A partir desse momento entra em jogo, na escuta da canção, outros elementos da performance – não apenas os sonoros – que, estruturados como imagens, encenação e interpretações mais contundentes, em volume maior, expressam gritos de guerra e resistência, acompanhados por um movimento de braços e mãos – pensando em Elis Regina – que encontraram na TV um espaço de exibição e um veículo de ampliação do público da Bossa Nova. Aquele estilo de interpretação com banquinho, violão e voz de pequeno alcance consagrado por João Gilberto, ou as interpretações e arranjos jazzisticos dos trios, vão sendo substituídos por grandes palcos e grandes orquestras onde cantores com voz mais volumosa, e jeitos extrovertidos e expressivos, passam a ser a atração. Wilson Simonal é um dessesexemplos. Para este ouvinte que passou a conhecer a Bossa Nova a partir de meados dos anos 60, ela era não apenas sons, vozes, timbres, mas também imagens, características cênicas, expressões faciais. Lembrando mais uma vez Napolitano, parecia não existir tanto choque entre o padrão de escuta daqueles acostumados ao rádio nos anos 50 e os festivais na TV nos anos 60, isto porque a solenidade que imperava nas performances de palco, na presença do público, no cerimonial dos apresentadores, tinham matrizes na cultura radiofônica. No entanto, há que ser consideradas as diferenças entre a pura escuta e a escuta aliada ao olhar, em que se passa a “ouver a performance”, como sublinha Heloisa Valente82, gerando diferenças tanto na forma destas

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José Roberto ZAN, Do fundo de quintal a vanguarda: contribuição para uma História Social da Música Popular Brasileira. Campinas, 1997. Tese (Doutorado em Sociologia)- IFCH/ UNICAMP. 82 Heloisa de Araújo Duarte VALENTE, As vozes da canção na mídia. São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). PUC/SP. 206

performances, que agora eram para ser também olhadas, como também nas sensibilidades, percepções, processos de significação, maneiras, enfim de escutar esta canção, nas quais os aspectos visuais por vezes se encontram mais fixados na memória. É desse modo que é possível compreender que a memória destes ouvintes da Bossa Nova estudados se fazem por imagens e sonoridades rememoradas, compondo dando eixo e direção às suas trajetórias de vida, às suas experiências. Uma memória articulando os diversos sentidos e órgãos sensoriais, compondo um “mapa afetivo”83, como bem coloca Ecléa Bosi, daquele meio urbano onde se viveu. Uma experiência na cidade, questão objeto de análise no próximo subcapítulo. O objetivo deste sub-capítulo “Entre escutas e olhares”, foi traçar um caminho pelo tempo e espaço da época estudada, considerando o cotidiano das experiências dos ouvintes que vão se deixando conhecer através de sons e imagens, advindas da memória ou de documentos da época, como as canções e a imprensa por exemplo. Conhecendo assim aquele espaço/tempo, como nos sugere o protagonista do filme O Céu de Lisboa, de Win Wenders que, na captura de sons para um filme, cujas imagens já haviam sido feitas, vai desvelando a cidade, sua sonoridade, seus ruídos, sua língua, sua prosódia, seus habitantes, suas vozes, músicas e particularidades como um amolador, um grupo musical, um bonde, um rio, entre outras idiossincrasias de um espaço que é único e diverso. Um conhecimento que vai sendo montado entre escutas e olhares e se manifestando

83

nos

sentimentos.

Ecléa BOSI, Memória e sociedade: lembranças de velhos. 207

Cap. 3.2. – A cidade “No sonho, na margem esquerda do Sena, em frente de Notre Dame. Lá estava eu, mas lá não havia nada que fosse igual a Notre Dame. Uma construção de tijolos dominava, apenas com os últimos degraus de seu maciço, um elevado teto de madeira. Mas eu permanecia lá, subjugado, justamente defronte de Notre Dame. E o que me subjugava era a saudade. Saudade justamente da Paris na qual eu me encontrava aqui no sonho. Portanto, de onde essa saudade? E de onde esse objeto totalmente desfigurado para a cidade, irreconhecível? Em suma: no sonho eu me chegara bem perto dele. A saudade inaudita que aqui me atingiu no coração da coisa almejada, não era a que, da distância, impele à imagem. Era a saudade ditosa que já atravessou o limiar da imagem e da posse e só conhece ainda a força do nome, do qual a coisa amada vive, se transforma, envelhece, rejuvenesce e, sem imagem, é o refúgio de todas as imagens.”

Imagens do pensamento, Walter Benjamin

Rio imagético, visto e interpretado por quem vive fora da cidade. O Rio dos cartõespostais, do cinema, da publicidade e das telenovelas. Cidade construída pela memória ou por narrativas alheias. Focos que avançam sobre seus detalhes, presenças, ausências e fragmentos estruturando um olhar atual que busca conhecer, por meio das memórias dos ouvintes da Bossa Nova, a cidade de outrora. Como já dizia o poeta sobre as paisagens, algumas nos vêm por lembranças próprias, outras “pela mão de Deus/ Outras pelas mãos das fadas/Outras por acasos meus/Outras por lembranças dadas”.1 Penetrar nesta cidade do passado é lidar com palimpsestos, camadas de sentido acumuladas e sobrepostas onde se confundem presente e passado, imaginação e realidade, memórias próprias e memórias dos ouvintes, olhar de pertencimento e olhar de viajante. Um Rio visto por quem o conhece, mas não lhe pertence; compreendido por “quem vem de outro sonho feliz de cidade”, mas que reconhece ali configurações, questões, movimentos, ritmos, sociabilidades próprias, jeitos de ser, de viver e ler a cidade. Minhas imagens da cidade vão se misturando às imagens projetadas pelas memórias narradas, compondo um quadro muito bem descrito pelo poeta: “Paisagens.... Recordações/ Porque até o que se vê/ Com primeiras impressões/ Algures foi o que é,/No ciclo das sensações.” 2 Cidade vista como local de boêmia e malandragem; onde se vive com prazer, alegria, preguiça e informalidade. Uma representação, segundo Maria Alice R. Carvalho, pautada num discurso que a encara como fragmentada em sua vida social, inventando-lhe sempre personagens

1 2

Fernando PESSOA, O eu profundo e os outros Eus. Idem. 208

que seriam “símbolos” territorializados, fechados em áreas, bairros, ruas, bares, botequins, esquinas e trechos de praia como “pequenas repúblicas” contrárias ao mercado e à modernização capitalista, dando corpo a idéia de uma certa “essência” carioca ligada a um inconformismo espontâneo. A produção discursiva sobre o Rio reproduz até hoje esta imagem fragmentada da ambiência urbana, conferindo perenidade e força normativa às imagens de cisão e polarização entre zona sul, zona norte e subúrbio, numa idéia que acaba também compondo um “mundo do asfalto”, moderno e capitalista se contrapondo aos bolsões de miséria das favelas. A distância entre essas áreas não é geográfica, mas cultural, onde as regiões pobres dessa “outra” cidade estão situadas aquém de uma cultura de massas, assumindo uma postura de resistência, num ideário de separação entre “sociedade” e “comunidade”3. Dentro desse quadro, as favelas e seus habitantes são colocado sob suspeita, considerados como ameaçadores à ordem urbana, uma massa incontrolável disposta a descer dos morros e invadir a cidade. Essa construção está cotidianamente presente na imprensa, no cinema, na TV e na publicidade, reiterando a idéia do medo e da periculosidade como características próprias ao Rio. Esta imagem urbana carioca tem uma história da qual trataremos mais adiante. Entretanto, a partir de um olhar e de uma escuta atenta, o que se pode perceber na cidade é um Rio também polifônico – usando a expressão cunhada por Canevacci para designar São Paulo – onde vozes, sotaques e sonoridades também se cruzam, justapondo-se numa multiplicidade de vozes que se encontram, contrastam e diferem, conformando uma prosódia peculiar. Uma polifonia musical dada pela Bossa Nova, pelo funk, pelo charm, pelo samba, pelo choro, pelo pagode, cada qual fruto de locais específicos do meio urbano, mas que já nascem híbridos, vindo a misturar-se anda mais ao se encontrarem. Uma cidade para ser vista e ouvida, dona de nuanças e timbres próprios que se deslocam num tráfego incessante de significados, experiências e leituras, conformando uma “cidade patchwork”4. É desta cidade que tratará este subcapítulo. Uma cidade que suscita a idéia de encontro, com as misturas próprias ao meio urbano e aos rearranjos culturais que isto impõe. Ao se buscar a cidade do passado, procura-se compreender traços da origem deste local constituído de modo híbrido, mas que no imaginário dos seus habitantes e dos que o vêem de fora se apresenta como fragmentado em territórios isolados.

3 4

Maria Alice Rezende de CARVALHO, Quatro vezes cidade, passim. Massimo CANEVACCI, A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana, passim. 209

As experiências dos ouvintes da Bossa Nova nos anos 50 e 60, feitas da montagem caleidoscópica que é própria do viver urbano, compõem itinerários e sociabilidades que recusam uma linearidade e se mostram como uma edição de imagens, sonoridades, influências, tradições e choques que estruturam suas vidas. Da mesma forma, estas experiências podem ser captadas hoje com uma forma de fazer “historiografia como montagem”5, num procedimento de colagem de cacos dispersos em que jamais se alcançará a totalidade dos fatos vividos, configurando-se, este trabalho, muito mais como uma tentativa de reunir e elaborar constelações de trechos, imagens, sons e memórias para assim contar a história da cidade.

Aspectos da história da cidade No primeiro capítulo já tratamos de alguns aspectos da história do Rio de Janeiro em suas transformações urbanas, a famosa “era dos melhoramentos” proposta e executada pelo prefeito Pereira Passos nos primeiros anos do século XX. Uma reformulação urbana pautada pela racionalidade do uso do espaço, bem como pela idéia de “embelezamento estratégico” que enobrecia as necessidades técnicas e sociais com fins estéticos traduzidos pela busca de uma planificação com abertura de largas avenidas, canalização de rios, desmonte de morros, destruição de cortiços e ruas estreitas numa proposta de remodelação urbana nos moldes europeus6. Ao mesmo tempo, buscava também a normatização do espaço público, sua higienização de cunho não apenas médico-sanitarista, mas também social e racial, com a retirada de pobres e negros que por ele vagavam7, prática que se ajustava aos anseios das elites no avanço do capitalismo nascente. Surgia uma outra cidade, onde novas intervenções como a Avenida Central e o Canal do Mangue conviviam com velhas e estreitas ruas como a do Ouvidor e do Rosário. Com esta reformulação urbana, aproximadamente 15 mil pessoas foram expulsas de suas casas localizadas no centro da cidade, outras tantas continuariam ali por perto, subindo os morros e compondo as favelas, mantendo-se presentes no novo cenário urbano. Começava a se desenhar a fisionomia da metrópole moderna cujo desenvolvimento se daria ao longo de todo o século.

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Wili BOLLE, Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. Cf. Carl SCHORSKE, Viena fin-de-siecle: política e cultura. 7 Cf. Lilia M. SCHWARCZ, Retrato em branco e negro. 6

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Esta “modernidade”, na passagem do século XIX para o XX, possuía um certo caráter artificial, o que deixa claro a contradição entre processos modernizadores, com uso da técnica e de discursos que procuravam inserir o Brasil numa “belle époque”, e as reais condições econômicas e sociais limitadas dos países periféricos8. Aliado a isso, havia uma fragilidade das relações e nexos entre o mundo das camadas populares e a ordem institucional política na então capital da República9. Durante as primeiras décadas do século XX, a modernidade carioca qualifica-se muito mais por uma aspiração, como um projeto ainda incipiente do que por sua efetivação, dado que numerosas parcelas da população ficavam à margem de todo este processo. Maria Alice Carvalho argumenta que na Europa do século XIX predominaram dois principais modelos de evolução modernizadora e política – o inglês e o francês – que tiveram ressonância nas configurações das cidades modernas. O primeiro se caracterizou pela passagem da ordem feudal para um regime de competição entre barões e burgueses, seguido da instauração de um conjunto de reformas que propiciaram a incorporação das massas ao mundo de liberdade e direitos. A cidade passou a ser um espaço de competição, onde direitos e valores eram previamente instituídos. No modelo francês, a participação das massas no cenário urbano teve lugar sem que estas regras tivessem sido institucionalizadas previamente, numa situação em que a transição para a modernidade, sob o signo da revolução, opôs a cidade à aristocracia, cindindo-a em duas partes regidas por normas e valores concorrentes. Ainda segundo Carvalho, a caracterização da modernização do Rio de Janeiro nos primeiros tempos republicanos aproxima-se mais do modelo francês, embora a incorporação das massas não tenha se dado pela via revolucionária mas sim por arranjos políticos que só se efetivariam completamente no Estado Novo. A cidade moderna carioca caracterizou-se neste início do século XX como uma “cidade-Estado” e não como uma “cidade-mercado”. Era do Estado a tarefa de organizar e contornar as contradições entre os mundos alternativos que a compunham, tendo o Estado Novo à frente deste processo de incorporação das massas ao mundo do consumo e modernização10. Antes desse período não existia ainda uma “política urbana”, uma vez que os “problemas urbanos ainda não haviam sido inventados” e “a cidade ainda não era tematizada como uma

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Cf. Jeffrey NEEDELL, Belle époque tropical. Cf. José Murilo de CARVALHO, Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. 10 Cf. Maria Alice Rezende de CARVALHO, Quatro vezes cidade. 9

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questão”11. Esta falta se deve à idéia que norteou os debates das primeiras décadas do século, que foi a discussão sobre o caráter e a identidade da nação – rural ou urbana? – passando ao largo das questões sobre a cidade, do direito à cidadania e das questões sociais no meio urbano. Somente a partir do final da década de 10 e na década de 20 é que se pode falar numa “política urbana” mais claramente definida com uma visão mais sistêmica da cidade. Com isso, surge um novo campo, uma nova disciplina – o urbanismo – que tinha em seu meio tendências diferentes, lutando por hegemonia nas discussões sobre as intervenções na cidade, tendo o Clube de Engenharia como principal locus de debates. A própria construção do Caminho Aéreo do Pão de Açúcar, finalizado em 1918, vem atestar esta noção da engenharia como ciência a serviço da modernização da república e sua capital. 12 Entre o final da década de 20 e 30, variados planos foram intensamente debatidos e elaborados, culminando na contratação do urbanista francês Alfred Agache, cujo projeto acabou não sendo efetivado. A disputa por hegemonia dentro desse campo e no campo da política acabou sendo “vencida” por aqueles que conseguiram demonstrar o “urbanismo como necessidade não só de reordenação da cidade, mas de enquadramento da própria sociedade”.13 Nesse processo, foi redefinida a ordem urbana, legitimando-se um saber técnico e científico sobre a cidade, sem, no entanto, ser discutida a questão da cidadania e do direito à cidade. A questão social, traduzida como uma questão nacional, ficou a cargo do governo populista que se implantaria tendo como tarefa conduzir uma ideologia da construção da nacionalidade e da incorporação das massas à modernização. Até o final do século XIX, o espaço urbano residencial do Rio estava localizado entre alguns morros da zona central onde as camadas sociais conviviam – claro que não sem conflitos – , diferenciando-se apenas no tipo de moradia. No entanto, após o início do século XX, a separação começa a se configurar, levando a formulação de mapas sociais demarcados a partir de áreas delimitadas.14 Em 1937, por exemplo, uma lei de zoneamento definiu áreas residenciais, industriais e comerciais, o que fez com que a zona sul se desenvolvesse mas também sofresse os efeitos da especulação imobiliária crescente por conta da falta de uma política governamental 11

Robert Moses PECHMAN, C idades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista, p.393. Cf. Renata Santos Silva, O gigante e a máquina: Pão de Açúcar. In: Paulo KNAUSS (Org.), Cidade vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro. 13 Robert Moses PECHMAN, Op. cit. 14 Patrícia FARIAS, Pegando uma cor na praia: brancos, morenos e negros no espaço público carioca. Rio de Janeiro, 2000. Tese (Doutorado em Antropologia). Museu Nacional – UFRJ.

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mais séria que organizasse a ocupação da cidade. Esse problema era agravado pelo fato de ser o Rio de Janeiro Distrito Federal, o que dificultava as relações entre o poder municipal, estadual e federal. A distância da zona norte e dos subúrbios, estabelecidos ao longo das linhas ferroviárias da Central do Brasil e Leopoldina, em relação ao centro15, constituiu a idéia de segregação que passou a povoar o imaginário carioca de que a cidade se organizava em territórios delimitados e com identidade própria. Esta distância, provocada também pela própria geografia com sua cadeia de montanhas, fez com que surgissem, a partir da década de 40, subcentros urbanos especializados em funções comerciais e de serviço. O bairro de Copacabana tornou-se um destes subcentros, atraindo tanto habitantes de regiões próximas ainda em processo de desenvolvimento, como Ipanema e Leblon, como também pessoas de outras áreas da cidade que ali foram trabalhar e morar. A expansão do bairro resultou num inchaço populacional que levou à substituição de pequenos prédios, construídos no final da década de 20 e início de 30, por edifícios de dez, doze pavimentos divididos em apartamentos pequenos, os conjugados. Esta aglomeração deu origem à formação das primeiras ocupações dos morros da zona sul, saída encontrada por trabalhadores que precisavam ficar próximo de seu lugar de trabalho.16

Imagens da cidade Esta conformação de metrópole vivida pelo Rio de Janeiro na década de 50 é o texto a ser analisado neste momento. Um texto com formas empíricas que se articulam e interagem na percepção da cidade como linguagem e comunicação, algo a ser lido tanto em si mesmo quanto a partir das leituras de seus habitantes, neste caso, os ouvintes das canções da Bossa Nova, estruturando uma representação deste meio urbano, atualizando-o como enunciados e traçados que caracterizam os usos da cidade.17 Viver e habitar os ambientes, tecer a vida em meio ou em torno deles, tendo-os como pano de fundo ou como proximidade essencial. A paisagem, este espaço topográfico que se deixa envolver num lance de vista, sugere a configuração daquilo que está no entorno, rodeando, aquilo que é visto e escolhido como referência. Diversos autores, poetas e filósofos, ao tratarem do locus 15

Cf. Ciro Flamarion CARDOSO y Paulo Henrique ARAÚJO, Río de Janeiro. Cf. Ciro Flamarion CARDOSO y Paulo Henrique ARAÚJO, Op. cit. 17 Cf. Lucrécia D’Aléssio FERRARA, Olhar periférico. 16

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em que se vive e habita, começam pelas paisagens e pelo modo como ela os afeta. Como sugere Simon Schama, paisagens naturais que aparentemente não têm qualquer relação com a cultura ou com a sociedade que as modificou travam com essa sociedade relações profundas, mostrando-se como produto também da cultura, diferentemente do que uma tradição hegemônica racionalista ocidental poderia supor. Segundo ele, existem na nossa apreciação ou relação com a paisagem natural “veios do mito e da memória”18 . Os lugares são elementos que atuam – direta e indiretamente – na subjetividade dos indivíduos. A ligação do sujeito ao seu meio – que por sua vez é uma inscrição marcante nos imaginários sociais –, coloca o espaço também como peça importante na gama variada de agentes que postulam as experiências cotidianas, deixando de ser apenas mero pano de fundo ou uma coincidência. Mais do que falar em espaços ou em lugares, fala-se sobre o urbano. Pode-se perceber na cidade, elementos físicos ou pontos marcantes que se tornaram referenciais comuns aos seus habitantes, os “espaços-sínteses”19 de memória coletiva, elementos físicos de significações compartilhadas, topografias intimamente ligadas à vida das pessoas, algo que une vários indivíduos com experiências e memórias comuns. Constrói-se, assim, a idéia de legibilidade das cidades, como algo possível de ser decodificado por seus habitantes ou por seus visitantes, um espaço que existe como objeto da percepção dos sujeitos, impregnado de memórias e significações.20 A cidade, para além de sua existência material, é também produto das “imagens mentais”, como destaca Giulio C. Argan21. Essas imagens se constituem pela memória, pela tradição, pela história oficial, pela mídia, pelas artes, enfim, por meio das variadas formas pelas quais a imaginação social se alimenta, se sustenta e se transforma. Tecidas a partir da complexa relação entre natureza e história, as cidades, por vezes, possuem tamanha intervenção humana, que a natureza é vislumbrada de maneira distante, em rios ou montanhas ao longe. No Rio de Janeiro, acontece de forma diferente: a paisagem natural da cidade está em íntima relação com seus habitantes e com seus visitantes. Segundo Margarida Neves, desde a época colonial, passando

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Simon SCHAMA, Paisagem e memória. passim. Maria Alice Rezende de CARVALHO, Quatro vezes cidade, p.96. 20 Cf. Kevin LYNCH, A imagem da cidade. 21 Giulio Carlo ARGAN, História da arte como história da cidade, passim. 19

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pelo Império e até o século XX, pode-se perceber a estreita relação entre a constituição histórica do Rio de Janeiro e sua paisagem natural. Nele, “a cidade é a paisagem.”22 A percepção desta tese Escutas da Memória é fruto da interpretação de uma pesquisadora que não é natural e nem mesmo moradora do Rio de Janeiro. Embora tenha feito muitas incursões pelo meio urbano, entrando em contato com suas paisagens, experiências, costumes, sabores, odores e sonoridades, mesmo tendo vivido a cidade e na cidade, o olhar do viajante é sempre interposto à interpretação de alguém que não pertence ao lugar. Como lembrava Proust23, o caminho de travessia das distâncias entre o eu atual e o eu buscado nas memórias – uma distância que se torna viva pela rememoração – compara-se a uma viagem em que recordação, a própria viagem e o viajante, encontram-se em relação. Ler a cidade assim, é como estar na pele de um viajante que vai ao longe, olha, sente, percebe e deixa-se afetar, misturando suas sensações com as memórias de seus sujeitos analisados. Um longe que é também muito perto, onde distanciamento e proximidade se confundem e se separam, voltando a se encontrar na experiência do estranhamento. Para além da importância do espaço físico na construção da experiência urbana – algo de fundamental importância para a interpretação do cotidiano daqueles que escutavam a Bossa Nova –, este estilo musical apresenta uma forte tendência em ressaltar a paisagem da cidade com seus elementos naturais ou pontos de referência. Como já foi posto anteriormente, são canções de apelo fortemente imagético, com letras que evocam paisagens da cidade ou da natureza: as imagens urbanas cariocas. Há também, nestas músicas, a construção de experiências urbanas específicas nos locais da cidade, como a zona sul, o Corcovado e as praias, o que colabora para a recolocação no meio social destes espaços construídos pelas canções. Dessa forma, vai-se elaborando a idéia de território24 como um local vivenciado, um espaço construído contrapondo-se à noção de espaço dado, supondo um processo de constituição que inclui subjetividades e experiências no qual estão presentes significações, percepções e experiências, em que, por exemplo, uma rua, uma praia, um bar ou uma montanha tornam-se marcos e estão carregados de experiências, sentidos e memórias. O espaço urbano, além de sua existência material, é também um código, um sistema de representações a ser lido, o que aponta 22

Margarida de Souza NEVES, A cidade e a paisagem. In: Catálogo da Exposição A paisagem carioca. Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, 2000. 23 Marcel PROUST, O tempo redescoberto. 24 Cf. Raquel ROLNIK, História urbana: história na cidade? In: Ana FERNANDES e Marco Aurélio GOMES (Orgs.). Cidade e História: modernização das cidades brasileiras nos séculos XIX e XX . 215

para a necessidade de entender a percepção dos processos de territorialização e reterritorialização do meio urbano e suas relações com a vida cotidiana dos sujeitos históricos. A configuração da cidade destina ao espaço um papel específico e catalisador, transformando-o em fonte, da mesma maneira que um arquivo ou registro. No espaço, pode-se ler um processo histórico das formas de organização social.25 As territorialidades do espaço urbano originam lugares sociais híbridos e, por vezes, efêmeros, uma vez que estas mesmas fronteiras simbólicas que separam a cidade – destacando lugares com diferentes práticas sociais e visões de mundo – colocam também estes territórios em contato, propiciando a formação de uma arquitetura de territórios como um grande mosaico de superposições e entrecruzamentos que, ao contrário de possuírem identidade única, assumem um caráter fluído, sem limites fixos e constantes, em que fronteiras movediças se interpenetram e se misturam, levando a uma flexibilização das categorias antropológicas como identidade, território, fronteira, etc.26 Neste sub-capítulo, serão analisados os espaços urbanos e a experiência dos ouvintes da Bossa Nova na cidade, experiências que se acham, às vezes muito próximas, às vezes muito distantes dos espaços representados e construídos pelos agentes/autores da Bossa Nova em suas canções e memórias, e com a imprensa da época. Aqui, procura-se identificar os espaços cariocas como locais de convivência, referência e prática social, rastreando a pluralidade de maneiras nas quais estas pessoas edificam suas experiências urbanas em permanente elaboração e reelaboração. Tendo como pressuposto a noção de experiência27, em que os valores dos sujeitos são, não apenas pensados, mas vividos dentro de um mesmo vínculo com a vida cotidiana, procura-se encarar a relação dos indivíduos com seu meio espacial de forma não apenas funcional, mas sugerindo que a relação do sujeito com seu espaço/tempo é permanente e mútua, no qual a constituição do território só é possível enquanto marca, expressão dos sujeitos sociais.28 Vai-se elaborando, assim, um mapa da cidade como uma cartografia que é afetiva, levando em conta memórias, significações, identificações e sentidos atribuídos ao espaço urbano, presentes em suas paisagens naturais, nos prédios, ruas e monumentos, no sentido amplo 25

Raquel ROLNIK, Op. cit. E também: Cf. ___________ O que é cidade? Antônio ARANTES, A guerra dos lugares: sobre fronteiras simbólicas e liminaridades no espaço urbano. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: s.n., p.191-203, 1994. 27 E. P. THOMPSON, O termo ausente : experiência. In : ___ A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. 28 Raquel ROLNIK, Op.cit, p.29. 26

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conceituado por Le Goff29. Uma interpretação que é fruto da cidade atual e das percepções construídas sobre ela, com suas complexidades e idiossincrasias, mas também com lembranças que recuperam, imaginam e constróem a cidade que se quer viver, conformada a partir da memória, seja a memória voluntária ou a involuntária. Cidades reais e ideais que vão se misturando no presente, trazendo à tona construções da memória histórica e até da história oficial mas que, no entanto, vão permitindo interpretar fios do cotidiano destes ouvintes. “nasci no Rio, na zona Sul; a partir dos 4 anos eu fui morar em Ipanema, morei dos 4 aos 24 (...) Quando eu nasci, meus pais moravam com a minha avó e irmã em Copacabana. Daí eu fui me aproximando de Ipanema, com 4 anos fui pra Ipanema e fiquei até os 24, então eu vivi muito Ipanema naquela época, glamourosa ‘República de Ipanema’, quem freqüentava a praia de Ipanema eram os moradores, os turistas iam a Copacabana, Ipanema era uma praia que você falava com todas as pessoas, era difícil andar em Ipanema, você parava tanto pra conversar, você na conseguia andar na praia, todo mundo conhecia todo mundo, eram um lugar muito amistoso, o Rio de Janeiro era um lugar muito amistoso, você andava a qualquer hora da madrugada por todas as ruas e, com um ventinho (...), comparado com o que é hoje; já tinha morro, é claro, já tinha favelado, mas não se compara com esse sobressalto de hoje do Rio de Janeiro...Ipanema explodiu, a construção e a verticalização foram nos anos 70 mesmo. Então, quando eu fui morar em Ipanema com 4 anos, alugava-se cavalo aos domingos, na praça General Osório, que é onde eu morava, a minha mãe mora até hoje, eu morava na época; alugava-se cavalo nos fins de semana, então você tem idéia de que era outra coisa, né? Eu pescava, atrás da minha casa... eu pescava, até hoje tem pescador lá, mas eu pescava. A gente pescava no Jardim de Alá quando eu era criança, eu ia pra lá pescar lambarizinho, pegava muito, não era pouco não, pegava muito, não precisava nem de anzol, tinha tanto lambari que se colocasse a mão levava, então era muito diferente de Ipanema.... Ipanema não tinha comércio, a gente pra fazer compra, a gente tinha que fazer compra em Copacabana, pra comprar roupa, né ? então não tinha comércio, era residencial mesmo. Aí depois, nos anos 70, depois dessa explosão... e é isso, esse processo do Rio de Janeiro tá na Barra, indo pra Barra.” (Roberto)

Roberto vai rememorando o espaço urbano onde viveu a infância, adolescência e juventude. Um pedaço da cidade peculiar, calmo, com casas e conhecidos nas ruas, onde era possível até mesmo pescar atrás de casa, no Jardim de Alá. Um bairro que nem sequer possuía a vida agitada das lojas e do comércio, sem os problemas comuns às metrópoles, como violência, poluição e anonimato. Lembranças que contemplam muito mais o período de sua infância, conformando uma cidade que não segue necessariamente a linearidade e a racionalidade do espaço urbano construído, mas que se utiliza de montagens aleatórias, captando sensações e sentidos, reunindo locais distantes na construção da memória como a Praça General Osório e o próprio Jardim de Alá. A cidade da infância rememorada é a que segue as incoerências próprias da vida e não a linha reta das planificações urbanas que buscam abolir o acaso e as incertezas.30

29 30

Jacques LE GOFF, Documento/Monumento. In: Enciclopédia Einaudi Vol 1. Memória-História. Cf. Walter BENJAMIN, Obras escolhidas. Vol.2 -Rua de mão única. 217

Faz-se presente um sentimento de melancolia por tempos perdidos e pela cidade perdida, representado pela água do canal que, de tão poluída, não possui mais peixes, e pelos prédios da orla litorânea que podem encobrir a visão do mar, retirando dos indivíduos mais do que simples materialidades. Partes de si e de suas experiências também se vão nestas modificações urbanas. As lembranças que têm assento nas “pedras da cidade”, como coloca Ecléa Bosi31, possuem relações com os afetos de maneira mais profunda do que se pode supor. Na relação com o espaço à volta, pode-se interpretar os posicionamentos no mundo, as relações estabelecidas com os outros e a ligação com a natureza, cujos vínculos são abalados pelas mudanças urbanas, apesar da memória sempre presente insistir em restituir. “O Rio de Janeiro naquele momento... a primeira coisa que me vem é muita praia, muito verão, muita maconha, né ? Eu me esbaldei nos verões da minha geração. Eu era garota, ia à praia e tinha um corpo bonito, cabelão e me esbaldava. Me lembro muito dos verões e de ir às festas e de dançar, e de ir pras festas do Cinema Novo e de estar morena e de estar fazendo sucesso (...) Ah, ia a Ipanema, Posto 9, tinha o pessoal do Cinema Novo que ia ali também. É que Cinema Novo andava muito nessa rua da Matriz também .... e eu morava nas Palmeiras que era do lado. Então, a gente tinha muita .... e, enfim, o verão era esse.”

(Rita) (grifo meu) Para Rita, a cidade lembrada é aquela da juventude, com as experiências vividas nesta fase da vida. A “maconha”, os namoros, as festas, a sensualidade do corpo bronzeado na praia de Ipanema, que neste momento, década de 60, assume papel de destaque no imaginário carioca como local de modernidade, liberdade e resistência política. Uma memória que, ao ser voluntariamente procurada, é associada às experiências juvenis no verão, mas que surpreende por meio do ato involuntário de Rita ao sobrepor e confundir verão e cidade, ao final de sua narrativa. Para ela, a cidade, o verão e as experiências juvenis estão emaranhados à sua vida pessoal. Ato voluntário de busca pelo meio urbano que se quer lembrar, aliado ao que atravessa involuntariamente suas memórias. As memórias de Rita e Roberto, que hoje são casados, parecem se apoiar mutuamente, mostrando-se comuns ou em consonância. Não surge como despropositado salientar o fato que hoje eles vivem num bairro bucólico, inclusive no nome – Fonte da Saudade –, num apartamento cuja varanda se debruça sobre a paisagem da Lagoa. A memória pessoal aqui mostra-se vinculada à memória do grupo, numa relação que dificulta a tarefa de definir os limites do lugar onde acaba uma e começa a outra. “O recurso a contribuições exteriores ou à memória coletiva é essencial 31

Cf. Ecléa BOSI, Memória e sociedade. 218

para a reconstrução pessoal de imagens de outros tempos. Para que a memória pessoal se realize ela sempre se socorre da memória alheia, que funciona como um repositório de pontos de contato”32. Embora Rita e Roberto tenham idades equivalentes, estejam casados há muitos anos, pertençam a um mesmo grupo e tenham vivenciado os mesmos locais da cidade, suas memórias caminham por trilhas diferentes: para ele, Ipanema é o bairro bucólico da infância, uma espécie de paraíso perdido; e para ela, o mesmo bairro é a topografia da juventude e de suas liberalidades nos anos 60, tempo muitas vezes evocado como sinônimo de liberdade e rebeldia. Essa cidade do passado, quando voluntariamente buscada, suscita memórias diferenciadas que guardam relações com o presente de cada um. Vai-se adentrando numa memória dos locais vividos e repletos de experiências que, no movimento dessa memória, edifica paisagens urbanas ideais, onde os limites entre real e o que é imaginado são frágeis e tênues. Essas são cidades da memória. Isto se coloca não apenas entre os ouvintes analisados, mas também entre outros jovens cariocas dos anos 50 e 60 que, rememorando sobre sua cidade nos dias atuais, dão pistas sobre um ideário carioca que parecia existir à época e que se perpetua na atualidade como uma espécie de sentimento nostálgico. Para Ronaldo Bôscoli, letrista da Bossa Nova e um de seus grandes divulgadores, a cidade ideal é bela e tranquila, uma “Cidade Maravilhosa”. “É tolice pensar que somente mulheres possam ser musas. Eu fiz umas dez músicas para a minha cidade. Inspirado pela beleza e energia do Rio de Janeiro, pelo qual sou profundamente apaixonado. A [música] mais importante é Rio. Não me canso de admirar a grandeza e grandiosidade dessa minha cidade tão 33 linda.”

Bôscoli buscava afirmar que essas canções foram compostas querendo sublinhar um meio urbano belo e cheio de “energia”, revelando uma certa construção imaginária da cidade onde a memória constrói sentidos e organiza os tempos passados. Ele procurava explicar suas motivações e inspirações. É possível indagar, no entanto, se Bôscoli ressaltava apenas este sentido unívoco do Rio, como uma cidade bonita, tranqüila e ingênua, evitando os aspectos dissonantes. É possível indagar também se a música se deixa explicar apenas pelas motivações

32

Marina MALUF, Ruídos da memória: a presença da mulher fazendeira na expansão da cafeicultura paulista. São Paulo, 1994. Tese (Doutorado em História Social). FFLCH - USP. p. 33. 33 Ronaldo BÔSCOLI, Eles e eu: memórias de Ronaldo Bôscoli (depoimento a Luiz Carlos Maciel e Angela Chaves). p.158. 219

declaradas pela autoria ou se é possível identificar em suas construções poéticas, melódicas e rítmicas outras leituras ou escutas divergentes. A própria canção citada por Bôscoli, Rio, embora evocada e guardada na memória como algo otimista e alegre, deixa entrever também traços de melancolia. Sua melodia, com notas próximas e ritmo sincopado na primeira parte, dá lugar à uma segunda parte mais lírica, com notas distantes e com maior duração, momento em que fala dos sentimentos e da cidade como local do amor, associando a lua e a noite. Em seguida, a melodia volta a ter ritmo bastante sincopado, mas com notas ainda de longa tessitura, indicando uma cidade que acaba com qualquer tristeza, uma cidade que não dorme e não se cansa, aludindo a uma metrópole já não tão calma assim. Esta cidade do Rio de Janeiro, nos anos 50, já não era tão harmoniosa e unívoca como mostram as reminiscências de Bôscoli. Na imprensa da época, uma matéria intitulada “As 7 maravilhas do Rio”34 apresentava suas mazelas num texto irônico e sarcástico, beirando o deboche.

“FAVELA – Não é problema, como dizem; do contrário já o teriam resolvido. A verdade é que elas dão um toque de poesia na paisagem (...)Do lado de dentro, seus habitantes vivem felizes porque quando chegam à janela vêem a paisagem da civilização, com seus arranha-céus, suas praias e seus automóveis – ao passo que nós só vemos favela. TRÂNSITO – Dizem que no Rio é onde morre mais gente vitimada pelo trânsito, mas não se tem certeza, porque quando alguém sai para fazer a estatística, morre atropelado. TELEFONE – Milhares e milhares de pessoas aguardam, pacientemente, há vários anos, o recebimento deste milagre da ciência. (...) Um dia a Cia. Telefônica lhe comunica que chegou a sua vez e a distração acaba : então começa o drama.(...) BURACOS – Segundo os técnicos é sinal de progresso; segundo os poderes públicos, é falta de verba e, segundo os humoristas, é a construção do Metrô.”

Aqui está uma crítica aos problemas da cidade, considerações acerca de seu desenvolvimento urbano desordenado, com reformas inacabadas, habitações precárias e serviços públicos mal realizados. São apresentados elementos que dão conta de uma cidade que já começava a viver as conseqüências de um desenvolvimento acelerado e desordenado, onde aspectos negativos característicos da vida nas metrópoles já podem ser pressentidos. O excesso de veículos é outro ponto bastante acentuado pela imprensa da época.

34

Revista Manchete, 19/09/59. 220

“Diante da escassez de locais de estacionamento no centro da cidade, a solução é deixar os carros nas calçadas. (...) Justamente para corrigir tal anomalia, as autoridades do trânsito das maiores cidades brasileiras estudam, atualmente, a adoção do “parquímetro”, aparelho que se encarregará de medir o tempo e cobrar o estacionamento nas zonas de maior acorrência. (...) eis o aparelho mágico, capaz de 35 multiplicar os locais de estacionamento na cidade.”

O trânsito se apresenta como um grande problema, necessitando de soluções “mágicas” para corrigir tamanha “anomalia”. Esse quadro preocupante é destacado por fotografias de carros enfileirados ou estacionados desordenadamente nas calçadas, reforçando a idéia de caos de uma cidade superpovoada. “Bom, dando uma de saudosista, naquela época era um momento bem diferente .... Muito, mas muito menos carros, raras pessoas tinham carros naquela época, e a vida não era tão problemática como é hoje. Então, é até difícil a gente fazer uma comparação, porque hoje em dia os problemas são muito maiores (...)Puxa, toda noite eu saía ... toda noite saía, e muitas vezes a pé, e hoje em dia você não faz isso. E tem outra coisa, a televisão praticamente não existia, então você não se prendia a isso, hoje em dia você se prende pela televisão ... você deixa de ir a um cinema, que era um programa prá namorar, ou até mesmo prá fazer um programa com um amigo ou com uma namoradinha, sair do cinema e ir comer uma pizza, que era o programa da época. (...)Então você saía, como um programa de prazer, e hoje em dia você só sai por um programa obrigatório ... você não sai a pé da tua casa prá ir num cinema na Avenida Atlântica , não vai fazer isso, depois sair de lá e ir comer uma pizza ou jogar conversa fora com um amigo e tal. Você só vai se tiver a obrigação de ir a uma festa, a um jantar, uma inauguração, uma estréia, um show, um negócio 36 assim ...” (Chico Feitosa )

Feitosa é músico e produtor musical, tendo convivido neste meio como autor de algumas letras das canções da Bossa Nova. Na sua fala, é possível perceber uma desvalorização dos tempos atuais, em que o Rio de Janeiro é considerado uma cidade violenta e perigosa, onde seus moradores se sentem amedrontados, presos a suas casas e às dificuldades da metrópole. A cidade do passado, ao contrário, é valorizada é exaltada como um lugar seguro, distante do que viria a se transformar. Nessa construção presente, o passado é idealizado e visto com um distanciamento temporal que filtra do passado o que há de melhor e do presente apenas o que existe de ruim. Entretanto, a cidade – como transparece em outros momentos do depoimento de Feitosa e também em muitas das letras das canções – já era percebida nos anos 50 como muito povoada e aglomerada. A saída ou alternativa estava na natureza, ainda que no filtro do memória, o retido tenha sido a cidade idílica imaginária. Baseados no depoimento de Feitosa, pode-se argumentar que os aspectos negativos do desenvolvimento acelerado por que passava a cidade naquele momento eram restritos à região central ou aos subúrbios, estando a zona sul excluída deste 35 36

“Fómula ‘P-P’ [parou, pagou] no trânsito”. Revista Manchete, 24/10/59. Depoimento concedido em 22/04/96, no Rio de Janeiro. 221

processo. No entanto, em contraposição a essa imagem, um artigo da imprensa afirmava que “ao longo da mais famosa avenida da América do Sul, apenas 30 casas ainda resistem aos arranhacéus ...” “São na verdade cada vez mais numerosos os arranha-céus e cada vez mais escassas as casas (...) [Há] o constante assédio dos incorporadores e corretores, que se empenham em pôr a casa a baixo, oferecendo milhões e mais milhões (...) Até quando elas escaparão das picaretas? (...) Apenas cerca de trinta pessoas 37 completam a lista de proprietários que ainda fazem fincapé.”

Surge assim uma idéia de cidade em franco desenvolvimento, metrópole moderna e verticalizada. em que mesmo o bairro de Copacabana, tão cristalizado nas memórias, também não escapa a este processo. A metrópole crescendo nesse ritmo passa a viver com novos problemas, entre eles, como mostra a reportagem, a “socialização da praia” e o desejo de preservação dos “caixas altas” no bairro, moradores das últimas mansões da Av. Atlântica , evitando sua invasão pelas camadas mais baixas da sociedade que começavam a ocupar seus inúmeros conjugados. Gilberto Velho conta que “a partir dos anos 40 e 50, a intensa propaganda em torno do bairro [de Copacabana] – onde ressaltava-se a praia, o lazer, os serviços, as facilidades, o status – levam a um crescimento desordenado, com problemas de circulação, super-povoamento, higiene.”38 Um bairro que, já naquela época, começava a entrar num processo de decadência, superpovoado e com precárias condições de habitação e serviços não condiz com o paraíso perdido das memórias. Não se trata aqui de qualquer meio urbano ou cidade grande, mas da metrópole moderna. Ao se refletir sobre os acontecimentos de ordem econômica, política, social e cultural que a originaram, algumas tendências de análise buscam interpretá-los apenas como sinônimo de “modernização”, entendida como um complexo de estruturas e processos materiais desenvolvidos por conta própria e independentes de qualquer interferência subjetiva. De um outro lado, como aponta Marshall Berman39, estão, os que consideram a vida moderna apenas como fruto do espírito humano, utilizando o termo “modernismo” para qualificar as produções artísticas e intelectuais tidas como processos autônomos. A perspectiva aqui adotada, no entanto, contrapõese a essas duas visões bifurcadas, considerando que nesse processo as forças materiais e as espirituais estão numa relação de interdependência.

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“Onde só os caixas altas moram em casas baixas”. Revista Manchete, 05/09/59. Gilberto VELHO, A utopia urbana: um estudo de Antropologia Social., p.19-20. 39 Cf. Marshall BERMAN, Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. 38

222

Segundo Walter Benjamin, a cidade moderna só pode ser encarada como fruto da industrialização e do processo de desenvolvimento das forças produtivas, aliada à idéia de um espírito, uma subjetividade também modernos. Uma cidade moderna possível apenas pelas materialidades desenvolvidas pelo capitalismo europeu do século XIX, mas que extrapola esta dimensão, incorporando também a noção de metrópole com uma atmosfera e um clima propriamente cosmopolitas. Benjamin, ao analisar a cidade de Paris no século XIX, o faz pela construção de personagens que atuavam no cenário urbano em diferentes campos como o artístico, tecnológico, político, no campo do planejamento urbano, mas também na boêmia e na marginalidade, como o trapeiro, a prostituta e o flâneur. Por meio desses personagens, as passagens/galerias, as avenidas largas, o mercado financeiro, as exposições universais, a multidão nas ruas, os panoramas, o cinema e a fotografia40, a cidade moderna vai se mostrando. Para se pensar a metrópole, é necessário levar em conta seus elementos materiais, mas também essa espécie de atmosfera que a cercava. Considera-se a existência da multidão uma turba que se adensava como hordas humanas se deslocando no espaço público, compondo um espetáculo espantoso, surpreendente e indigno por apontar para a questão social de uma população pobre e muitas vezes miserável. Essa multidão deixa ser encarada, como tantas vezes o pensamento médico, urbanista e social do início do século XX a ela se referiu, como uma totalidade ou massa amorfa sem objetivos ou projetos, ameaçadora ao controle e à ordem social41, passando a ser caracterizada como condição do moderno. Na multidão, é possível a dispersão, entendida como uma experiência vital num ambiente que promete aventura, poder, alegria, transformação pessoal e transformação das coisas em redor, mas que também ameaça destruir tudo o que se é, o que se sabe e o que se tem. Um ambiente onde a tônica é o turbilhão, o torvelinho de acontecimentos simultâneos e efêmeros sempre em permanente desintegração e mudança, onde “tudo o que é sólido desmancha no ar”.42 Não há como pensar a cidade moderna sem pensar na destruição, nas ruínas que vão se justapondo às mudanças. Antigo e novo vão seguindo conflituosos no espaço físico mas também nos costumes, hábitos e estilos de vida.

40

Walter BENJAMIN, Obras escolhidas. Vol.3.; e também Walter BENJAMIN, Paris capital do século XIX. In: Flávio KHOTE (Org.). Walter Benjamin. 41 Maria Stella BRESCIANI, Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. E também Maria Stella BRESCIANI, Metrópoles: as faces do monstro urbano. Revista Brasileira de História. n. 8/9, 1985. 42 Marshall BERMAN,Op. cit. 223

Na cidade moderna, pode-se viver também a aventura dos “choques”43 interpretada por Benjamin como “alegorias imagéticas”; fragmentos que formam uma subjetividade moderna caleidoscópica. A constante transformação exterior e interior obriga o homem urbano a um crescente processo de individuação como modo de manter um núcleo de autocompreensão. Tal procedimento, segundo Georg Simmel, traria uma subjetividade altamente pessoal que levaria à dissociação, à indiferença para com os demais, e ao sentimento de solidão. Segundo ele, o homem das metrópoles vai adquirindo um caráter psicológico e subjetivo cada vez mais sofisticado para lidar com os estímulos sensoriais e impulsos nervosos a que é submetido a todo instante no meio urbano.44 O autor, já no início do século XX, refletia sobre a vida moderna e a racionalidade que lhe é inerente, buscando identificar no tripé indivíduo/vida/cultura a base para o entendimento dessa nova subjetividade, pautando-se por questões psicológicas. Segundo Simmel, o indivíduo, para preservar sua autonomia e individualidade entre as esmagadoras forças sociais, tecnológicas, racionalidades da vida moderna, teria que desenvolver uma subjetividade altamente elaborada com um forte caráter calculista, intelectual e impessoal, traduzida por um ar “blasé”, fruto desta elaboração do intelecto, em que os indivíduos passam a filtrar imagens e sentimentos, garantindo o espaço da subjetividade e da liberdade. Ser blasé não é ser passivo ou estar anestesiado frente ao turbilhão de acontecimentos cotidianos, mas assumir uma atitude distanciada como uma espécie de defesa diante do excesso de estímulos nervosos, única possibilidade de sobrevivência e de exercício de liberdade neste meio. Compõe-se, segundo Benjamin, uma experiência da modernidade fragmentada – como a montagem expressa no cinema – na forma de caminhar pela cidade, no convívio com os outros, na predominância da imagem e do alegórico, enfim, uma nova sensibilidade moderna que o citadino acaba por desenvolver. Uma experiência sensorial elaborada para suportar as novidades e a surpresas de um mundo exterior, em que a atenção deve ser redobrada de modo a evitar o choque, o qual, no entanto, pode gerar um atravessamento, uma desestabilização por via involuntária e inconsciente, que é a própria possibilidade de sobrevivência da “experiência” na modernidade. Essas experiências superariam, desta forma, as meras “vivências” advindas da interiorização e da banalização da informação e da novidade (processo no qual a imprensa teria

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Walter BENJAMIN, Obras escolhidas. Vol.3. Georg SIMMEL, A metrópole e a vida mental. In: Otávio G. VELHO.(Org.). O Fenômeno urbano. 224

forte responsabilidade) bem como a consciência das fragmentações da vida moderna. O conceito de vivência se coloca quando fatos exteriores não têm mais a capacidade de se integrarem à vida interior, quando o choque já não interfere mais nas impressões e sensações postas pelo mundo. A “experiência” na modernidade, contudo, é sempre feita da colagem e montagem de fragmentos, numa constelação que remete à idéia de totalidade, mas que é feita de cacos esparsos e fragmentos perdidos e transitórios, os quais, em algum momento, pela memória involuntária, efetivam-se como uma experiência45 predominantemente imagética, lembrando a estética do cinema como uma edição do que foi recolhido pelas ruas da cidade. Ainda segundo Benjamin, o poeta Baudelaire conseguiu capturar estas nuances da cidade e da vida moderna, transformando-as em “imagens dialéticas”, as quais possibilitariam ao homem urbano compor uma experiência onde estas imagens contêm o que a cidade já foi ou pode vir a ser, misturando as temporalidades do passado, presente e futuro. Essa composição do ambiente urbano da Paris do século XIX se dá por meio de elementos que sugerem a proeminência do olhar. São os panoramas, as pinturas, na cidade que lembram o campo, incluindo-o em sua paisagem; as passagens ou galerias onde o transeunte vislumbrava moda e as vitrines feitas de ferro e vidro, compondo um espaço intermediário entre o privado e o público; ou ainda as fisiologias – livros de bolso que se prestavam a descrever os tipos da cidade –, precursoras das atuais revistas ilustradas e de onde viriam as bases imaginárias para o aparecimento das histórias de detetive.46 Todos estes elementos pareciam ser indícios de uma preparação do olhar deste homem urbano para um mundo moderno repleto de imagens, tornando seus equipamentos sensoriais aptos a lidar com a metrópole moderna como um espaço de choques, onde a superposição de palavras, gêneros literários e perspectivas de apresentação das imagens vão dando indícios da mentalidade burguesa que marcaria a fisionomia desse ambiente, propício a situações efêmeras, “vivências” em que a subjetividade não é mais atravessada por elementos que poderiam possibilitar as “experiências”. A idéia do moderno, no Rio de Janeiro da década de 50, sugere uma sociedade onde indústria, moda, comportamentos, arquitetura e publicidade, no período pós Segunda Guerra Mundial, passavam por um profundo processo de transformação, configurando um “mundo

45 46

Walter BENJAMIN, Sobre alguns temas em Baudelaire. In: _____ Obras escolhidas. Wili BOLLE, Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. 225

novo”, onde elementos do cotidiano eram inseridos na idéia de modernização, valorizando o que é novidade em detrimento da tradição. No campo musical, esta concepção também se fazia presente. A Bossa Nova buscava se apresentar como algo inovador que rompe com a musicalidade anterior e se coloca como vanguarda. Após o período Vargas e o fim da Segunda Guerra, com a abertura das importações e o investimento de capital estrangeiro, o país ingressa numa fase de desenvolvimento econômico mais acentuada, com processos de urbanização e de industrialização acelerados. Neste contexto, alteram-se também os padrões de consumo. A instituição do salário mínimo possibilitou aos trabalhadores acesso aos produtos industrializados, impulsionando o consumo e permitindo a abertura do leque de ocupações no mercado, o que levou à expansão e à incorporação de novos estratos sociais, com o desenvolvimento dos setores secundários e terciários da economia, que passaram a abranger também as mulheres e os jovens. Enquanto as camadas populares vão, ainda que de maneira devagar, conquistando o direito ao consumo, as camadas médias urbanas passam a ganhar, cada vez mais, força e destaque na economia, na política e na cultura, adotando os padrões de referências e os valores norte-americanos.47 Um padrão médio de vida consubstanciado nos ideais propagados pela cultura de massas, que promete felicidade, aventura, beleza e juventude, pautando uma “sociedade de aparências”48, vai-se solidificando neste momento, pondo liberdade e consumo como lados da mesma moeda. Uma idéia de modernidade aliada ao ideal de progresso nestes anos de euforia pela democratização do país e da idéia de que aquela era uma época especial tanto pela conquista do campeonato mundial quanto pelos “50 anos em 5” de JK, passando pela capital federal com ares modernos sendo projetada e construída no interior do país, por uma nova música, um novo teatro e um novo cinema. Uma sociedade “bossa nova”, expressão muito corrente à época, designando tudo o que fosse moderno, renovador, atual, fruto do progresso e sinônimo da modernidade que a década de 50 trouxe à tona. A idéia de metrópole moderna no Rio de Janeiro vai-se completando neste momento, quando as condições materiais da industrialização capitalista já se achavam colocadas, assim 47

Maria V. de Mesquita BENEVIDES, O governo Kubitschek: desenvolvimento econômico e estabilidade política. ; Anna Cristina FIGUEIREDO, Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada: publicidade, cultura de consumo e comportamento político no Brasil (1954-1964). São Paulo, 1996. Dissertação (Mestrado em História). FFLCH USP. 48 Alexandre Pianelli GODOY, Imagens veladas: a sociedade carioca entre o texto e o visor (1952-1957). São Paulo, 2000. Dissertação (Mestrado em História) - PUC/SP. 226

como a estruturação da vida nas cidades com a prática do consumo, a ascensão das camadas médias pequeno-burguesas e a consolidação de uma cultura de massas, além de uma vida cultural e uma ambiência cosmopolita cheia de contradições, em que as desigualdades sociais estavam expostas nas multidões próprias ao meio urbano. Pode-se pensar nas experiências urbanas daqueles que viviam no Rio de Janeiro, nos passeios a pé pelas ruas da cidade, nas idas à praia e aos bares, buscando, desse modo, recompor a zona sul, mais precisamente Copacabana e Ipanema, neste processo de metropolização da vida, como o já descrito. Um local e uma época que, embora sejam lembrados por sua tranqüilidade, apresentam-se com aspectos que fogem a esta caracterização unívoca. Antônio Maria, cronista dos anos 50 e início dos 60, ocupava-se em narrar o cotidiano de Copacabana e de seu submundo relatando crimes, tragédias, boêmia, prostituição, desamores. Em suas crônicas vai surgindo uma cidade e um bairro sofrendo melancolicamente por um tempo que passara e que, naquele momento, era apenas um local de solidão e angústia, com uma multidão acotovelando-se nas calçadas entre vitrines e bares. Antônio Maria narrava também os passeios das moças, belas mulheres sem nome ou identidade perdidas no turbilhão da cidade. A crônica vai permitindo que se interprete indícios do cotidiano desta cidade que se deseja alcançar. Através dos olhos dos cronistas e dos poetas, ela vai se mostrando estruturada sobre o inesperado, sobre os encontros e desencontros, um espaço de conflito carregado de erotismo, sedutor e surpreendente. O belo e conhecido poema de Charles Baudelaire, À uma passante, é a metáfora perfeita para esse momento. O poeta mostra-se surpreendido e profundamente afetado por uma mulher com quem cruza em meio ao frenético alarido das ruas de Paris do século XIX. Essa mulher o fascinava em meio à multidão, despertava seu interesse em meio à massa que a trazia, mas que também a levava para longe; um amor, assim, à primeira e à última vista. A aglomeração, a multidão provoca o espanto, o inesperado, o fortuito, despertando repentinos sentimentos, efêmeros. “Olha que coisa mais linda Mais cheia de graça E ela menina que vem e que passa Num doce balanço Caminho do mar Moça do corpo dourado Do sol de Ipanema O seu balançado é mais que um poema É a coisa mais linda que eu já vi passar Ah! Por que estou tão sozinho? Ah! Por que tudo é tão triste?

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Ah! A beleza que existe A beleza que não é só minha Que também passa sozinha Ah! Se ela soubesse que quando ela passa O mundo sorrindo se enche de graça E fica mais lindo Por causa do amor”

(Garota de Ipanema, 1962) Esta canção, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, permite vislumbrar essa situação de encontro/desencontro no espaço da cidade. Como bem observa Tatit49, a primeira parte da canção qualifica a moça, caracteriza seu modo de ser e sua maneira de agir, a descreve como bonita, bronzeada, graciosa, e dona de um balanço que se mostra enquanto caminha até o mar. Nesse trajeto, ela vem, passa e produz fascínio. Esta descrição – em frases simples e coloquiais, sem elaborações lingüísticas rebuscadas ou líricas, numa fala cotidiana como um comentário despretensioso – é embalada numa melodia de notas próximas e reiterativas que tematizam o que se quer narrar, dando destaque muito mais às matrizes rítmicas bem marcadas, aos ataques de consoantes que se quer afirmar, permitindo expressar o balanço que envolve a mulher e sua sensualidade. Na segunda parte, a descrição eufórica e, ao mesmo tempo, coloquial e amena dá lugar à expressividade lírica de sentimentos íntimos, quando o narrador se pergunta por que está só, por que tudo é tão triste e por que existe uma beleza que no entanto não lhe pertence, e “passa sozinha”. Os sentimentos de vazio e de falta descritos são acompanhados por uma mudança de tonalidade, um ritmo mais lento, uma melodia com contornos que vão ficando gradualmente mais agudos e líricos conforme a sensação de tristeza do narrador. Ao final, mesmo voltando a um esquema melódico e rítmico semelhante ao do início, há ainda notas de tessitura mais estendida, culminando na frase “por causa do amor” praticamente numa mesma nota. A Bossa Nova, tantas vezes vista como uma música alegre sem formalizações ou estruturas musicais passionais e pessimistas, parece estar aqui deixando entrever outras formas de se sentir a cidade e sua vida cotidiana. Um meio urbano propício ao inesperado como a visão de uma garota que vem, passa e fascina, possibilitando um encontro que não acontece. Ela não pertence a ninguém, está de passagem, faz parte do fluxo da vida moderna e de suas liberdades. Embora a memória oficial sobre a autoria desta canção afirme que os autores conheciam a tal 49

TATIT, Luiz. O Cancionista: composição de canções no Brasil. 228

moça e que travaram com ela contato posterior ao período da composição, a poesia e a música não se deixam prender assim tão esquematicamente pelas explicações da autoria. Esta canção aponta para o modo como as narrativas urbanas, por meio de crônicas, poesias e canções, ajudam a construir uma imagem da cidade composta através das percepções do viver urbano de uma época, sugerindo aspectos das experiências cotidianas naquele tempo/espaço. A escuta da canção não se deixa levar completamente pelo fato de Helô Pinheiro – vizinha do bar onde supostamente foi composta a música, na esquina das ruas Prudente de Moraes e Montenegro (hoje Vinícius de Moraes) – ser ou ter ficado conhecida pelos autores. As memórias dos ouvintes, hoje, revelam muito mais a forma como o amor e os encontros que são ali narrados, tanto nas letras como na estruturação musical, podem ser percebidos como reveladores de uma liberalidade que era própria da zona sul e de um tempo que se iniciava, compondo uma vida na metrópole onde o turbilhão de pessoas, acontecimentos, interesses e paixões seriam preponderantes, independente de sua continuidade ou até mesmo de sua realização concreta. A cidade da aglomeração, com seus habitantes que tomam as ruas, aponta em Garota de Ipanema para uma situação de solidão e anonimato, mas também acena com a possibilidade de encontros que mesmo sendo efêmeros, permanecem. O amor aqui é uma das portas de entrada na cidade, é ele que obriga a procura e o encontro, nutrindo-se das surpresas, do inesperado e do desconhecido oferecido pelo meio urbano cosmopolita. Ao falar de sentimentos íntimos e particulares, a música fala também da experiência que é viver nas ruas, lançando-se à mundanidade, à procura de vida. Segundo Benjamin, a cidade da multidão, a selva ou “floresta de símbolos” é também o lugar onde é possível o anonimato, o refúgio, o esconderijo. Ao analisar a obra de Baudelaire como a própria alegoria da modernidade e da figura de um artista no mundo do mercado, o filósofo alemão aponta para o fato de que o poeta tendo sido tradutor de contos policiais como os de Edgar Allan Poe, acabou por adotar também o gênero – embora nunca tenha produzido nenhum romance policial –, deixando sua obra ser perpassada por esta forma de fazer literatura. Os elementos decisivos desse gênero, segundo Benjamin, estariam também na obra do poeta: a vítima e o local do crime, o assassino e a massa, a cidade de labirintos que guardava mistérios a serem lidos por quem nela caminhasse e se perdesse, rasgada que era pela própria condição de modernidade.

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Assim, não por acaso, é com a metrópole moderna que surge o romance policial, como gênero literário, com a idéia do criminoso que se esconde na multidão, em seus meandros, submundos e também a figura do detetive buscando, por meio dos vestígios deixados nas fisionomias, nas imagens, nas pegadas e nos cacos da cidade, indícios do que se quer achar, pondo em pauta a idéia de que era preciso também saber decifrar a cidade. Neste sentido, vai surgindo uma modernidade pelo avesso, seu outro lado composto por um submundo de prostituição, vagabundagem, marginais e bas-fond.50 Na imprensa carioca, já desde o século XIX, é possível perceber a presença desta imagem da cidade como local do mistério, embora o Rio ainda não fosse uma metrópole industrializada. Discursos médicos, policias e também folhetins, além das crônicas e dos contos evidenciavam o medo.51 Durante o século XX, esse elemento vai se intensificando e modificando-se. Nos anos 50, é possível perceber mais claramente a disseminação deste sentimento por meio das crônicas de Copacabana de Antônio Maria, dos romances-folhetins de Nelson Rodrigues ou, deste mesmo autor, os textos publicados em seção fixa no Jornal Última Hora intitulada “A vida como ela é”. Por meio dessa produção literária, ia sendo resgatado aspectos da modernidade que não eram enfatizados nos discursos hegemônicos, fazendo com que surgisse uma cidade sem aura, sem sua dimensão de beleza ou cultura, a “cidade das letras”. A escrita do cronista surge, diz Benjamin, como a possibilidade de sobrevivência da narrativa na modernidade, aquela que une narrador, narrativa e receptor na mesma cadeia de experiências, onde se intercambiam passagens e imagens, em que é possível o inacabamento, os fios soltos, a abertura para que possam ser geradas outras narrativas52. O cronista moderno surge exatamente no momento da imbricação entre os diferentes tipos de literatura (o que Baudelaire personificava), em que o artista, escritor, transformando-se também em mercadoria, é obrigado a cronicar, uma vez que a dimensão aurática da literatura não lhe permite mais sobreviver no mundo capitalista do mercado. Benjamin argumentava sobre as dificuldades de sobrevivência da narrativa nas sociedades modernas, uma vez que as experiências estavam se perdendo, sendo substituídas por meras vivências.53 Isto se deve, segundo o autor, à falta de comunicabilidade entre narrador e ouvinte,

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Walter BENJAMIN, Paris capital do século XIX. In: Fávio KHOTE (Org.), Walter Benjamin. Cf. Robert Moses PECHMAN, C idades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. 52 Cf. Walter BENJAMIN, O narrador. In: Obras escolhidas. Vol. 1. 53 Walter BENJAMIN, Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas. Vol.1. 51

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impossibilitando a integração desta narrativa no ouvinte, pondo uma distância cada vez maior e mais rápida entre as gerações, além da divisão social e técnica do trabalho que fragmenta o tempo, dificulta ou até mesmo impede a narração das experiências em meio a este ambiente. Por outro lado, o papel da imprensa, do jornal e da notícia, aspirando a uma verificação imediata e relacionando-se com o que é próximo e compreensível em si mesmo, distancia-se da narrativa, cuja principal característica é a abertura para a interpretação e a possibilidade da releitura. A imprensa vai surgindo na modernidade como aquilo que se institui e se alicerça como verdadeiro, tendo como função a objetividade e a isenção na descrição dos acontecimentos. Na análise das memórias dos ouvintes da Bossa Nova, em paralelo com a análise da imprensa do período, percebe-se uma tensão entre uma “cidade da memória” e uma “cidade da história” tida como verdadeira e tornada narrativa por meio da imprensa. Uma tensão que se instaura entre uma cidade ideal da memória e a cidade como ela “era” contada pela imprensa. Cumpre sublinhar que a função de narrar a tradição e os acontecimentos relacionados à comunidade foi em parte assumida pela imprensa na modernidade, uma vez que o romance – nascido da separação entre indivíduo e sociedade – ganha a função de contar sobre o indivíduo, passando a difundir as dimensões de experiência do autor e não mais a universitas.54 A perspectiva adotada aqui, quando se toma a imprensa como fonte, é pensá-la como discurso sobre o real, como representação que veicula normas e ideologias, e não o real tal como foi.55 Da mesma forma, não se compreende que estas “cidades” – a real e sua representação – estivessem tão polarizadas assim, sem intermediações ou pontos de contato. Nas memórias que constróem um ideal unívoco dos anos 50 como tempos melhores, existem silêncios, esquecimentos, detalhes, pausas, elementos involuntários que permitem a interpretação de mediações entre estas cidades apenas aparentemente polarizadas. “A verdade é essa, que a maioria [das canções da Bossa Nova] mostra coisas bonitas, alguns fazem engraçadinho, alguns fazem sério (...) mas a grande maioria mostra o amor, mostram o belo ... ou... pelo 56 menos... a ilusão do belo, a ilusão do amor, que podem não ser uma realidade....”(Chico Feitosa )

Neste depoimento, a forma como Feitosa vai construindo sua narrativa é fundamental para compreender o sentido do que está sendo dito. Ao mesmo tempo que afirma que a Bossa Nova 54

Verena ALBERTI, Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na autobiografia. Estudos Históricos, v.4, n.7. p.73. 55 Renée ZICMAN, História através da imprensa: algumas considerações metodológicas. Projeto História, n.4. 56 Depoimento concedido em 22/04/96, no Rio de Janeiro. 231

falava do belo, bonito e harmonioso, também assume esses ditos como falas ilusórias. As reticências e sinais gráficos da transcrição não conseguem dar conta da carga de sentimentos que invadiram o depoente neste momento, quando deixa transparecer a ambiguidade de suas memórias que, embora pareçam querer construir univocamente o passado, deixam vir à tona certos elementos que dão conta, não apenas da ambigüidade da própria memória, mas também da existência de situações conflituosas deste passado rememorado e deste presente de onde partem as bases do discurso. “Vida noturna: o espetáculo começa quando a persiana sobe. (...) Os notívagos não mudam, mudam as boates. Com o incêndio do Vogue, surgiu o Sacha’s, sempre lotado pelos grã-finos, políticos e homens de negócio (...) “Beco das garrafas”: das portas das boates saem notívagos; das janelas dos edifícios saltam 57 garrafas. É a lei do silêncio.”

Nos final dos anos 40 e durante a década de 50, Copacabana passou por um intenso crescimento demográfico. Um livro escrito em 1959, que se propunha a contar a história do bairro, relata o deslocamento de pessoas que deixavam casas grandes e com jardins e se transferiam para Copacabana. Esse movimento de migração interna fez com que o bairro passasse de 74.133 habitantes em 1940, para 129.249 em 1950, um salto de 74%, numa única década. Em 1959, sua população já era calculada em 300.000 habitantes.58 A vida noturna, movimentada por cantinas, bares, restaurantes, hotéis e boates, espalhava-se pelas ruas do bairro, apesar de se concentrar principalmente na avenida da praia, a Avenida Atlântica, e em suas travessas. Todas essas mudanças são relatadas pela imprensa, como no trecho anteriormente citado. Mas paralelo a esse processos, surgiam novas profissões e formas de auto-sustentação, “Enquanto isso, sem incursões na vida noturna, outros inventam profissões para ganharem o pão de cada dia. (...) Os “olheiros”, por exemplo, são molecotes que fazem verdadeiros loteamentos das calçadas dos cinemas, para dizerem que tomaram conta dos automóveis estacionados. (...) A Polícia de Copacabana é deficiente porque está mal aparelhada. A população cresceu e a Polícia continuou na mesma, se não regrediu. (...) Com o aparecimento do 2º Distrito Policial, em Ipanema, as responsabilidades foram divididas. Ainda assim, falta muito para uma perfeita repressão ao crime que se alastra de forma alarmante. Os assaltos e furtos se repetem a cada instante. (...) a insegurança da população é quase 59 total.”

57

“Copacabana nua e crua”. Revista Manchete, 08/60. p.74-9. Eneida BERGER e Paulo BERGER. Copacabana: história dos subúrbios. s.n., p.8. 59 “Copacabana nua e crua”. Revista Manchete, 08/60. p.74-9.

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Esta matéria, intitulada “verdade com números e fatos” descreve o bairro, suas ruas, seus habitantes e frequentadores, destaca os locais de lazer e a praia, acentuando aspectos negativos como a violência na noite, a “delinqüência juvenil”, a superlotação das ruas, a alta densidade demográfica (30 habitantes por metro quadrado), a poluição da praia e as favelas que rodeiam os prédios. Um texto que se apresenta como verdade única, absoluta e comprovada dos fatos, mostrando a “verdade nua e crua”. Porém, não se trata de um texto informativo pura e simplesmente, trata-se de uma crônica composta por elementos que apontam para uma cidade equilibrada e ordenada (aquela que se queria), com o cosmopolitismo de “Paris, Nova Iorque ou Roma” – o que traz o “bom gosto por contágio” – convivendo com “donas-de-casa refinadas”. Do outro lado deste refinamento está a cidade “real”, com problemas derivados deste próprio desenvolvimento. Por trás da expressão “espetáculo noturno”, está uma cidade com notívagos em boates mas também uma outra com “molecotes” nas calçadas. É construída assim uma cidade ambígua. A crônica, ao interpretar a vida de todo dia para si e para seus leitores a partir da seleção e da interpretação do que seja esse cotidiano, mostra-se uma fonte preciosa para a compreensão deste mesmo cotidiano em suas multiplicidades e tensões. Presente na história carioca desde as primeiras décadas do século XIX, ela ajuda a elaborar um ideário de cidade não mais como aquela dos viajantes que narram o exótico, diferente também do discurso médico voltado para as doenças e miasmas sociais e morais. A crônica fala da vida de todo dia, configurando uma urbanidade na qual, como coloca Robert Pechman, a cidade vai assumindo sua face “potencialmente cosmopolita” devido à sua “capitalidade”.60 O cronista é o narrador da história do cotidiano. O que o diferencia em relação ao historiador tradicional é que este último deve ficar atento muitas vezes à estrutura do texto, à erudição, a comprovação dos fatos com fontes fidedignas e a uma compreensão imparcial das mesmas associadas às explicações verificáveis. O cronista, por sua vez, é livre para fazer a seleção e a interpretação dos fatos, sem a preocupação com o encadeamento linear e exato destes, construindo um comentário quase que impressionista e subjetivo, uma espécie de figura caleidoscópica. No entanto, entre historiador e cronista é possível identificar uma espécie de mútua influência, isto desde que se possa libertar-se de um objetivismo positivista, incorporando 60

Robert Moses PECHMAN, C idades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. 233

o olhar e a sensibilidade do cronista em relação aos detalhes e ao que parece insignificante. Ambos, assim, teriam como objeto de construção a memória, fazendo vir à tona imaginários sociais, visões de mundo e de uma época, construindo lugares da memória e suportes físicos que exercem função material e simbólica. 61 A crônica, como modalidade da literatura urbana, surge como a possibilidade da narrativa na modernidade, na vida das cidades, como o que conta, relata e interpreta experiências. Isto traz a marca do cronista, como a “mão do moleiro no argila do vaso”, gerando comentários, debates posteriores, críticas e releituras. Como aponta Beatriz Resende62, o Rio de Janeiro é a cidade da crônica, o lugar, no Brasil, onde esta forma nasceu, cresceu, e se fixou de modo peculiar, numa perspectiva de, ao falar da cidade, falar do país. O Rio de Janeiro era a capital do Império e depois capital da República, tendo sobre si a responsabilidade de encabeçar um projeto de nação. Desde o século XIX, quando as crônicas eram publicadas nos jornais ao lado das contribuições européias como os romances-folhetins, numa aspiração ao cosmopolitismo das letras e da cidade, assumiram papel de destaque cronistas como Benjamin Constallat, João do Rio, Lima Barreto, Nelson Rodrigues, Antônio Maria, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Marques Rabelo, Ibrahin Sued, Tutty Vasques, entre tantos outros que até hoje continuam narrando incansavelmente o cotidiano das cidades. A crônica deve ser encarada como algo que nutre relações com a ficção e a realidade, jornalismo e literatura, narrativa e História; uma interpretação subjetiva em formato textual. Em outros momentos da década de 50, pode-se perceber artigos na imprensa que, preocupados em apresentar os problemas da metrópole em formação, oferecem subsídios para interpretar esta cidade em toda sua ambiguidade. “O mar continua se justificando nas praias cariocas. Não fora ele e teríamos uma população de gente suja, encascarrada, tresandando odores não muito recomendáveis. Porque água não existe nos chuveiros da zona sul. Nem para homeopatia. (...) Pedro Álvares Cabral ficaria muito surpreso se resolvesse redescobrir o Brasil, neste verão apimentado, e lançasse as âncoras de suas naus nas águas outrora límpidas do 63 Arpoador.”

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Margarida de Souza NEVES, História da crônica: crônica da história. In: Beatriz RESENDE (Org.), Cronistas do Rio. 62 Beatriz RESENDE, Rio de Janeiro, cidade da crônica. In: ___ (org.) Cronistas do Rio. 63 “Com calor e sem água a vida é melhor”. Revista O Cruzeiro, 20/03/54. 234

Aqui, a falta de água na cidade é compensada pelo mar que, apesar de estar poluído, é a única saída para os odores e as sujeiras resultantes desse problema de abastecimento que dificulta a vida da população no “apimentado” verão carioca. Apesar do tom de crítica, mais adiante, no mesmo texto o autor se desculpa por estar falando mal da cidade. Ele faz isto citando a afirmação do escritor Rainer Maria Rilke de “jamais escrever sem estar sentindo realmente necessidade de fazê-lo”, conselho que, segundo o próprio cronista, está sendo contrariado no seu texto. Aqui mais uma vez estão as duas formas da crônica falar da cidade, uma ressaltando seus defeitos e sentindo que sua beleza está se perdendo e outra, por conta desta percepção, posta por uma certa hesitação em criticá-la. Convém perguntar por que a crônica é tão lida e apreciada no Rio de Janeiro. Pode-se afirmar que nos anos 50, particularmente, elas traduziam uma cidade que já não era tão tranquila, pacata ou calma, colaborando para a adaptação dos leitores aos novos tempos, atuando como narradoras do dia-a-dia e de suas mudanças, preparando sensibilidades e subjetividades a partir das experiências vividas dentro de um processo de metropolização. As canções da Bossa Nova, tematizando a cidade e sua vida, podem ser vistas como crônicas do meio urbano, narrativas que resistem à dissolução provocada pela modernização. Está também na imprensa a demonstração de aspectos de uma cidade que, para além de seus problemas operacionais (com o trânsito, e as telecomunicações, por exemplo), salienta certos elementos ligados à moral e aos comportamentos que se queria regrar. “Em qualquer esquina da cidade, hoje se vende cigarro de maconha, e em qualquer rua movimentada ou pacata dos nossos subúrbios, do centro, de Copacabana, Leblon e Ipanema, fuma-se maconha como se fuma qualquer cigarro de fumo inofensivo, tranquilamente, sem sustos (...) os viciados deixaram de ser apenas os marginais (...) Viciado em maconha agora, tanto pode estar o menor de idade, levado à prática por um coleguinha de colégio que fumou “de brincadeira”, num apartamento, como o filho mais velho, que resolveu “experimentar” e ficou gostando. E também a filha, maior ou menor de dezoito anos, que, com o namorado, livro debaixo do braço, vai com um pequeno grupo “matar” aulas na Quinta da Boa Vista, no cinema ou em qualquer lugar em que esteja longe das vistas dos mais velhos. O vício não escolhe 64 caras.”

Aqui está um “mal da cidade” que parecia vir se alastrando: o problema das drogas e do vício. Apesar de não ser novidade, a situação se agravava nesse momento, porque passava a ser algo que estava chegando às famílias dos bairros da zona sul e, de modo mais preocupante, aos jovens. Uma reportagem recheada de fotografias com “flagrantes” desses jovens fumando,

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“Vício dentro da noite”. Revista Manchete, 03/59. 235

revelava-se como “furo” com a pretensão de traduzir a realidade incontestável, visível e por isso comprovada. Entre a cidade idealizada e construída pela memória e uma cidade em desequilíbrio com jovens “viciados” – pertencentes à famosa designação comum à época de “juventude transviada” –, existiriam outras cidades ou melhor dizendo, outras experiências urbanas, postas por habitantes que não se enquadravam nestas noções polarizadas. Essas experiências urbanas são plurais, fios de práticas nas mediações tensas do cotidiano. A reportagem revela ainda que a vida noturna retratada pelas câmeras fotográficas e pelo jornalista é desafiadora e perigosa, acontecendo em um local propício para práticas desviantes. Se constitui um discurso normativo que busca regrar a cidade em suas artérias, ruas e esquinas, apontando para o que não deve ser aqui representado pelos consumidores da “erva maldita” e pela inação da polícia carioca que “não toma conhecimento” permitindo, dessa forma, a livre ação dos “atravessadores”. A cidade construída nesta matéria está fugindo ao controle, está em desequilíbrio e alheia ao padrão que se inferia. Antônio Maria, narrador boêmio melancólico das noites de Copacabana trazia para seus leitores um mundo de contrastes onde o ideal de modernidade, sofisticação e embelezamento, referenciais hegemônicos do bairro, eram

postos a nu por um lado trágico, feio, podre e

marginal. Antônio Maria, no século XX, no Rio de Janeiro e Baudelaire, no século XIX, em Paris, apresentam pontos em comum: ambos criticavam a modernidade e o lucro fácil, o mercado das letras e das artes, o escritor como mercadoria tal como uma prostituta; ambos com uma melancolia refugiada nas drogas ou no alcoolismo, mas também no lirismo, deixando-se perder na multidão sem perder a consciência de si mesmos (“ninguém me ama, ninguém me chama de Baudelaire”); ambos solitários dentro dessa multidão mas em contato direto e diário com ela, procurando dar-lhe uma alma. Cronista e poeta revelam aquilo que é próprio à vida moderna, uma espécie de contradição, o paradoxo entre pertencer e não pertencer, entre criticar e se deixar deslumbrar pelo consumo e pela vida moderna. Antônio Maria dizia, como aponta Vera Lins que, “escrevia para aliviar a memória”65. Tal qual Baudelaire, a memória lhe era algo caro, mas era próprio de sua modernidade saber de sua força e de sua fragilidade, saber do vigor do presente e sentir sua morte próxima, a efemeridade da modernidade66. Ambos falavam, narravam, buscavam compreender os tipos da cidade, as máscaras dos citadinos, seus personagens, como uma tarefa 65

Vera LINS, Antônio Maria: Baudelaire nas noites do Rio. In: Beatriz RESENDE (Org.), Cronistas do Rio. Jeanne Marie GAGNEBIN, Baudelaire, Benjamin e o moderno. In: ___Sete aulas sobre linguagem, memória e história.

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desenvolvida à margem da tradição oficial que salientava os outros rostos dessa metrópole que não devem ser encarados como opostos aos normativos, mas em confluência, como encontros e misturas que a cidade polifônica e polimórfica apresenta. De uma outra forma, esta cidade que está fugindo ao controle regrado apresenta também na imprensa seus comportamentos. “cada um namora como pode (...) senta numa laje fria, ao lado de sua amada, e finge que está olhando o mar, a lua, as estrelas - mas o que ele está mesmo é vigiando pra ver se não aparece um guarda. (...) Encontrar um banco vago, depois das dez da noite, na orla marítima carioca é mais difícil que estacionar carro às três da tarde, no centro da cidade. Os casais de namorados se sucedem, uns ao lado dos outros, numa demonstração incontestável de que até o romance se encontra inflacionado. As calçadas das praias 67 se transformam numa vitrine de amor exibido nas suas formas mais estranhas.”

A descrição dos namoros na orla da praia descreve uma cidade lotada e “inflacionada” até no que diz respeito ao “romance”. Essa cidade que se quer normatizar desqualifica as demonstrações de carinho em público, vistas como formas “estranhas” e, de certa forma, ilegais, uma vez que os jovens ficam atentos à vigilância policial. Esta cidade foge às regras, não só em seus submundos marginais, nas suas entranhas mas também em sua roupagem, em que a praia passa a ser não só vista como uma vitrine comportamental, mas também como localização geográfica estratégica; a extremidade da cidade mas também seu coração, onde a vida pulsa, tornando-se, portanto, um lugar que deve ser vigiado e controlado de modo a evitar excessos. Os jovens namorando à noite na praia, escondidos, longe dos olhares disciplinadores dos policiais ou dos mais velhos estariam evidenciando uma outra espacialidade, compondo o que Michel de Certeau considera como “práticas estranhas ao espaço geográfico das construções visuais, panópticas ou teóricas”, uma forma específica de operações ou “maneiras de fazer”68. Em outras palavras, estas indeterminações apontam para práticas dos jovens na cidade que, encobertas pelo discurso regrador não puderam ser documentadas, mas que parecem constituir-se nas práticas efetivas e concretas do cotidiano tenso que se quer recuperar. Muitos ouvintes falam sobre o modo como se apropriavam do espaço, mantendo-se alheios ao processo planificador racional do desenho das ruas, das praças, dos locais permitidos e dos interditados, elaborando uma outra leitura da cidade, com um uso alternativo dos espaços ocupados ou percorridos, efetivando locais de convívio, compondo uma experiência que não se 67 68

“O amor apanhado em flagrante”. Revista Manchete, 12/09/59. p.34-7. Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano - 1. Artes de fazer, p. 172. 237

enquadrava completamente no uso da topografia da cidade como queriam os discursos normativos. Muitas vezes o planejamento funcional buscou combater os recantos que os indivíduos escolhiam para viver, um canto da praia, as pedras do Arpoador não iluminadas, um muro de terreno baldio onde se recostavam, marquises de prédios sem gradios que agora o isolam da rua – todos elementos que fazem falta e que a memória registra como resistência às mudanças.69 Sob a cidade real, fisicamente tangível, esquadrinhada por técnicos na racionalidade aparente das edificações e do quadriculado de ruas, avenidas e praças existe uma outra cidade que guarda semelhança com a primeira, mas que, no entanto, mostra-se como um plano não explícito, tecido por usos e apropriações da sua topografia, fruto da atividade conotativa de ler a cidade a contrapelo, construindo referências simbólicas com fortes significados para quem as viveu. Entre uma “cidade ideal”, imaginária e uma “cidade real”, que se quer verdadeira, há diversos elementos de confluência, em que a memória estaria não apenas construindo sentidos de uma cidade ideal e a imprensa apenas constituindo aspectos de uma cidade equilibrada que se queria, mas colocando estes discursos em diálogo, muitas vezes interpenetrando-se e redefinindo fronteiras, pois ajustam-se ora mais para um lado, ora para outro. “Cada esquina do Rio de Janeiro guarda uma surpresa. Sua ternura se derrama, mansa e gorda, sob mil e um aspectos.(...) A cidade profundamente ela mesma : inigualável. A Candelária com sua moldura móvel de nuvens, a cada hora é diferente. Com o tapinha nas costas é que funciona a cordialidade dos cariocas. (...) O poeta disse que era 300, era 350. E quantas cidades coexistem neste Rio único ? (...)Por tudo isso, e pelo 70 mais que não ocorre no momento, é que o Rio se faz a mais querida entre as cidades queridas.”

Este discurso da imprensa procura resguardar uma cidade que se queria; para isso não só aponta os seus males, mas também uma cidade ideal, “única”, “querida”, “terna” e “inigualável”, com um “sol-poeta que reinventa a fachada dos prédios”, isto é, uma cidade com cada vez mais edifícios, novas construções, mas ainda com “ternura”, “brejeira em Copacabana ou suburbana nos subúrbios”. No entanto, é preciso notar, esta própria matéria aponta para uma cidade que já não se tem, uma cidade que já “não ocorre no momento”, ou que não se consegue ver, pois intitula-se “apesar dos pesares, cidade maravilhosa”, numa espécie de discurso tomado pela nostalgia.

69 70

Ecléa BOSI, Memória e sociedade. “Apesar dos pesares, cidade maravilhosa”. Revista Manchete. 04/59. p. 84-9. 238

Bela é a idéia de que “cada esquina guarda uma surpresa”, numa alusão ao fato de que, a despeito da racionalidade do planejamento urbano as surpresas ainda são possíveis. “Os que nasceram no Rio ou há muito tempo moram aqui, passam sem ver pelos mais curiosos aspectos da cidade que o povo já está chamando Velhacap. Aos olhos de um homem chegado das brumas londrinas para o valente sol carioca nada, entretanto, nada passa desapercebido, tudo merecendo atenção. (...) são necessários olhos de ver. Olhos que saibam retirar de cenas mais aparentemente comuns todo o seu 71 substrato de poesia. Nós cariocas, natos ou por livre escolha, já não vemos nada disso.”

Ainda dentro dessa polarização entre o que se quer e o que se tem, o texto aponta também para o fato que os seus habitantes não conseguem mais ver, numa alusão à uma experiência que suprime o tempo para ver, perceber e sentir de modo a assim retirar “substratos de poesia”. Só o estrangeiro (no caso, um fotógrafo inglês que fez o registro fotográfico a partir do qual o texto foi construído), aquele que vem de fora, é capaz de ver esta cidade desejada. Esta afirmação se assenta sobre a idéia de que para perceber a cidade é necessário um certo distanciamento, um pertencer sem pertencer, de modo a ser possível o estado de espanto diante de fisionomias e situações que provocam a imaginação. Há também um distanciamento temporal de quem não está completamente inserido ou alienado na modernidade e que faz da cidade moderna uma cidade também antiga. Esta imagem da cidade construída é sutil, mostrando a cidade ideal como a que já não se consegue ter, numa situação de diálogos e tensões entre o “dever ser” e o que “era”, em busca de conhecer as apropriações e as mobilidades que fogem ao normativo e ao que se quer para as práticas do espaço. Lembrando mais uma vez Michel de Certeau72, seria como capturar “alguns dos procedimentos – multiformes, resistentes, astuciosos e teimosos – que escapam à disciplina sem ficarem mesmo assim fora do campo onde se exerce”, os quais aparecem “sob os discursos que a ideologizam, [a cidade]” proliferando-se em “astúcias e combinações de poderes sem identidade legível, sem tomadas apreensíveis, sem transparência racional”. Um uso da cidade aberto ao acaso, sem a racionalidade cartesiana da linha reta, da geometria e da exatidão, sugerindo a idéia do “jogo de azar”, do jogador que num lance de sorte pode ter tudo modificado73.

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Idem. p. 87. Michel de CERTEAU, Op. cit., p. 174-5. 73 Olgária MATOS, O direito à paisagem. In: Robert PECHMAN (Org.). Olhares sobre a Cidade . 72

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Nas análises já feitas sobre o movimento musical da Bossa Nova, as referências ao Rio de Janeiro, mais precisamente, a lugares específicos são recorrentes. Estas construções demarcam um olhar que se constrói não apenas nas imagens visuais da cidade, mas também em “trilhas sonoras”. As canções, por muitas vezes, trazem referências não só à uma vivência carioca, um jeito de ser, um estilo de vida próprios ao Rio, como também faz alusões claras a lugares e paisagens, construindo referenciais, que denotam uma imagem da cidade até hoje. Paisagens visuais e sonoras sobrepondo-se num texto que vai sendo lido, escutado e decodificado de diversas maneiras. Percebe-se e interpreta-se uma cidade de outrora, não apenas por ela mesma como um lugar onde se desenrolam as ações, mas como um meio urbano que, na dinâmica de suas modificações físicas e provocadas nos imaginários, interage com os seus habitantes. Criam-se vínculos afetivos, pontos de identificação que se tornam referência comum a um sem número de pessoas. Estes pontos de referência e de identificação sublinham aspectos das formas de perceber a cidade que entravam em jogo ainda no início da década de 50. Voltando a Benjamin e a sua descrição dos panoramas na cidade moderna, como grandes pinturas feitas nas ruas ou em locais públicos, imitando de forma perfeita a natureza, e também considerando o surgimento de uma literatura panoramática recheada de imagens do campo e da natureza, pode-se pensar que havia no habitante da metrópole um novo sentimento, uma nova necessidade: a de trazer o campo para dentro da cidade de modo que esta se abrisse em paisagem.74 Sem paralelismos, anacronismos e apropriações conceituais indevidas, é possível perceber a presença deste sentimento que os panoramas e a literatura panoramática deixam entrever na Paris do século XIX também na Bossa Nova nos anos 50 e 60. Dizendo de outra forma, pode-se falar, analogamente, de um certo espírito na cidade que constituiria uma “música panoramática”, revelada pela Bossa Nova. São canções que se referem ao idílio e à paisagem natural, numa perspectiva de exaltá-la. Um exemplo é a Sinfonia do Rio de Janeiro, composta em 1954 por Tom Jobim e Billy Blanco, uma suíte composta de onze músicas, que têm como base, a cidade do Rio e seus elementos – suas belezas e seu cotidiano – mostrando-se como uma tentativa de representação do Rio como um todo, onde os compositores falam do local em que viviam, a zona sul, Copacabana, Arpoador, as praias, as montanhas, o sol, o mar, mas falam também do morro e de seus elementos como a pobreza, a “pureza cultural”, o samba, o Carnaval e o dia-a-dia dos 74

Walter BENJAMIN, Paris capital do século XIX. In: Flávio KHOTE (Org.), Walter Benjamin. 240

trabalhadores. Na Sinfonia, as montanhas, os morros da cidade são colocados como um componente a mais nas referências ao que é belo no Rio, suas inúmeras montanhas compõem com o sol e o mar, a paisagem propícia para a felicidade, para a realização pessoal, e para a essencialidade da vida ligada à natureza, compondo um discurso do olhar para si mesmo e para os sentimentos, inspirados pela paisagem carioca. A natureza aqui relacionada se entrecruza com os sentimentos, pois – como sugerem os compositores – depois de ver “o sol, a montanha e o mar” e “depois de ver, sentir e amar”, numa clara articulação entre a paisagem natural e a vida cotidiana, “nada mais importa”. Além das letras imagéticas, a própria estruturação musical vai compondo uma sonoridade que também pode ser interpretada como possuidora de elementos da paisagem natural. Na sua orquestração elaborada com aberturas e interlúdios representando sons do amanhecer, do mar dos pássaros e da vida agitada na cidade, há um reencontro com a natureza ao final. Tal qual o movimento musical romântico já o fazia, aparece aqui um tom de melancolia e de busca de preservação da tradição diante da ameaça de destruição trazida pela modernidade. Tudo isso expresso em sua estruturação musical. A primeira gravação, feita ainda em 1954 pelo selo Continental, tendo como intérpretes cantores que já gozavam de certo prestígio e faziam parte do cast da gravadora, como Dick Farney, Lucio Alves, Nora Ney, Doris Monteiro e Os Cariocas, não fez sucesso à época, o que pode ser explicado tanto por ter sido gravada em LP, que era ainda um artigo de luxo no Brasil, mas também por ter um forte cunho erudito, reforçado por seu lado B que trazia orquestrações elaboradas. De qualquer forma, essa gravação já anunciava algumas questões que seriam trabalhadas e formalmente elaboradas pela Bossa Nova, como a interpretação já diferenciada dos cantores com uma performance vocal sem empostação, contrariando o que era comum no rádio da época, além da já discutida evocação a natureza. Essa forte tendência em evocar a natureza, torna-se curiosa numa cidade onde a paisagem natural está tão próxima, tão presente, e pode levar a uma leitura de que apesar dessa proximidade, paira no ar uma sensação de perda, um sentimento de que a vida moderna e seu turbilhão roubava o tempo de olhar para a natureza de modo a senti-la como marca presente, tornando-se necessário falar explicitamente sobre ela. “Minha alma canta Vejo o Rio de Janeiro Estou morrendo de saudade Rio, teu mar, praias sem fim 241

Rio, você foi feito pra mim Cristo Redentor Braços abertos sobre a Guanabara Este samba é só porque Rio, eu gosto de você A morena vai sambar Seu corpo todo balançar Rio de sol, de céu, de mar Dentro de mais um minuto Estaremos no Galeão Rio de Janeiro, Rio de Janeiro Aperte o cinto, vamos chegar Água brilhando, olha a pista chegando E vamos nós Pousar”

(Samba do avião) Nesta canção de 1962, Tom Jobim deixou claro a inspiração da natureza carioca na Bossa Nova. Ele anuncia explicitamente seu amor à cidade. É a alma do compositor - alegre, inspirada e emocionada -, quem a canta e a retrata especificamente em seus elementos naturais sobrepostos num plano aberto, acessíveis ao olhar do viajante que retorna com saudade ao seu lugar de origem. Esta canção veio a público no show Encontro, produzido em 1962 por Aloysio de Oliveira no bar Bom Gourmet, reunindo Tom Jobim, Vinícius de Moraes, João Gilberto e Os Cariocas. Numa temporada de 45 dias, com casa sempre cheia, foram lançadas canções que se tornaram clássicos da Bossa Nova como Garota de Ipanema e Samba do Avião que só foi gravada no ano seguinte. No exterior, foi interpretada por Charlie Byrd e no Brasil, por orquestras ou grupos instrumentais que proliferavam na época como o Tamba Trio e o Bossa Três, todos de inspiração jazzística. Em 1964, foi gravada pelo grupo Os Cariocas. A gravação por grupos pode ser justificada em função de sua harmonia altamente elaborada e complexa, propícia à utilização de variados instrumentos, bem como a arranjos vocais que sabiam explorar esta riqueza de acordes. Já em 1964 e 65, começou a ser gravada por cantores solo, como Wilson Simonal em 1964, Sylvia Telles e também Leny Andrade em 1965. Uma das gravações mais conhecidas de Samba do Avião é a do próprio Tom Jobim, ainda na década de 60, com uma orquestra fazendo o acompanhamento, o que era comum nos anos 50. A inspiração de Jobim parecia vir dos tempos em que era arranjador das rádios e gravadoras do Rio de Janeiro, quando foi influenciado pela música americana ligada à Glenn Miller, Frank Sinatra, George Gershwin, entre outros, em detrimento das vertentes mais profundas do jazz.

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Uma música americana conjugada aos avanços tecnológicos produzidos no campo musical (hi-fi), produzindo um mundo ideal, acima dos conflitos, voltado para a fantasia, deleite, romance, aventura e sonho, como se pode verificar nos musicais dos anos 50. Um mundo posto pela cultura de massas, em que a felicidade, a realização, o final feliz, o amor e a aventura assumem papéis preponderantes, mas que, no entanto, colocam-se de maneira complexa no meio social, assumindo, ao mesmo tempo, papéis de projeção e identificação que têm como base o indivíduo privado, para quem interessa a felicidade pessoal e as emoções eufóricas75. Uma paisagem sonora que sugere felicidade e realização, reforçando a poesia que narra a volta à bela cidade e sua paisagem visual. Em Samba do Avião, a harmonia vai sendo entrecortada por uma melodia que começa com a já conhecida característica da Bossa Nova de possuir temas reiterativos, com notas próximas e de pouca duração. No entanto, aqui, já vai se produzindo uma ascenção na freqüência até chegar no momento de maior expressão sentimental, exatamente no meio do verso “estou morrendo de saudade”, em que a palavra “morrendo” tem na sua segunda sílaba a nota mais alta que, porém, não dura muito, logo sendo sucedida pela frase “Rio teu mar praias sem fim, Rio você foi feito prá mim”, entoado numa mesma nota, mais grave, em uma dicção que se aproxima da tematização e não da passionalização76. Após um interlúdio instrumental reiterador da melodia já cantada, no final da canção, o desenho melódico mais uma vez corre em ascendência “dentro de mais um minuto estaremos no Galeão”, quando esta última palavra é cantada com um acorde bastante dissonante, sugerindo a tensividade da euforia da chegada. O campo sonoro mostra-se como sendo um meio propício para a realização das necessidades de materialização ou corporificação das idéias, um meio para a manifestação de sentimentos e idéias. Tem-se em Samba do avião uma poética que, construindo personagens e objetos valorativos, no caso, a cidade do Rio de Janeiro e suas paisagens, ajuda a reiterar sujeitos ou lugares que ganham valor sentimental. Os lugares por onde passeiam os olhos do compositor são alusivos às belezas naturais da cidade, com o mar, as praias, a Baía da Guanabara, o morro do Corcovado com a estátua do Cristo Redentor. Atrelado à estas imagens da cidade, lança-se a projeção – e não mais o olhar do avião – sobre personagens da cidade, como a morena que samba, as praias, ou seja, aspectos da vida urbana carioca.

75 76

Edgar MORIN, Felicidade. In: ____ Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo I - Neurose. Luiz TATIT, O Cancionista: composição de canções no Brasil. 243

Mas, importante perceber que a função de falar sobre estes pontos marcantes da cidade parece ser tarefa do narrador poeta, do artista, pois em grande parte das memórias dos ouvintes analisadas, não aparecem explicitamente as referências aos locais da cidade, como aparecem com tanta freqüência nas músicas. Os ouvintes, quando falam da cidade, lembram das experiências ali vividas, dos lugares frequentados, dos hábitos de lazer, permitindo que se encontre nas entrelinhas os pontos marcantes, as imagens da cidade, as formas de apropriação do espaço muitas vezes desviantes e a relação com a paisagem natural em meio à metrópole. No entanto, não parece que estes pontos marcantes não lhes fossem importantes e referenciais, mas este nãodito das memórias dá pistas para que se compreenda como estão introjetados na paisagem afetiva, mental ou imaginária da cidade, de tal modo que tornam-se desnecessárias as referências explícitas. Para quem vive ali, estes marcos fazem parte da paisagem cotidiana tal qual um prédio, uma praça, causando impacto muito mais ao que vem de fora, ao estrangeiro – algo que o narrador da canção parecia estar se tornando. Esta canção, narrando com tanta emoção a cidade, com toda sua atmosfera de sonho e fantasia, a representação do Rio de Janeiro como um local idílico e acima das questões terrenas não se efetivava da mesma maneira entre os ouvintes. Um silêncio imensamente revelador presente nestas memórias, apontando para o fato de que, embora a memória histórica sobre a cidade tenha escolhido estes seus marcos como elementos do “cartão-postal”, para seus habitantes eles se mostram fundantes mas numa outra ordem, como paisagem interiorizada dispensando referências. “Vim pro Rio em 61 trabalhar, aí em 62 casei, morava aqui no subúrbio, aí depois em 66 fui morar na Ilha do governador e estou até hoje lá. (...) Chegar no Rio em 61...Olha, pra mim foi difícil porque, onde eu morava, era um lugarzinho assim, interior mesmo, sabe, aquela coisa, todo mundo era uma família, sabe, os vizinhos, a gente vinha com as portas abertas, chegava um e já chamava na porta. Eu cheguei aqui e achei diferente porque, apesar que assim, tinha amizade, mas não era como lá, aí então eu fiquei assim meio desorientada, porque aqui era completamente diferente, era mais fechado, cada um no seu canto, então foi muito difícil me adaptar a esse meio.(...) Eu não andava muito pela cidade, não. Ficava mais no meu bairro, ficava mais ali, entendeu? Não saía muito assim por fora, não. Mas eu sempre fui assim, muito ali, sabe? Eu acho que é aquela coisa de interior, que deixa a gente só ali naquele cantinho. Ali sempre, é sempre ali. Nunca saí muito pra passear, não. Ir assim à cidade, essas coisas. Então, você vê, eu to esse tempo todo aqui no Rio e nunca fui ao Cristo Redentor, ao Pão de Açúcar. Nunca fui! Os lugares que eu fui é só a Quinta da Boa Vista, que eu ia quando era nova, solteira; e depois de casada ia com os filhos, ta? Maracanã já fui também, mas assim, umas duas ou três vezes. Já são 42 anos de Rio mas, só assim... E praia, praia também. Mas a praia era mais lá na Ilha, porque era muito sossegado, entendeu? Agora, também ta muito poluída, mas, na época que eu fui, era limpinha, uma delícia, calmo, sabe? Agora, Copacabana nunca gostei muito, não. Já fui à Copacabana e tudo, mas assim, só de passagem, sabe? Mas pra ir em praia mesmo, não. Eu não gosto. Uma, que eu não gosto de praia. Eu ia mesmo pra levar meus filhos. Mar, eu olho assim o mar, tenho medo. Tenho medo. Tenho muito medo... E mesmo ir lá pra Zona

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Sul, sem ser pra ir na praia , eu não ia... Às vezes eu ia só quando tinha um passeio, entendeu? Mas freqüentar mesmo, não.” (Dinah)

Neste depoimento, há uma escuta da Bossa Nova diferente, fixada de maneira também diversa na memória construída hoje. Dinah nasceu no interior do estado do Rio de Janeiro, tendo mudado para um subúrbio da capital em 1960, onde trabalhava e morava. Após casar-se, em 1962, deixou de trabalhar para se dedicar à vida doméstica, indo morar na Ilha do Governador, onde está até hoje. Quando perguntada sobre as músicas que ouvia na juventude, ela se recorda de famosos “cantores do rádio” como Emilinha, e Cauby Peixoto, mas também da Bossa Nova. No entanto, tem dificuldade em lembrar do nome ou da letra de uma canção, recordando-se mais facilmente da melodia. Após algum esforço, lembra-se de que a neta de 13 anos comprou-lhe um CD de Bossa Nova, ouvindo-o sempre com ela, e então recorda-se das músicas que mais gosta e que mais lhe fazem sentido, como Copacabana, Samba do Avião, Valsa de uma cidade e outras que possuem imagens explícitas da zona sul. Interessante notar que Dinah não viveu a zona sul, tendo ido até lá, segundo ela, umas poucas vezes, apenas para ir à praia, pois não gosta dali, acha que “tem muita gente”, “não se sente à vontade”. Ela conta que jamais foi ao Cristo Redentor ou ao Pão de Açúcar. Esta sua experiência, evocada por suas memórias, permite interpretar o motivo de falar e lembrar apenas das canções que contêm marcos da cidade. Para ela, a zona sul não é o local de suas experiências concretas, lhe pertence apenas em seu imaginário. Ela se recorda ainda que sabia da zona sul muito mais pelas revistas e pelo rádio do que pessoalmente. No entanto, o desconhecimento da região não a impede de gostar ou ter gostado da Bossa Nova. Aquela imagem evocada, trazida com a escuta, adquiria sentido na sua vida doméstica, circunscrita ao ambiente privado. O Corcovado e o Cristo Redentor podem ser notados em outras canções da Bossa Nova, assumindo definitivamente um papel de distinção dentro da cidade. “Um cantinho, um violão Este amor, uma canção Pra fazer feliz a quem se ama Muita calma pra pensar E ter tempo pra sonhar Da janela vê-se o Corcovado O Redentor, que lindo Quero a vida sempre assim Com você perto de mim Até o apagar da velha chama E eu que era triste

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Descrente desse mundo Ao encontrar você eu conheci O que é felicidade , meu amor...”

(Corcovado) Escutando esta canção famosa pela interpretação de João Gilberto, no LP de 1960, O amor, o sorriso e a flor, editado pela Odeon, é importante atentar para a forma de sua gravação assim como de outras gravações da Bossa Nova que tinham à frente Tom Jobim e a interpretação de João Gilberto. Em uma época em que as tecnologias que permitiam uma maior fidelidade sonora ainda chegavam ao Brasil, e ainda eram insuficientes para a reprodução de sonoridades mais complexas, a gravação dirigida pela dupla tinha o cuidado de valer-se de acordes dissonantes e complexos, mas sem tanta densidade, ou seja sem tantas notas, o que, num sistema de baixa fidelidade, poderia soar como um borrão de notas, pelo excessivo batimento de freqüências juntas, impossibilitando uma escuta global. A simplificação da sonoridade com uma voz sem efeitos, quase numa entoação da fala acompanhada por um violão acústico também em baixo volume constituindo entre si uma mesma fonte sonora captada pelos microfones e amplificada na medida certa, sem concorrerem entre si, favorecia esta intenção. Algumas questões apontadas por Luiz Tatit77 na análise de Corcovado são úteis para pensar a idêntica conformação melódica das duas primeiras frases que, no entanto, constróem sentidos diferentes dados pela harmonia. Melodias como notas próximas vão descrevendo o local perfeito onde se desenrola a felicidade cantada, com o “cantinho”, “violão”, “canção” o “tempo prá sonhar”, enfim os elementos essenciais para uma vida recolhida da agitação das ruas e do turbilhão de acontecimentos. Fica aí a própria característica de muitos músicos bossanovistas de comporem melodias pouco alteradas, com motivos recorrentes, mas onde a harmonia bastante modificada vai modulando a condução da melodia, sugerindo, mesmo em frases idênticas, um outro rumo, uma outra direção ou sentido, rompendo sua previsibilidade.78 Uma economia de notas que se entoa e que reitera uma idéia de simplicidade e economia numa sociedade já estava bastante complexa. A idéia de mudança de direção da melodia, mesmo que colocada de forma implícita, sugere sutilmente um outro percurso. Essas mesmas canções, na sua escuta, indicam também outros caminhos e direções nas experiências cotidianas na cidade.

77 78

Luiz TATIT, O Cancionista: composição de canções no Brasil. José Estevam GAVA, A linguagem harmônica da Bossa Nova. 246

“Eu morava na Tijuca, mas meus programas todos eram na Zona Sul, entendeu? (...) Na época das festas, dos shows e tudo, eu passei a vir mais pra Zona Sul, né? É porque eu fui fazer Belas Artes e minha turma mais lá era mais da Zona Sul, entendeu? Quer dizer, até eu ir pra Belas Artes, eu fui com 17 anos. Antes disso, já tava, já existia a Bossa Nova e tudo, eu morava na Tijuca e meus amigos eram da Tijuca. Mas quando eu fui pra Belas Artes, que era no centro da cidade, a maioria das festas, das reuniões, vernissages, show era tudo...Vamos dizer, a parte cultural e artística era mais puxada pra cá. Então, aí a gente vinha, né? Então, por exemplo, as embaixadas eram aqui,[no centro da cidade] presidente de República vinha aqui visitar, todas as grandes personalidades vinham. E a Escola de Belas Artes foi a coisa mais apaixonante que teve. Todo mundo que viveu aquilo...Porque era na cidade, ali onde é hoje o museu de Belas Artes, aquele prédio foi construído pra ser a Escola, pela Missão Artista Francesa.(..) Todo mundo ia pra lá, entendeu? E ali o Carlos Drummond de Andrade todo dia passava ali, porque ele trabalhava ali; Manuel Bandeira. Aqueles barzinhos...Tinha o Vermelhinho que era do lado da Escola, a gente, a Escola fechava a porta às cinco e ia todo mundo pro Vermelhinho. Depois a gente ia ver todos os ensaios de peça, ensaio geral. Íamos ver todas as vernissages que tinham, entendeu? Tudo quanto era show que existia a gente ia, quer dizer, naquela época o movimento cultural aqui no Rio era fervilhante, era fervilhante. Era um negócio assim que não parava, entendeu? E, tanto que a gente não era tão negócio de praia, dessas coisas, não. Tinha até o pessoal que dizia que o intelectual não vai à praia, né? Eles diziam, mas não é. É que era uma coisa tão cheia, entendeu? Depois dos anos 70 e tudo, aí começou o negócio de Ipanema....”

(Débora) Débora recorda que a praia, local de lazer, convívio e experiências tão comum aos jovens da sua geração não lhe fazia tanto sentido, pois seu andar pela cidade incorporava muito mais trechos do centro, nas circunvizinhanças da Faculdade de Belas Artes onde estudava, ou dos locais dos saraus literários e vernissages nas Embaixadas, ou então na Copacabana do ambiente noturno dos bares. Mesmo sendo ouvinte da Bossa Nova, reiterando em suas memórias de hoje a importância desta música para a sua formação intelectual e subjetiva de ver o mundo, lembrando em vários momentos do depoimento de muitas canções, entre elas Corcovado, Débora permite perceber outros trajetos, outros locais de convivência frequentados pelos jovens ouvintes da Bossa Nova. Valendo-se ainda de Tatit, em Corcovado já se tem uma frase em que a melodia se modifica um pouco, com um intervalo de cinco semitons, numa nota mais aguda e prolongando a duração da vogal da palavra “ama”, indicando uma pequena sensação mais passional, que pode também ser identificada no final da frase “da janela vê-se o Corcovado e Redentor, que lindo”, num pequeno extravasamento da enunciação, com uma figura exclamativa em tom de suspiro. O final, no entanto, apresenta um outro esquema melódico, em que mesmo com acordes semelhantes aos da primeira parte, a melodia, reveste-se de tensão passional, descrevendo amplas progressões de notas descendentes que se articulam à própria descrição de tristeza, de um narrador “era triste, descrente deste mundo”. No final, porém, volta para o esquema de melodia em que começara, em conjunção com o texto que também narra o re-encontro com a felicidade.

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O Corcovado passa a ser um lugar de percursos de sentimentos. Para alguns depoentes, moradores da zona sul, ter como paisagem, diante da janela o Cristo, por exemplo, ou o Pão de Açúcar ou a Lagoa é algo que permite uma relação diferenciada com a cidade, e a garantia de que não vão “perder esta imagem” por conta da proibição de novas construções na região, lhes traz uma felicidade e uma sensação de paz que é alimentada diariamente pela possibilidade de “olhar para eles ao tomar café da manhã” ou poder “despedir-se à noite”. Essa paisagem, que lhes traz sensações do passado representadas permanentemente no imaginário nacional e até internacional, coloca-se como uma forma de compensar os males da modernidade. A monumentalidade79 da cidade não é vista apenas nos lugares onde há imponência arquitetônica ou por onde circulam turistas (embora, no caso dos símbolos da cidade do Rio de Janeiro, também ocorram estes fenômenos), mas também nos lugares de referência comum, locais impregnados das memórias dos citadinos e que se atrelam à vida cotidiana da cidade. Dentre os aspectos da vida urbana, de uma experiência carioca representada pela Bossa Nova, é possível identificar elementos físicos perceptíveis como parte dos imaginários sociais dos sujeitos que os contextualizam e conferem-lhes historicidade. Esses pontos são um tipo de referência, tal qual uma rua, um bairro ou um cruzamento, tornando-se elementos estruturantes de identidade e de memória. No momento em que este marco se liga ao cotidiano e às experiências individuais e coletivas, o seu valor como elemento marcante aumenta.80 No Rio de Janeiro, a partir de uma certa perspectiva monumental da própria paisagem urbana, constituindo “imagens da vaidade”81 que impõem a admiração pela escala grandiosa da geografia urbana. ocorre uma tendência de ver a cidade de um modo globalizante, sem suas particularidades. Simbolicamente, por meio da vaidade, a sociedade surge unificada e sem diferenciações, reunida pela integração homogeneizante e ordenada de base afetiva em torno da admiração de sua beleza. O morro do Corcovado, mesmo antes de ter ali construído a estátua do Cristo Redentor nos anos 20 e inaugurada em 1931, já era um local de referência nas imagens da cidade desde o século XIX, referências encontradas em contos e crônicas. Lá também era um local de passeios, caminhadas e piqueniques. Do alto do Corcovado, e do Pão de Açúcar, operase uma inversão e o que passa a ser observado com admiração e orgulho é a própria cidade, contemplada como um monumento. 79

Contardo CALLIGARIS, Elogio da cidade. In: Robert Moses PECHMAN (Org.), Olhares sobre a cidade. Kevin LYNCH, A imagem da cidade. 81 Paulo KNAUSS (Org.), Cidade vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro. 80

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Essas referências urbanas ajudam a conformar uma certa imagem da cidade para os que não a conhecem ou não a conheciam. Entre os ouvintes que na época analisada não viviam no Rio de Janeiro, mas em outros locais do país e até do mundo, a escuta da Bossa Nova e suas referências à cidade ajudavam a conformar uma idéia urbana que se perpetuava, marcava e ainda marca as experiências cotidianas na construção de suas memórias. Márcia nasceu e viveu até os 23 anos em Natal/RN, onde se casou e teve seus dois filhos, tendo mudado para o Rio após sua separação, no final da década de 60. Segundo narra, a Bossa Nova era muito ouvida em Natal por ela e por seus amigos que compravam discos e ajudavam a difundir a música nas rádios, pois aquela cidade e aquele “mundo” trazidos pelas canções expressavam, segundo ela, uma “nova vida”. Também Massimo, que é italiano, conta que ouviu Bossa Nova pela primeira vez em 1965, num colégio onde estudava na Suíça, tendo ficado encantado com aquela musicalidade que para ele representava algo de novo, a paz, alegria e descontração que queria para sua vida. Apesar de não saber português, o que impossibilitava o entendimento da poesia, Massimo atribuía sentidos à música apenas pelos sons. A partir daí, todo o seu imaginário sobre a cidade e o país foram se forjando, sendo, segundo ele, um dos motivos que o trouxe, na década de 80, a vir morar no Brasil. É possível perceber também a efetivação de alguns limites da cidade, configurados de forma diferente para os diversos grupos que vivem nela. Estes limites constróem certas fronteiras, delimitando espaços e territórios que podem se tornar lugares carregados de memória e sentidos como elementos organizadores da imagem da cidade e do vivenciar urbano. “O que acontece é que tinham duas coisas que eram muito distintas no Rio: você tinha zona norte e zona sul separadas pela cadeia de montanhas. Hoje você tem o túnel, mas pra eu ir pra Rio Comprido, que hoje você vai, dependendo do trânsito, em dez minutos, você levava uma hora e meia... então era duro você ter que sair, demorar uma hora e meia pra chegar aqui. Então, ou você vinha por causa da praia ou não vinha, mas as diferenças eram muito grandes. Quando a gente não podia se reunir na casa de ninguém, a gente atravessava a rua e ia prá praia .... e ficava no Arpoador tocando violão (...) então a música passou a ter muito essa cara de céu, mar, sol, sul ... porque a nossa fronteira era ali, e era ali porque a gente olhava, e 82 não olhava para o morro.”(Roberto Menescal )

A cadeia montanhosa que separa o Rio de Janeiro entre zona sul e zona norte configura-se como um limite natural entre as partes da cidade. A zona sul está comprimida entre o mar e as montanhas, num espaço que permite um intenso contato com a natureza, conformando uma idéia 82

Depoimento concedido em 25/01/96, no Rio de Janeiro. 249

de cidade norteada pelos limites que o meio urbano possui, sejam eles naturais – embora esta cadeia de montanhas realmente “separe” os variados espaços – ou não. Nisso articula-se uma questão já apontada que se refere a uma construção histórica de cidade fragmentada, com locais isolados e polarizados, onde a zona sul, a zona norte e o subúrbio constituem mundos diferentes e sem pontos de contato.83 “Eu ouvia muita Bossa Nova na Tijuca...claro. (...)Interessante, é, Tom Jobim, que é um monstro sagrado, naquele nosso momento Tom Jobim não era o tchan, não. O tchan era o Carlos Lira, Baden Powell, eram mais atuais. (...) Então nós só não tínhamos a paisagem. A paisagem do mar, né. Mas tínhamos a música, os encontros musicais e no colégio onde nós estudávamos, os grupos que faziam os showzinhos, e shows dramatizados, sempre de poemas e canções e sempre estruturado na Bossa Nova. Na música daquele momento que era nossa paixão. ..... Sem dúvida alguma, embora sem a paisagem, tudo aquilo fazia sentido pra nós lá. Eu diria até que ..... é.....a legitimidade do nosso sentimento com a música, ela era acentuada na medida que só a música nos motivava. Nós não tínhamos nada mais. Porque se tivesse a paisagem, quer dizer, de repente a música entrava como um fundo, como uma moldura pra paisagem bonita, pro pôr do sol no mar e etc. Não, não. A música era a essência, ela mesma era a moldura, a música era a obra completa (...) Zona sul era Copacabana e, o grande tchan, eu com 12, 13 anos, a minha sedução. Ipanema era inexpressiva na época, a minha sedução era o Arpoador....O Arpoador era....Caramba, fulano hoje foi a praia no Arpoador! Onde é que ele fica? Lá no Castelinho! Essas eram as palavras mágicas, né.” (Carlos

Alberto) Carlos Alberto fala da juventude vivida no bairro da Tijuca, localizado na zona norte, construindo sua memória em torno do fato de que lá se ouvia Bossa Nova. O bairro tinha também uma tradição de movimentos juvenis musicais, tendo sido o local onde foi organizado o primeiro fã-clube brasileiro de Frank Sinatra. Eles estavam ligados a música “moderna”, e não à seresta, como muitas vezes foi dito, relata Carlos Alberto, construindo no presente uma identidade do “jovem tijucano muito afeito” à poesia, e inspirado na música de qualidade que ouviam e gostavam. Ele lembra que Tom Jobim não era tão admirado por ele e por seus amigos quanto os mais jovens e modernos, como Carlinhos Lyra e Baden Powell. Ao fazer essa afirmação, ele busca ressaltar a vinculação que tinham com tudo o que era lançado do lado de lá das montanhas, na zona sul. No entanto, é possível interpretar que este cantores citados eram muito apreciados, e ficaram fixados na memória por terem sido os parceiros de Vinícius de Moraes, com o qual realmente tinham mais identificação. Fica claro que para Carlos Alberto o que ficou presente em sua memória foram as letras e as poesias, algo com o qual se identificava naquela época e que ainda lhe atravessa. Resta lembrar sua formação em Letras e Literatura, tendo sido professor por algum tempo e hoje ser

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CF. Patrícia FARIAS, Pegando uma cor na praia: brancos, morenos e negros no espaço público carioca. 250

proprietário de uma loja de livros e CDs, a Toca do Vinícius, especializada em música popular brasileira, mais precisamente Bossa Nova. Sua lembrança de Vinícius de Moraes aparece associada à idéia de que a única coisa que o diferenciava do ouvinte da zona sul era o fato de os primeiros não possuírem as paisagens citadas o que, na sua construção memorial, não era um problema, ao contrário, tornava a sua escuta ainda mais legítima, uma vez que fazia da música não apenas uma moldura para uma atmosfera em que já vivia, mas sim um todo, uma obra completa por si só. É possível identificar nesta construção memorialística, a imagem de uma cidade cindida que se reunia por meio das canções que vinham da zona sul. Mas é por meio da memória involuntária que é possível perceber a idéia existente até hoje de que a zona norte é uma outra cidade. As “palavras mágicas” da Bossa Nova acionavam a imaginação, a narração alegórica de lugares especiais. Eles ficavam encantados com um colega que tivesse ido à praia e assim iam compondo um mapa imaginário com pontos marcantes como o Arpoador e o Castelinho, identificados não por uma experiência concreta, mas pela imaginação de que aqueles eram os locais da modernidade, da bela paisagem visual e da Bossa Nova. É possível perceber – por meio de fontes diversas – que a Bossa Nova era ouvida e gerava escutas, adquirindo sentido também para os que não eram da zona sul. Essa construção feita por quem viveu esta experiência dessa maneira específica levanta pistas das ambiguidades reveladas nestas memórias. De um lado, há uma lembrança daquilo que se escutava e do que se apreciava, de outro se justifica as diferenças entre as áreas da cidade, como também a própria legitimidade de uma escuta distante da paisagem e ambiência evocada e vivida pelos autores da Bossa Nova. O que se coloca aqui é que a escuta também gera sentidos, muitas vezes diversos aos propostos na composição, produzindo em seus ouvintes, por exemplo, outras noções de cidade, paisagem e beleza natural. A questão da “paisagem” evocada por Carlos Alberto é significativa: ele estaria se referindo a paisagem visual, mas é possível pensar também na paisagem sonora do lugar onde estes ouvintes da Tijuca viviam, como menos ruidosa sem os sons da modernidade, mas preenchida pelos sons da natureza, o que poderia levar uma espécie de identificação com aquelas canções que tanto falavam da natureza. A montagem deste mosaico como um jogo de espelhos ou um quebra-cabeças da trama memorial, em que a memória voluntária, os esquecimentos e memória involuntária permitem associações inesperadas que vão compondo os traços de uma imagem de cidade construída entre a juventude da zona norte no início da década de 60.

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Débora, também moradora da Tijuca à época, coloca outras questões. Em seu depoimento, as diferenças em relação à zona sul são mais suaves do que as levantadas por Carlos Alberto. Para ela, a Tijuca era cosmopolita e abastada, com cinemas, restaurantes e clubes além de montanhas e a mata da floresta. No entanto, Débora deixa entrever, em outras passagens de seu depoimento o quanto vivia muito pouco na Tijuca e muito mais na zona sul, onde moravam seus amigos, e também no centro da cidade. Hoje ela é artista plástica e mora na Lagoa. No início dos anos 60, estudava Artes Plásticas na Faculdade de Belas Artes, na Cinelândia, convivendo com artistas, intelectuais, músicos, estruturando sua experiência na cidade pelos trajetos que fazia nas ruas, pelas vernissages e sessões de cinema europeu, além dos encontros nos bares de Copacabana, o que lhe permitia uma experiência urbana mais cosmopolita. O fato de sua vida não ficar circunscrita a Tijuca e a zona norte pode ser visto como uma explicação para a dissonância entre seu discurso e o de Carlos Alberto. As montanhas referendadas pela Bossa Nova assumem múltiplas imagens, muitas vezes ambíguas e contraditórias, variando de acordo com o autor e com a época em que a canção foi composta. Em várias das canções, fala-se da montanha como inabitada, mera paisagem e limite natural dos sujeitos da Bossa Nova, habitantes da zona sul carioca – as “serras de veludo” – em outras, embora ainda sua beleza seja enaltecida, surgem como um território específico, um morro idílico, lugar que guarda a cultura, o samba, a alegria, o “povo”, em tom de homenagem, louvor, pondo em relevo as glórias do passado, e a qualidade do samba. Aqui esta presente a idéia da “cultura pura”, o “samba puro” sendo valorizado pelos bossanovistas como genuinamente brasileiro e livre de influências. Nestas canções, a melodia é mais lírica, como em Feio não é bonito, de Carlinhos Lyra em que o autor relata a pobreza do morro e sua vontade de ter “outra história”. Trabalhando ainda com as considerações de Maria Alice Carvalho84, a construção imaginária da cidade dividida em zonas isoladas, com pontos, ruas e trechos com uma cultura própria, resistente à cultura hegemônica, tem suas origens nas primeiras décadas do século XX. A forma como a intelectualidade foi construindo a idéia da cidade – desde cronistas como Machado de Assis, João do Rio, Lima Barreto – era sempre a de uma crítica ou recusa da ordem estabelecida, onde o novo ou o moderno articulava-se ao ideário de “civilização urbana” dissonante das reais condições de debilidade institucional, política, social, cultural real. Era 84

Maria Alice Rezende de CARVALHO, Quatro vezes cidade. 252

comum na ambiência intelectual carioca em relação à cidade um posicionamento à margem da institucionalização. Esses intelectuais falavam de um lugar social, a rua, tomado como posto de observação, posicionando-se como uma intelligentzia que se caracterizava por um discurso que fugia do mundo da cultura e da política estabelecida, objetivando produzir uma tradição e imprimir novos rumos à cidade ideal futura. Vem daí um certo fascínio e uma certa reverência a estes intelectuais que, de alguma forma, permanecem no ideário carioca, legitimados por uma suposta rebeldia, autenticidade, originalidade, espontaneidade e fuga às institucionalizações que vêm das camadas populares resistentes. Mesmo nos anos 30, quando o Estado Novo promoveu a incorporação de parcelas da intelectualidade às agências culturais do Estado – institucionalizando sua produção e estabelecendo uma racionalidade governista, guiando as massas até a modernização – alguns setores continuaram entrincheirados, colocando-se à margem da vida institucional, essa postura tomada como missão. Essa missão traduzia-se por uma aproximação da cultura popular, notadamente das manifestações mais estigmatizadas pela cultura branca e cristã como os cultos afro-brasileiros e as rodas de samba, considerados em sua pureza mas também com alta carga de inconformismo e rebeldia, características que eram consideradas como espontâneas, não cooptadas pelo Estado ou por suas instituições. Ao fazer isso, essa parcela de intelectuais acabou por transformar a cultura popular em mito, tentando guiar seus representantes em direção à revolução, assumindo o papel de vanguarda do povo, a intelligentzia que conduziria as camadas populares até a revolução, idéia que esteve na base dos CPCs e da ideologia nacional-popular que se manifestou com força nos anos 60. Nas músicas de alguns bossanovistas, o que se percebe, no entanto, é um distanciamento em relação a este morro. Elogia-se a sua beleza, o seu samba, o seu aspecto idílico, como um “morro bem distante do pó da cidade”, mas o que se afirma, no final, é o estar fora. O compositor fala de baixo, ele está na cidade, olhando para o morro, argumentando que aquele canta seu mal e “nos” oferece seu Carnaval. Essa construção, na sua exterioridade, concebe o morro como independente, resistente e resistente às perversões do mercado. O mar é outra presença constante na Bossa Nova. O loteamento, a partir do final do século XIX, das antigas fazendas e chácaras da orla litorânea (onde hoje localizam-se Copacabana, Ipanema, Leblon),

fez com que estes locais, principalmente Copacabana,

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começassem a ser ocupados por casas de finais de semana e de veraneio, onde organizavam piqueniques e podiam desfrutar de outras formas de lazer85. A praia de Copacabana, desde o final do século XIX e início do XX, era um lugar privilegiado para os cariocas que freqüentavam a praia crentes nos benefícios das águas salgadas para a saúde. Nessa época, este banho não era hábito social.86 Muitos ouvintes recordam-se do cotidiano vivido tantas vezes na praia, com a família primeiro, depois com os amigos. O local era ponto de encontro para namoros, conversas ou palco de discussões políticas e ideológicas. Paulatinamente, a ida à praia transformou-se em um “sucesso crescentemente popular”. A partir dos anos 40 e 50, a ida à praia tornou-se uma prática comum entre os cariocas. O local tornou-se propício para a prática esportiva, para atividades de lazer e de convívio pessoal, passando a ser ocupado por jovens que caminhavam, tomavam sol, nadavam, ou jogavam vôlei, futebol, peteca ou frescobol. Isso, no entanto, não ocorria de maneira tranqüila, havia já ali um estado de tensão – mesmo que não declarado e colocado de forma tão veemente como se vê hoje em dia (onde em algumas praias cariocas, procura-se inibir ou rechaçar a permanência e freqüência dos “suburbanos”), entre determinados grupos, revelando uma certa apreensão em relação ao uso do espaço. 87 A partir deste momento, o hábito de ir às praias surge não só como um privilégio único para quem mora em seus arredores, mas passa a atrair – por meio das inúmeras linhas de ônibus e bondes que passam a ligar Copacabana com o centro e o subúrbio – pessoas dos bairros mais distantes que vinham tomar banho de mar e de sol nas praias da zona sul. Um livro sobre a história de Copacabana, editado em 1959, contava, “hoje as linhas de ônibus ligando os bairros mais distantes permitem que, principalmente aos domingos, desçam dos subúrbios mais longínquos pessoas que vêm tomar banho de mar e de sol em Copacabana. Eles chegam felizes, com um ar de piqueniqueiros, cheios de embrulhos, maletas, sacolas, trazendo por baixo de saias ou calças compridas maiôs e calções, biquínis ou estranhas roupas feitas em casa. (...) [A praia de Copacabana é] um local para onde correm encalorados moradores da Penha ou de Cascadura, que mais tarde voltarão aos seus lares queimados de sol e felizes pelo contato que tiveram com o 88 mar.(...)Democratizaram Copacabana.”

Ir à praia deixa de ser uma indicação médica e começa a se tornar um programa prazeroso. Jovens das camadas médias da zona sul e também de outras áreas, frequentavam-na 85

Eneida BERGER e Paulo BERGER, Copacabana: história dos subúrbios, s.n., p.9-10. Cf. Madel Terezinha LUZ, O corpo da cidade. In: Robert PECHMAN (Org.), Olhares sobre a Cidade. 87 Patrícia FARIAS, Op. cit. 88 Eneida BERGER e Paulo BERGER, Copacabana: história dos subúrbios. s.n, p. 10-11. 86

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intensamente, o que a levou a assumir um papel importante em suas memórias. Letras de canções também referendam este local, como a garota de Ipanema e a Teresa disputada no Leblon,89 constituídas no ambiente praieiro, destacadas por seu charme, beleza, mas também por seu corpo dourado, bronzeado pelo sol das praias cariocas. A praia, enfim, constitui-se como um local que guarda parte das referências urbanas dos ouvintes da Bossa Nova, um local que faz parte de suas experiências e memórias comuns, lembrada também como território da zona sul e de quem nela habita. O Rio de Janeiro possui espaços característicos que têm em comum uma certa vibração social pela beleza e pelo prazer lúdico, estético, político e sensual. Dentre estes espaços, está a praia caracterizando a cidade, nacional e internacionalmente, como um espaço de representação da beleza sensual.90 Os relacionamentos amorosos são, em algumas canções, representados e construídos em meio ao mar, não propriamente as praias urbanas, mas as isoladas e vazias, ligadas à tristeza, à introspeção da “dor-de-cotovelo”, do pensar no amor que se foi.91 A construção e invenção da praia, este “território do vazio” 92, entre as dunas e água, datam do século XVIII no ocidente. Para além dos aspectos mitológicos, com sua duração dentro das culturas, esta construção da praia não faz parte de estruturas imanentes, sendo algo construído historicamente. Elementos de busca pela natureza e da pausa em meio à agitação da cidade que faz perder, devem ser articulados ao fascínio que exerce, o que faz com que não seja apenas um dado imanente. Assim, a praia e suas representações estão presentes não só nas letras das canções, mas também na paisagem sonora que a Bossa Nova ajuda a construir com ritmos cadenciados, melodias e harmonias dissonantes. Mais ainda, está nos acordes em resolução ao final da canção, desfazendo as tensões dadas pelas notas alteradas, pelas vocalidades e performances mais intimistas e em baixo volume, evocando imagens mentais auditivas e visuais que configuram este local da paisagem natural. Em grande parte das canções da Bossa Nova, bem como na memória histórica oficial, a região da cidade que se encontra mais referendada é a zona sul, numa clara alusão à transformação dos espaços boêmios e musicais cariocas. Nesse movimento, vai compondo-se uma noção de que a Bossa Nova era circunscrita à esta parte da cidade, com sentido apenas 89

Faz-se aqui, respectivamente, referência às canções Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, 1962 e Teresa da praia, de Tom Jobim e Billy Blanco, 1954. 90 Cf. Madel Terezinha LUZ, Op. cit. 91 Algumas canções destacam este aspecto, como Praia branca, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, 1957; Praias desertas, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, 1957; Vagamente, de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, 1963, dentre outras. 92 Alain CORBIN, O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. 255

àqueles que nela habitavam, que experimentavam aquela “modernidade” nos valores, subjetividades e experiências urbanas ali narradas. Esta pesquisa contrapõe-se a esta idéia, evitando supor que os hábitos, formas de conduta e a cultura dos sujeitos são delimitadores da sua apreciação da vida, das expressões artísticas ou musicais. Dito de outro modo, a recusa aqui está em pensar, como afirma Bourdieu93, em um repertório formulado pelo habitus tido como um elemento de imobilidade das escutas. Argumenta-se, que as apropriações dos sujeitos podem se dar por múltiplas mediações que escapam às formulações pré-fixadas de “gosto”, “estilo de vida”, ou competência de interpretação. Ouvintes de outras partes da cidade, do país e até do mundo possuem a capacidade de escutar, em seu cotidiano, formas musicais que narram (em suas letras e na sua estruturação musical) sentimentos e experiências diversas daquelas a que estão acostumados, podendo dialogar com elas de variadas maneiras, perfazendo sua “lógica dos usos”.94 Convém olhar para as particularidades desta área da cidade. Os bairros, estas regiões urbanas que podem ter tamanho médio, grande, pequeno, com dimensões estreitas, sendo faixas de terra entre o mar e a lagoa – como Ipanema e Leblon - ou entre o mar e a montanha – como Copacabana –, costumam ser o elemento estruturante mais comum e freqüente de reconhecimento e de memória das cidades para os indivíduos que nela vivem. Estes lugares podem apresentar aspectos comuns, características físicas ou não que, em seu conjunto, constituem uma certa continuidade temática composta de elementos diversos: espaço, forma, atividades, topografia, costumes, habitantes.95 Para além de várias das canções trazerem em seu discurso referências aos lugares da zona sul carioca, falando deles em tom de exaltação, elogio, ou na forma coloquial de citar os lugares vivenciados, muitos dos ouvintes, em suas memórias, referem-se à esta parte da cidade. Copacabana, Ipanema, Leblon, Lagoa, Botafogo, bairros e praias lembradas como lugares que fazem parte do cotidiano diário dos sujeitos, lugar onde viviam, ou freqüentavam, conversavam e namoravam. Espaços de experiência trazidos à tona pelas memórias, territórios vivenciados carregados de sentidos, significações, afetividades e identificações dos ouvintes. O bairro de Copacabana, mesmo constituído em muitas canções e nos depoimentos dos integrantes da Bossa Nova – muitos deles seus moradores – como um local idealizado e belo, 93 94

Pierre BOURDIEU, In Renato Ortiz (Org.) Pierre Bourdieu, passim.

Michel de CERTEAU, Op. cit. 95 Kevin LYNCH, Op. cit., p.78-9. 256

caracterizava-se também por ambigüidades e tensões sociais trazidas pela expansão da violência e de um processo incipiente de invasão por classes baixas que passaram a morar nas primeiras quitinetes (ou conjugados). Copacabana cresceu e se desenvolveu de modo intenso durante os anos 40 e 50, quando parcelas das camadas médias em expansão naquele momento, acabaram por ocupar a faixa litorânea da cidade. A zona sul, que até o início do século XX não passava de um imenso areal inabitado, começa a ter, nos anos 50, seu momento de apogeu, transformando-se em lugar da moda e da vanguarda comportamental. A vida noturna do bairro começou a se constituir, em parte, desde os anos 20, em decorrência do Hotel Copacabana Palace, que possuía cassino, bar, e era um badaladíssimo local de shows. A partir do Copa, muitas boates, restaurantes e bares passaram a se instalar no local. A noite de Copacabana, a partir do final dos anos 40, passa a ser o lugar de encontro de quem tinha dinheiro e queria se divertir, pois a Lapa, lugar da boêmia musical até então, encontrava-se em decadência. Nos anos 40, a atmosfera da Lapa mudara, estando mais policiada – o que por um lado trazia segurança contra os elementos perigosos, por outro instituía um estado de tensão criado pelos próprios agentes da ordem96. Por outro lado, pode-se perceber que, com o fechamento dos cassinos pelo governo Dutra, em 1946, o ambiente artístico e musical carioca se transformou muito por conta das demissões de cantores, músicos e dançarinas. Aos poucos, porém, esse quadro vai se revertendo. É quando começam a despontar boates na zona sul e, a noite de Copacabana – com o Copacabana Palace, reunindo turistas e boêmios – expande-se e se torna cosmopolita. O ambiente musical e boêmio do Rio de Janeiro começa a se formatar exatamente nesse momento, quando estes espaços, antes restritos à boêmia do samba e da malandragem da Lapa e do Estácio, transferem-se para a zona sul – primeiramente em Copacabana e mais tarde em Ipanema, Arpoador, Leblon, Lagoa, Gávea. Em meio a isso, Copacabana passa a atrair também a classe média. Em 1937, um decreto municipal faz o zoneamento da cidade, estipula as áreas industriais e as residências, categoria na qual está a zona sul.97 Essas normas do zoneamento ajudam a construir fronteiras na cidade, atendendo tanto a critérios técnicos como empresariais. A partir deste momento, passa a ocorrer ali uma série de transformações. A construção civil cresce de modo vertiginoso amparado na idéia de que viver junto ao mar é um privilégio. Desse modo,

96 97

Alcir LENHARO, Cantores do Rádio: trajetórias de Nora Ney, Jorge Goulart e o meio artístico de seu tempo. Ciro Flamarion CARDOSO y Paulo Henrique Araújo, Río de Janeiro. 257

casas e palacetes foram derrubados, sendo substituídos por inúmeros prédios, dando vazão ao desejo das camadas médias à procura do status de morar em Copacabana. Favelas existentes na zona sul, como a Catacumba (entre a Lagoa e Copacabana) e o Morro do Pinto (entre Leblon e a Lagoa) foram transferidas para outras áreas da cidade, abrindo espaço para a especulação imobiliária. No entanto, a partir dos anos 40 e 50, como já vimos, o crescimento desordenado do bairro gerou os problemas próprios às grandes cidades, verificados ainda nos dias de hoje. A modernidade modifica as cidades, introduz formas diferenciadas de vida, de moradia e de relacionamento com os outros, estabelecendo novos estilos. Dentre estas outras formas de se viver no meio urbano, podem ser observadas novas relações entre o público e o privado no que se refere às suas configurações e articulações. Não existe uma vida privada com limites fixos, mas uma vida privada que só pode ser compreendida no fluir dos sujeitos entre esferas que se articulam em mútuas interferências e formas de distinção com a vida pública.98 Considerando a própria forma como nasceu a Bossa Nova, em ambientes específicos, pequenos e muitas vezes fechados em residências ou bares, é possível perceber outras formas de viver urbano. Nesse sentido, a Bossa Nova parecia mesmo expressar uma “música de apartamento”. No entanto, torna-se necessário compreender as experiências urbanas das camadas médias no Rio de Janeiro dos anos 50 e 60, como articuladas ao meio social/cultural/econômico desta época, a partir dos lugares e dos ambientes em que esta experiência musical era vivenciada e escutada. Isto possibilita que se vislumbre aspectos de um novo viver urbano: um jeito de ser e de se viver no Rio, evidenciando diferenças na maneira de se morar e nas formas de relação entre público e privado. A partir dos anos 40, Copacabana sofre um processo de verticalização com a construção de prédios, resultando em um crescimento desordenado do bairro. A partir da década de 50, surgem os conjugados e o conseqüente aceleramento do crescimento demográfico, como já foi descrito anteriormente. A indústria da construção civil fazia campanhas publicitárias, ressaltando os benefícios de se morar perto do mar e tudo o que isto significava em torno de uma melhor qualidade de vida. Num outro viés, a verticalização é uma saída para a falta de espaço da zona sul, comprimida entre o mar e as montanhas 99. Aos poucos, a valorização imobiliária do bairro e os projetos dos prédios acabaram por suprimir os jardins e áreas de lazer, juntando os edifícios 98

Antoine PROST, Fronteiras e espaços do privado. In: Antoine PROST e Gérard VINCENT (Org.). História da vida privada: da Primeira Guerra aos nossos dias, p.15. 99 Ciro Flamarion CARDOSO y Paulo Henrique ARAÚJO, Río de Janeiro. 258

ainda mais. Com o surto industrial pelo qual o país e a cidade passaram nas primeiras décadas do século XX, a indústria da construção civil ganhou cada vez mais impulso, passando por um processo de expansão, desenvolvendo projetos arquitetônicos e estruturais de casas e prédios residenciais, onde com concreto armado – econômico, funcional e “moderno” – o que vai formatando as varandas e os beirais das fachadas dos prédios, só para citar um exemplo.100 No início da década de 60 – já não mais Distrito Federal, mas pertencendo ao estado da Guanabara – a cidade viveria, sob a administração de Carlos Lacerda, um outro ciclo de debates visando a um novo planejamento urbano, que tinha como um de seus pressupostos, um estudo detalhado de duas comunidades ou bairros: o Mangue e Copacabana. Apesar do plano Doxíades, como ficou conhecido, não ter sido completamente efetivado, esta ação era indicativa da preocupação que Copacabana gerava no que tange aos seus problemas urbanísticos. Esse processo de intervenção que neste momento priorizou a ampliação da rede de esgotos, a construção do aterro do Flamengo e a urbanização do seu parque, além da construção de viadutos e inúmeros túneis ligando as diversas áreas da cidade, como o Rebouças, Santa Bárbara, Major Vaz, executou um programa inédito de remoção de favelas localizadas em pontos nobres da cidade, (que segundo os discursos oficiais deveriam servir para a venda e captação de dinheiro para a melhoria das condições da cidade), levando a população dali para locais distantes como Jacarepaguá, Bangu, Vigário Geral, fundando novos bairros com conjuntos habitacionais planejados como Cidade de Deus, Vila Kennedy entre outros.101 Esta nova configuração urbana traz também algumas pistas a respeito da organização dos âmbitos público e privado. O hábito de morar em apartamentos parecia revelar um viver urbano característico das camadas médias e mais propriamente, da zona sul. “as diferenças eram muito grandes : lá [fora da zona sul] era casa, aqui era apartamento. Copacabana .... era o auge de Copacabana, e nós todos morando em apartamento, a música teve de ser cantada mais baixo, porque a gente se reunia muito de noite, as pessoas, os pais já iam dormir, então a gente ficava num cantinho e tocava, não podia acordar os pais, não podia acordar os vizinhos, tinha sempre um cara batendo com um cabo de vassoura... Então a música se acostumou a essa coisa baixinha nossa... Lá no subúrbio, você tinha quintal e as pessoas iam fazer serestas, era sempre aquela coisa... Então ela [a Bossa 102 Nova] tem essa diferença de condições mesmo.” (Roberto Menescal )

100

Miran de Barros LATIF, Uma cidade nos trópicos: São Sebastião do Rio de Janeiro. Ciro Flamarion CARDOSO y Paulo Henrique ARAÚJO, Río de Janeiro. 102 Depoimento concedido em 25/01/96, no Rio de Janeiro. 101

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Nas memórias de Menescal, percebe-se a construção da idéia de que haviam diferenças entre os lugares do Rio: se por um lado havia uma zona sul no “auge de Copacabana” com ares de metrópole, grandemente povoada, repleta de “arranha-céus”, bares, restaurantes, boates, configurando um ambiente de lazer, diversão e modernidade, havia também a zona norte, caracterizada como lugar de casas e quintais, onde “as pessoas faziam serestas”, um território mais antigo e conservador; um lugar, enfim, ainda não inserido na modernidade. Sem dúvida, esta região da cidade, nos planos urbanísticos das décadas de 20 e 30, era o lugar da classe média e da classe operária. A estratificação social do Rio fica clara nestes planos urbanísticos, onde na zona sul ficavam as casas das classes médias e altas e a zona norte e subúrbio deviam manter sua heterogeneidade em termos de zoneamento: seus bairros mais “nobres” (Vila Isabel, Tijuca, Andaraí e Rio Comprido) pertenceriam à classe média. São Cristóvão, Cidade Nova e os subúrbios se destinariam às indústrias e à classe operária103. No entanto, convém examinar melhor esta idéia de que a “modernidade” concentrava-se apenas na zona sul. “A Zona sul ela teve a, a, a propriedade, e isso é compreensível, de apresentar os primeiros grandes nomes. E por que que isso é tão compreensível? Porque os jovens que residiam na zona sul eram jovens mais privilegiados, do ponto de vista sócio-econômico. Então, eles tinham mais disponibilidade, tinham lugares maiores pra morar, embora nós morássemos em casas na Tijuca. Mas, enfim, instrumentos musicais....e tinham disponibilidade. Você vê as histórias que eles contam, né, tem sempre uma aula que tá se matando, quer dizer, nós vivíamos a mercê de uma educação mais...de valores mais conservadores e tudo, né. Quer dizer, a hora do colégio era hora do colégio mesmo e tudo, então não tinha... E, claro, né, as moralidades eram mais.... A Tijuca, mal comparando, era uma cidade de interior, se comparada com.... né.” (Carlos Alberto)

Mais uma vez Carlos Alberto vai delineando em suas memórias a construção de um imaginário de diferença dentro da cidade. Claro que as diferenças existiam, não se nega isso. Contudo, ele procura explicá-las por meio da busca da origem da Bossa Nova e de isto ter acontecido na zona sul. Primeiramente, busca explicações sócio-econômicas, considerando que aqueles jovens eram privilegiados e

abastados, com condições de adquirir seus próprios

instrumentos e podendo morar em espaços maiores. Porém, neste momento, sem querer, ele se lembra que na Tijuca também se morava em casas, em geral, espaçosas. A partir desta constatação surgida no momento em que construía a memória, busca dar sentido ao caráter “zona sul” da Bossa Nova pelo viés das “moralidades” que fazia da Tijuca uma província em relação à outra região. Mesmo tendo narrado a sua experiência juvenil na Tijuca como estando em contato

103

Ciro Flamarion CARDOSO y Paulo Henrique ARAÚJO, Op.cit. p.202. 260

com a música, poesia, estudos, seu discurso é atravessado pela noção de que a zona sul seria um espaço mais apropriado para tudo isso. As formas de moradia, o espaço privado vivenciado e lembrado pelos ouvintes analisados mostrava-se inserido numa gama de transformações que marcavam o meio urbano do Rio de Janeiro, alterando as formas de relação entre o público e o privado. A aglomeração de muitas pessoas num ambiente limitado, fenômeno possibilitado com o advento dos apartamentos de vários pavimentos, sugere a idéia de que foi isto o que provocou alterações nas formas de sociabilidade. “Então, se eu tirasse nota vermelha, o castigo era não ir às festinhas, que sempre tinha lá os ‘arrasta pés’; porque, naquela época a gente fazia muito, o pessoal da minha idade, a gente fazia muito o que a gente chamava de ‘água e palito’. Chegava pra mamãe, aqui neste apartamento deste tamanho - Mamãe deixa eu dar uma festa, deixa eu dar uma festa de ‘arrasta pé água e palito?’ - E ela falava – Pode, se é ‘água e palito’ pode. - Por que? Porque se é ‘água e palito’ ninguém comia nada, só água... dançar e beber água; aí podia, não gastava nada; porque todo mundo era mais ou menos classe média e não tinha dinheiro pra gastar em festa.” (Eliane)

Vários depoentes lembram das “festinhas” em casa nos finais de semana, onde os jovens reuniam-se nas casas e se visitavam de maneira intensa. Eliane, moradora de Copacabana, no mesmo apartamento em que vive ainda hoje, lembra que essa troca de visitas era comum entre seus pares, entre outros motivos, por ser mais econômico. Mas este hábito pode também revelar outras formas de convívio, já não apenas em casa e também não totalmente no espaço público. Um espaço autorizado pelos pais, por oferecer alguma liberdade aos jovens, mas mantê-los ainda sob controle. Também Débora, moradora de uma casa na Tijuca, lembra-se das inúmeras reuniões que participava tanto em sua casa como na de amigos em seu próprio bairro de origem e na zona sul, o que aponta para o fato de que este hábito não era uma necessidade ou uma prerrogativa da vida em apartamentos. Reuniões em que participavam não apenas amigos próximos, mas outros colegas, “amigos de amigos”, “conhecidos”, como lembram eles, conformando o espaço de uma sala de visitas que além de foro privado também se abria ao público. Diante do argumento de que, na metrópole, a aglomeração de pessoas, a multidão proporciona que os contatos físicos sejam estreitos, comuns e rotineiros, os contatos interpessoais tendem a ser mais raros, superficiais, transitórios, segmentários, mais distantes e com maior reserva. Uma espécie de anonimato e individualidade seria a tônica das relações sociais no meio urbano, articulada à idéia de emancipação, liberdade de controles morais ou sociais, como uma 261

das prerrogativas da vida metropolitana.104 Neste sentido, uma das formas que o sujeito urbano encontra de manter relações pessoais ou sociais de interesse é a partir da formação de grupos, cujos objetivos podem ser políticos, religiosos, culturais ou de lazer. As identidades dos sujeitos na metrópole vão sendo construídas pelas vinculações a esses grupos, em que valores, hábitos, visões de mundo são compartilhados, mas acham-se em permanente troca, permuta, redefinição, uma vez que a circulação e nomadismo entre os diversos agrupamentos é intensa e incessante, dando origem às formações, como elucidou Raymond Williams. Os comportamentos, valores, subjetividades são elaborados também nestas sociabilidades, em que os limites entre público e privado mostram-se em permanente reformulação. Os espaços da cidade onde conviviam muitos dos ouvintes da Bossa Nova analisados mostrava-se nesta vida metropolitana que alcançava o Rio dos anos 50 e 60, como o lugar da aglomeração urbana, em que os contatos interpessoais pareciam ficar mais difíceis, mas onde o conhecimento mútuo e a proximidade espacial propiciavam os contatos sociais. O Rio de Janeiro possui esta característica própria às cidades, do “mundanismo”, ou seja, uma forma de vida social fundada no ambiente público, dando aos indivíduos a possibilidade de provarem a cidade, retirando-os do convívio meramente privado, e familiar, projetando-os na complexidade da vida urbana em “passeios pela cidade”105. Aqui, esta característica vai gerando uma cidade com “vocação para o prazer”106, como aponta Rosa Araújo, onde o espaço público é intensamente vivenciado. Neste sentido, vai também se criando um idéia da vida carioca e seus habitantes, como indivíduos espontâneos e com facilidade para fazer contatos, que muitas vezes não ultrapassam a superficialidade. Os encontros nas ruas ou em espaços públicos, como os bares ou os pontos da praia, por exemplo, parecem permanecer do lado de fora dos ambientes e sentimentos mais íntimos e privados. Nas práticas cotidianas dos ouvintes analisados, os processos de sociabilidades estariam se redefinindo, sugerindo exemplos que se davam tanto no âmbito público quanto no privado e em locais que faziam a ponte entre estas esferas, como as salas das casas e os apartamentos abertos a amigos, não necessariamente íntimos, os que se conhecia na praia ou os amigos dos amigos, trazendo para dentro da sala este convívio que se faz de maneira rápida e fácil, mas que segue com sua característica de mundanismo, tendo as ruas como seu

aspecto mais

104

Georg SIMMEL, A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio G., Op.cit. p.13. PECHMAN, Robert Moses. C idades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. 106 Rosa Maria B. ARAÚJO, A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro republicano. 105

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preponderante. No sentido contrário, a vida privada também acabava por escapar ao cerco doméstico e invadir esses espaços públicos de vida social: a praia, os bares, as salas das casas e apartamentos em suas “reuniões”, dentre outros. Estas novas formas sociabilidade, aliadas às mudanças nos costumes que também se verificava à época, com uma promoção dos valores femininos e juvenis, acabavam por constituir outros modelos de relacionamento. Vários depoimentos dos ouvintes informam-nos sobre uma experiência urbana vivida na ruas. Alguns, lembram-se de estarem sempre nas ruas com os amigos ou em casas com varandas e portas abertas, uma vez que moravam em bairros como Ipanema, Gávea, que nos anos 50 e início dos 60 ainda tinham poucos prédios, ao contrário da vida turbulenta que se observava em Copacabana. Outros, recordam-se de caminhar por Copacabana, por seus bares e por “habitarem” as ruas até de noite com os amigos, traçando caminhos, criando turmas de ruas ou de trechos de praia. Estes ambientes vão se tornando um híbrido entre o público e o privado, a casa e a rua. Locais de acomodação entre formas de se viver a metrópole que se modificava.107 Caminhar pela cidade permite que os indivíduos se apropriem do espaço urbano, conferindo-lhe identidade. Esta apropriação suscita encontros, constrói memórias, faz com que as referências pessoais se entrecruzem com a memória social.108 Essa espécie de apreensão do espaço urbano expressa-se na lembrança dos nomes de ruas, vias e praças, que passam a ser tratadas com propriedades particulares. Ao citar o nome de todas as ruas onde morou, como faz Glória, ou referir-se à turma de amigos da “Siqueira Campos”, da “Miguel Lemos”, do “posto 4”, “posto9” os depoentes cconstituem um mapa afetivo que se sobrepõe ao mapa oficial da cidade. O bar é um outro ambiente de convivência e de encontro para os sujeitos da Bossa Nova. Em diferentes situações, expressas por meio das canções ou das vivências musicais, este lugar é assinalado como espaço ideal para beber e compor. Rita lembra que ouvia Bossa Nova nos shows que aconteciam nos bares de Copacabana, vendo Nara Leão, Vinícius de Moraes, entre outros. João, morador de Vila Isabel, bairro onde ainda vive, trabalhava na redação de um jornal e também freqüentava, no final da década de 50, junto com seus amigos da zona sul, o Beco das Garrafas, o que lhe permitia um maior contato com a Bossa Nova. O Beco das Garrafas era uma estreita travessa sem saída em Copacabana (rua Duviver), batizada com este nome por Sérgio 107

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Walter BENJAMIN, Paris capital do século XIX. In: Flávio KHOTE (Org.), Walter Benjamin.

Antônio ARANTES, A guerra dos lugares: sobre fronteiras simbólicas e liminaridades no espaço urbano. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, s.n., p.191-203. 263

Porto, devido ao hábito que os seus moradores tinham de alvejar com garrafas vazias os frequentadores das boates Little Club, Baccara, Bottle’s Bar e Ma. Griffe109. Nestes bares, entre outros tantos, além dos encontros, ouvia-se pianistas como Tom Jobim, João Donato ou Johnny Alf. Cafés, bares, galerias e outros espaços de convivência vão surgindo na modernidade, como locais de passagem entre os ambientes público e privado. No bar, além do contato com outras pessoas, é possível se ver a rua de modo a estabelecer uma aproximação sem necessariamente haver confronto ou um contato direto. No bar, o homem vai tomando contato com a metrópole; é nesse espaço que ele, de certa forma, prepara-se para os choques com que se defrontará. Da mesma forma também é possível o caminho inverso, em que as ruas é que são ocupadas como um espaço que antecede o ambiente privado. Nesse lugares, assim como na praia, as pessoas fogem da formalidade de seus papéis sociais, o que os transforma em ambientes privilegiados para a construção de um universo, ou um estado de “espírito de descontração”, onde a vida pública vai estabelecendo-se diferentemente110. Os agrupamentos dos indivíduos na cidade são construídos em torno de “regiões morais”, que não são necessariamente um lugar de domicílio, mas pode ser “um ponto de encontro, um local de reunião”. Estes agrupamentos se dão através de interesses, gostos ou comportamentos comuns. Essa “região moral”, não é um lugar ou área da cidade criminal, patológica ou anormal, mas ambientes onde os sujeitos se associam “por uma paixão, ou por algum interesse [podendo ser] a música, ou um esporte”.

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Esses locais de transição tanto traz o público para dentro do

privado, quanto o privado para o público. A praia, por exemplo, passava a ser o local de encontros entre amigos, mas também de encontros amorosos ou do sujeito consigo próprio, revelando estados de ânimo que tanto poderia ser de tristeza quanto de excitação, numa espécie de organização subjetiva da vida privada dos sujeitos. No ambiente privado, para além das transformações nos hábitos, valores, ocorrem também transformações físicas, como indicam as memórias dos ouvintes. Alguns moravam ou frequentavam apartamentos grandes, divididos entre uma ala social com sala de estar e de jantar, e uma ala privada com quartos, banheiros e cozinha. Lembranças que salientam a idéia de

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Ruy CASTRO, Chega de saudade, p.285. Antoine PROST, Fronteiras e espaços do privado, p.136-137. 111 Robert Ezra PARK, A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In: Otávio Guilherme VELHO(Org.), O fenômeno urbano.

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“modernidade” destas habitações, permitem identificar ambientes abertos aos de fora, aqueles considerados como “apresentáveis”, e os que eram escondidos e reservados como os mais proeminentemente íntimos. Essa divisão já era comum no século XIX, mas aqui há uma valorização dos locais das casas e dos apartamentos destinados às visitas como lugares para um convívio público, justapondo-se às ruas, aos bares e à praia. A sala de recepção surge como locus de transição entre a vida privada e a existência pública112. No mesmo clima de “modernidade” do período já comentado, consolidou-se, na arquitetura, um estilo mais simples e funcional, em que o design dos objetos e móveis seguia os parâmetros de praticidade, adequados à vida moderna. Como lembra Benjamin113, a decoração, a ornamentação dos interiores com objetos e obras de arte era uma das atividades da burguesia, preocupada em propiciar a este ambiente conforto, calor e a segurança, elementos que as ruas deixavam de oferecer. Ao considerar o colecionador como um personagem da modernidade que busca, ao guardar objetos e ter com eles uma relação de afetividade, um certo alívio para o caráter de mercadoria que a obra de arte ganhou, guardando-a em casa para ser admirada, é possível encontrar pistas sobre o recolhimento das camadas médias ao ambiente privado e indícios de como se configurariam as formas atuais de vida cada vez mais enclausuradas e trancadas no ambiente doméstico. Nesse sentido, é possível perceber um processo dinâmico de transformação da experiência urbana privada na mesma medida em que a cidade também se modificava. A metrópole transformava-se juntamente com as formas de encará-la, senti-la e vivenciá-la. O aumento da densidade da população, a aglomeração, os problemas urbanos começam a se fazer sentir ao mesmo tempo que as formas de moradia colocam-se também diferentemente. Ao mesmo tempo que a urbanização e o cosmopolitismo se estabelecem, os indivíduos da cidade passam a procurar cada vez mais uma ligação com a natureza, como atestava Miran Latif de Barros ainda na década de 50.114 Os sentimentos, a introspecção e o lirismo, voltando-se para si mesmo, manifestam-se principalmente nas canções, como um dos meios mais propícios para a evasão destes preceitos. Por meio delas é possível vislumbrar uma certa tentativa de reação ao crescimento da cidade e à configuração da metrópole moderna. Essa reação se dá por meio da natureza como uma saída ou da possibilidade de um reencontrar-se dentro deste meio urbano que faz perder-se. 112

Antoine PROST, Fronteiras e espaços do privado. Walter BENJAMIN, Paris capital do século XIX. In: Flávio KHOTE (Org.), Walter Benjamin. 114 Miran de Barros LATIF, Uma cidade nos trópicos, p.110. 113

265

A sensação que fica, após a análise das memórias da cidade e do viver urbano nos dias de hoje, é a permanente e insistente noção de um tempo que se foi, um tempo passado, perdido em uma certa dose de nostalgia diante do que não pode ser recuperado, uma cidade que já não é, e que só pode ser recuperada por meio das lembranças. A Bossa Nova e sua prosa coloquial, linguagem cristalina e econômica, guarda ressonâncias com o concretismo nas artes plásticas, baseando-se na clareza formal, economia de elementos e rigor geométrico de suas linhas, como também com a poesia concreta, em que a palavra – com sua semântica, forma e fonemas – era pinçada e programada no papel em meio a variadas associações de significados, sons e sentidos visuais, atuando na raiz da linguagem poética115. Também sua estruturação rítmica teria consonância com o ritmo das palavras cantadas, ajudando a construir, por vezes, uma idéia de tempo moderno, de síncopes com acentuações inusitadas de ritmo, sugerindo outras temporalidades na escuta. Todos estes elementos, característicos das artes em geral nos anos 50, deixam conhecer um certo espírito do tempo em que a modernidade e a vida urbana tomavam feições peculiares. É possível reconhecer uma cidade e um meio urbano moderno já nos anos 50. Mas, contrapondo-se a tudo o que isso poderia significar de negativo e problemático, a memória insiste em resguardar daquele tempo apenas o que se quer que ele tenha: tranquilidade, ingenuidade e alegria dourada. As condições da vida moderna provocaram uma certa perda da identidade presente/passado que caracterizava o cotidiano das sociedades pré-modernas, e uma nova experiência de tempo não foi necessariamente acompanhada por uma nova percepção desse tempo. A cidade moderna tem como característica uma vida marcada pelo acontecimento, supondo o imprevisto, o efêmero e a rapidez com que os sentimentos, as sociabilidades e as experiências duram enquanto se realizam no meio urbano. Experimentar o tempo, na perspectiva da modernidade, significa experimentar os choques que constituem a vida nas grandes cidades. Canções com um ritmo cadenciado e acentuações muito próprias iniciando-se com o padrão característico da Bossa Nova e que, em seu meio, tornavam-se melodias mais líricas com acentos rítmicos que sugeriam maior introspeção, ao retomarem a mesma “batida” característica ao final, pareciam ter a capacidade de compensar o tempo perdido, trazendo-o de volta, estancando sua passagem no momento da escuta. Um tempo evocado pela escuta, reversível, pela via da memória, fazendo voltar a cidade que se quer. 115

Júlio MEDAGLIA, Da Bossa Nova ao Tropicalismo. In: ____ Música impopular. 266

Cap. 3.3. – Juventude “Minha juventude não passou de um furioso temporal, Entrecortada aqui e ali por sóis brilhantes como espelhos; Os raios e a chuva devastaram quase todo material, Que só restam em meu jardim muito poucos frutos vermelhos. Eis que eu cheguei ao outono do pensamento, Em que é preciso utilizar a pá num acúmulo Para dar ‘as terras inundadas um novo alento, A água abre fendas grandes como um túmulo. Quem sabe se as novas flores em que se creia Encontrarão neste solo lavado como a areia, O místico alimento do vigor e da renovação? - Ó dor! Ó dor! O tempo engole a vida, O obscuro inimigo que nos rói o coração Do sangue que perdemos tira sua comida.”

Flores do mal, Charles Baudelaire

Ser jovem, passar pela juventude, perdê-la, conservá-la. Fase da vida, estado de espírito, tempo que não volta, momento que se prolonga. São várias as maneiras pelas quais a juventude vem sendo conceituada ao longo do tempo. É possível afirmar que o mundo contemporâneo teria nesse conceito um ideal, uma busca, um jeito de ser, sentir e viver. De outro lado, há todo um discurso sobre a juventude que a declara como alienada, inculta, sem projetos, desinteressada, consumista, hedonista, individualista, massacrada, enfim, pelo mundo do consumo capitalista e tecnológico. Esse duplo sentido do conceito pode ser explicado a partir de uma espécie de associação entre ser jovem como sinônimo de atitude participativa, letrada, unida e engajada nas lutas sociais e políticas – imagem reforçada por rebeliões juvenis acontecidas no passado – e ser jovem – como sinônimo de desinteresse, falta de experiência e de tradição – aqui, relativo ao jovem de hoje - o que os levaria a serem considerados como “novos bárbaros”1que seguem em frente sem olhar para trás, vivendo de modo fragmentado numa espécie de presente constante onde todos os acontecimentos se bastam e se esgotam em si mesmos, de um modo em que nada se fixa ou se conserva nas experiências sociais. Como, impregnados desta idéia atual de juventude, olhar para as experiências de jovens de outros tempos? De que maneira – em meio ao horizonte de expectativas que se tem de manutenção da juventude na aparência e no espírito – ainda é possível incorporar valores, experiências, cultura e repertórios que pertencem à denominada “vida madura”?

Como é

possível escutar vozes, sons e memórias que chegam de tempos outros, sendo construídas no

1

Walter BENJAMIN, Experiência e pobreza. In: ___ Obras escolhidas Vol. I, passim. 267

presente por adultos que viveram e foram impregnados pelo ideal de juventude idealizada na memória histórica? Este é o desafio que se impõe neste sub-capítulo. A preocupação com a juventude coloca-se, em primeiro lugar, a partir do trabalho de pesquisa. Em muitos depoimentos analisados, é possível perceber nas tramas da memória, um falar da juventude, articulado, na maioria das vezes, a um tempo especial, feliz, de realizações, mas também de proibições e lutas que traduzem uma época da vida marcada pela conquista, aventura, vitalidade. Também nas memórias dos participantes da Bossa Nova, de seus músicos, letristas e cantores prevalece a idéia de se valorizar esta fase e de afirmar o caráter jovem daquele movimento e gênero musical. Entretanto, o que está por trás destas colocações é um ideal de modernidade como algo articulado à juventude. Roberto Menescal, Chico Feitosa, dentre outros, recordam o quanto eram “informais” ao se recusarem a tocar de terno, preferindo roupas esportivas e sem “padrões”. A mudança no vestuário, com a substituição do convencional simbolizado pelo “terno azul” e gravata, pela “bermuda e tênis” num show2, demonstra uma busca por se firmarem como inovadores, partícipes de novos padrões juvenis que surgiam. Às músicas com temáticas jovens e uma musicalidade também inovadora que se queria moderna, correspondia também uma performance diferente, gestualidades corporais e vocais que tivessem ressonância na escuta dos jovens ouvintes. Isto está presente tanto nos aspectos comportamentais quanto nos musicais. Além disso, a Bossa Nova, feita em sua maioria por jovens, também se proclamava como dirigida a jovens, questão que assume destaque aqui e que está muito presente no material de imprensa analisado sobre o movimento nos anos 50 e 60, assim como nas memórias de seus produtores. O trabalho com a imprensa da época permite entrever também o quanto a questão da juventude está presente na sociedade, circulando socialmente em matérias diversas, em artigos e conselhos comportamentais, além de estar também na publicidade, numa franca valorização dos preceitos juvenis, mesmo que isto também signifique tentativas de regrá-los. Essa valorização se dá concomitante a uma preocupação que o mundo dos adultos passa a ter em relação ao mundo dos jovens, passando a encará-lo como à parte, com valores próprios e pleno de potencialidades, que poderiam ser desenvolvidas de maneira a corroborar normas morais, comportamentais e sociais vigentes ou, de outro modo, contrapor-se a todas elas. Daí, talvez, as inúmeras referências na imprensa e nos meios de comunicação aos jovens. Ao mesmo tempo, as canções ressaltam a 2

Conforme depoimento a mim concedido por Roberto Menescal, em janeiro de 1996. 268

modernidade própria da Bossa Nova como uma tentativa de se diferenciar da música brasileira que a antecede e de se mostrar como algo jovem. Esta parcela da sociedade passa a ganhar cada vez maior importância na modernidade, em particular nos anos 50 no Brasil.

Percurso teórico Como uma construção social e cultural, a juventude caracteriza-se, como apontam Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt3, por seu marcado caráter limítrofe, situando-se no interior de margens que são sempre móveis histórica e culturalmente, postas entre a dependência infantil e a autonomia da idade adulta. Neste sentido, para além dos limites fisiológicos insuficientes para explicitar o fenômeno, é necessário uma compreensão da juventude em seu caráter ambíguo, fugidio e sem contornos fixos ou nítidos, o que a torna irredutível a uma definição estável e concreta, mas que se configura de maneiras diferentes em cada especificidade social, cultural e histórica. Exatamente por seu caráter ambíguo é que a juventude, como construção social, é repleta de significados simbólicos, promessas e ameaças, potencialidades e fragilidades, tornando-se em todas as sociedades objeto de uma atenção ambivalente, ao mesmo tempo cautelosa e desconfiada mas também plena de expectativas. Como aponta Helena Abramo4, pode-se perceber que até a modernidade européia, a juventude e mesmo a infância não eram preocupações sociais. É no início da era moderna, com a transformação da família e a crescente valorização do espaço e da vida privada, que se passa a dar maior atenção à infância. A instituição escolar também contribuiu para esta mudança, quando a criança passou a conviver com outras, começando a instituir um mundo diferente do mundo dos adultos. Com o prolongamento da vida escolar, a adolescência também começa a ganhar este caráter. Mas seria somente no século XX que a juventude ganharia um olhar mais atento dos adultos e das ciências, configurando-se como um tema social, isto porque eles já vinham se colocando e mostrando-se publicamente em momentos como o do Movimento Juvenil Alemão na última década do século XIX, ou mesmo protagonizando uma crise de valores expressa por um certo ressentimento contra a vida adulta, posições que marcaram os chamados “loucos anos 20”, quando o trauma da Primeira Grande Guerra se fez presente.

3 4

Giovanni LEVI e Jean-Claude SCHMITT (Orgs.), Introdução, passim. In: História dos jovens. Cf. Helena Wendel ABRAMO, Cenas juvenis: punks e darks no espetáculo urbano. 269

Os primeiros estudos sobre o tema no campo das Ciências Sociais surgiram na década de 20. Porém, no início do século, psicólogos já buscavam estudar a adolescência tendo como parâmetro a idéia de um estado de instabilidade emocional caracterizada como tempestade e estímulo. A antropóloga Margaret Mead, estudando a cultura da Samoa, buscou refutar tal idéia, argumentando que o que se generalizava na América não era regra para todas as sociedades ou culturas. Em Samoa, vivia-se um período de desenvolvimento harmônico e de amadurecimento progressivo. Embora outros autores tenham refutado os estudos de Mead, de qualquer forma, o que fica é a noção de que a reflexão sobre juventude na Antropologia baseou-se prioritariamente numa perspectiva de debate entre natureza e cultura.5 Ainda nos anos 20, uma outra tendência delineava-se nas Ciências Sociais frente ao estudo da juventude. A área da Sociologia, que se dedicava ao estudo dos fenômenos urbanos, reunidos em torno da Escola de Chicago, começou a debruçar-se sobre as gangues urbanas juvenis. Frederik Thrasher, em 1927, publicou sua obra sobre os territórios da cidade dominados por jovens de diferentes etnias – italianos, judeus, irlandeses, negros – falando em “zonas ecológicas”, onde a tônica era a idéia de “desorganização social” presente nas grandes cidades, como resultado de um processo de imigração para as regiões marcadas pela pobreza e decadência, onde costumes tradicionais deixariam de existir e abririam espaço para a crise das moralidades, dos laços familiares e de amizade, associando assim, a pobreza destas “áreas intersticiais” à violência urbana, e esta à delinqüência dos grupos juvenis. Surge, aqui, segundo Alba Zaluar, uma idéia de “teoria da frustração”, em que esta seria provocada pela desigualdade no acesso às oportunidades de ascensão social A grande crítica a esta argumentação sobre a crise e a desorganização social é o seu caráter funcionalista, que se utiliza de uma idéia consensual de ordem e formas homogêneas de organização.6 Helena Abramo apresenta um quadro geral das principais idéias que norteiam os estudos sobre juventude, apontando para o fato de que o termo aparece normalmente associado a um estado de rebeldia, revolta, transitoriedade, turbulência, crise, possibilidade de ruptura e conflito. Juventude é um estado de mudança, mas uma mudança que sugere uma revolta que abalaria a ordem social.

5

Carles PAMPOLS, La ciudad invisible: territórios de las culturas juveniles. In: Humberto CUBIDES (Org.), Viviendo a toda: jóvenes, territorios culturales y nuevas sensibilidades. 6 Alba ZALUAR, Gangues, galeras e quadrilhas: globalização, juventude e violência, passim. In: Hermano VIANNA, (Org.) Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. 270

Ainda nos anos 20, os pesquisadores da Escola de Chicago, Robert e Helen Lynd, analisaram um pequena cidade do meio oeste americano, dedicando-se ao estudo das culturas formais e informais das high schools. Ao debruçarem-se sobre outro habitat e outro grupo social, assinalaram a crescente relevância das divisões geracionais na cultura americana, em que as escolas convertiam-se num centro da vida social dos jovens, um espaço de sociabilidade composto por esportes, amizades, festas, compondo um mundo com uma lógica própria no qual atitudes, valores e desejos juvenis eram valorizados como pertencendo a um mundo próprio, o que levava a um atraso na inserção profissional, a uma crescente importância da instituição escolar e a emergência do lazer, ampliando a brecha geracional. Este estudo abriu caminho para uma concepção sobre a juventude em que a faixa etária seria mais importante para explicá-la do que variáveis como classe, cultura ou gênero7. Na década de 40, Talcott Parsons reafirmava as teorias funcionalistas, analisando não mais os jovens desviantes, mas a juventude “normal”, afirmando os grupos etários como fatores de coesão social expressivos de uma nova consciência geracional que cristalizava uma cultura interclassista centrada num consumo hedonista. Este desenvolvimento de uma “cultura juvenil”, segundo o autor, seria decorrente do próprio desenvolvimento do sistema educativo americano, como um sistema que pretende preencher um duplo papel de socialização, em que os grupos intermediários – como as subculturas e os movimentos juvenis – teriam como papel favorecer a transição entre as esferas sociais, resolvendo os problemas de integração. Embora discuta o caráter progressivo ou regressivo que esta cultura juvenil pode desempenhar, é uma abordagem que afirma a idéia de geração, sem atentar para a heterogeneidade do que chama de juvenil.8 Mas foi com Karl Mannheim9 que a chamada “sociologia da geração” se estabeleceria. Discutindo a questão da geração desde a sociologia positivista na formulação históricoromântica alemã, entre outras correntes de pensamento, ele ressaltava a importância do conceito para a compreensão da estrutura dos movimentos sociais e intelectuais, interessado que estava na gênese das gerações, em seus fatores de socialização e seus princípios estruturantes. Segundo Mannheim, geração não se distingue apenas pela contemporaneidade cronológica, mas pelo fato de viver os mesmos acontecimentos e experiências, o que cria e reforça os laços de amizade, solidariedade e dependência entre seus membros, gerando formas comuns de consciência, 7

Carles PAMPOLS, Op. cit. Talcott PARSONS, A classe como sistema social. In: Sulamita BRITO (Org.), Sociologia da Juventude. 9 Karl MANNHEIM, O problema da juventude na sociedade moderna. In: Sulamita BRITO (Org.), Op.cit. 8

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reconhecendo-se dentro dos mesmos códigos, das mesmas práticas políticas, sociais e intelectuais. Não seria a idade que definiria a geração, mas as experiências comuns dos seus membros. As gerações ainda se definiriam por um acontecimento ou por uma série deles que estruturam uma época, fornecendo aos que o viveram uma determinada representação mental da mesma, favorecendo sentimentos coletivos. Mannheim conceituava o problema sociológico das gerações a partir da intersecção entre o processo histórico e o ciclo vital individual, centrando-se na questão da transmissão e atualização da herança cultural de uma geração para outra e estabelecendo a descontinuidade das gerações como um fato social básico. Segundo ele, haveria uma relação direta entre o ritmo das mudanças sociais e a difusão de novas atitudes e proliferação de estilos jovens. Já na década de 50, quando produziu esta reflexão, lidou com o problema da fragmentação e da unidade, afirmando que, diante de diversas questões sociais, os jovens elaborariam o material de suas experiências comuns num progresso de expansão que uniria e ligaria indivíduos socialmente distantes, configurando unidades de geração diferenciadas, mas unidas por um elo geracional. Ele assumia que o potencial de mudança parecia ser inerente à juventude, dada a originalidade que caracteriza a posição de cada nova geração em relação à tradição, no momento em que ingressa no sistema social. Assim, embora os estudos de Mannheim – e de outros que lhe seguiram – valorizem a abordagem histórica e social, sustentando a dinâmica das gerações como fato social básico e contestem uma perspectiva que procurava explicar a juventude por uma abordagem geracional ligada estritamente à questão biológica, a juventude ainda mantinha-se como uma categoria genérica, pois apesar de reconhecerem seu caráter fragmentário, era a unidade geracional e seu potencial de mudança que se buscava. O que se pode perceber em grande parte destes estudos sobre a juventude é uma compreensão genérica da mesma, verificada principalmente em momentos marcados por acontecimentos de ampla repercussão, quando a ela se atribui o papel de propulsora real ou imaginária dos processos de transformação. Essa posição é facilmente verificada nestes estudos sobre geração, embora existam diferentes matizes e diferenças nestas abordagens. Por outro lado, há uma outra perspectiva que valoriza a especificidade das experiências juvenis, chamando atenção para seu caráter fragmentário e diverso, em que a experiência juvenil é vista não como um fenômeno meramente geracional, mas como um fenômeno que implica em fazer parte de grupos sociais e culturais específicos, matizado por múltiplas identidades. Nesta perspectiva,

272

estão os estudos da Escola de Chicago, analisando grupos específicos como as gangues, os jovens das classes baixas, a delinqüência juvenil, bem como os jovens schollars. Nos anos 60, pode-se perceber uma tendência em se conceber o jovem de maneira genérica, devido à eclosão de movimentos estudantis, juvenis, de contra-cultura, inventando uma identidade marcadamente juvenil e contestadora, da qual a indústria cultural apropriou-se e ajudou a formular. Criou-se um imaginário sobre a juventude daquela época que serviu de parâmetro para se pensar em comportamentos alternativos, engajados, contestadores e conscientes, que coloca à margem outras gerações e mesmo outros jovens daquele momento que não se inseriam neste ideal. Já nos anos 70, esboçava-se uma tendência de reação a isso, numa tentativa de evitar que se operasse com a categoria “juventude” como uma faixa etária objetivamente definida e encarcerada em conceitos pré-estabelecidos, identificada como um grupo naturalmente constituído por problemas ou interesses comuns, numa idéia de “fase da vida” que poderia encobrir as diferenças culturais, de classe, gênero e etc. É nesse momento que surgem as pesquisas do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, em Birmingham10, apontando para o potencial de resistência cultural nos comportamentos dos jovens das classes trabalhadoras, contestando a idéia de passividade frente à cultura de massas e a passividade da geração pós-68, argumentando sobre a recepção como negociação e elaboração ativa, constituindo identidades específicas. As principais críticas feitas a estes estudos específicos da década de 70 recaiam em seu enfoque na classe social, o que resultava, de certa maneira, no esvaziamento da importância do fator etário e também da questão de gênero, dando ênfase a grupos masculinos, além de não considerar as relações destes jovens com o mundo dos adultos. Porém, a crítica mais contundente, recai na perspectiva explicitamente contestatória, contra-hegemônica e resistente que estes estudos atribuíram às subculturas juvenis.11 É preciso dizer que os estudos sobre a juventude devem pautar-se numa reflexão que leve em conta o caráter fluido e permeável dos grupos sociais – geracionais ou não, juvenis ou não. O ideal seria falar em juventudes no plural e não em juventude, buscando exatamente a diversidade e a pluralidade das experiências sociais, evitando, assim, a uniformidade. Um dos caminhos esboçados nos estudos atuais sobre a questão a toma por um objeto nômade e de contornos 10

Trata-se aqui de uma obra específica: Stuart HALL e Tony JEFFERSON, Resistence through rituals: youth subcultures in post-war Britain. 11 Hermano VIANNA (Org.) Introdução. In: __ Galeras cariocas. 273

difusos, como a descreve Jesús Martín-Barbero12. Uma das perspectivas de análise em que é possível identificar esta visão é na relação dos jovens com o território, onde eles se colocam sempre em fluxos e diante de fluxos. Ser nômade, neste sentido, significaria o transitar dos jovens pelas cidades, inseridos que estão numa realidade e num cotidiano complexo, sem localizações fixas, o que permite que circulem em vários ambientes seja de modo concreto, seja de modo virtual, promovendo o que Martín-Barbero chama de “desordenamento cultural”, algo que tem a ver com o desenvolvimento de novas sensibilidades para o tempo, o espaço e para as tecnologias. Tudo isso desdobra-se naquilo que o autor chama de “tecnicidade”, um conceito que pressupõe os receptores, as formas de apropriação das técnicas e o modo como são interiorizadas. Estudos como este – e tantos outros13 – ocupam-se em perceber como os jovens habitam, circulam e se apropriam do meio urbano a partir de seus próprios “fluxos” na cidade, nas atividades de lazer, no trabalho, nos finais de semana, nos deslocamentos para a escola, evitando enclausurá-los em locais e categorias como a família, a escola, a igreja, as festas, entre outros. No entanto, há ainda que se considerar estas instituições e suas conexões com os jovens que, apesar de diferenciadas, são ainda fundantes. Por um lado, há uma dimensão concreta desta ocupação dos jovens pelas cidades, independentemente da classe social, idade, gênero, etnia, embora estas variáveis dêem configurações diferentes para as experiências juvenis e se misturem em todas as partes da cidade. Por outro lado, o nomadismo pode ser atestado não somente pela circulação propriamente, mas também pela configuração de uma percepção nômade que acaba por constituir uma sensibilidade ou um sensorium diferente dos jovens de épocas anteriores, estando estes jovens atuais preparados para os choques da modernidade – lembrando mais uma vez Walter Benjamin –, e para enfrentar as novas tecnologias, a aceleração da história, as compressões do tempo e do espaço, a efemeridade, enfim, características que são incessantemente renovadas na vida moderna das metrópoles. Os fluxos visuais, auditivos, táteis, olfativos, multisensoriais que os jovens têm que filtrar, acabam por elaborar esta percepção nômade, compondo novas narrativas do mundo, novas formas de sentir, olhar escutar a vida, muitas vezes mais fragmentárias, delineando uma idéia de zapping, que não se refere apenas às tecnologias, mas “zapear” pela cidade, entre as diversas

12

Cf. Jesús MARTIN-BARBERO, Os exercícios do ver. Cf: Humberto CUBIDES (Org.), Viviendo a toda: jóvenes, territorios culturales y nuevas sensibilidades; e também NOMADAS – La singularidad de lo juvenil. Bogotá: Departamento de Investigaciones Fundación Universidad Central/Siglo del Hombre Editores, n.13, Octubre/2000. 275 p. 13

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mídias e as diversas formas de informação.14 No entanto, ainda que o nomadismo seja uma característica universalizante, existem diferenças que dependem da classe social, gênero, idade e etnia a qual pertençam. Por esta razão é que este nomadismo deve ser visto como uma percepção, no qual a tecnologia é a mediação. Martin-Barbero critica ainda as tradicionais pesquisas sobre juventude que, segundo ele, são análises míopes. Primeiramente, porque a juventude é vista como a fase da vida que potencialmente seria uma ameaça social, por ser violenta, emocionalmente fraca, rebelde. Em segundo lugar, porque as pesquisas não vêem os jovens na sua dimensão cultural, somente nas dimensões políticas, sociais e econômicas, valorizando apenas trabalho, família e escola. Para o autor, estudar o jovem significa principalmente lançar um olhar aguçado para a profundidade dessa dimensão desprezada, buscando suas formas de oralidade, suas relações com as tecnologias, com a cultura imagética, com a cultura letrada e com as idéias de experiência e memória15. O autor propõe avançar nesta direção, trazendo para o centro da análise o lazer, o consumo cultural, os desejos, os afetos e as violências, ou seja, tudo aquilo que sempre havia estado à margem na análise da juventude. Para romper tais reflexões, segundo o autor, é preciso ir na contramão dos violentólogos, discutindo a densidade cultural dessa violência, por exemplo. E também, assumir o consumo, tão associado aos jovens, não apenas como algo concreto, mas também imaginário. É preciso assumir que se vive hoje numa cultura hegemônica das imagens – o que se insere no que já foi conceituado como a segunda oralidade das culturas latinoamericanas – e isso não pode ser definido por exclusão, tendo como referencial ideal o adulto letrado. A Bossa Nova foi um movimento musical produzido por jovens. Raymond Williams16 atentava para a importância de se perceber nos fluxos, no nomadismo cultural e nas formas de produção, como as práticas cotidianas acabam por produzir práticas culturais e artísticas significativas, saindo da informalidade do cotidiano e chegando até as mídias. Para ele, é necessário entender os grupos jovens como “formações” – como já explicitado – e não como instituições, isto por apresentarem características mais fluidas, abertas, moventes e nômades. Compreender assim, os processos de formação dos grupos, buscando captar as modalidades de 14

DOSSIÊ UNIVERSO JOVEM II - O Jovem e a Mídia. Realizado por Carlini Pesquisa de Mercado - Marcos CARLINI. Data do campo - Junho de 2002. Realização MTV Brasil - outubro de 2002. 15 Jesús MARTIN-BARBERO, Jóvenes: des-orden cultural y palimpsestos de identidad. In: Humberto CUBIDES (Org.). Viviendo a toda. 16 Cf. Raymond WILLIAMS, Cultura. E também _______ Marxismo e Literatura. 275

auto-organização, quais as suas matrizes culturais, seu consumo cultural, pois sempre há na origem uma tradição – sempre seletiva –, elementos residuais, emergentes e dominantes. Uma vez que a tradição já se encontra diluída, é preciso buscar aquilo que ganha sentido na atualidade, pois não há como encontrar a tradição original, mas somente aquela seletiva e residual. Ora, este aspecto das formações é de fundamental importância para a compreensão da juventude. Perceber estas dimensões subjetivas dos membros das formações é tornar evidente atuações não apenas nos propostos inscritos, mas também nos significados difusos do contexto da época, uma vez que não se pode esquecer que os membros de uma formação participam de várias delas ao mesmo tempo. No caso da Bossa Nova, essas formações podem ser identificada nas reuniões musicais nos apartamentos, nos bares de Copacabana, nas reuniões dos CPCs da UNE, etc. No entanto, há que se atentar para o fato de que o que se verifica a partir da segunda metade do século XX é uma certa idéia da juventude como referência de sociedade, em que a modernidade engendra tradições que vão se construindo como projeto cultural. A juventude faz parte deste processo, transformando-se num elemento constitutivo de identidade que se buscava. Edgar Morin17 chama a atenção para este processo ainda nos anos 50, como parte do estabelecimento da cultura de massas nas sociedades modernas, ligado também ao tempo livre e ao lazer, definindo-o como promoção dos valores juvenis ou juvenilização da sociedade, em que os heróis imaginários difundidos pela cultura de massas tomam lugar dos ancestrais e da família na dinâmica de identificações. Articulado a isso está o ideal de auto-realização, supondo o desfrutar de um eterno presente em que há amor, aventura, beleza, vigor, felicidade e não se envelhece. Uma mudança vai se operando na sociedade, a infância é encurtada e a juventude prolongada, aumentando esta fase de “moratória social”, convertendo a juventude num território de experimentações e mobilizações. A juvenilização se liberta da idade, convertendo-se em um imaginário moderno de força, saúde, beleza e ventura em busca de amor e paixão, completando um imaginário de felicidade e plenitude que extrapola a faixa etária, transformando-se num modelo buscado pelos adultos. Se até aqui, como aponta Martin-Barbero18, falar sobre a juventude era sempre dizer o que ela não era, considerando-a imatura, instável, irresponsável, improdutiva, assinalando uma negatividade na condição juvenil, a partir desse momento ser

17 18

Cf. Edgar MORIN, Juventude. In: ___ Cultura de massas no século XX : o espírito do tempo I - Neurose. Cf. Jesús MARTIN-BARBERO, Jóvenes: des-orden cultural y palimpsestos de identidad. 276

jovem adquire um valor positivo, significando a matriz de um novo ator social e de um novo imaginário buscado. No entanto, é sempre necessário historicizar esta idéia de juventude. Se por um lado, é importante atentar para o que há de universalidade na categoria juventude, que seria a contestação, rebeldia, etc., por outro lado, estes conteúdos universais não bastam para compreendê-la, senão por uma análise das particularidades históricas e específicas de um grupo de jovens. Faz-se necessária uma interpretação da juventude e de suas experiências, considerando ambos os lados, tecendo em conjunto o que é próprio e constitutivo do ser humano jovem – como a distância da idéia de morte, o vigor físico, a disponibilidade maior para mudanças – com o significado disso nesta sociedade e grupo analisado, compreendendo suas especificidades. 19 O que se busca na análise das questões ligadas à juventude, reiteradas nas memórias dos ouvintes da Bossa Nova, é uma compreensão do cotidiano destes jovens naquela cidade, integrando aquilo que é universal e preponderante nas concepções e no imaginário sobre o jovem da época, com as especificidades das vidas vividas e lembradas. Procurar interpretar este cotidiano, esta experiência nos fluxos dos ouvintes pela cidade, na percepção nômade que já ia se delineando e que compunha sua leitura e escuta do mundo, andando pelas ruas, praias, estudando, trabalhando, convivendo com a expansão da cultura de massas e com as novas tecnologias que a modernização trazia, assistindo nos cinemas aos ideais da vida norte-americano, sendo cerceados pelos discursos normativos das várias instituições que buscavam regrar suas práticas. Enfim, interpretar o que era ser jovem naquele momento e experimentar esta condição, compreender o jogo da memória sobre esta questão, por meio do modo como a memória do adulto constrói sentidos, idéias, silêncios, narrativas sobre aquela experiência juvenil.

Imaginários sobre a juventude Ronaldo Bôscoli – letrista da Bossa Nova – conta em suas memórias que quando tinha por volta dos 20 anos, não trabalhava, vivia na praia praticando esportes, namorando, “pegando jacaré”, jogando futebol. Tendo os pais se desquitado quando ainda criança, foi educado em colégios internos até o quarto ano ginasial decidindo, depois, abandonar os estudos e “tentar” trabalhar. Por esta época, no entanto, mostrava-se muito inclinado à prática de esportes, nadando e competindo por seu clube do coração, o Fluminense Futebol Clube. 19

Cf. Humberto CUBIDES et alli. (Orgs.), Op.cit. 277

“Bem, por esta época eu era a materialização viva daquele mocinho bonito do samba do Billy Blanco, que não trabalha e se sustenta com o dinheiro que a irmã lhe dá toda semana. Achava que ia resolver minha vida de maneira muito simples, dando o golpe do baú e ficando muito rico.”

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No espaço da memória construído por Bôscoli, a música de Billy Blanco mostra-se como referência juvenil, funcionando como uma espécie de ilustração da memória. Definindo-se por “mocinho bonito”21, Bôscoli tentava ressaltar no presente uma experiência jovem dos anos 50, algo que ele mesmo nomeou como um “carioca way of life”, traduzido por um viver urbano na zona sul, freqüentando festas, cinemas, barzinhos, indo a praia. Todas essas atividades regadas à muita música “moderna” (Dick Farney e Lúcio Alves), jazz e Frank Sinatra, compõem um padrão de juventude ligado às camadas médias cariocas. No entanto, é necessário questionar os limites do que significava ser um “mocinho bonito” nos anos 50. “E a Bossa Nova, na minha cabeça - eu que era muito ligado à Bossa Velha, eu gostava de música antiga era assim de um mundo que eu não tinha acesso à ele, eu costumava, quando eu comecei a trabalhar em jornal, já faz muito tempo, eu comecei em agosto de 60, eu costumava às sextas-feiras, eu saía com amigos solteiros como eu, e ia para as boates de Copacabana. Aquilo pra mim era um mundo... imagina eu em Vila Izabel, e o túnel, o túnel não era assim... primeiro não existia o Rebouças. Copacabana era uma boa viagem, a não ser que eu viesse de táxi, mas eu sempre muito duro, não andava de táxi. (...) As famílias de classe média do bairro, o que a gente entende hoje como classe média, eram muito diferentes, elas não eram exatamente pobres, mas tinham um limite muito baixo de aquisição, você não tinha geladeira, você não tinha televisão, você não tinha esses bens de consumo todos, então essas coisas não faziam tanta falta para as famílias de classe média; todas elas preparavam os filhos ou pra ser médico, doutor, porque aquilo que se chamava de colocação, ter uma colocação numa entidade burocrática qualquer... e muito principalmente militar, porque você com dezessete anos entrava na academia, já ganhava um dinheirinho na academia e estava encaminhado pro resto da vida; era uma boca a menos em casa e mais uma carreira encaminhada. (...) em 1960 eu era dentista, tinha me formado em Odontologia. Eu tava já no meu segundo ano de formado; não tinha consultório, não tinha condição de montar um consultório, que era coisa muito cara pro poder aquisitivo meu e do meu pai. Ainda era sustentado pelo papai, não dava pra comprar (...) então, fiz isso: fui na Tribuna e pedi lá um lugar de estagiário, que eu gostava muito de futebol; trabalhava na área de esportes. Só que no ano seguinte eu larguei, dois anos depois, eu larguei a odontologia e fiquei com o jornalismo.” (João Maximo)

João Máximo, hoje renomado jornalista e escritor, relembra sua juventude em Vila Izabel, bairro em que mora até hoje, apontando elementos que se diferenciam da vida da zona sul presente de modo hegemônico nas memórias. Ele mesmo a constrói no presente como um local badalado e liberal, mas ao qual não pertencia e não tinha fácil acesso. Este ideal de “mocinho bonito”, evocado por Bôscoli, não parecia ser tão hegemônico. João Máximo deixa entrever o

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Ronaldo BÔSCOLI, Eles e eu: memórias de Ronaldo Bôscoli (depoimento a Luiz Carlos Maciel e Angela Chaves), p.17. 21 Música de Billy Blanco composta em 1952 e gravada no mesmo ano por Doris Monteiro. 278

cotidiano de jovens das camadas médias baixas, em que o consumo de bens materiais e eletrodomésticos ainda não era tão generalizado, isto porque o próprio poder aquisitivo era menor. A preocupação das famílias e dos próprios jovens destes meios era com uma colocação profissional que lhes garantisse estabilidade social e financeira por meio de empregos públicos ou de uma formação universitária que lhes outorgasse a distinção de “doutor”, como médico, dentista, advogado ou engenheiro. Esse era um ideal que a sociedade buscava para os jovens rapazes, um ideal de estabilidade, tanto econômica quanto social e moral, que lhe prepararia para ser um adulto regrado tal qual seus pais. Porém, ao mesmo tempo, este padrão normativo nem sempre se efetivava de maneira tão unívoca. Após ter se formado em odontologia, Máximo não conseguiria exercer a profissão, tendo se tornado jornalista, ofício que desempenha até hoje. Essa escolha não era vista com bons olhos pelas famílias, isto porque fugia ao padrão burguês de estabilidade econômica e até comportamental que se queira, pois a vida nas redações do jornal era considerada instável, afeita ao mundo da boêmia. O encaminhamento de uma profissão e de emprego se aliava ao preparo para um casamento ainda bem jovem, como lembra Máximo. Ele também fala de como os jovens nos anos 50 eram preparados para casar, era isso o que se esperava deles, a constituição de uma família que mantivesse a ordem social, algo que – pode-se interpretar – não parecia combinar com o trabalho numa redação de jornal, que lhe propiciava suas idas até a vida “liberalizada” e permissiva das boates de Copacabana. Não reitera-se que os jovens vivessem realmente encarcerados naquilo que o discurso normativo lhes outorgava. No entanto, o ideal de juventude rebelde que ia contra os padrões exigidos ou esperados pelo mundo dos adultos – como relata enfaticamente Bôscoli – é muito mais uma construção da memória do artista, escrita em1994, do que algo que unifique de modo hegemônicoas lembranças atuais sobre a juventude. As recordações de Máximo não são nostálgicas ou saudosas de um tempo belo, leve, vivido e perdido, mas sim uma espécie de constatação de que foi necessário romper com muitas das limitações que lhe eram impostas, traçando sua trajetória como vitoriosa, num certo sentido, ao superar aquilo que era ruim, a partir de seu ponto de vista. “Trabalhei na minha cidade numa fábrica de tecidos e quando cheguei aqui no Rio trabalhava na fábrica da Souza Cruz. Depois, não, nunca mais. Trabalhei cuidando de filhos, só filhos, ai eu optei pra isso, parei de estudar, parei com tudo. Estudei até o segundo grau incompleto, porque eu também parei. No meu tempo, as mulheres eram educadas pra casar e aquela coisa, casar, ter filhos, família, mais nada. Mas... eu tinha vontade de estudar, mas aí eu entrei em acordo com o meu marido e eu disse ‘não, eu vou parar, parar porque eu vou cuidar dos meus filhos’. Aí eu parei. Eu fui mãe de seis. Cinco homens e uma mulher

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(...) Mas o meu plano era ficar por lá mesmo [na cidade onde foi criada]. Eu tinha o meu...O sonho é...Aquela coisa de criança, né? Meu sonho, às vezes eu conto pros meus filhos, meu sonho tinha uma casinha branca assim no alto lá, bem no alto pra você ver que é criança mesmo, aí olhava assim ‘quando eu casar...’. Porque é aquela coisa, a gente foi educado pra casar, não interessa; não precisava nem estudar, nem nada, era casar. Então, eu olhava a casinha e dizia: ‘quando eu casar eu vou morar lá naquela casinha’. Porque eu achava bonitinha, que tinha uma varandinha, sabe? Tinha umas plantinhas penduradas. Mas aí eu não tinha outro sonho não, sabe, de vir pro Rio. Não tinha esse sonho de vir pro Rio. Eu vim porque aconteceu, entendeu? E outra coisa, eu não tinha interesse de vir pro Rio, mas só namorava rapazes de fora. Eu não namorava, quase, rapazes de lá da minha terra. Eu queria sair de lá um dia.... Não percebia, eu acho que eu queria sair de lá mesmo! Porque eu só namorava rapazes de fora, entendeu? É que eu não gostava de namorar os garotos de lá. Que eu achava que eles eram muito imaturos, sabe, muito...(..) Por isso que eu só namorava rapazes de fora. E tinha que ser ... bem mais velhos, entendeu Mas acho que o meu interesse era mesmo vir pro Rio, sair de lá. Pro Rio ou pra outro lugar.(...) Mas a gente era criada pra casar, era educada mesmo pra isso. A gente não tinha muita...Uma, a gente não tinha muita liberdade. Nem pra conversar com mãe, conversar com ninguém. Os mais velhos não conversavam com a gente. A gente não tinha orientação nenhuma, tá. Nem sobre sexo, nem sobre nada! So diziam que a gente tinha que ter cuidado. Também não disse, assim, claramente o que era...A gente procurava saber também das outras, também não sabia. Era todo mundo desinformado. A gente teve uma vida muito...A nossa vida foi muito difícil. Foi...A vida assim de pessoas da minha idade, muito difícil. E a gente não tinha acesso a nada. (...) Então era uma coisa que, às vezes, a gente ia prum casamento abobalhada, mas ia mesmo. Porque não sabia, não entendia nada.” (Dinah)

Dinah revela, por meio de suas lembranças, que entre as camadas mais baixas da sociedade, as moças também acabavam entrando para o mercado de trabalho cedo. Dinah nasceu e viveu até a adolescência numa cidade no interior fluminense, onde já trabalhava numa fábrica. Ao chegar no Rio, continuou trabalhando até casar, quando passou a se dedicar exclusivamente à vida doméstica, cuidando do lar e dos filhos. Ela chama a atenção para o tipo de educação das moças de sua época, que eram criadas para o casamento “e mais nada” e lembra-se da falta de diálogo com o mundo dos adultos, no que se refere a educação sexual, questão posta em vários momentos do depoimento como sendo um problema de sua geração: falta de informação associada à falta de liberdade. Voluntariamente, Dinah se descreve como alguém que se conformava com este ideal de casamento, relatando seu desejo, desde criança em viver na sua cidade natal, numa “casinha no alto da montanha” e seu desejo de não querer sair dali. No entanto, ao longo do ato memorioso, surge um sentimento destoante quando ela conta que só namorava rapazes de fora da cidade, chegando a afirmar – espantada consigo mesma, no meio do depoimento – que, não percebia, mas no fundo, queria sair dali, como acabou fazendo. Mais uma vez, memória voluntária e involuntária cruzando-se e trazendo outras leituras da vida que se viveu. Cruzamentos permitindo interpretar um cotidiano de jovens que, ao mesmo tempo, em que pareciam seguir o discurso e a tradição, aquilo que era esperado deles, também a isso se opunham, mesmo que de modo fragmentado e bifurcado.

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Um ponto ressaltado explicitamente por João Máximo é o fato de lembrar-se de como sentia a Bossa Nova naquele momento. Segundo nos conta, esta música era “todo um mundo” que ele queria alcançar, um mundo de modernidade e leveza nas relações amorosas, sem o peso dos preconceitos e das moralidades excessivas. Dinah não se refere da mesma maneira às músicas, mas isto não impede que se possa interpretar fragmentos de sua escuta e as formas de elaborar imagens daquele mundo diferente do que vivia evocado por essas músicas. Há canções que remetem a este imaginário, seja tematizando belas jovens mulheres na praia, como aquela de Ipanema, que passa, encanta e se vai, ou ainda aquela do Leblon, que também não pertence a ninguém22, seja ainda as inúmeras canções que se referem a um otimismo em relação ao sentimento amoroso, ligadas à luz do dia, a alegria do mar ou ainda aquelas que descrevem um amor passageiro, de uma noite só e que termina quando o dia nasce. Neste sentido, é que as lembranças de Máximo se apoiam numa idéia de que a Bossa Nova preconizava uma modernidade, uma sociedade livre de preceitos morais rígidos e mesmo de uma positividade na forma de olhar o amor, não mais como tragédia fadada à solidão, ao desamor, mas com um amor correspondido, ou pelo menos, com a certeza de que uma possível desilusão passaria e logo viria um outro amor. Dinah, em suas memórias, também constrói um ideário de uma juventude difícil e cheia de restrições, mas deixa entrever que supunha a existência de jovens que vivessem em outras circunstâncias. Importante destacar como todo este ideário de modernidade que a Bossa Nova preconizava se aliava à idéia de juventude. Estes novos comportamentos referiam-se aos jovens, um jovem moderno que parecia estar superando todas as limitações e discursos normativos, sanções que o mundo dos adultos e a sociedade lhe impingiam. Desta forma, para os jovens da zona norte da cidade – que já construíam a zona sul como um mundo diferente, distante do seu – as imagens de uma juventude moderna e liberal que parecia ser específica daquele lado da cidade, sustentavam fortes nuances de um mundo a ser alcançado. Roland Barthes23 lembra que a escuta se dá em três formas distintas, sendo a primeira indicial, muito ligada à nossa natureza animal, aquela que nos situa no tempo e no espaço, captando graus de distanciamento e proximidade da estimulação sonora. A apropriação dos espaços, assim, seria sonora, reconhecendo o que é familiar e distante, permitindo, inclusive,

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Refiro-me, aqui, respectivamente, às canções Garota de Ipanema e Teresa da praia. Cf. Roland BARTHES, A escuta. In: ____ O óbvio e o obtuso: ensaios críticos. 281

reconhecer-se na escuta. Por esta noção de território, espaço apropriado e familiar, compreendese esta escuta indicial como aquela que busca o espaço da segurança. Ora, se esta noção for ampliada e se for considerado que a escuta de ouvintes que viviam em bairros da cidade distantes da agitação da zona sul e de Copacabana nos anos 50, lugares onde a paisagem sonora predominante eram sons de crianças brincando nas ruas, sons das conversas nas calçadas e nas casas e ainda os sons que vinham do rádio, é possível compreender o sentimento de estranhamento que a Bossa Nova, seus ruídos, evocações, temáticas e performances podem ter causado em Máximo e Dinah. Não supondo uma falta de “capital cultural” destes em compreenderem e apreciarem a nova música, mas reconhecendo que a diferença aí trazida pela escuta evocava, em seus imaginários, um mundo novo e diferente. Uma escuta possibilitadora das formas de contato entre o indivíduo e o mundo opera a metamorfose do perigo e do indistinto escutados indicialmente em algo distinto, pertinente, mais próximo. Não só as letras das canções referendavam este imaginário do jovem da zona sul, como também a própria música corroborava para a mesma sensação, com seu ritmo cadenciado, melodias reiterativas e harmonias diferentes do que se ouvia até então hegemonicamente nas rádios, lembradas por Máximo e Dinah como sendo a “Bossa Velha” ou as “cantoras do rádio”. Uma memória de um tempo em que esta diferenciação da musicalidade e das formas de sentir as canções é marcada, outro tempo evocado, a modernidade que traziam no ar com uma juventude que ganhava espaço, formas de expressão de novos modelos comportamentais postas na forma de escutar e nos registros da memória do adultos hoje. “Tuén tuén Ocupado pela décima vez Telefono e não consigo falar Tô ouvindo há muito mais de um mês Já começa quando eu penso em discar Eu já estou desconfiado Que ela deu meu telefone pra mim E dizer que a vida inteira esperei Que dei duro e me matei pra encontrar Toda lista quase que eu decorei Dia e noite não parei de discar E só vendo com que jeito pedia pra eu ligar Não entendo mais nada Pra que fui topar Não me diga que agora atendeu Será que eu, eu consegui A moça encontrar A moça atendeu: alô !”

(Telefone, 1963) 282

Uma canção como Telefone, de Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal, apenas um exemplo entre tantos outros possíveis, estas características descritas ficam mais percebidas. Na sua primeira gravação, em 1964, interpretada por Lúcio Alves, Sylvia Telles e o conjunto de Roberto Menescal – num LP da Elenco chamado Bossasession – é forte a inspiração jazzística que naquele momento era sinônimo de moderno. Para além da melodia reiterada e repetitiva, o uso de uma onomatopéia que dá a conotação do sinal ocupado de um telefone e do ritmo sincopado – tão característico de outras canções da Bossa Nova –, tem-se aqui também um elemento a mais que seria uma forma de narrar a situação e de conduzir a letra da canção voltando-se aos detalhes, num tom coloquial, de conversa cotidiana, letras sintéticas, enxutas, com humor, em “tom de blague”24, gozação e, por vezes, até de malícia. Em várias composições de Ronaldo Bôscoli verifica-se estas elaborações sintéticas, claras, em tom coloquial, valorizando a sonoridade das sílabas, ajudando a marcar o ritmo da música sem apelar para o dramático ou para o derramamento passional. Esta questão da linguagem simples e coloquial, em que o humor é ressaltado, pode ser associada a um algo mais amplo que é posto por Lipovetsky25, quando ele se refere aos discursos da sedução masculina nos tempos atuais. Segundo o autor, se o discurso do amor romântico sempre havia sido o da exaltação lírica da mulher amada, em tom sério, numa retórica do sentimento, lisonjeador e até exagerado, a partir dos anos 50, formas mais prosaicas e leves de discurso galante e sedutor se tornaram correntes e valorizadas – em que as novas funções sociais que a juventude assumia têm papel fundante – em que o humor toma um novo lugar da sedução contemporânea, relacionando-se inclusive, com uma idéia de maior proximidade e igualdade entre os sexos. Uma linguagem, que se adequava aos anseios juvenis de rompimento com a seriedade, rigidez e valores antiquados do mundo adulto. Se é possível argumentar que esta igualdade ainda não existia naquele momento ou que ainda não existe até hoje, pelo menos a linguagem poética das canções já apontava algumas pistas sobre o devir de novas formas de relacionamentos homem/mulher. No entanto, como se pode perceber na imprensa da época, em matérias de conselhos comportamentais, regras sobre onde frequentar, como agir, mesmo os jovens da zona sul não 24 25

Cf. Júlio MEDAGLIA, Música Impopular. Gilles LIPOVETSKY, A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. 283

estavam livres dos padrões normativos, que Dinah e João Máximo pareciam acreditar, pertencentes somente à sua esfera urbana cultural ou social. “Não conheço todos os ‘brotinhos’ de Copacabana. Mas a turma que eu conheço - de rapazolas e mocinhas - pincela fortemente o quadro bizarro dessa estuante mocidade do chamado bairro mais grã-fino da cidade. Copacabana mudou muito (...) Antigamente era simples, como uma boa dona-de-casa burguesa que recebe seus convidados com trajes asseados e caseiros (...) por volta de 1926-27(...) o posto 6, o ‘esportivo’, reunia a rapaziada atleta - a própria Copacabana jovem, rústica, alegre e sadia física e 26 mentalmente.”

Surge aqui, ainda na década de 50, uma valorização dos tempos passados, tidos como ideais, com esta juventude “sadia”, “alegre”, “rústica”, tanto física como mentalmente. O artigo continua, ressaltando agora o atual estado do bairro e os comportamentos da juventude: “essas recordações me tomam frequentemente o espírito sempre que entro em contato com a juventude moderna de Copacabana. Porque para essa juventude, apesar das belas aparências em contrário, seria interessante tirar das velharias do tempo, limpar o pó e cultivar certos hábitos da antiga Copacabana. Por exemplo: fundar um clube (...) [Nestes lugares] conversava-se, dançava-se e , sobretudo, havia um intercâmbio de idéias, faziam-se relações agradáveis - uma recreação útil, um lugar certo e acolhedor (...). Porque atualmente, o que Copacabana oferece aos seus ‘brotinhos’? Praia, cinema, alguns esportes e mais o que? Especialmente à noite? Mais nada, a não ser buates, teatrinhos-de-bolso. Esses lugares podem ser maravilhosos para gente adulta, mas, positivamente, nada recomendáveis para gente miúda.”

Este artigo faz conhecer as atitudes tidas como erradas e desaprovadas dos jovens da época, mostrando que deveriam – apesar da modernidade de “belas aparências” ser valorizada – olhar para experiências passadas. O discurso está criando um ideal de juventude para o momento: deve-se reunir em lugares para conversar, dançar, trocar idéias, enfim realizar uma recreação “útil”. Mas o que significaria esta “utilidade” ? Refere-se a uma ocupação do tempo dos jovens com aquilo que “deveria ser”, dentro de um padrão normativo para os comportamentos juvenis, que seria o de não frequentar as “buates” e outros lugares que começavam a proliferar em Copacabana e sua agitada vida noturna e que não eram vistos como lugares para jovens, desestabilizando a ordem social. Este artigo não só cria um ideal de juventude como aponta também para o que não “devia ser”, mas que parecia, cada vez mais, ser. Um reconhecimento, portanto, das mudanças que se operavam nos comportamentos juvenis, que escapavam àqueles lugares determinados pelos adultos. Aspectos que ressaltam o uso do tempo livre e as diversões dos jovens das camadas médias.

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“Mocidade de Copacabana”. Revista O Cruzeiro, 14/06/52, p. 3. 284

“Não, Beco das Garrafas realmente na minha época era uma coisa, assim, bastante fora de linha pra mim, pro tipo de vida que eu tinha. Eu tinha duas amigas, que uma era namorada do Vitor Manga, que foi baterista lá, né? E a outra que casou com Sérgio Mendes, a Marci, que...Mas elas eram assim meio marginais, entendeu? A gente morria de inveja, mas ninguém ia com elas, porque era assim o máximo da aventura alguém...Eu não consigo me ver indo ao Beco das Garrafas. Elas iam escondidas. A que casou com o Sérgio Mendes até tinha uma vida assim mais liberal e tal. A mãe era separada, a mãe trabalhava. Ela e a irmã viviam meio que assim soltas pra nossa época. Agora a outra, que era namorada do Vitor Manga, ela era assim, fazia o diabo pra poder ir pra lá de noite. Saía escondido, armava milhões de coisas pra poder...E contava pra gente; a gente ficava maravilhada, morrendo de inveja porque... (...) Na verdade, ir ao Beco das Garrafas era coisa pro pessoal mais velho, não era pra garoto... eu tinha 17, 18 anos, 19. (...) Não podia nada. Não podia nada. A gente ficava mal, era feio, não ficava bem, né? Uma garota de família saindo sozinha. Principalmente se fosse namorado aí já era complicado. Em geral, namorava em casa, não sei o que. Era meio por aí.” (Marta)

Marta vivia na zona sul, como até hoje, e se recorda de uma juventude repleta de festas, namoros, praia, uma cultura “muito na rua”, mas afirma que frequentar as boates de Copacabana, como o Beco das Garrafas, por exemplo – onde preferencialmente se apresentavam os músicos da Bossa Nova no final dos anos 50 e início dos 60 – era algo ainda tido como desviante para as moças de sua idade. Considerando que Marta tinha 15 anos em 1965, pode-se compreender que para adolescentes, mesmo já na década de 60, o Beco era visto como local não apropriado. Ao ressaltar que tinha amigas mais velhas que freqüentavam o lugar, ela permite conhecer que isso era realmente um ato “marginal”, de meninas criadas mais “soltas”, não sendo algo comum, na medida em que ela também lembra que haviam muitas ressalvas ao comportamentos das garotas, com proibição de saírem sozinhas, de irem a certos locais ou saírem com o namorado, etc. O próprio ambiente da Bossa Nova, tantas vezes ressaltada como algo tão leve, despojado, música para a juventude, não era local que se pudesse frequentar sem ressalvas. No entanto, este momento transcrito das memórias de Marta parece ter sido mais involuntário; são lembranças que atravessaram sua narrativa de maneira inesperada, pois até ali, suas lembranças iam formando um passado vivido quando jovem, em que ela dizia que não achava as moralidades excessivas para a juventude de sua época, diferente de algumas amigas suas da época do colégio de freiras em que estudava, que “fazem psicanálise até hoje pra ver no que as freiras mais prejudicaram”. “Como tinha uma amiga minha que: ’Ai, mas você não lembra que a gente tinha que ajoelhar pra ver o comprimento da saia’. Eu não me lembro nada disso. Nada disso. Tem mais de uma amiga que tem assim, acha que o colégio... Mas tem outras tantas que...O colégio, pra época, era um colégio liberal. Era até pra ser misto... Mas não tinha nada desse negócio de pecado, de religião assim, nada. Eu não me lembro de peso nenhum, sinceramente. Era uma coisa que, pra mim, não... pra mim, minha adolescência sempre foi mais arejada. Eu acho... Eu acho uma coisa, sinceramente, privilegiada. Eu fui a muita festa, eu tinha muita coisa em casa pra fazer. (...)A minha vida foi de ir a reunião, a festa. E nisso conhecia muita gente, tive um monte de namorados. E outros que achavam que tavam me namorando porque a gente já dava um 285

beijo e eles me ligavam: “Mas e agora?” Agora? Até qualquer dia, sei lá, né, entendeu? Até surgiram uns namoros daí e outros não, porque não tinha nada a ver, né? Ah, mas eu ficava mesmo... não podia, mas eu ficava... não sei como é que é o ficar hoje, até onde vai o ficar, entendeu? Mas eu curtia uma festa; pintar com o cara que dançasse mais vezes, não sei o que lá. Rolava um beijo, uma coisa? Deve ser isso (...) Hoje em dia, quando eu vejo pra trás, eu digo: “caramba, eu era moderna e não sabia”. Mas não me deixava passar dos limites. Mas sabe por que isso? Porque eu tinha muita liberdade. Eu tinha que me cuidar, porque senão, eu que teria quebrado a cara. Porque mamãe ficava em Teresópolis, eu, meus irmãos, namorávamos, não sei o que. E tinha um namorado, nessa época, que eu gostava muito. Mas ele não gostava de ir a festas. Então ele ficava meio no banho-maria, entendeu? Quando eu não tinha nada pra fazer, eu ficava com ele, mas eu não deixava de ir a festas, nada disso. Acho que eu não tinha necessidade de transgredir. Não tinha necessidade, não sentia necessidade de fazer nada escondido, não tinha”.

(Marta) Ao mesmo tempo em que ia destacando sua juventude nos anos 60 como sendo “sem tanto peso”, algo arejado que não lhe deixou marcas ou traumas – como nas amigas – tendo vivido a experiência de muitas festas, de muitos namorados ou “ficantes”, construindo – mesmo que diga que “não precisava transgredir” – uma experiência desafiadora, desviante, em que “era moderna e não sabia”, cheia de liberdades, mas também de responsabilidades ao saber administrar a confiança depositada nela pelos pais, Marta foi invadida pelas lembranças das proibições que lhe eram sancionadas, dizendo “que não podia nada”. A partir dos anos 60, vê-se uma preocupação cada vez maior das famílias das camadas médias em substituir a educação dos filhos pautada no poder e disciplina, por uma educação mais liberal, baseada na confiança, onde a psicologia se fazia presente. Um investimento familiar cada vez maior no cuidado com os filhos, tanto economicamente como emocionalmente, vai permitindo reconhecer a existência das peculiaridades, das necessidades individuais dos jovens e da tentativa de compreendê-los. No entanto, os interesses familiares continuavam determinantes nas escolhas de vida dos filhos, nas formas de comportamento e nos valores, exercendo pressões e limites. Este conflito de lembranças do passado, longe de desmerecerem a memória ou a própria memorialista, ressalta aspectos do complexo jogo do esquecimento e da lembrança, de como ora se joga luzes sobre determinados aspectos, ora em outros. Não é o caso aqui de buscar elucidar qual das lembranças seria a “verdadeira” ou “falsa”, mas compreende-se uma vida juvenil que se encontrava em modificação, com avanços e recuos, modificações e permanências, num cotidiano que era tramado por estes jovens na vida diária de improvisações e criatividades dispersas. Evidencia-se um imaginário do passado, da juventude dos anos 60 como livre, sem tantas regras, em que a memória do presente busca dar sentidos unívocos às experiências, tentando construir um ideal do passado que vai de encontro às aspirações do presente. Comparando-se as

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memórias de Marta e Dinah, por exemplo, fica claro que as diferenças não são apenas de condições sociais ou culturais postas pelos locais da cidade em que moravam, onde a zona sul parecia ser mais liberal, mesmo percebendo que ambas tinham as suas limitações. O que fica ainda mais visível é a diferença de geração, mesmo que seja de apenas 10 anos, mas que naquele momento significava formas diferentes de vida dos jovens, em que a aceleração das mudanças começou a se intensificar. Um padrão de comportamento “útil” dos jovens é ressaltado em muitos momentos na imprensa dos anos 50, tanto em artigos e crônicas como este acima, como também nas colunas e seções dos periódicos voltados para conselhos aos jovens ou conselhos femininos. “Dentro do quinhão de vida que lhe coube, ela deverá procurar se realizar: sem alarde , sem sonho de glória, mas procurando fazer de sua vida uma vida útil, não somente a si mesma como à comunidade. Poderá e deverá estudar sim, se isto lhe apraz. (...) estudar pelo prazer de saber, sim, mas sem esquecer que deve ser útil. (...) [Deverá] ocupar suas horas de maneira proveitosa, útil, construtiva para não mais se 27 sentir inferior”.

Este conselho é dado a uma moça que envia uma carta para a coluna “Da mulher para a mulher”, dizendo-se com complexo de “não ser inteligente”, pois tendo estudado somente até o curso ginasial, sente-se inferiorizada. O conselho é dado no sentido de que não se sinta desta maneira, pois ela pode ser muito útil à sociedade, ocupando o seu tempo com aquilo que representaria o ideal para as jovens: estudando – “o tempo em hipótese alguma, será empecilho para que ela prossiga nos seus estudos” – mas sem esquecer de sua “utilidade”: casando-se. Este ideal de “utilidade” também pode ser articulado à uma noção de produtividade, lembrando que os anos 50 é o momento em que uma sociedade de consumo – pós-guerra – se estabelecia. Esta promoção da juventude se ancora numa sociedade que entrava cada vez mais no mundo do consumo. Segundo Helena Abramo28, um novo ciclo de desenvolvimento industrial, com a diversificação da produção, acabou por produzir um período de incremento crescente do consumo, que teve possibilidade e alcance ampliado pela criação de novos bens e pelo crescimento da importância dos meios de comunicação. Aliado a isso está também, como já apontado por Morin, uma maior valorização social do tempo livre. Por outro lado, passa a haver um aumento da oferta de empregos para os jovens recém-saídos da escola, o que, provocando um aumento da renda familiar, permitia aos jovens um emprego de seu dinheiro no consumo de bens

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“Ser inteligente”, na coluna “Da mulher para a mulher”. Revista O Cruzeiro, 10/04/54, p.81. Helena Wendel ABRAMO, Op.cit.. 287

para uso próprio, como a motocicleta ou automóvel, o violão, os discos, as roupas, etc. Isso, paulatinamente, foi gerando uma certa autonomia dos jovens em relação à família e provocando a distância entre as gerações, elementos que culminariam nos anos 60. A valorização da juventude que desponta neste momento não pode ser desvinculada de outros fatores, como o fato de a juventude mostrar-se um importante segmento de mercado a ser explorado na cultura de massas. Na publicidade, isso pode ser notado, quando produtos destinados a esta faixa etária são amplamente destacados. Como exemplo, pode-se citar a moda, com peças de vestuário exclusivas para jovens. Uma cultura jovem passa a ser enaltecida, com a valorização do corpo, com o “esticamento” da fase entre a infância e a vida adulta – motivada também pela extensão da escolaridade até o fim do que se chama hoje ensino fundamental – bens específicos e produtos de consumo destinados aos jovens como roupas, música, cinema, aumentando a expansão dos novos hábitos, gerando conflito geracional, sinalizada por esta cultura juvenil ampla e internacional, ligada ao tempo livre e ao lazer que abarcava novas atividades e espaços de diversão além de outros padrões de comportamento. No Brasil, neste momento, já se podia perceber nas grandes cidades, expressivas camadas médias formadas por funcionários públicos, profissionais liberais e comerciantes somados também a levas de executivos que surgiam com o desenvolvimento industrial dos anos JK (19561960). A partir da imprensa da época, percebe-se a inserção e desenvolvimento cada vez maior da publicidade, impulsionando e dinamizando o consumo, estimulando a competição, a constante renovação dos hábitos e bens de consumo assim como uma maior visualidade e valorização da tecnologia e da vida urbana. Embora não se restrinja a um fator puramente econômico, não se pode compreender a idéia de “modernidade” nos anos 50, sem uma reflexão sobre esta questão da instauração de uma sociedade de consumo que se pautava, como destaca Anna Cristina Figueiredo, numa “cultura de consumo”, que articulava novas relações entre público e privado, baseadas na aquisição de bens que continham valor simbólico e redefiniam categorias sociopolíticas, como liberdade, lazer, democracia, modernização.29 Desta forma, a promoção da juventude ou de valores juvenis nos anos 50 fazem parte de um processo de formação não só das camadas médias, mas de um padrão médio de consumo e de estilo de vida, em que a aquisição de bens não demarca apenas um fator econômico mas também, 29

Anna Cristina FIGUEIREDO, Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada: publicidade, cultura de consumo e comportamento político no Brasil (1954-1964). São Paulo, 1996. Dissertação (Mestrado em História). FFLCH USP. 288

como sugere Pierre Bourdieu, a estruturação de uma diferenciação social, distinção ou estilo de vida, demarcando um gosto próprio ao capital cultural formado pelo habitus dos sujeitos, mapeando a posição de cada indivíduo na sociedade30. Isso teve como contrapartida uma setorização também da produção de bens de consumo, especificando roupas, eletrodomésticos, cosméticos e também músicas para estes novos setores sociais que entravam para o mercado de trabalho no pós-guerra, e que também poderiam consumir, como as mulheres e os jovens. Um consumo, assim, real e simbólico. O jovem das camadas médias, assim, surgia como ator social emergente neste processo, configurando-se na representação dominante que se faria a partir daí de uma “cultura juvenil”, no jogo de forças e de disputas que se caracteriza o campo social31. Se até aí, os estudos sobre juventude pautavam-se principalmente na delinqüência, no desvio de grupos marginais de jovens das camadas baixas ou então nas subculturas do mundo escolar, agora as luzes seriam lançadas sobre os jovens das camadas médias como modelo privilegiado e sua propalada “cultura juvenil” que parecia ser extra-classes e generalizada, afirmando o papel das camadas médias neste momento histórico32. Ainda na matéria referida acima, é aconselhado à moça que escreve à coluna, que ela não deveria sentir-se inferiorizada pois “o maior ou menor grau de inteligência da mulher se manifesta muito, também, pela sua sensatez”. Ora, aqui revela-se um outro componente do “dever ser” destas jovens – a sensatez. A moça deve estudar, mas deve ser útil, sendo o “ser sensata” representativo de uma idéia de moderação, ponderação e de comedimento. É preciso refletir sobre as jovens moças que estudando, sendo “úteis” à sociedade, ainda assim frequentavam os cinemas, os “teatrinhos de bolso”, a noite do Rio de Janeiro, em companhia (ou não) de seus namorados ou amigos e familiares. “Mas na época das festas, dos shows e tudo, eu passei a vir mais pra Zona Sul, né? É porque eu fui fazer Belas Artes e minha turma mais lá era mais da Zona Sul, entendeu? Quer dizer, até eu ir pra Belas Artes, eu fui com 17 anos. Antes disso, já tava, já existia a Bossa Nova e tudo, eu morava na Tijuca e meus amigos eram da Tijuca. Mas quando eu fui pra Belas Artes, que era no centro da cidade, a maioria das festas, das reuniões, vernissage, show era tudo...Vamos dizer, a parte cultural e artística era mais puxada pra cá. Então, aí a gente vinha, né? (...) Aqueles barzinhos...Tinha o Vermelhinho que era do lado da Escola, a gente, a Escola fechava a porta às cinco e ia todo mundo pro Vermelhinho. Depois a gente ia ver todos os 30

Cf. Renato ORTIZ (Org.), Pierre Bourdieu. José Manuel VALENZUELA, Identidades juveniles. In: Humberto CUBIDES et alli. (Orgs.), Viviendo a toda. 32 Atenta-se, conforme Abramo, que no Brasil, nos anos 50, 60 e 70, o tema da juventude não tinha conhecido importância nas Ciências Sociais no que tange ao lazer, a cultura, aos movimentos culturais, sendo que o interesse recaía sempre sobre o papel da juventude como agente político e transformador da ordem social vigente.

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ensaios de peça, ensaio geral. Íamos ver todas as vernissages que tinha, entendeu? Tudo quanto era show que existia a gente ia, quer dizer, naquela época o movimento cultural aqui no Rio era fervilhante, era fervilhante. Era um negócio assim que não parava, entendeu? E, tanto que a gente não era tão negócio de praia, dessas coisas, não. Tinha até o pessoal que dizia que o intelectual não vai à praia, né? Eles diziam, mas não é. É que era uma coisa tão cheia, entendeu? Depois dos anos 70 e tudo aí começou o negócio de Ipanema e tudo.” (Débora)

Débora, ao lembrar de seu cotidiano de estudos e dos programas que fazia com os colegas da faculdade, vai ressaltando uma experiência na cidade que não pode ser enquadrada nem no ideal normativo para as moças do período, como também não podia ser considerada desviante. Mesmo vindo de um bairro mais tradicional como a Tijuca, ela se lembra que não estava circunscrita a ele, mas que circulava pela cidade, nos diversos ambientes, nas vernissages, festas nos Consulados e Embaixadas, inaugurações, peças de teatro, cinema, reuniões em casas de amigos, até as boates de Copacabana, onde ocorriam os shows de Bossa Nova. Conta até que seu pai ia até a Faculdade e aos arredores verificar se ela estava mesmo lá, pois por ali ficava muito tempo. Em sua experiência juvenil, convivia num meio de artistas, o que aponta para uma vida que fugia ao que tantas vezes se coloca como hegemônico no cotidiano dos jovens da época, que é uma vida diurna nas praias. Ela vai falando de uma vivência na noite, articulando em seu cotidiano tanto aquilo que pertencia ao universo das regras para as moças de sua idade, regras preconizadas pelos discursos das revistas femininas como os estudos, a dedicação às artes e também a frequência em “buates” para ouvir os cantores e artistas de que gostava, algo que não era visto com bons olhos por estes mesmos discursos. Uma experiência jovem que não se encerrava nos extremos dos discursos, mas costurava no cotidiano, aspectos desviantes, inovadores, permanentes. Mesmo escapando a alguns preceitos normativos, a ligação que ainda mantinha com alguns preceitos pertinentes a faculdade de artes, as discussões filosóficas e as “boas companhias” lhe garantiam ainda a identificação de “moça de família”, noção que já parecia estar se alargando. Um olhar sobre a difusão de aspectos normativos no que tange à juventude pode levantar mais questões quanto aos papéis femininos – normatizados e informais – da década de 50. Na seção “Eles e elas” do Jornal Última Hora de 04/09/56, uma moça do interior contava que “morre de ciúmes de seu noivo que trabalha na capital”, ao que recebe o conselho: “Saiba dosar o seu ciúme, pois em demasia destrói a vida de uma pessoa. Você deve confiar em seu noivo, pois ele está tratando de construir o lar de vocês (...) Se não tiver confiança nele, o caso é outro, pois o

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homem que não é digno de confiança, não é digno de amor (...) Mas se ele é um homem íntegro, um homem 33 com H maiúsculo, não tolerará desconfianças, não admitirá ser levado em conta de leviano.”

Percebe-se aqui, uma tentativa de regrar e padronizar comportamentos de moças e rapazes, no sentido de fazer com que se adeqüem ao discurso do ideal de jovens do período. Deixa entrever aspectos de um “dever ser” sobre a mulher que se apresenta aqui como o da razão e do equilíbrio, onde deve-se saber “dosar o ciúme”, tomando o cuidado para não desconfiar do noivo sem motivos, o que mostraria uma moça inconseqüente, instável e levada por emoções. Quanto ao masculino, o discurso se refere ao homem provedor, preocupado em “construir um lar” para sua futura esposa; o perfil do homem “íntegro” como um “homem de confiança”, merecedor do amor da jovem (ao sinal de uma desconfiança com fundamentos, deve ser esquecido). Nesse sentido, constrói-se o modelo de masculinidade pautado na integridade, no qual, sendo um “homem com H maiúsculo”, não tolerará desconfianças. Perfaz-se aqui um discurso de que é necessário balancear elementos distintos, aspectos antigos e mais modernos, que salientam elementos permanentes e modificados no tempo atual. A jovem deve equilibrar confiança e ciúme, ou casamento e estudos. Neste caso, a moça enciumada de seu noivo é repreendida porque trabalha, pois uma candidata a futura esposa deveria saber que com o marido trabalhador e provedor, talvez não deva preocupar-se com o sustento da casa. Ela não deveria criar esse tipo de problema, evitando, dessa forma, atrapalhá-lo no seu trabalho com ciúmes excessivos que abalariam a estabilidade social. Um discurso normativo para os jovens desse tipo sublinha aspectos de uma sociedade que estava em franca transformação, em que aspectos novos do mundo moderno do consumo, da modernização, industrialização e do crescimento da vida urbana deveriam ser assimilados, ainda que devessem estar em conformidade e justapostos aos aspectos mais tradicionais da sociedade e dos costumes, para assim, adequar-se às novidades mais condizentes com a modernidade e com o desenvolvimentismo que o país e a época pediam. A participação da mulher no mercado de trabalho nesta época é um fator no conjunto de transformações por que passavam as relações homem-mulher.34 O discurso do equilíbrio incorpora sutilmente outros valores em conformidade com as novas necessidades, pois os novos padrões de consumo solicitam uma mulher que também trabalhasse. Desta forma, se a 33

“Eles e elas”, Jornal Última Hora, 04/09/56. Cf. Carla BASSANEZI, Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher (1945-1964). 34

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necessidade econômica faz com que a mulher entre no mercado de trabalho, diz-se também que ela dever ser ainda a “rainha do lar”, numa situação ideal em que estas necessidades econômicas são escondidas sob a alegação de que a mulher dos anos 50 é “moderna”, trabalha e não é só dona-de-casa. Várias das memorialistas se recordam de já trabalharem quando solteiras, como professoras, recreadoras ou mesmo operárias, mas a carreira profissional não parecia ser algo que tomasse a frente nas preocupações das jovens. Se nem todas encaravam realmente assim, é de se questionar, e até de se afirmar que, para algumas delas, a carreira era fator preponderante no encaminhamento do futuro. No entanto, pela educação familiar ou escolar ou mesmo por meio de revistas femininas não era assim que o discurso se constituía, sendo ainda o casamento colocado como fim primordial e a carreira um adendo, um elemento a mais na educação das moças. Para Rita, adolescente na segunda metade da década de 60, tendo ingressado na faculdade em 1970 e saído da casa dos pais mais cedo, a carreira profissional adquiria um outro peso, sendo tanto fonte de renda para se manter sozinha, como também de realização pessoal. Apresenta-se assim, no conselho dado à jovem do interior, uma tensão entre um equilíbrio racional estável (que deveria ser) – de confiar no noivo que está construindo um lar – e a falta de equilíbrio, que foge deste padrão – o desconfiar do noivo infundadamente, por ciúme excessivo. Não se busca, no entanto, apenas levantar oposições entre uma falta de equilíbrio e um equilíbrio racional, como categorias em binarismos que se excluem, mas apontar para as tensões que se dão neste diálogo com as mediações possíveis entre eles, interpretando os aspectos que estão nas intermediações, onde este “equilíbrio” idealizado pode, nas improvisações do dia-a-dia, surgir de formas variadas, reelaboradas e modificadas, como formas de burlar ou reelaborar este equilíbrio desejado. “Naquela época, Simone, nós éramos assim muito...como é que eu vou dizer a você...não é submissas, não. Eu não quero usar esse...Mesmo por que eu não era, era mal-criadinha. Nós éramos muito ligadas ao pai e à mãe, muito, sabe, afetuosas, muito...A gente não cogitava de fazer alguma coisa contra a vontade deles, entendeu? A gente tinha assim um temperamento, nós éramos dóceis. Acho que é esse, acho que é esse o adjetivo. Nós éramos dóceis. A gente era mal-criada, éramos mal-criadas, éramos levadas, tudo isso. Mas na hora de você afrontar, entendeu, a gente não afrontava (...) a gente não podia ter namorado de carro. Quer dizer, só pé-rapado, né? [risos] Porque quem não tinha carro...e apesar de que não havia tanto carro quanto hoje em dia, não. (...) Então, realmente, um namorado sem carro era fácil arrumar [risos], entendeu? Era mais fácil arrumar um namorado sem carro, do que com carro. Mas quando aparecia um com carro, eu ficava apavorada porque eu não podia sair. Quer dizer, essa é a moralidade excessiva à que eu me referi. É um absurdo porque eu não podia sair, como é que eu ia sair com namorado? E houve alguns interessantes que eu ficava driblando. Uma vez eu me lembro que um me apanhou aqui na esquina da rua, mas eu nem sentia malícia porque eu não tava fazendo nada de mais. Ele era sócio do Iate, nós fomos até o Iate, ficamos lá batendo papo, conversando um pouco. Ivan. Me lembro até o nome dele. Não foi namorado não, foi o início de uma paquera. Eu acho que o cara desistiu, entendeu? Porque ele me

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deixou na esquina (...) se sentiu um criminoso...e eu outra. Então, quer dizer, tudo isso um absurdo. Não pode andar de carro.” (Maria Amélia)

Maria Amélia fala de seu presente sobre o fato de se sentir uma mulher feliz, que realizou muitas aspirações como saber dirigir, formar-se no curso de Direito aos 60 anos de idade (algo que lhe havia sido proibido pelo pai, quando jovem), ter tido sucesso apesar das adversidades financeiras ou das imposições morais a que era submetida na juventude. Ao falar disso, involuntariamente, ela se lança a detalhar episódios, aspectos da “moralidade excessiva” que lhe era imposta e a muitos de sua geração, entre as quais a proibição dos namoros, os regramentos relativos aos horários de sair e de chegar entre outros. É possível interpretar que ela traça uma trajetória vitoriosa na medida em que driblou as imposições. Ela própria chega a essa conclusão, fazendo espontaneamente esta associação. Esse relato se dá de maneira subliminar, ao se descrever como uma pessoa que não era rebelde, nem desafiadora das ordens familiares, mas sim como alguém “dócil” e “afetuosa”. Essa postura dócil, no entanto, deixa transparecer fugas e as táticas elaboradas para recriar situações e driblar

acontecimentos, uma vez que isto acabava por ocorrer no seu

cotidiano. Memória involuntária, cacos de lembranças, de palavras e expressões que vão dando conta de uma experiência juvenil feminina que não pode ser enquadrada nem numa submissão de uma juventude obediente e equilibrada como aparece nos discursos normativos da imprensa, e nem numa juventude desafiadora e sem regras. Jovens que viviam na cidade apontando para um lugar e tempo onde as contestações juvenis teriam espaço e poderiam se firmar, não só nas práticas, mas também nos discursos, - somente no final da década de 60. “Pois é, eu vivi uma situação muito especial. Eu era muito solta mesmo, eu era bastante solta. E eu lembro que as minhas irmãs mais velhas, eu me lembro do controle do meu pai, não deixar usar biquíni, picar o biquíni da Lurdinha, minha irmã, entendeu? E eu já não tinha nem isso, porque eu já assumia, eu já namorava, eu já matava aula pra ir ao cinema. E eu garota, com 16 pra 17, conheci um cara mais velho, comecei a namorar, foi um escândalo; e ali, na história daquela rua ali, que a gente vivia ali dançando, brincando, nãnãnãnã! Na coisa de namorar eu acabei conhecendo essa pessoa que era um cara dez anos mais velho e acabei ficando com ele seis anos. Quando o conheci ainda tava em casa. Era um cara casado, então era um homem...era um tabu, não podia contar. Aquilo foi mais uma coisa na minha vida que eu enfrentei e...entendeu? E nem disse, nunca disse e sumi e...Logo que pude fui morar com uma amiga e depois fui morar com ele. Morei um tempo com ele depois. E foi uma relação muito forte também, muito sensual, muito em cima de sexo mesmo e eu me diverti muito, sabe! Viajávamos, nos divertíamos! E ele separou-se da mulher, foi uma coisa, um escândalo. E a minha irmã tentou interferir, e a Lurdinha tentou ir procurar, mandou que ele sumisse da minha vida, que eu era uma menina, que ele iria estragar a minha vida, que não sei que. (...) Mas fechei questão e nunca mais se comentou no assunto até eu sair de casa, entendeu? Fiquei com ele esse tempo todo... Então, era uma coisa muito assim de...Pra mim foi assim...sei lá...fui assim rebelde naquela história toda. Outras irmãs casaram direitinho, enfim... (..) Leila Diniz era 293

aquela coisa... quer dizer, ela era o ícone da liberdade sexual, ela achava assim... mulher, liberada, era o auge, né? Ela era o ícone disso mesmo... eu achava isso tudo o máximo, desde a Brigitte Bardot, né? Eram os meus ícones assim, era uma coisa muito sensual, pra mim era tudo muito sensual (...) Então, essa relação também foi muito assim e eu não me arrependo, adorei e fiz tudo, experimentamos de tudo, enfim, foi assim. Anos depois, depois que eu casei com o Roberto é que eu voltei, comecei a ligar mais pro meu pai, então meu pai tinha até medo de mim, não chegava muito perto, não queria nem saber, entendeu? (...) E eu logo comecei a fazer estágio, no segundo ano da escola, logo arrumei meu dinheirinho e logo fui trabalhar num escritório grande de desenho industrial e armação visual, e logo eu comprei meu carrinho, é engraçado a diferença de época... meu próprio carrinho, não dividia apartamento e... eu fui me virando e eu nunca parei de trabalhar... eu comecei a trabalhar e nunca mais parei... hoje em dia eu sou funcionária pública, há 17 anos (...) e este foi o meu regramento, horário, tudo direitinho [risos].” (Rita)

Aqui as formas de fuga aos padrões impostos socialmente ficam mais explícitos. Rita lembra de sua juventude “solta”, nos anos 60, saindo de casa cedo, indo morar com um namorado dez anos mais velho e casado, num relacionamento em que experimentou liberdades sexuais, fuga aos padrões que via em sua própria família, com as irmãs mais velhas. Por ter tido uma história “especial”, como narra, associa espontaneamente, em sua narrativa, estas liberdades que experimentou os ícones comportamentais de sua época, como Leila Diniz, lembrando que isto vinha de Brigitte Bardot no início da década. Ficam patentes as diferenças nas memórias de Maria Amélia e Rita – que têm 10 anos de diferença de idade – em que assumir o desvio, a fuga aos padrões impostos é muito mais corrente e valorizado nas memórias de Rita. Um ideário em se firmar como pertencendo a uma geração contestadora e liberal, que só mudou com o emprego público, fixo e estável, conta com bom humor. No entanto, é preciso ressaltar que as experiências lembradas por ela não aconteciam sem conflitos, como seu depoimento pode revelar à primeira escuta, mas esse seu comportamento lhe rendeu o afastamento da família e do pai com quem voltou a se encontrar somente quando casou. Pistas que apontam para os limites das liberalidades dos anos 60. Nas memórias de Ronaldo Bôscoli, faz-se presente uma tentativa de salientar um “carioca way of life”, um “jeito carioca” que, em sua construção, surge como essencial, natural ou único. Aqui aparece também e de modo bem destacado a idéia de “malandragem” e “esperteza”, quando conta que junto com amigos pirateava linhas telefônicas para conversar com as namoradas ou quando o grupo entrava em festas sem serem convidados e praticavam o que chamavam “trotes” em personalidades da alta sociedade carioca. Esse relato tenta dar conta de um cotidiano carioca leve e ingênuo dos “anos dourados”, em que as regras eram desafiadas por jovens que assumiam uma atitude irreverente diante do estabelecido.

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Vão surgindo, mesmo que indiretamente, indícios do que naquela década foi conceituado como “juventude transviada”, um denominação que se propagou nos meios de comunicação, nos discursos jurídicos, sociológicos e psicológicos. Essa nova categoria, surgida nos Estados Unidos, disseminou-se por aqui também, como se percebe na imprensa da época, por exemplo. Luisa Passerini35 analisa a sociedade americana da década de 50 e o estabelecimento de uma cultura adolescente como um mundo à parte, o qual gerou debates e discursos normativos, exatamente por corporificarem as angústias da própria sociedade americana. Nesse momento, começa um debate sobre a delinqüência juvenil, com a criação de comitês de justiça e pesquisa social sobre a juventude e seu comportamento. A preocupação voltava-se para os grupos juvenis que fugiam àqueles formados e administrados por adultos, como o dos escoteiros. A eles foi dada a denominação de gangues, um termo bastante elástico que definia tanto grupos violentos que cometiam furtos, vandalismos, rachas, crimes até grupos mais parecidos com associações e clubes. O problema dessas gangues, segundo o discurso constituído, eram os valores que buscavam diferir daqueles vigentes no padrão médio burguês, com o uso de gírias próprias, o gosto pelo rock and roll, o apelo erótico de Elvis Presley, os cabelos compridos dos rapazes, as roupas deferentes, os carros “envenenados”, etc. Estes grupos desenvolveram-se exatamente em torno do tempo livre e na procura por atividades de diversão, criando estilos próprios no modo de se vestir carregado de simbolismos, com elementos de consumo também emblemáticos, buscando marcar uma identidade distintiva. A expansão desse modo de vida rompe as fronteiras dos jovens dos setores marginalizados, incluindo também aqueles das camadas médias que passaram a ser considerados “anormais” ou delinqüentes. Entre suas práticas estavam as brigas entre gangues, os rachas, duelos e a histeria nos shows e na exibição de filmes como Rock around the clock. Esse comportamento deixa de ser exceção e torna-se quase uma regra. É assim que surge a idéia de juventude transviada, dos rebeldes sem causa, interpretados à época como sintoma de patologia, de recusa à entrada no mundo adulto, atitude percebida com perplexidade pela sociedade exatamente por sua falta de justificativa. O cinema americano logo tratou de representar estes grupos, ajudando a formular um discurso sobre a juventude, produzindo filmes que não só tinham adolescentes e jovens e seus

35

Luisa PASSERINI, A juventude, metáfora da mudança social – Os Estados Unidos da década de 1950. In: Giovanni LEVIe Jean-Claude SCHMITT (Orgs.), História dos jovens. 295

problemas como protagonistas, como também dirigia-se a um público jovem. Em geral, os filmes tratavam de construir a figura juvenil de modo autônomo em relação ao mundo dos adultos. Segundo Passerini, Sindicato de ladrões, dirigido por Elia Kazan em 1954, é uma desses produções. Nela, o protagonista Terry Malloy vivido por Marlon Brando é apresentado no início da narrativa como um rapaz selvagem que no fim da história revela sua bondade ao ser salvo pelo amor de uma bela e loura jovem, donzela e religiosa que o traz para o mundo convencional da sinceridade, coragem e individualismo, próprios à cultura americana. Também em Rebel without a cause (ou Juventude Transviada) dirigido por Nicholas Ray em 1955, com James Dean, estão representados jovens delinqüentes com um comportamento irregular, conseqüência da indiferença dos pais sempre distantes e ausentes. A reação a esse estado de coisas, a exigência em aceitarem as regras e os rituais de uma sociedade com a qual não se identificavam, era a reunião em torno de seus pares constituindo um mundo à parte. Em todos, o que prevalece é a função regeneradora dos personagens de fora dos grupos revoltosos, trazendo os protagonistas de volta à vida social da ordem estabelecida. Após a Segunda Guerra Mundial, passa a ocorrer uma internacionalização da cultura e do modo de vida norte-americanos, quando a circulação de bens culturais, como ressalta Renato Ortiz, ganha maior consistência ao ser pensada em termos de mundialização e não de difusão36. No Brasil, padrões culturais europeus vão sendo substituídos por padrões representados em grande parte pelo cinema hollywoodiano. Assim, este imaginário do desvio, de uma juventude que desafiava as regras sociais perpassou os jovens das camadas médias cariocas, mas também de outras camadas sociais. Nas memórias de Bôscoli, esse jovem rebelde estava presente. Convém questionar os limites destes comportamentos como desvios aos padrões normativos, considerando que a memória não é apenas um depósito passivo de fatos, mas um processo ativo de criação de significados. É preciso estar atento para as inúmeras modificações do passado forjadas pela memória, colocando a narrativa em seu contexto histórico, tendo-se sempre em mente que o depoimento é uma construção filtrada do presente a partir de um distanciamento do fato ocorrido37. A memória procura construir sentidos unívocos, ocultando diferenças e tensões, enaltecendo fatos e passagens, atribuindo-lhes sentidos de exaltação e valorização, com uma 36

Cf: Renato ORTIZ, Mundialização e cultura. E também _______ A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. 37 Alessandro PORTELLI, O que faz a História Oral Diferente, Projeto História, n.14. 296

perspectiva que vem do tempo presente de quem lembra e da imagem que se quer formular. Em Bôscoli nota-se uma tentativa de construir sua experiência de juventude como “transviada”, desviante, que fugia, enfim, aos padrões. No entanto, este falar de seus feitos, como o “piratear linhas telefônicas para conversar com as namoradas”, por exemplo, mais oculta do que revela as maneiras pelas quais os sujeitos constróem, no seu cotidiano, as táticas de reelaboração dos padrões lançados no social. Em outros depoimentos de participantes da Bossa Nova, é possível perceber também, um dos aspectos da memória, que é o de trabalhar como encobridora das experiências passadas, em que se vê nesse tipo de narrativa, uma tentativa de linearizar e dar uma única voz às experiências do passado, compondo sentido de coerência. “Eu gostava dos Mamonas [Assassinas] não como músicos, eu acho que eles eram uns moleques da música ... uma coisa que eu e o Ronaldo fazíamos muito, nós fazíamos muita molecagem ... Molecagem, sacanagem, passar trotes, brincadeira, essas coisas .... É aquilo que o Bôscoli falava no livro dele, um “carioca way of life”. Os Mamonas, a gente não pode encarar, quer dizer, os músicos não podem encarar 38 os Mamonas como música, tem que encarar como uma sátira, o que é bem diferente.”(Chico Feitosa )

Chico Feitosa, ao dar sentido à sua trajetória em companhia de amigos, assume que eram “moleques”, buscando construir uma imagem de experiência que se mostrava ingênua, leve e harmoniosa, destacando cores de uma valorização da juventude naquele período. A exaltação de um discurso satírico, nas músicas, quando argumenta que eram uns “moleques da música” corrobora ainda mais para a formação de um imaginário jovem que parecia ter um de seus pilares na idéia de uma juventude “alegre”, “descontraída”. Ele formula, então, uma noção de descompromisso, a construção de uma idéia de fuga aos padrões do jovem sério e regrado, em que este descompromisso revela um aspecto desta “juventude transviada” que ele toma para si. No entanto, nas memórias de Bôscoli ou de Feitosa, eles não usam em nenhum momento esta expressão “juventude transviada” como auto-nomeação. Embora não se qualifiquem assim e, embora na década de 50, o jovem “transviado” não seja confundido com o “descontraído”39, é possível perceber uma construção do presente na qual a memória apropriou-se deste imaginário de desvio, em que o lembrar mostra-se como desvelador de atitudes e sentimentos que pareciam encobertos. 38

Depoimento concedido em 22/04/96, no Rio de Janeiro. A reportagem fala sobre a juventude paulista estar despontando no colunismo social, lugar onde, antes, somente apareciam os adultos. É ressaltada uma juventude alegre, em que são “despreocupados mas não transviados”. “A jovem guarda paulista”. Revista Manchete, 04/59. 39

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A memória da trajetória de alguns jovens se situam nesta tensão entre o ideal normativo – o discurso do equilíbrio – e a idéia de “juventude transviada”, em que se auto-proclamavam desviante destas regras. Neste meio que desloca-se e se rearticula a cada situação, variando em aproximações de um lado e de outro, é possível encontrar a interpretação de um cotidiano tenso que se elabora nas múltiplas formas de experimentar historicamente as práticas do cotidiano, extraindo “de seus ruídos as maneiras de fazer que, majoritárias na vida social, não aparecem muitas vezes senão a título de resistência ou de inércia em relação ao desenvolvimento da produção sócio-cultural (...) Uma criatividade oculta num emaranhado de astúcias silenciosas e sutis, eficazes, pelas quais cada um inventa 40 para si mesmo uma ‘maneira própria’ de caminhar pela floresta dos produtos impostos.”

Neste meio caminho, nesta zona do interdito e do indeterminado, é que surge o lugar da interpretação histórica a respeito das experiências juvenis, que incorporam tanto aspectos normativos quanto da “juventude transviada”, visíveis em rearranjos e rearticulações constantes, tornando-se necessário relativizar, mostrando as diferenças deste imaginário de desvio. Mesmo falando de uma juventude que, em suas “arruaças”, pode até sugerir um ideal construído de ingenuidade e de desvio é preciso lembrar que este ideal de “juventude transviada” articulava-se e se rearticulava diferentemente, incorporando ora certo grau de transgressão, ora certo grau de adaptação. Será que esta juventude realmente transgredia os padrões impostos trazendo para si um estatuto de desviantes? Será que mesmo em suas formas de diferirem do ideal juvenil proposto eles não estavam também reafirmando as normas, uma vez que também namoravam, noivavam, casavam, ajustavam-se às regras de família burguesa e buscavam padrões de elegância, numa prática que pode ser traduzida por uma aceitação dos padrões propostos ? É necessário repensar a noção de “juventude transviada”, que tanto se propagava nos anos 50 e que, de alguma forma, permanece na memória de muitos que vivenciaram este período, como também na memória histórica. Na imprensa da época, é possível perceber o quanto se fala desta “juventude transviada”. Em debates jurídicos, educacionais, assistenciais, este assunto também é percebido. Inúmeras são as notícias, notas, matérias, reportagens que dão conta de “arruaças” e “pegas” nas ruas de Ipanema e Copacabana, ou nos subúrbios de Nilópolis; assassinatos e estupros de moças, só para citar alguns exemplos. Dentre estes, o mais emblemático e que causou maior repercussão foi o assassinato da jovem Aída Curi, tendo gerado 40

Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano - 1. Artes de fazer. 298

muitos debates, inclusive, em torno da possibilidade de ser aprovada uma lei que estendesse até os menores de 18 anos a responsabilidade penal, uma vez que um dos acusados por este crime tinha 16 anos de idade. “Tudo evolui, menos a forma de punir os culpados. (...) É a teoria x prática. Demonstra [o Ministro do STF] Nelson Hungria, em seu invejável saber, que é inteiramente inadequada a expressão “Delinqüência juvenil”. Ora, os polemistas não apresentam um roteiro para corrigir o mal estar social em que vivemos. Assim pouco interesse tem o acerto ou desacerto da expressão. O que interessa é uma solução imediata para os problemas dos crimes praticados pelos maiores de 14 anos, e muitos dos quais de uma brutalidade sem par (...) O que queremos é um remédio de efeito imediato que possa devolver à sociedade a necessária tranquilidade de vida (...) A violência dos crimes praticados por bandos de menores desajustados exige 41 pronta e rigorosa aplicação penal.”

Tem-se aqui a cobrança por medidas mais severas por parte da Justiça contra estes “delinqüentes” e “desajustados” que tiram a “tranquilidade” necessárias ao social. Constrói-se assim, um discurso que, dizendo o que um jovem não deve ser, indica pistas para que se compreenda alguns significados do que se queria dizer com “jovens desajustados”, num desajuste que aponta mais uma vez para o ideal normatizado do equilíbrio juvenil. No entanto, este equilíbrio é construído de maneira que pareça harmonioso e sem conflitos, em que aspectos diferentes devem conviver bem equilibrados. “Como já noticiamos, Nilópolis foi palco na madrugada de sábado de uma curra praticada por componentes da chamada “juventude transviada”. Três jovens (...) foram violentamente arrastadas e espancadas por cinco jovens (...) onde submeteram [-nas] a toda sorte de vexames.(...) Assinale-se que esta não é a primeira vez que acontecem curras em Nilópolis, nas proximidades do local que, ao que informam 42 os moradores da redondeza, parece ser o QG da juventude transviada do local.”

Vê-se que a nomeação “juventude transviada” já se faz presente, como designando todos os jovens “delinqüentes”, pois mesmo usando-a entre aspas e referindo-se à “chamada juventude transviada”, tem-se a construção de um grupo específico, nomeado e espalhado por vários recantos da cidade, sem diferença entre a zona sul (aparecendo em outras notas policiais crimes em Copacabana, Leblon) e os subúrbios de Nilópolis. No entanto, se o discurso até aqui desqualifica (e assim normatiza) apenas os rapazes “delinqüentes”, em outras ocasiões, a normatização alcança também a vítima. “cheguei à conclusão, diante da realidade, de que a morte de Aída tem sido muito útil. (...) compreendo que a morte da minha amada Aída está servindo como uma severa advertência a todas as moças que desejam conservar sua pureza, como foi pura a minha família. (...) Não chega que uma jovem seja cândida e sincera. É preciso que saiba defender-se das coisas ruins que a cercam. (...) Se Aída não fosse tão cândida, 41 42

“Conversa prá ‘dotô’”. Na seção “Coluna Aberta”, Jornal Última Hora, 01/09/58, p. 18. “Polícia de Nilópolis caça autores da curra”. Na seção “Ronda das ruas”, Jornal Última Hora, 01/09/58, p.10. 299

talvez tivesse voltado para casa, sem a bolsa e os óculos, mas com vida. (...) uma jovem pode ser pura sem ser totalmente desprevenida. (...) Criaturinha meiga, simples e sossegada, era inteligente como poucas criaturas e estudiosa. (...) seu diretor espiritual e confessor reconhecia em Aída uma verdadeira santa. (...) 43 acredito que a Justiça fará Justiça, proporcionando aos moços a mesma lição que Aída deu às moças.”

O depoimento é da mãe de Aída Curi – moça que foi morta no ano anterior, ao cair (ou ser jogada) do alto da varanda de um edifício em Copacabana, provavelmente para fugir de um estupro. A fala de sua mãe permite que se compreenda alguns padrões para os jovens da época ao reafirmar e dar ênfase às virtudes morais da filha, como sendo santa, pura, cândida, estudiosa e inteligente. Sua fala quer confirmar e comprovar que a filha era mesmo inocente, numa tentativa de desmentir as acusações que começaram a se espalhar na época, de que era uma moça “leviana’, por estar à sós com dois rapazes. Por outro lado, ressalta-se o discurso do equilíbrio neste papel de “utilidade” dado ao crime, em que as jovens podiam ser puras mas não ingênuas, devendo ser prevenidas, em que aspectos novos no que tange ao feminino, convivem tensamente com aspectos mais antigos e permanentes. Apesar de não se pretender banalizar estes fatos, e torná-los, pela distância temporal, algo sem importância para aquela sociedade naquele momento, eles não podem ser encarados como desvios, pois acabam por penetrar sutilmente no campo do discurso normativo. A moça morta é acusada de fácil ou leviana por concordar em ir com dois rapazes, sozinha, ao apartamento de um deles. O que aparentemente seria um desvio, uma atitude que desafiaria os padrões comportamentais da época, acaba sendo utilizado pelas regras morais para desqualificar as atitudes das jovens. Nestes fatos, que não se enquadram no ideal do dever ser juvenil da época e que acabam na coluna policial numa visível polarização, não se encontram as improvisações cotidianas, as mediações entre estes pólos opostos, os seus diálogos, que se dão de maneira tensa, conflituosa, indeterminadas, mas que merecem o olhar interpretativo do presente. Tem-se ainda mais indícios memoriais sobre a idéia de desvio da juventude dos anos 50 e 60 para as moças. Uma idéia de “ser prá frente”. “A Danuza [Leão]que conheci era a própria personificação da Radical Chic. Ela era uma sensação - e um escândalo também. Desfilava pela praia com a sainha acima do joelho... Era muito prá frente.(...) Era uma garota bem nascida, rica, chique e muito prá frente. (...) Já naquele tempo, Mônica Silveira ia à praia, de mãos dadas com o namorado, tomar banho de mar. À noite, é claro. Muito prá frente.(...) Mônica foi um 44 grande espanto da nossa época”.

43 44

“Minha filha Aída”, Revista Manchete, 04/59, p. 18-21. Ronaldo BÔSCOLI, Eles e eu: memórias de Ronaldo Bôscoli, p.230 e 266. 300

O ser “prá frente” significa uma tentativa de “ser moderna” no que tange aos comportamentos. Vê-se aqui, o modo como o desafiar regras e o escandalizar são ressaltados tanto quanto o refinamento, o “ser chique” e elegante segundo o padrão dos anos 50. Um “ser chique” que insinua saias curtas, corpos bronzeados à mostra, maiôs duas peças na praia – um ideário que repousa sobre a ousadia, mas ainda sobre a elegância e o refinamento. Suas memórias querem construir uma valorização da sensualidade feminina, em que esta mulher não seria vista como vulgar, mas como “moderna”. Porém, estas moças constituíam-se, como Bôscoli próprio destaca, em “espanto de nossa época”. Eram moças que fugiam ao padrão e que acabavam por atrair ações restritivas em busca de uma espécie de reapropriação. Os namoros à noite na praia eram proibidos e o padrão de elegância das revistas femininas recaía sobre as saias e vestidos que cobrissem os joelhos. No entanto, importa assinalar que os variados tipos e graus de rebeldia juvenil tiveram seu valor histórico, como sinalização de mudanças e fortalecimentos de identidades jovens que viriam a se consolidar, com fortes conseqüências sociais, anos depois. Nas canções da Bossa Nova está presente uma tematização do ambiente diurno, da praia, e das moças que por ali circulavam de corpos à mostra. “Você viu só que amor Nunca vi coisa assim E passou, nem parou Mas olhou só pra mim Se voltar vou atrás Vou pedir vou falar Vou dizer que o amor Foi feitinho pra dar Olha, é como o verão Quente o coração Salta de repente Só pra ver a menina que vem Ela vem, sempre tem Esse mar no olhar E vai ter, tem que ser Nunca tem quem amar Hoje sim, diz que sim Já cansei de esperar Não parei, nem dormi Só pensando em me dar Peço, mas você não vem Deixo então, falo só Digo ao céu Mas você vem”

(Samba de verão)

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A autoria desta canção é da dupla de irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, uma geração mais jovem que começou a compor e tocar já influenciados pela Bossa Nova. Embora gravada em 1966, nos EUA, em versão instrumental, pelo organista e arranjador Walter Wanderley, tendo sido chamada de Summer samba e tendo vendido 1 milhão de cópias, por aqui o disco não alcançou popularidade, muito em função de que o intérprete era conhecido por seu repertório de boleros e seus arranjos para Isaurinha Garcia45. Assim, mesmo tendo sido gravada (com letra e música) em português só dois anos depois, esta canção tornou-se um marco nas memórias de muitos ouvintes, que se referem a ela como um dos símbolos de uma época passada de leveza e felicidade. Provavelmente, muitos deles a escutaram nas reuniões (“festinhas”), com a presença de jovens músicos e onde eram lançadas novas canções. Vem daí o fato de alguns ouvintes, mesmo não pertencendo ao campo e nem mesmo ao ambiente musical, terem assistido a estas performances intimistas. Por outro lado, esta foi uma canção regravada algumas vezes, daquela época até hoje, tendo a última sido feita por Caetano Veloso, versão utilizada como tema de personagens sorridentes e leves moradores do Leblon de uma telenovela global de grande popularidade em 2000. Foi regravada também por Bebel Gilberto, com versão em inglês que, adequadamente recebeu o título So nice, além de um arranjo com elementos da música eletrônica. Toda esta permanência da canção, com sua tradição movente e nômade46 renovada, modificada e rearranjada em cada contexto de gravação e época histórica e cultural, colabora para que a memória, uma construção sempre do presente, guarde, retenha e ilumine mais alguns aspectos do que outros. Uma letra em tom de comentário sobre uma moça bonita que passa, olha, flerta, e se vai. Uma paixão ou atração imediata que foi provocada pelo clima, o verão, o calor, o mar que está espelhado em seu olhar. Realmente uma leveza nas formas de encarar o amor, os flertes, as paixões que se acham em consonância com o desenho melódico reiterado em quase toda a canção e no ritmo com acentuações sincopadas que sugerem o balanço dos caminhantes à beira da praia e das próprias ondas do mar. Um tom de lirismo ainda se completa com exclamações “Olha! É como o verão!”, em que o prolongamento das vogais e a maior distância entre as notas da melodia sugerem esta expressão dos sentimentos de contemplação e de alegria.

45 46

Ruy CASTRO, Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. Paul ZUMTHOR, Tradição e esquecimento. E também ______ Introdução à poesia oral. 302

“A Bossa nova era uma coisa assim de libertação de costumes. Estava começando, começando, não um negócio libertário, assim de hippie ainda não, mas era uma coisa assim de sair daquele peso. O que eu acho que a Bossa Nova representou nesse tempo foi a coisa da leveza, entendeu? As coisas ficarem mais leves, as roupas não ter mais aqueles fru-frus e aqueles negócios; e aí veio a mini-saia, entendeu? Os costumes todos mais leves. Tudo combinava, né? Combinava com a música a saia. Eu, por exemplo, tinha umas mini-saias que eu fazia calcinha igual. É, porque a calcinha aparecia mesmo. Então, eram uns vestidos tão curtinhos! Não só eu, várias faziam a calcinha igual também. Então era uma coisa assim...E aí o cabelo! Cortei o meu cabelo assim [curto], usei meu cabelo muito tempo. Que agora eu to usando de novo, mas até Elis Regina uma época usou também, depois. Depois veio da Inglaterra aquele negócio de mini-saia.... Então, foi tempo assim muito de leveza. Eu acho que a Bossa Nova, ela canta essa leveza, essa delicadeza, essa sutileza, né? A coisa do não sofrimento, da não dor, entendeu? Uma coisa mais assim da felicidade, entendeu? Que tinha também, naquela época, os filmes de realismo italiano, de....os realismo, todos os realismos, de Bergman, de não sei que e não sei o que lá. E o pessoal intelectual era muito...meio pesado, entendeu, meio sofrido, meio coisa. Mas a Bossa Nova, quer dizer, essa onda, esse clima, esse vento, essa brisa da Bossa Nova era uma coisa assim que arejava, entendeu?” (Débora)

Débora, ao lembrar-se da leveza das músicas ou do ideário trazido com a Bossa Nova, associa a um tempo em que o espírito predominante passava a ser o da leveza também nas formas de encarar a vida e o mundo por meio de modos delicados e sutis de pensar o amor e a existência. Ela associa este despojamento às maneiras de se vestir, sem tantas elaborações e requintes, com cabelos curtos, vestidos também curtos, que permitiam até aparecer a “calcinha da mesma cor”. Ela vai falando de uma juventude que buscava a diferenciação do mundo dos adultos, inclusive nas maneiras de se vestir, atitude que não era uma tentativa de transgressão, mas um jeito de valorizar este corpo jovem deixando-o à mostra sem as características de femme fatale que nos anos 50 ainda era o padrão de beleza feminina moderna. Não se pode esquecer, é claro, que Débora está se referindo à época da faculdade, em meados dos anos 60, quando muitos dos preceitos dos anos 50 já encontravam-se modificados, em que as revistas femininas já valorizavam o biquíni duas peças, as saias acima dos joelhos, publicando moldes e modelos.47 Esta valorização de um jeito clean de se vestir e de ver o mundo, ressaltados por Débora, encontra ressonâncias também com o meio das artes plásticas no qual vivia. “Mas a minha vida então era, nessa época, estudar piano, dar conta do colégio, aos sábados sempre tinha uma festinha pra ir, sem poder me maquiar porque maquiagem só aos 18 e sem usar salto, só saltinho deste tamanhinho assim. E isso me fazia um pouco diferente das minhas amigas, porque naquela época as mães já começaram, quando o pessoal tinha 16, 15 anos, as mães já deixavam colocar um rougezinho, um tracinho no olho, mas mamãe não deixava não. E eu me lembro que nesse aspecto eu me revoltava muito... eu sou a única que sou diferente!! E mamãe não deixava usar preto, ta? Dentro do meu grupo, eu me destoava um pouco, eu me destoava também porque eu fui interna dois anos (...) Aí esse negócio do [vestido] preto tinha um lance engraçado... tinha um costureiro, que trabalhava no Jornal do Brasil, um costureiro famoso que se chamava Gil Brandão, e ele todo domingo dava uns moldes de umas roupas, e minha mãe não saiba costurar nada, mas ela de vez em quando se metia a costurar... e ela fez um vestido que era moda chamado JK, e ela fez um vestido que era do Gil Brandão, que era um tubinho azul rei, aqui 47

Carla BASSANEZI, Virando as páginas, revendo as mulheres. 303

ele fazia como se fosse um “v” branco, azul rei aqui sem manga, o vestido era lindo... mas, todas as minhas amigas vestiam o que? Preto. E aí, tinha uma festa na casa da Silvia Helena onde Fraguinha ia Fraguinha foi o homem mais bonito que eu já vi na minha vida (..) e todas as meninas de preto, com cabelos lisos, eu nunca tive cabelos lisos. Aí, eu era a única que não estava de preto. Quando Fraguinha entrou, parecia assim, um bando de urubu na carniça... e eu, sentadinha no sofá estava, sentadinha no sofá fiquei, sempre muito falante, muito alegre, muito risonha, que esse sempre foi o meu jeito... daqui a pouco, quem é que me tira pra dançar? Fraguinha! Eu quase desmaiei...” (Eliane)

Eliane ressalta que era diferente das outras garotas, tendo padrões morais e comportamentais mais rígidos, segundo os quais não podia usar maquiagem ou roupas pretas até os 18 anos. Nas suas memórias, isso era uma desvantagem, pois se achava inferior às outras moças, mas o que lhe era permitido vestir e usar trazem pistas para compreender este certo padrão corporal e comportamental mais ingênuo, em que usar roupas azuis, vestidos acima dos joelhos, rosto sem maquiagem reforçariam uma idéia de prolongamento da adolescência, com roupas próprias, atitudes próprias, sem chegar a alcançar ainda o modelo adulto. Nas memórias de Débora e Eliane – que têm uma diferença de idade de alguns anos –, as lembranças sobre as roupas que usavam são construídas nas memórias de hoje como algo mais próximo de um visual despojado, adolescente e ingênuo ao que associam com um tempo que também pedia leveza. No depoimento dos jovens autores da Bossa Nova, também é possível identificar esta tentativa de construção da memória em que se vêem como jovens que se vestiam de maneira diferente, usando bermuda e tênis nos shows, numa atitude mais despojada. Assim, a escuta de uma música que falava de amores leves, passageiros ou correspondidos, com uma linguagem poética que parecia narrar o cotidiano das moças nas praia, as garotas a caminho do mar vestidas de saias curtas e andando num ritmo cadenciado parecia lhes fazer muito sentido. Timbres de intérpretes mais jovens, que cantavam sem empostação vocal, novas sonoridades, melodias e harmonias, pronunciando frases e não articulando palavras, como sugere Barthes48, em que as vozes cantantes chamavam a atenção para o corpo, para as gestualidades por trás de cada entonação, em tematizações mais sugeridas que marcadas, o corpo e suas formas de significação, como o vestuário, corte do cabelo, adereços, maquiagem, pareciam também engajarse naquilo que a escuta evocava. Uma escuta que fala apoderando-se do que lhe é dito para transformar e lançar incessantemente no jogo das transferências dos significados sociais.

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Cf. Roland BARTHES, O grão da voz ; A música, a voz, a língua. In: ____ O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. 304

Estas questões com relação ao vestuário trazem a idéia de valorização da elegância. Ora, este discurso da elegância ainda se fazia muito presente na época, dizendo respeito também aos valores normativos. Numa matéria entitulada “... mas bonitas mesmo são as grã-finas...”, valoriza-se a elegância das mulheres e não só a beleza. “A questão realmente difícil em sociedade é saber quem é a mais bonita, e sobretudo, não confundir a elegante, a que tem charme, com a beleza pura.(...) Elas brotam de seus vestidos Dior, elas saem do mar de Copacabana, elas invadem os negócios e dominam a noite. (...) Elas são exóticas e inteligentes como a 49 senhora Danuza Wainer. (...) E têm uma classe, uma maneira, um encanto inigualáveis.”

Ora, o ideal de elegância perpassa também o discurso do “dever ser” para a mulher dos anos 50. Ressalta-se que não adianta só a “beleza pura”, mas tem de ter elegância e charme. O equilíbrio, nesta matéria, versa sobre as mulheres, que devem “vestir Dior” mas ainda ir à praia, invadir os negócios (trabalhar), serem inteligentes, mas ainda sorridentes e manterem seu “encanto”. O discurso do equilíbrio perpassa diferentes momentos desta época, apontando em diversas direções em que este “equilibrismo” deveria imperar, embora ele não fosse, como podese perceber, tão preponderante. A questão do corpo torna-se específica nesta época, passando a ser considerado como território de inscrição das diferenças, depositário de signos, em que cultura e natureza não se separam, mas onde o biológico e o social integram-se, de acordo com as contingências históricas. Corpos que neste momento começam a ficar mais à mostra, nas praias, com a valorização da pele bronzeada como sinônimo de beleza. Associado a isso, está um padrão de beleza ligado à saúde, em que estar bronzeado é ser saudável, o que já lançava pistas sobre o culto ao corpo que se verificaria em décadas posteriores. Mas, para além disto, na década de 60, o que entra em evidência é um corpo jovem como portador de liberdade, saúde, potência, agilidade e coragem. A idéia de juvenilização da sociedade, já apontada, remete também a um padrão de corpo jovem que passava a partir daí a ser perseguido por diferentes faixas etárias, um imaginário das sociedades modernas que têm nos padrões juvenis um de seus alicerces, em que a moratória social se estica, tentando também perpetuar os signos, valores e atitudes. Continuando a falar sobre o jovem ideal construído na imprensa, “Quem não aprecia uma moça alegre, dessas que sabem conversar com todo mundo, que são amáveis, desportistas, que irradiam juventude ? Impossível não gostar de uma pessoa assim. Até mesmo os homens mais sisudos, certos “esquisitões” apreciam uma mulher vivaz e aprova está em que frequentemente se 49

“...Mas bonitas mesmo são as grã-finas...”. Revista Manchete, 07/60. 305

vêem casamentos dessa natureza - um homem caladão e uma mulher jovial. (...) A mulher pode ser carinhosa sem ser fria, desde que não confunda carinho com licenciosidade (...) e nenhum rapaz realmente bem intencionado protestará contra a “frieza” da sua namorada uma vez que ela o ame com devotamento e 50 sinceridade, mas sabendo se impor ao seu respeito e à sua admiração”.

No que tange ao comportamento nos namoros, o discurso do equilíbrio também faz-se presente; discurso no qual a jovialidade e o entusiasmo da jovem são valorizados e recomendados, não devendo, porém, ser confundidos com a permissão de procedimentos “indecorosos”. A mulher deve expressar seus sentimentos, (sendo que em muitas outras colunas, o amor recíproco é valorizado, em que aconselha-se não namorar com um rapaz de quem não se gosta), não deve ser fria, mas equilibrar seu carinho e devotamento com respeito e retidão. Desta moça dos anos 50, cobra-se a “personalidade”, não mais uma passividade absoluta, mas que, no entanto, deve ser regrada por alguns preceitos: ela deve ser “alegre sem ser dispersiva” ou ainda “suave ditadora”. As novas prescrições lançadas às moças dos anos 50 – em consonância às mudanças por que passavam a sociedade do período pós-guerra, momento de incipiente formação de uma sociedade de consumo – procuravam ser normatizadas e, incorporando inovações, reelaborava-se o discurso de estabilidade social desejada. Neste mesmo conselho (na mesma coluna), surge a figura do rapaz. Aqui a referência é a um rapaz sisudo qualificado pejorativamente como “esquisitão”, sempre à procura de uma moça jovial e alegre para se casar. Mas esse rapaz sério e com “boas intenções” deveria ser também alegre e jovial, o que aponta também para um discurso em que o equilíbrio deve imperar. “Então, eu tinha assim essa diferença de outras moças, mas tinha os bailes de formatura, aqui no Rio. Bom, aí eu... dançava, adorava dançar, nunca dancei bem junto, nunca, nunca... mas separado eu parava a festa, parava mesmo... e, contava mentira para mamãe; as vezes porque, as vezes não tinha mãe pra levar e aí vinha aquela mentirinha... não, a mãe da fulana vai levar e a mãe da fulana vai pegar... não sei o que... a aí mamãe deixava, mas não ia mãe nenhuma e a gente, enfim... a única droga que existia e que ainda hoje persiste foi o cigarro. Com 14, 15 anos eu já fumava. (...) A minha vida eu diria que era uma vida normal, ta? Agora, namorar, eu não namorava em casa, tinha que namorar lá embaixo na portaria, o namorado não entrava em casa; mas aqui neste prédio, se você notou, mas tem um cantinho... e nesse cantinho a sacanagem corria solta, solta, mas solta... com a graça de Deus que tinha esse cantinho [risos]. Aos 17 anos eu conheci o meu futuro marido, pra você ver que eu não namorei muito, né?” (Eliane)

Eliane, embora ressalte que tinha diferenças no seu comportamento em relação às outras moças, lembra-se de freqüentar vários bailes e festas, burlando, muitas vezes, a vigilância da mãe. O papel dos pais e principalmente das mães, neste momento, é do vigiar de perto o comportamento das moças quanto aos namoros, garantindo sua boa reputação. Os namoros 50

“Licenciosidade e carinho”, na coluna “Da mulher para a mulher”, Revista O Cruzeiro, 17/04/54. p. 81. 306

sérios, aqueles que se levava o namorado em casa para apresentar aos pais também não escapavam dos olhares vigilantes. Daí o fato de Eliane recordar que não levava os namorados em casa, mas namorava escondido, no hall do prédio, longe dos olhares familiares, o que proporcionava maior permissividade e intimidade física. No entanto, mesmo narrando, em seu presente, que burlava as ordens, leis maternas, ela conta que se casou com o namorado que conheceu aos 17 anos, tendo permanecido com ele por sete anos, mantendo-se virgem até o casamento, por sentir-se insegura e com medo de ser deixada. Na segunda metade dos anos 60 – época da adolescência de Eliane – aspectos mais liberais na sociedade conviviam com preceitos morais rígidos seguidos e respeitados. “Pra você ver, eu comecei a namorar cedo, com 13 anos. Aí com...um namorinho assim, sem importância. Aí com 14, aí eu...14 anos, pra 15, quase fazendo 15, eu conheci um rapaz, bem mais velho porque o meu negócio era homem mais velho, aí...Ele...Então com 15 anos, eu ia fazer 15 anos, aí ele quis logo ficar noivo, né? Fiquei noiva, fiquei toda assanhada, fiquei noiva. Porque tinha umas colegas minha, mais velhas, que ficavam noiva, tavam casando e eu tava achando aquilo lindo. Eu fui na casa de uma amiga minha que tinha casado. A casa tão bonitinha; parecia uma casa de boneca. Ah, adorei. Então eu vou casar também. Mas aí eu fiquei noiva. Ta, tudo bem. Passou uns 3 meses de noivado, aí eu achei que ele tava querendo se aproximar muito, ter muita...Querendo se aproximar muito, sabe? Querendo ser mais íntimo. Aí eu disse “não, mas isso não está certo”. Aí pensei “eu, mas que intimidade são essas? Minha avó sempre fala pra mim que não deve ter intimidade, aquela coisa”. Então eu fiquei preocupada, menina. Aí fui cortando a dele até que desmanchei. Com 5 meses de noivado eu acabei com noivado. Arranjei outro namoradinho. Só de terminar o noivado, quase que a minha mãe me bateu na rua. Porque eu tava noiva e tava namorando outrozinho escondido, né? Aí terminei o noivado, entendeu? Então, é por que? Desinformação. Porque se eu tivesse mais informação, né, não teria nem acabado. Talvez tivesse acabado, eu teria, porque não gostava dele o suficiente, né? Eu já não gostava mesmo. Então, era uma coisa muito difícil mesmo. E os rapazes também eram tão metidos, que não sabiam também coisa nenhuma. Eu acho que não sabiam também nada, não sabiam. Porque ninguém falava nada, entendeu? Então como que se ia aprender as coisas, não é mesmo? Foi assim uma juventude muito difícil a nossa, sabe? Muito difícil...Hoje eu olho assim e meu Deus, como mudou! Não sei se pra melhor, não sei. Não sei. Mas mudou muito, mudou muito. Hoje eu fico até triste, sabe, quando eu vejo. Então, era muito difícil. A coisa pra gente era muito difícil, em todos os sentidos, tudo muito difícil. Aí hoje eu olho pra essas garotas eu digo: vocês estão com uma vida... Assim, tinha muita proibição, mas podia namorar, podia, podia. Tinha que namorar dentro de casa, mas eu namorava! Que namorar dentro de casa, levava tudo quanto é namorado pra dentro de casa? Que nada, eu namorava escondidinho porque pensa bem: a gente não tava afim de casar, então pra namorar tinha...Pra você arranjar um namorado pra levar dentro de casa, ele tinha que ser pra casar. Então o que eu fazia? Eu ia ao cinema; gostava de cinema. Ia pra bailes. Aquela coisa: arranjava os meus namoradinhos e saía, né? A gente...Mas não chegava perto de casa, porque se a minha avó e minha mãe vissem, eu teria que levar em casa. Então, eu namorei muito assim, entendeu? Namorei muito mesmo assim. Mais escondido.” (Dinah)

Dinah, dez anos mais velha que Eliane, e tendo morado no interior durante grande parte da adolescência, dá ainda mais pistas sobre as moralidades que se impunham as jovens nos anos 50, com as proibições de namorar, a obrigatoriedade de, ao levar o namorado em casa, estabelecer um compromisso mais sério, noivar. Em sua vida marcada pela desinformação sobre

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sexualidade, rompeu o noivado por considerar o rapaz muito “abusado”. Ela frisa e rememora repetidamente que essa decisão foi muito difícil, assumindo que os tempos de hoje são melhores porque tudo é mais aberto, informado e declarado, embora tenha se tornado permissivo em demasia. Dinah deixa entrever também, o modo como fugia aos padrões, burlando a ordem ao namorar escondido, sem precisar casar. Involuntariamente, ao narrar o término do noivado com sua explicação sobre a falta de informação, acaba por revelar também uma idéia de que talvez aquele não fosse o “homem ideal” , talvez não gostasse dele o suficiente para casar. É possível perceber a partir do que está sendo dito um ideal de amor que perpassava aquela época. Nos discursos dos anos 50, é fácil identificar que o padrão de jovem responsável, que se ocupa em trabalhar, estudar, “construir um futuro”, apresenta-se em concomitância com um ideal de amor romântico, propagado pelos meios culturais, em que nem os artistas fugiam a esta construção. “Na Bahia, o menino João Gilberto juntou-se a uns amigos e formou um conjunto vocal. Seu sonho era tornar-se cantor. Ingressou no conjunto “Garotos da Lua” e permaneceu na Rádio Tupi durante cinco anos. Abandonou o grupo e preocupou-se em buscar um estilo diferente . Queria algo novo (...) Seu LP “Chega de Saudade” foi um “estouro”. Sua maior felicidade, entretanto, foi encontrar o amor de sua vida, 51 hoje a Sra. João Gilberto.”

A reportagem versa sobre os novos cantores presentes na cena musical brasileira, traçando um pequeno perfil de cada um. Destaca sua carreira, seus feitos, mas enfatiza que o mais importante evento ou fato de sua trajetória foi “encontrar o amor de sua vida”. Ora, pode-se perceber que este discurso abrangia até os artistas, sujeitos que naquele momento não figuravam como ideais para o casamento ou para uma vida estável. O artista é tido como modelo de aparência, com seus padrões estéticos e o que eles representam, mas não um padrão de vida cotidiana. Por isso, há tanta preocupação em revelar a vida destes artistas como regrada, proliferando-se matérias sobres cantores, compositores, ao encontrarem “o amor de sua vida”, casando-se, ocupando-se com o lar, as tarefas domésticas. “A carreira de Vicente Celestino e Gilda de Abreu está marcada por toda uma ininterrupta série de sucessos artísticos. Os assuntos dramáticos que Celestino interpreta em suas canções têm conspirado, muitas vezes, contra a sua vida conjugal. Mas a verdade é que nada até hoje toldou a felicidade doméstica dos populares cantores. Em algumas ocasiões, por força dos compromissos profissionais, Gilda e Celestino se separam, mas isso nunca teve relação com a realidade cotidiana deles, embora concorresse para o fortalecimento dos boatos espalhados a respeito da vida íntima do casal. (...) O casal percorre os recantos

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“Bossa Nova na canção popular”. Revista Manchete, 12/09/59. 308

poéticos que serviram de cenário para seu romance de amor. A paisagem não mudou e a felicidade dêles é 52 a mesma.”

Ressalta-se que mesmo com uma vida de muitos compromissos que os dois artistas possam ter, nada os afasta e nem colabora para a sua infelicidade, afirmação comprovada na reportagem por fotos que mostram o casal passeando por lugares onde se conheceram e começaram a namorar, numa idéia de romantismo, em que nem as letras dramáticas das canções que o cantor de “O Ébrio” possa interpretar, atrapalha o casal “mais feliz que nunca”. Aqui estão novamente os discursos do equilíbrio sobre os sentimentos – como o amor, o ciúme e o encontro do “verdadeiro sentimento” – elementos que conduzem à percepção da normatização de práticas sociais. Estes sentimentos recebem balizas sociais para garantirem o casamento certo, com a “pessoa certa”, mantendo assim, uma estabilidade social. O que fica claro a partir destas considerações acima é um ideal de amor-romântico que era hegemônico, com o encontro da “alma gêmea”, o par ideal, a pessoa certa, o amor verdadeiro, para que se efetivasse um casamento, colaborando para a manutenção da ordem social. Nas canções da Bossa Nova, este ideário não está ausente, ao contrário, é a grande tônica da maioria das canções, a idéia do encontro do amor verdadeiro, da felicidade resultante daí. Embora numa linguagem poética mais coloquial, sem tantos arroubos sentimentais ou passionais, o que se evidencia ainda é o ideal de amor. Em algumas canções, é o amor eterno, que já aparecia nos variados estilos de canções populares, nos ideais do amor romântico que aqui surge, articulado à dor, à tristeza e à desilusão. “Eu sei que vou te amar Por toda a minha vida Eu vou te amar E em cada despedida eu vou te amar Desesperadamente Eu sei que vou te amar E cada verso meu será Pra te dizer que eu sei que vou te amar Por toda a minha vida Eu sei que vou chorar A cada ausência tua, vou chorar Mas cada volta tua há de apagar O que essa tua ausência me causou Eu sei que vou sofrer A eterna desventura de viver A espera de viver ao lado teu Por toda a minha vida” 52

“O trovador e a grã-fina”, Revista O Cruzeiro, 10/05/52. 309

(Eu sei que vou te amar) Canção composta por Tom Jobim e Vinícius de Moraes, em 1959, foi gravada pela primeira vez no mesmo ano por Norma Bengell, pela Odeon, que a interpretou no primeiro show da Bossa Nova, realizado nas faculdades cariocas, em 1959. Até meados dos anos 60, vários outros intérpretes, inclusive Nelson Gonçalves e diferentes representantes da chamada Velha Guarda, a gravaram. A música trata do desamor e do sofrimento, temas comuns nos sambascanções e boleros, mas o que é interessante de se perceber é como, no presente, a memória de compositores da Bossa Nova, bem como dos ouvintes, associa esta canção a um exemplo de leveza, um estilo coloquial e alegre de se cantar o amor. Essas são formas residuais e emergentes que se misturam, em conflito, dentro da Bossa Nova e nas lembranças que dela se tem. A estruturação musical não se diferencia tanto do que Tom Jobim compunha na época, em canções como Corcovado, Amor em paz, Meditação e tantas outras. A interpretação de todo o disco de Norma, com canções da Bossa Nova bem como canções francesas e americanas tinham apelo sensual para a voz da cantora – atriz do teatro de revista que já despontava no cinema – com arranjos sofisticados que buscavam realçar sua voz de pouco alcance. Mas é a temática da canção, bem como o encaminhamento melódico em seus fraseados, que merecem ser olhados. A vontade do amor eterno e absoluto faz-se presente numa construção de “espelhos”53, como sugere Guattari. Primeiramente, se existe um amor que, sabe-se de antemão, nunca acabará; a falta do outro traz desconforto mas também a inspiração para um novo verso. No entanto, esta sensação de destruição evocada pela ausência contém também fios de esperança de restauração do ser e do relacionamento. Por um lado, sempre se reitera que se amará eternamente e, por outro lado, a volta sempre apaga as feridas que a ausência causou. O “jogo de espelhos” se dá nesta necessidade que a ausência e a volta alternadas sempre trazem, em que cada um desempenha o seu papel – um sempre à espera, amando eternamente e necessitando das sucessivas ausências e voltas do outro e, este outro, sempre tendo nesta espera a sua auto-realização, numa dependência mútua. Anthony Giddens nomeia de “relacionamento co-dependente”54 esta relação em que um indivíduo encontra-se ligado a um parceiro cujas atividades são dirigidas por algum tipo de compulsividade. No entanto, segundo o autor, esta co-dependência não sugere apenas amores e 53

Félix GUATTARI e Suely ROLNIK, Micropolítica: cartografias do desejo, passim. Cf. Anthony GIDDENS, A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas, passim.

54

310

relações de alguma forma encarados como patológicos, mas mostra-se como uma das bases da existência do amor romântico nas sociedades ocidentais. Sem querer avançar sobre esta questão neste momento, cumpre destacar que o amor romântico marca sua presença a partir do final do século XVIII, introduzindo uma idéia de “narrativa para a vida individual”, inserindo o eu no outro, sem estabelecer ligações particulares com os processos sociais mais amplos, pois os ideais do amor romântico inserem-se nos laços que naquele momento emergiam entre liberdade e autorealização. É preciso notar que a idéia de amor romântico está vinculada aos vários conjuntos de influências que afetaram as mulheres a partir do início da Modernidade, entre os quais, a criação do lar, as modificações nas relações entre pais e filhos e a invenção da maternidade, todos estes, elementos que cumpriram o papel de preservar a mulher no âmbito privado. Estabeleceram-se, assim, papéis de gênero que persistiram (persistem ?) por todo o século XX, baseados no próprio ideal desse amor, que tem no outro a completude do vazio do ser, em que a totalidade ocorre na união entre masculinidade e feminilidade, colocadas como antíteses. A identificação projetiva entre diferentes é o que proporciona esta união calcada na idéia de amor eterno, durável, em que se encontra uma “pessoa especial”. Várias mulheres ouvintes rememoram sua adolescência e juventude como sendo “muito românticas”, o que, de certa forma, justificava o fato de elas gostarem tanto da Bossa Nova. Algo que embalava os sentimentos, os primeiros namoros, as paixões. Pode-se pensar no quanto as vozes de cantores por elas relembrados como seus preferidos estão exprimindo este sentimento. Timbres de voz mais aveludados, sutis, cools, como Dick Farney ou Lúcio Alves, inspirados em Frank Sinatra, traduziam mais do que as palavras românticas das canções, mas a vivência pessoal, os sentimentos, marcando a cumplicidade entre cantor e ouvinte. Como atenta Heloísa Valente55, com o advento do microfone e a sua manipulação adequada, o cantor criava modos mais intimistas, interiorizados de cantar, em que o espectador também assume uma outra postura: de observador passivo, passa também a ser observado pelo intérprete. Isso acontecia não apenas na performance ao vivo, mas também nas gravações, possibilitadas pela alta fidelidade sonora, “a voz brilha, pois o ouvinte nela se introjeta”, estabelecendo vínculos comunicativos. Um romantismo de ter na auto-realização pessoal, no encontro da pessoa “especial”, “certa” ou “eterna”, o seu fundamento, expressava este intimismo que a nova paisagem sonora

55

Heloisa de Araújo Duarte VALENTE, As vozes da canção na mídia. São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). PUC/SP. 311

parecia também sublinhar, em que a voz é sentida como aproximação tátil, envolvente. Um corpo que nos fala a partir da voz e sua dicção e materialidade, em que língua e voz se encontram nas pronúncias, nos jeitos de expressar palavras, consoantes, vogais; mais do que a poesia e suas palavras significantes, existe uma “volúpia dos sons”, do “grão da voz”56, em que a percepção do corpo que canta traz uma escuta daquele que fala, em que escutar significa escutar-se, apoderando-se dos sons e transferindo-os de volta ao emissor, numa transferência que estabelece a simbiose intérprete-ouvinte. Muitos ouvintes lembram-se ainda de assistirem a muitos filmes musicais e românticos norte-americanos. Nestes, uma difusão da cultura do happy-end e da felicidade que se projeta no futuro, como sinaliza Morin57, contrapõe-se ao amor trágico que caracterizava a literatura e a dramaturgia até àquele momento. O ideal de amor romântico, do encontro da felicidade a partir das relações amorosas dissemina-se no cotidiano, em que a cultura de massas tem papel importante, sendo o tema principal da felicidade moderna. Mesmo que em outros momentos ele já tivesse aparecido – como no romance cortês medieval ou no teatro burguês do início do século XX – na modernidade assume ares universalizantes e obsessivos, desembocando no “mar livre da realização pessoal” a despeito das leis e regras sociais, sendo integrador, harmonizador de todas as diferenças e pulsões contraditórias, centralizando no casal de enamorados a totalidade dos laços afetivos que antes eram repartidos entre outras relações interpessoais. Um ideal de amor em que se projeta a felicidade no ser amado e este, enfim, resume tudo. Retomando Giddens, o que se percebe aqui, é uma ressonância entre o amor romântico, este fenômeno cultural e histórico e o “amour passion”58 que expressa uma conexão entre o amor e a ligação sexual, marcado pela urgência. O amour passion coloca-se acima da rotina e da estabilidade da vida amorosa do amor romântico, pois perturba as relações pessoais, arrancando o indivíduo das atividades mundanas e da ordem social, mostrando-se muitas vezes como refratário ao casamento e às relações duradouras. Não por acaso, muitos dos conselhos femininos dados aos jovens nos anos 50, ressaltavam o perigo das paixões irracionais, enfatizando a importância de relacionamentos amorosos pautados na estabilidade que os ideais de amor romântico traziam, assegurando os papéis prescritos aos rapazes e moças.

56

Cf. Roland BARTHES, O grão da voz. In: ____ O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Edgar MORIN, A felicidade; O amor. In: ___ Cultura de massas no século XX : o espírito do tempo I - Neurose. 58 Anthony GIDDENS, A transformação da intimidade, passim. 57

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Além do mais, os ouvintes recordam-se de terem no seu rol de leituras na juventude, as revistas de variedades, como O Cruzeiro e Manchete, ou ainda Revista do Rádio ou Radiolândia. No que tange à literatura, liam, para além de clássicos como Jorge Amado, Machado de Assis, José de Alencar, entre outros, romances de M. Delly, muito comuns à época e muito açucarados, além de revistas de fotonovelas, como Capricho e Ilusão, nas quais o amor sempre vence. Chamada de “imprensa do coração”, segundo Maria Celeste Mira59, a fotonovela vem do cinema, tendo surgido na Itália do pós-guerra como resumo de filmes, contendo fotografias das principais cenas. A autora ainda nos diz que as narrativas amorosas ali trabalhadas com forte matriz melodramática difundiram-se em toda a América Latina, onde predominava uma visão maniqueísta, moralista e um desfecho ditado pelo destino. No entanto, pode-se supor que este ideal de amor romântico restringia-se às moças, devido às leituras que faziam. Mas as memórias dos homens indicam que este imaginário era mais amplo. “O que eu quero dizer, é que a minha geração de jovens, eu tinha em 1958 quando a Bossa Nova surgiu, 23 anos, ela era uma geração que vinha de uma ... todos os amores fora daquilo que a gente entendia como o amor, que era o casamento, que era para o que as mocinhas eram preparadas e o rapazes também .... de certa maneira, ele podia até ter suas ambições à ser um grande Dom Juan, mas todos queriam casar, ter filhos... essa idéia de família que a nossa cultura sempre.... e quando as coisas não davam certo isso era uma pequena tragédia para a minha geração, principalmente, eu sou de um bairro da zona norte, nos bairros da zona sul, eles se libertaram primeiro, eles romperam seus preconceitos primeiro; talvez, eu não sei se isso tem a ver com o poder aquisitivo, ou se na zona sul do Rio de Janeiro havia mais famílias estrangeiras, com outras cabeças, pessoas com uma certa intimidade com o divórcio, que era uma coisa que não existia no Brasil naquela época.... e a minha geração foi muito reprimida... (...) esses romances sofridos que as pessoas tinham naquela época, por achar que era impossível, eu costumo dizer que o único amor impossível é o não correspondido, esse aí não dá jeito, quando o outro não quer, não quer mesmo, agora, todos os outros são possíveis de alguma forma, sendo difícil de realizar ou não. E eu acho que a Bossa Nova na minha cabeça, ela surge exatamente quando eu estava num romance extremamente complicado, que acabou no meu casamento, era de uma outra geração que vinha com uma cabeça mais aberta pra vida, entendendo... com uma outra visão do romance, ela percebe um pouco a pílula, a libertação sexual, ela é anterior a isso. Eu vivia um romance impossível, aparentemente impossível porque a minha namorada de infância tinha se casado com um senhor e quando eu reencontrei-a, cinco anos depois, ela estava casada, pra se separar e isso foi... filha única, esse negócio todo... Nós tínhamos sido namoradinhos e aí houve uma posição, né? Ela era filha única e eu era um vagabundo. Como qualquer menino de 16 e 17 anos é. O que que você acha que um menino de 16 e 17 nos faz? (risadas) Vai deixar tua filha namorar um vagabundo ? Não pode! Eu tinha 16, 17 anos. Não queria casar, só isso. E a minha sogra achava um horror isso! (..) Nós casamos, foi uma luta desesperada contra o mundo, contra os pais dela, os amigos, amigos romperam relação comigo. (...) Os obstáculos, o mundo era difícil, injusto com aqueles que se amavam... porque eles não sabiam o que eles podiam... simplesmente isso custa um preço, a gente sofre, mas não é impossível... e muitos sofreram horrores naquela época. A Bossa Nova é o oposto disso, a Bossa Nova é, nesse lado romântico, ela é esse mundo que eu acho que se abriu com a geração... com a minha e tal.”(João Máximo)

59

Maria Celeste MIRA, O leitor e a banca de revistas: a segmentação da cultura no século XX. 313

João Máximo permite conhecer que os rapazes também eram criados para o casamento, para a escolha da moça ideal, que fosse companheira e com a qual viesse a constituir uma família. Ele ressalta que ao ter este ideal desfeito, isso representava uma “tragédia” para sua geração, em que o amor toma cores fortes de sentimento essencial da vida. Ao se apaixonar pela antiga namorada que já estava casada, teve que enfrentar a sociedade “injusta com os que se amavam”, que “reprimia os amores” por considerá-los impossíveis, ao que ele argumenta que só o amor não correspondido é impossível. Ao nomear “amor”, pode-se compreender que ele está referindo-se ao “amor apaixonado”. O memorialista constrói a Bossa Nova como algo que representava o oposto de tudo isso, uma sociedade mais liberta dos preconceitos, em que os “amores” podiam ser vividos. Uma idealização, assim, de um passado melhor, de uma musicalidade que, em seu ideário e sonoridade, representaria este mundo harmônico com espaço para o amor romântico articulado ao apaixonado. Uma paisagem sonora retomada que, em suas nuances e sons, em primeiro plano e em planos secundários, ressaltavam e davam a impressão de um mundo onde o foro íntimo e os sentimentos deveriam ter a primazia: o desfecho feliz, a realização dos anseios individuais de auto-realização e de liberdade. Em tantas outras músicas, há a construção de um relacionamento ou pelo menos de um sentimento amoroso que busca resoluções mais otimistas e uma linguagem em que poesia e musicalidade também soavam mais leves. No mesmo sentido, nas memórias dos ouvintes, surgem outras representações sobre os jovens da época, como a idéia de uma juventude saudável – no sentido sentimental e moral – descontraída e “não consumista”, como lembra Glória. Ou ainda, nas palavras de Débora, uma juventude que vivia “a sentimento”. “Vai minha tristeza E diz a ela que sem ela não pode ser Diz-lhe numa prece Que ela regresse Porque eu não posso mais sofrer Chega de Saudade A realidade é que sem ela Não há paz não há beleza É só tristeza e a melancolia Que não sai de mim, não sai de mim Não sai Mas se ela voltar Se ela voltar que coisa linda Que coisa louca Pois há menos peixinhos a nadar no mar Do que os beijinhos que eu darei na sua boca Dentro dos meus braços, os abraços

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Hão de ser milhões de abraços Apertado assim, colado assim, calada assim Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim Que é pra acabar com esse negócio De viver longe de mim Não quero mais esse negócio De você viver assim Vamos deixar esse negócio De você viver sem mim”

(Chega de saudade) Nesta canção, que se transformou em marco da Bossa Nova por ter sido a primeira gravação de João Gilberto, em compacto feito em julho de 1958, já com seu estilo inovador, temos destacada uma construção de diferenciação – em perspectiva otimista – entre passado e presente. No início, as alterações entre tonalidades maiores e menores alternadas em cada verso, utilizando na melodia notas que voltam sempre às mais graves, sugere um sentimento de mágoa e melancolia, em que manda-se a própria tristeza ir dizer à amada para que volte, em forma de “prece”. Em seguida, o próprio autor se cansa de seu sofrimento, dizendo para si próprio e para quem o escuta “chega de saudade”, tendo consciência, no entanto, que sem a mulher amada “não há paz, não há beleza”, ficando-lhe apenas a desilusão que não lhe sai do coração. Na segunda parte, no entanto, a tonalidade muda, e a expressividade da canção, também; vislumbra-se um futuro à volta “dela”, projetando as ações e os sentimentos que se desenrolarão. A melodia, neste momento, torna-se mais lírica, com uma tessitura maior, revelando a expressividade dos sentimentos otimistas do autor. Ao final, a aparência coloquial, tão comum às letras da Bossa Nova, aparece, com a rima em diminutivos como “peixinhos” e “beijinhos”, na qual se diz “prá acabar com esse negócio de você viver sem mim”. Nos arranjos, pode-se perceber algumas inovações – se comparada à gravação feita meses antes por Elizete Cardoso – que, segundo Walter Garcia60, convergem para o despojamento e para a busca da essencialidade. A percussão mais leve, sem a chamada de tambor, que denunciariam a ocorrência do breque entre a primeira e a segunda parte da canção, tão comum ao samba, é uma das características da gravação de João. A isso, segue-se a substituição do coro masculino que acompanhava Elizete por um arranjo de cordas tocadas mais suavemente, deixando em primeiro plano a voz e o violão sincopados do baiano. Além disso, sua forma de cantar é peculiar, com um canto quase falado que rejeita efeitos e empostações vocais, buscando a maior simplicidade e essencialidade possíveis, trazendo uma voz que se faz música, valorizando 60

Cf. Walter GARCIA, Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto. 315

a própria percussividade e sonoridades da língua, com suas consoantes e ritmos. Em outras canções de sua autoria como Bim bom e Ho-ba-la-lá, em que a poesia é reduzida, e até considerada nonsense, ressaltando apenas o ritmo das palavras-títulos das canções, isso fica ainda mais claro. No primeiro show da Bossa Nova, João Gilberto cantou Chega de Saudade; importante, assim, perceber lembranças acerca da participação e escuta nestes eventos. “Aqueles shows da PUC eram maravilhosos e era uma coisa assim de uma emoção. Porque tanto os que estavam se apresentando quanto a platéia, era um negócio assim completamente jovem e era uma coisa de uma esperança. Aquele tempo foi um tempo muito bom, que a gente acreditava num mundo que vinha. Nós nos achávamos os donos do mundo, né? Tanto que lá na Escola de Belas Artes, a gente foi do diretório e tudo. E a gente dizia que nós éramos as crianças no poder, entendeu? E a gente acreditava no futuro, na política do Brasil, na política do mundo. Enfim, tava tudo por construir, por se fazer, né? Tinha saído daquele negócio de sonho americano, de não sei que (...) E era uma vida assim muito farta. O dinheiro era mais...Quer dizer, a gente, não era rico.... Mas o dinheiro, o dinheiro... As coisas eram mais fáceis, entendeu? Não era aquela coisa difícil, quer dizer, o trabalho, a gente era jovem...A coisa era por causa do jovem, mas ali na porta da Escola surgia tudo. As pessoas, às vezes, precisava de alguma coisa de arte, ia pra porta da Escola perguntar se tinha alguém que quisesse fazer. Muito trabalho da gente, a gente conseguiu ali.(...) Eu acho que a Bossa Nova captou toda essa alegria, essa leveza, numa ingenuidade assim. Ninguém tinha aquela coisa da sacanagem ...Porque não tinha muito negócio de competição, né? Tava tudo por se fazer. O Brasil tava por se fazer. A gente tava aí, né? Era um vir a ser. O Brasil era o país jovem que ia crescer, que ia construir, que não sei o que. Depois vieram os movimentos políticos, mas que se acreditava, né? Todo mundo acreditava no futuro da Terra, do planeta, do Brasil, da gente, do Rio, entendeu? Não havia nenhuma assim ansiedade nem tensão, nessa época. Sabe, é um negócio assim que parece que a gente viveu em outra galáxia nesse tempo. Porque lá na Escola de Belas Artes era todo mundo amigo, era uma grande família. (...) Pois é, a gente foi criado a sentimento. Que tem uma perspectiva que é uma perspectiva geométrica, que não sei o que, dos pontos, você vai assim...E tem a perspectiva a sentimento, você olha e vai botando a sentimento. E a gente, nessa época, foi muito criado assim, assentimento, entendeu? É lindo isso, né? Lindo, solto, aquele negócio assim assentimento, entendeu? Então, não tinha esse negócio daquela competição. Eu me lembro que quando ganhava alguma coisa, os outros ficavam contentes. (...) e essa coisa da competição, do dinheiro e do ter que...Era um negócio mais a sentimento mesmo, entendeu? Quer dizer, o cara, às vezes, ele vinha pra fazer teatro, acabava indo pra escrever, ou pra cinema ou pra artes, entendeu? Ou vinha pra artes, artes plásticas e acabava enveredando pra uma outra área afim, porque era tudo muito ligado. (...) Ah, e tinha uma coisa também curiosa, nessa época, no meio artístico e intelectual. Roubar livro não era considerado roubo! [risos] A pessoa roubava de livrarias, sabe? Você entrava...Porque as pessoas não eram ricas e tudo. Então, mas, às vezes, queria um livro de artes. Livro de arte sempre foram caros, importados. Então as pessoas roubavam, sabe? E isso não era mal visto, não era, não era. Era uma coisa assim de você ir numa feira de livros e roubar, “roubei esse”, “eu também roubei aquele”, “eu roubei esse”. Era assim, entendeu?” (Débora)

Débora constrói um passado visto como ideal, aquele da sua geração, em que predominariam a ingenuidade, a falta de competitividade e até uma certa ausência de pragmatismo – o que não é dito explicitamente – mas que permite reconhecer ao nomear as atitudes de sua geração como “a sentimento”, em que os rumos da vida, da carreira não eram planejados estrategicamente, mas deixados ao sabor dos caminhos que a vida ia delineando. Lembranças de um meio intelectual que valorizava a cultura letrada, as artes, a psicanálise e em 316

que o “roubo” de livros não era visto como algo errado, numa construção memorial que ressalta aspectos idealizados de um passado. Memórias que são sustentadas pela própria trajetória da vida de Débora e de seu presente como artista plástica e alguém interessada em questões místicas e espiritualistas. Mas, de qualquer forma, suas lembranças não fogem às memórias que predominam em seus pares, apoiando-se em seu grupo: de que era um tempo de maior leveza, ingenuidade, descontração e sem tantas preocupações. Débora recorda-se de ter frequentado os shows da Bossa Nova nas universidades cariocas, lembrando ainda que – diferentemente de outros depoentes já descritos – gostava muito de João Gilberto e de seu jeito de tocar e cantar. Ora, esta memória de Débora sobre o canto de João Gilberto traz questões sobre a própria ingenuidade daqueles tempos, tema que ela tanto ressalta. Um canto que flui como fala normal, em que o sentido das palavras e a melodia integradas não têm prioridade sobre o som, a voz e as formas de vocalidade, em que muitas vezes existem jogos de palavras que não buscam expressar tantas idéias ou sentimentos, mas em que o grão da voz e a expressão de sua presença corporal ganham mais atenção do que a elaboração de rimas sofisticadas, preferindo utilizar, por exemplo, “beijinhos” com “peixinhos”. Na performance intimista da Bossa Nova, o corpo também assumia esta característica, na qual o estilo “banquinho e violão” tornou-se emblemático, com um cantor que tem gestos reduzidos, mas não deixa de ter comunicação com seu ouvinte, pelos movimentos das pernas, braços e tronco acompanhando o ritmo, além das expressões faciais e do modo complexo de movimentar mãos e dedos no violão. Um canto que, à primeira vista é ingênuo e “bobo”, tinha por trás de si a materialidade de uma voz encantatória que suscitava, na escuta, a “atenção a um continuum dos matizes sonoros da voz”61 e do corpo vivo que a emanava, em que a escuta segue por caminhos incertos, descontínuos, labirínticos. Um canto que parecia captar esta paisagem sonora da redução dos ruídos, do supérfluo, buscando a essencialidade nas notas melódicas, harmônicas, nos arranjos e na poesia, tentando suscitar na escuta, a idéia de uma essencialidade também na vida, com maneiras simples e não programadas de encarar a existência, como lembra Débora. Uma juventude, assim, com uma escuta característica, que – como nossa memorialista associa quase sem querer – era uma juventude com esperança no mundo, no país e na cultura, que acreditavam ser os donos do mundo que viria. O jogo da memória composto por Débora permite 61

Janete EL HAOULI, Demetrio Stratos: em busca da voz-música, p.40. 317

interpretar que às aspirações daqueles jovens correspondia uma escuta não apenas da Bossa Nova, mas de um espírito do tempo que parecia emanar e circular, em que dicções inovadoras buscavam romper com as formas rebuscadas do mundo estabelecido dos adultos – nas formas de cantar, de ver a vida, de fazer arranjos, etc. – e com os preceitos que a geração que lhes precedia pareciam impor. O que este trecho de memória permite dizer é que o devir de uma cultura, de uma atitude e de uma experiência jovem como contestadora da ordem estabelecida, transgressora de regras – como viria a se efetivar no final dos anos 60 – já estavam se anunciando ali, naquela paisagem sonora intimista, nas letras aparentemente ingênuas, no jeito de escutar que oferecia novo sentido, novas formas de dar corpo à voz, em que a escuta teria interiorizado um jeito de ser jovem descontraído, “a sentimento”, algo que se perpetua na memória destes adultos de hoje. Um corpo que começava a se libertar da rigidez normativa naquele momento, reforçado por uma escuta que captava o ritmo e a vocalidade própria ao tempo, onde a memória, ao ser acionada, voluntária ou involuntariamente, traz à tona as sensações62. Percepções corporais guardadas na vida vivida interior e exteriormente que são acionadas no momento da lembrança, suscitando este passado experimentado. Porém, em meio a estas experiências da juventude nos anos 50 e 60 até agora narradas e mediadas por memórias e outros discursos, algo não pode ser esquecido: se muitas das memórias nos dão indícios de resistências, táticas, subversões às regras estabelecidas de forma dispersa no cotidiano, na escuta das canções, nas maneiras aparentemente superficiais ou banais da vida de todo dia, outras lembranças, bem como outras canções, ressaltam uma juventude que se queria participativa, engajada, ativa nas discussões e ações políticas e sociais da época. Memórias de uma juventude que àquele momento já buscava ser resistente, contestadora, com isso, também, nomeando-se. No início dos anos 60, após o término do governo de Juscelino Kubitschek e a transferência da presidência para Jânio Quadros, pela via democrática – algo inédito até ali na história republicana brasileira: um presidente eleito pelo voto direto, cumprindo integralmente seu mandato e transferindo o governo para outro governante eleito também de forma democrática –, as conquistas alcançadas pela era JK se faziam presentes como um legado, tanto em seus aspectos positivos quanto por seus aspectos negativos. Entre os positivos, os êxitos de seu Plano 62

Cf. Henri BERGSON, Matéria e memória. 318

de Metas que previa um crescimento do país de “50 anos em 5” inserindo o Brasil na etapa do capitalismo monopolista, desenvolvimento industrial e de infra-estrutura, com a implementação dos setores de transportes, energia, indústrias de base e a substituição das importações. No plano político e social, estavam a consolidação (pelo menos para aquele momento) da democracia liberal, permitindo alto grau de liberdade política e de expressão, com uma tolerância às ações dos comunistas e de seus órgãos de imprensa – mesmo com a proibição legal do Partido Comunista – , à formação de organizações sindicais proibidas por lei e a permissividade e não repressão sistemática ao movimento operário que se reorganizava desde inícios dos anos 50. No entanto, estes mesmos aspectos positivos tinham seu reverso na alta taxa de inflação, no agravamento das disparidades regionais com setores industrializados convivendo com bolsões de atraso e baixa produtividade, a manutenção da miséria no campo e as próprias vicissitudes que o capitalismo monopolista iria impor, as quais seriam incompatíveis com o jogo político do regime liberal-democrático. As próprias conquistas dos setores populares da era JK, com o movimento operário e as Ligas Camponesas – com seu crescente avanço que começaria a alcançar repercussão, exigindo um debate e uma urgência pela Reforma Agrária – tendiam a colocar problemas para a dominação do capital.63 De qualquer forma, a década de 60 iniciava-se com um clima de efervescência, euforia e otimismo, visto como um momento em que o país atingira um grau avançado de democracia, maturidade política e participação no jogo político dos diversos segmentos da sociedade, marcando um intenso período de movimentação na vida brasileira. As camadas médias urbanas, mesmo divididas pelo temor da subversão e da instabilidade econômica, estavam presentes nos debates e movimentos sociais, na figura dos intelectuais e dos estudantes que assumiam posições favoráveis às reformas estruturais da sociedade, desenvolvendo uma intensa atividade de militância política e cultural. A União Nacional dos Estudantes (UNE), gozando de plena legalidade, transitava entre as instâncias de poder, discutindo calorosamente as questões nacionais e trazendo os jovens para as mobilizações que assolavam o país. Em 1961, nascia o primeiro Centro Popular de Cultura (CPC), ligado à UNE, arregimentando jovens artistas, intelectuais e estudantes para a definição de estratégias rumo à construção e difusão de uma cultura popular e nacional. Uma cultura e uma

63

Cf. Maria V. de Mesquita BENEVIDES, O governo Kubitschek: desenvolvimento econômico e estabilidade política. 319

arte vistas, assim (conforme já abordado no primeiro capítulo), como instrumento revolucionário de conscientização popular, denunciador das desigualdades sociais e desprendido de abstrações de ilusórias liberdades elitistas sem conteúdo, passando a assumir um caráter didático, traduzido para as massas e constituindo uma arte engajada. Contando ainda com ampla influência do Partido Comunista, que teve papel importante no jogo político de alianças de Jango, difundia-se entre estes jovens cepecistas um ideário de revolução democrática, afirmando o nacionalismopopular anti-imperialista.64 Pensando a Bossa Nova não como um movimento fechado, coeso, mas com uma formação65, em que sujeitos de trajetórias, vivências, interesses variados agrupam-se com tendências que apontam para caminhos e inclinações variadas, é possível compreender que, em se tratando de algo feito por jovens dos setores urbanos, muitos deles universitários ou com inserções variadas nos meios intelectuais e artísticos, não foi difícil a penetração deste ideário participativo entre seus membros. Como argumenta Júlio Medaglia66, o próprio sentido musical da Bossa Nova colaborou para isso, pois tratava-se de uma música alheia ao sentimentalismo rebuscado, chavões poéticos, virtuosismos vocais, sendo uma manifestação musical mais concreta e direta. Alguns músicos e compositores, como Carlos Lyra, Nelson Lins e Barros, Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré e outros, jovens à época, universitários ou não, começaram a entrar não somente em contato com os CPCs, mas passaram a participar de suas ações, buscando produzir

uma

música

de

cunho

político-ideológico,

abordando

os

problemas

do

subdesenvolvimento, reforma agrária, influências imperialistas, condições subumanas da vida dos pobres dos morros ou do nordeste. Nesta época, eles também produziram algumas trilhas sonoras para filmes brasileiros da fase pré-Cinema Novo como Cinco vezes favela, O padre e a moça, A hora e a vez de Augusto Matraga, entre outros. Constituía-se uma espécie de dissidência que parecia ser uma tentativa de marcar uma fronteira entre a Bossa Nova dos primeiros tempos, vista já naquele momento como alienada, vazia, elitista e jazzificada, e uma outra, nacionalista, que buscava ligar-se ao samba tradicional autêntico, mas que neste momento ainda conservava muito da musicalidade e intimismo dos primeiros tempos.67

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Heloísa B HOLLANDA, Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde – 1960/70. Raymond WILLIAMS, Cultura. 66 Júlio MEDAGLIA, Balanço da Bossa Nova. In: Augusto de CAMPOS, Balanço da Bossa e outras bossas: antologia crítica da moderna música popular brasileira. 67 Marcos NAPOLITANO, Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959/1969). 65

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Sem retomar as análises já realizadas no primeiro capítulo deste trabalho, sobre o ideário cepecista, seu conceito de nacional e popular, a aliança entre intelectuais e povo, sua filiação teórica e até as críticas a tudo isso, trata-se de compreender, neste momento, a questão da promoção da figura da juventude ligada à política. Política aqui compreendida num sentido amplo, não apenas de pertencimento e da prática político-partidária ou institucional efetivas, mas num ideário de mobilização, conscientização, sentimento de tomada de responsabilidade pelos contornos futuros do país. As próprias noções já discutidas no início deste sub-capítulo – as conceituações sobre a juventude – recusam considerá-la como possuidora de tendências à mobilização e mudança, não sendo necessariamente progressista, mas tendo isto como um potencial. Na discussão brasileira sobre a juventude, na década de 60, assume destaque o papel do jovem estudante das camadas médias como a figura central das mobilizações sociais que marcaram o período posto como revolucionário.68 Se a década de 50 começou a apontar a promoção dos valores e da existência juvenil na sociedade e nos imaginários, é neste momento que a juventude iria firmar-se como categoria histórica, radicalizando-se até o fim da década de 60, embora de maneiras diversas (jovem “engajado” nas ações políticas, ou jovem “alienado”, dos movimentos hippies e de Contracultura ou ligados ao “ieieiê” ). O que se busca destacar aqui é a força que este imaginário do jovem participativo, politizado, engajado, contestador e revolucionário tomou, perpetuando-se, com continuidades e rupturas, na memória histórica e pessoal sobre aquele período, estando presente nas lembranças dos ouvintes da Bossa Nova. “Mas eu tive uma felicidade...que foi a minha geração, né? Dos anos 60. Realmente eu vejo. É Roberto Carlos, é Pelé, é Cacá Diegues. E eu estudei na PUC depois, com um certo sacrifício, né, mas eu estudei na PUC que era paga. Eu fiz primeiro Letras Anglo-germânicas. Me formei na PUC em 1961. Aí eu já tinha 21 anos.(...) Eu... realmente, na PUC era uma efervescência. Olha, lá, por exemplo, eu comecei a fazer teatro com o Roberto Pontual, que era o diretor do teatro. Cacá Diegues freqüentava a PUC. A gente batia papo com ele, aquilo tudo e assim, vário outros (...) houve uma certa... vamos dizer assim, um certo hiato, no meu conhecimento que veio a PUC. A PUC era o celeiro. Realmente era uma coisa espetacular a convivência que a gente tinha e foi lá que eu conheci.... (...)Quer dizer, quando eu fui para a faculdade, eu acho que assim, foi uma libertação pra mim, porque aí, eu fui pra faculdade com 18 anos, aí eu conhecia gente nova, eu lancei um livro na faculdade também, ficou assim de gente e nós pegamos a faculdade nos anos pré-revolução, a gente já sentia aquela efervescência toda... tudo aquilo... Eu fiz parte já do diretório uma época, mas eu não podia também me enfronhar muito porque o meu pai era militar e trabalhava no governo, então eu não podia me enfronhar demais. Então, dentro dos meus limites de coerência e de equilíbrio eu participei de algumas, vamos dizer assim, tarefas, de conscientização do pessoal, de conversar, de bater papo, tudo isso, o pessoal de letras era muito chamado; pelo menos eu ia às palestras ouvia muita coisa e participava doa debates, eu sempre gostei de participar dos debates, mesas redondas, tudo isso, de algumas atividades, melhor dizendo.(...) a minha posição contrária em 1964 não foi de uma 68

Helena Wendel ABRAMO, Cenas juvenis. 321

mera espectadora, eu conhecia o Jango, eu sei que ele tinha realmente alguns problemas assim como administrador, etc, etc, diziam que ele era apenas um fazendeiro e não sei o que, mas eu conhecia as boas intenções, eu conversava muito com o tio Tancredo, conversei muito lá em Brasília e muitas vezes aqui no Rio, tudo isso, então quer dizer, a gente entrou nessa conscientização contra a revolução de 64 porque a gente sabia que não seria uma coisa fácil, rápida, sem sofrimento e sem conseqüências.” (Maria

Amélia) (grifos meus) Maria Amélia, bem como outros memorialistas, recorda-se da vida universitária na juventude como um período de efervescência, celeiro cultural e artístico de onde saíram grandes e famosos nomes de sua geração, segundo ela, privilegiada. Na sua trajetória relatada, é possível verificar que o ingresso na universidade lhe proporcionou o conhecimento e a entrada num certo “mundo novo”, tomando contato com colegas de valores e trajetórias diferentes da sua. Embora conte que seu pai era militar e que era afilhada de Tancredo Neves, o que a teria posto em contato com a política e com a “realidade do país”, Maria Amélia deixa perceber, mesmo sem falar disso explicitamente, que foi na PUC que travou contato mais direto com os debates e ações políticas, participando do diretório acadêmico, das reuniões, desenvolvendo “tarefas” e “atividades” ligadas ao CPC, entre estas a conscientização popular. Maria Amélia fala da “libertação” que foi a PUC em sua vida, pois ao que parece, não podia no ambiente doméstico participar, discutir, tomar posturas, ter atitudes ou opiniões próprias sobre a vida, a política, os comportamentos e os valores. Assim, mesmo rememorando sua postura consciente e contrária ao Golpe de 1964 – por ela chamado de “Revolução” –, na construção memorial sobre uma juventude não alienada, lembra também que participou destas “atividades” estudantis com reserva, pelo temor devido ao fato de seu pai ser militar e provavelmente rechaçar – conforme pode ser lido nas entrelinhas de suas lembranças e esquecimentos – este seu envolvimento. Ao falar dos seus “limites de coerência e equilíbrio”, Maria Amélia permite que se interprete uma experiência jovem que vivia conflitos entre o engajamento clamado pela vida universitária e as regras e os valores da família, aos quais parecia ter muito respeito e temor. Equilíbrio, comedimento, mais uma vez, é o que se encontra no cotidiano juvenil. Outros depoentes também afirmam a sua consciência e revolta quando jovens frente aos acontecimentos políticos que se iniciaram em 1964, e mesmo antes. “Nós estamos em 61... antes disso, o Jânio renuncia, e meu pai era desses milicos assim, que milico só tem uma função, manter a ordem e obedecer, obedecer a ordem e manter a ordem; e meu pai estava em casa sem função, porque nós voltamos depois que o Jânio ganhou a eleição... o pai foi se apresentar, aí a mamãe virou assim pra ele e disse: - Não vá se apresentar. E aí ele disse: - Vou porque reza a constituição que todo oficial sem função se apresente para o presidente da República. Ele foi e foi preso, foi preso num 322

navio chamado Custódio de Mello e aí os homens da aeronáutica... (...) Mas aí vem 64, e em 64 meu pai é o primeiro oficial da aeronáutica a ser preso. E já naqueles movimentos, ele aí é preso e é preso logo de cara 63 dias; primeiro ele vai pro Campos Afonso, depois vai para o Leopoldino, com um detalhe que ele nunca respondeu nenhum inquérito policial militar; ele sempre foi incluso na Lei de Segurança Nacional. Então era muito difícil, mamãe sem receber um centavo aqui dentro deste apartamento... (...) Enfim... mas essa prisão do papai fez com que, principalmente não tendo uma razão concreta, fez com que a gente começasse a prestar, pelo menos eu, a prestar mais a atenção em outras coisas... Então, mais uma vez Carlinhos Lyra entra na minha vida, com o João da Silva ‘Cidadão sem compromisso não manja disso que o francês chama l’argent, pega dinheiro disfarçado e é tapeado desde às cinco da manhã’ [canta]. Mais uma vez ele me surpreende com ‘O Brasil é uma terra de amores, de flores, onde a brisa fala de amores nas lindas tarde de abril’, depois é , ‘mas um dia o gigante levantou, deixou de ser um gigante adormecido, e dele um anão se levantou, era um país subdesenvolvido, subdesenvolvido’ [canta]. Enfim, Carlinhos Lyra entra de novo e aí começa um período das músicas, dos festivais”. (Eliane)

Eliane, que já é mais nova que Maria Amélia, tendo hoje 54 anos, vivenciou o momento de tanta efervescência política do país por outra via, a familiar, uma vez que seu pai foi preso mais de uma vez em 1961, e também em 1964, ano do golpe militar. Esse acontecimentos foram muito marcantes em sua vida, o que a faz citar estas passagens com riqueza de detalhes e por diversas vezes: as dificuldades da família na ausência do pai, a saudade, o medo, por ser tão nova. Mas, segundo suas memórias relatam, estes fatos foram responsáveis por despertarem-na “para outras coisas”: para a realidade política do país, tirando-a da simples contemplação das músicas líricas e românticas de Carlinhos Lyra, como tanto citava, até então, em sua narrativa. Lyra entra em sua vida, a partir daí, como aquele que cantava as mazelas sociais, criticando entre outras questões, o subdesenvolvimento e as condições de vida dos pobres. Nesta fase, pré-64, como aponta Marcos Napolitano69, as canções participantes são marcadas muito mais pela pedagogia dos sentidos do que pela pedagogia político-partidária, em que era preciso configurar a nação e poeticamente senti-la e expressá-la, o que produziu canções ao mesmo tempo nacionalistas e cosmopolitas, politizadas e intimistas, lançando as bases musicais e ideológicas para o tipo de música que se desenvolveria na era dos festivais. Nas músicas compostas por Lyra e Vinícius de Moraes para o musical Pobre Menina Rica, interpretado em 1963 por Nara Leão, algumas destas observações ficam mais claras. São letras que falam das diferenças sociais, do mendigo lírico, da pobreza da “Maria do Maranhão” e com uma musicalidade que buscava soluções do samba antigo, com uma divisão rítmica mais definida, não tanto sincopada, timbres do samba mais quadrado, uso de trombone no arranjo, mas ainda muito ligado à Bossa Nova, mostrando-se bastante intimista, sem exageros vocais, com 69

Marcos NAPOLITANO, Seguindo a canção. 323

arranjos que não reforçavam o papel dos instrumentos de percussão. A rememoração da escuta destas canções por Eliane sublinha esta característica ainda bastante lírica que ela tanto admirava na Bossa Nova, quando o presente formulando as memórias atuais, é que atribui uma maior diferenciação entre as canções. Mas a escuta da época parecia compreendê-las como continuidade. Ainda nas memórias de Eliane, “Eu aí comecei a curtir na música, aí eu curtia a música brasileira, eu acho que como nunca... porque aí, essa fase da música popular, ela é muito rica e mexia muito comigo, mexia demais...a rebeldia.... A vontade de... sabe? Dava gana na gente, mexia com os brios e era através da música, por isso é que eu digo que a história pode ser contada através da música; é que eu não tenho noção de uma ordem cronológica, eu não sei de cor, mas ‘Acender as velas já é profissão, quando não tem samba tem desilusão’ [canta]. Era Nara....gostava demais da Nara; mas também eu achava que ela tinha uma voz muito pequenininha... eu gostava mesmo era dos cantores.”

Segundo suas lembranças, a música expressava a “gana” sentida pela juventude contra a ditadura, que “mexia com os brios”, fazendo muitas vezes confusões com as datas, épocas e músicas. De qualquer forma, o que o movimento de sua memória traz - com lembranças e esquecimentos, em saltos –, é a vontade de fixar a sua juventude como rebelde, consciente do que acontecia no país, mesmo que no fundo, como involuntariamente recorda e verbaliza, não gostasse da voz pequena de Nara Leão, e seu grito de guerra cantado e tão lembrado no show e LP Opinião, e nem mesmo de Elis Regina. Ela preferia os cantores. Em outros momentos do depoimento, Eliane recorda-se de que, em sua adolescência, escutava e gostava muito das canções italianas, o que mostra que seu repertório de canções não se restringia às músicas engajadas e de protesto, muitas das quais rejeitava. Isso de maneira nenhuma invalida a sua escuta e a trama memorialística forjada sobre ela, mas levanta alguns aspectos daquilo que o presente busca construir como hegemônico. Ela se refere às músicas do show e depois LP Opinião de Nara Leão, que contaram com a participação de músicos de origem humilde como o sambista Zé Keti e o maranhense João do Valle. Esta fase corresponde a um momento em que, já sob o regime militar, a música popular se viu em busca de novas referências estéticas e novas perspectivas de afirmação ideológica, dirigida cada vez mais à propagação da consciência social e não apenas de uma conscientização pessoal do artista como ser social; uma valorização do popular puro como resistência ao golpe e à dominação capitalista elitista que ele representava. Esse processo resultou em músicas de cunho e de performances mais agressivas, combativas, verdadeiros “gritos de guerra”. Daí, talvez, venham as lembranças da escuta de 324

Eliane sobre a voz pequenina de Nara que parecia não combinar com a força e amplitude que aqueles cantos queriam exprimir para aquela juventude. Interessante notar que outros ouvintes, principalmente os mais velhos, não vêem esta fase da música popular como diferente ou como algo que rompia com a Bossa Nova, mas como uma integração, um momento em que o movimento, que já expressava a juventude da época e sua capacidade criativa, lírica, sensível, completou-se com um olhar atento a outras questões, mais sociais. Um movimento da memória deflagra a sensação, guardada até hoje, de que se tratava de algo feito por e para jovens, expressão de suas sensibilidades e visões de mundo, um momento em que esta parcela da sociedade tomava a frente no cenário social, fosse de maneira romântica e intimista, ou ainda de maneira mais combativa, ampla e engajada. Em ambos os casos, parece que o que se fixou na memória daqueles que viveram a juventude nos anos 50 e, já mais velhos, nos anos 60, foi o fato de se tratar de algo feito por uma juventude que era, em si, contestadora simplesmente por existir e se fazer presente. Por já terem sido discutidas – no primeiro capítulo –, as questões que envolvem esta fase da efetivação de uma MPB e suas relações com o mercado fonográfico cumprem apenas apontar aqui para a questão do consumo cultural, que nesta época (meados da década de 60) efetiva-se com uma ampliação e massificação do público consumidor da música popular brasileira ligado à juventude. Após o golpe de 64, o campo musical popular e as esquerdas encontravam-se num impasse entre a ampliação e a adesão ao mercado e o engajamento ao ideal nacional-popular, da “arte pela arte”, cuja arena principal eram os festivais de música transmitidos pela TV.70 Como já foi dito, a promoção da juventude desde os anos 50 foi acompanhada de um processo de ampliação e segmentação do mercado em geral, que passava a ver o jovem como uma faixa de mercado a ser explorada. A indústria fonográfica e o campo musical não ficaram de fora deste processo, percebendo nesta “cultura jovem” nascente um amplo leque de possibilidades, no qual a segmentação da música popular em diversos estilos, buscava atender as demandas desta juventude que ganhava a cena. Como bem aponta Zan71, não se pode encarar as

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Não adentra-se aqui numa análise mais aprofundada sobre os festivais da canção e os estilos musicais ali desenvolvidos, como a “Música de Protesto” ou o Tropicalismo, pois fogem às preocupações mais centrais deste trabalho. Para referências a este assunto, conferir: Marcos NAPOLITANO, Seguindo a canção; José Roberto ZAN, Do fundo de quintal a vanguarda: contribuição para uma História Social da Música Popular Brasileira. Campinas, 1997. Tese (Doutorado em Sociologia)- IFCH/ UNICAMP. E ainda Zuza Homem de MELLO, A era dos festivais – uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2003. 71 José Roberto ZAN, Do fundo de quintal a vanguarda. 325

relações entre as músicas participantes dos primeiros tempos dos CPCs ou as canções de protesto da era dos festivais como tendo uma ligação direta e mecânica com o contexto político do Brasil. Estas manifestações culturais encontravam-se fortemente vinculadas à indústria cultural nascente e ao mercado. Inseridos neste mercado, os agentes musicais relacionavam-se com o contexto político por meio da mediação do campo da música popular, em que os direcionamentos, tomadas de posição políticas davam-se em função, também, da própria lógica interna do campo, na busca de diferenciação dos outros estilos musicais, de distinção, na luta por hegemonia e, ao mesmo tempo, aprofundando suas relações com o mercado voltado para o consumo jovem. O autor lembra ainda que a canção de protesto não rompeu completamente com os padrões musicais – e, por vezes, até com os poéticos – da Bossa Nova, sendo este, aliás o grande dilema por que passou a MPB então nascente, entre sentir-se no dever de valorizar o samba tradicional e a musicalidade autêntica, de acordo com o ideário nacionalista e, concomitantemente, não querer abrir mão das conquistas formais alcançadas pela Bossa Nova, em termos poéticos e musicais. Interessante atentar para o fato de a Bossa Nova e suas dissidências terem sido encaradas e afirmadas, à época, como música jovem, e hoje existir uma quase indiferença dos jovens em relação a estas músicas. Por vezes, percebe-se até um desconhecimento das mesmas, do que representaram naquele contexto ou então uma noção de que são músicas ultrapassadas, não percebendo nelas qualquer ressonância com suas experiências, sendo muitas vezes nomeada como “música de velhos”. Esta implicação do presente, é claro, afeta as memórias dos ouvintes analisados e a construção que fazem do seu passado e de sua juventude, buscando afirmar ainda mais a sua época e “seu tempo” como privilegiados, uma vez que tiveram a oportunidade de tomar contato, participar e pertencer a uma geração artística/musical muito rica. Eles tentam ainda construir a sua geração nos anos 50 e 60 como mais informada e consciente, diferentemente da juventude atual que se mostra desinteressada, dispersa e alheia à “verdadeira” cultura. Mais uma vez, o presente jogando seus apelos ao passado, trazendo dele aquilo que se quer firmar como essencial, pelas próprias vicissitudes lançadas pela atualidade. Porém, em alguns depoimentos, é possível perceber outras lembranças da juventude. “É, eu não fui muito ligada no movimento estudantil, não. Eu tava mais ligada em namorar e não era muito politizada, não. Mas era muito ligada mesmo nessa coisa de música e ver show de samba e aquelas...Íamos muito pra Mangueira e aí a gente tinha uma turma ali em Botafogo, e íamos pra festas, pra carnaval e íamos pra escola de samba e tinha...E aí tinha...começou a aparecer Nara Leão, Bethânia, né, ainda era 326

bem garota, depois Nara Leão que eu era apaixonada. Logo me apaixonei por Nara Leão e foi assim uma gracinha assim da história, né? E então a gente dançava o fim de semana inteiro... e nós dançávamos, dançávamos, sempre sabíamos todas, todas as músicas, todas as danças; era aquela dançação, aquele negócio de namorar, rua, sabe aquela fofoca de rua. Então era todo mundo muito animado com isso. A gente dançava... Ah, todas aquelas músicas, todas aquelas coisas. Hooly Gooly, sabíamos todos os passos, todas aquelas danças que vinham, né, trazendo, novas, e nós sempre treinávamos e dançávamos muito. Aquilo era levado a seríssimo, éramos muito festeiros. Foi uma época muito festeira assim. Me lembro que era uma coisa muito festeira. E de ensaio em escola de samba e tinha aquelas coisas da....aqueles shows do Arena ali da Copacabana e Opinião. (...) E eu gostava de tudo, é...de tudo. Não era assim uma coisa muito, aficionada, né. Os festivais eu achava esquisito aquela novidade toda, né, aquela coisa dos festivais já era uma coisa, sei lá, talvez mais politizada, mais assim enraizada. Eu não era assim de tomar partido, não. Eu gostava era de namorar mesmo e de ouvir, dançar e...a gente tinha isso.” (Rita)

Rita explicita em sua narrativa que não era ligada em política, não entendia, não se interessava, pensava só em namorar, dançar e se divertir. Ela escutava Bossa Nova, tendo como forte referência a figura de Nara Leão, os shows e espetáculos no teatro de Arena, e ainda freqüentava as escolas de samba, compondo um quadro de convivência no universo da juventude chamada engajada. Porém, ao mesmo tempo lembra-se de dançar todas as músicas da época, dando ênfase ao rock e ao ie-ie-iê, e de preferir dançar a ouvir, sempre associando as canções à diversão, festas e namoros. Mesmo suas recordações dos festivais são bastante esparsas, fragmentárias, repletas de esquecimentos, expressando apenas que achava estranho, algo muito enraizado e politizado. Mesmo quando fala da Tropicália, referindo-se “aos baianos”, diz que pra ela já era outra coisa, não mais Bossa Nova nem protesto. Interessante esta memória de suas escutas, pois o Tropicalismo surgia com algo que trazia os elementos pop internacionais, uma renovação da estética da MPB dos festivais, com letras que também falavam daquele universo com o qual Rita parecia identificar-se. Mas, no jogo da memória, as lembranças significativas, que lhe ficaram, e que são acionadas hoje, negam o gosto pelo Tropicalismo, preferindo intitularse como “apolítica”, alguém que não se enquadrou naquele ideal de juventude politizada referendada na memória histórica. “ naquela época pra mim foi, pra mim foi...eu iniciei com rock. Na Bossa Nova eu ainda era muito menino, pra mim Beatles era a coisa forte. O que me levou a tocar violão foi os Beatles. Como ela [sua mulher, Rita] tem irmão mais velho, ela começou a ouvir coisas antes. Eu como era o irmão mais velho na minha casa, então foi diferente. No começo da Bossa Nova, o principal era Beatles, era o principal, eu era um beatlemaníaco de primeiro disco ao último, quando foi mais ou menos 1970. Eu tocava todos os discos dos Beatles e tocava na ordem, lado A e lado B, virava o disco, eu era um beatlemaníaco. Mas é claro que a Bossa Nova... o baixista que tocava comigo era um cara mais ligado em Bossa Nova, então, a gente como tava ali naquele esforço, tentando aprender, a gente era muito autodidata, porque naquela época na tinha essa oportunidade que tem hoje de formação. Então cada um, era um aprendizado bem difícil; quando eu fui estudar música, o que eu aprendi de música em 6 meses, foi mais do que tudo o que eu tinha aprendido como autodidata em 10 anos. Essa coisa do autodidata naquela época que era o negócio da Contracultura,

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que negava uma formação, e também negava porque naquele tempo não tinha muita opção... mas nesse bolo, tinha uma coisa ou outra de Bossa Nova que a gente procurava aprender, mas aí tinha a televisão, né, que tocava e se curtia também.... tinha um programa com a Elis Regina semanal, na TV, aparecia todo mundo, era um nível de programação musical incrível... Quando apareceu o Tropicalismo, pra mim foi muito maior que a Bossa Nova. Que essa época eu já tocava, tocava há muitos anos e foi uma hora que se produziu uma coisa no Brasil que tinha a ver com aquilo que a gente ouvia fora daqui. Pra mim foi muito marcante. Eu tocava guitarra, eu era guitarrista. Era aquela linguagem musical com ar brasileiro. Até então não tinha, né. O que se fazia no Brasil era os covers. O Tropicalismo foi um impacto forte. Porque a Bossa Nova...É claro que hoje, hoje eu ouço Bossa Nova. Logo depois quando eu, minha formação musical, passei a valorizar muito mais a Bossa Nova, ouço. Até hoje a gente ouve Tom Jobim com raro prazer. Não que seja uma coisa freqüente, né, mas quando ouve você vê que aquilo é o que melhor se produziu da música do século XX, junto com jazz, você pode colocar o Tom Jobim tranqüilamente. O Tropicalismo foi uma mistura, uma outra força, que era a música pop, que era outra força mesmo, aquela outra, aqueles instrumentos que tinham condições de produzir um outro clima, eram outros recursos que entravam com um outro clima e então era uma leitura.” (Roberto)

Roberto constrói sua trajetória juvenil como tendo sido ligada ao rock, aos Beatles, seus ídolos na juventude, colocando-se muito em contato com as músicas e a cultura estrangeira. Conta que foi ouvir Bossa Nova muito tempo depois, num disco, na casa de uma prima. Importante perceber como ele tenta, na construção memorial do presente, justificar que era muito jovem quando a Bossa Nova surgiu, mas que hoje em dia é o que mais gosta e reverencia. Fica claro, no entanto, que sua inserção e gosto musical passavam pela escuta das músicas e da cultura Pop internacional. Embora ele não se declare nem se assuma como “alienado” ou “apolítico” – o que também este trabalho de maneira alguma pretende refutar – sua trajetória passou mais ao largo da ambiência da juventude “engajada” do que a de Rita. Diferentemente dela, Roberto vê a Tropicália como o grande momento da música popular – até mais impactante do que a Bossa Nova – pois era algo completamente diferente do que se ouvia, algo em sintonia com o que lhe fazia sentido, uma “tradução” da sonoridade, da força do “clima” que a música Pop estrangeira lhe suscitava. Este clima aludido por Roberto oferece pistas para imaginar o cotidiano das experiências da juventude já na segunda metade da década de 60, em que se convivia com a TV, com a agitação e fermentação cultural buscando romper com as regras morais e comportamentais que existiam até então. Um clima que remete também a algo que tanto Rita como Roberto não disseram explicitamente em seus depoimentos, mas que naquele momento de suas trajetórias, a partir das entrelinhas de suas narrativas, devia também chamar-lhes a atenção. A idéia de juventude “alienada” circulou socialmente a partir de meados da década de 60, definindo os que aparentemente não se importavam ou se interessavam por política, preferindo consumir produtos culturais cuja principal matriz eram as músicas estrangeiras como o rock, que

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por aqui foi chamado de ie-ie-iê. Com uma musicalidade e poética bem diferentes da Bossa Nova e das músicas dos festivais, o movimento musical/cultural que surgia – a Jovem Guarda – assumia sua faceta comercial, explorando muito mais padrões comportamentais que se queriam transgressores, com uma visualidade mais ousada composta por minissaias, botinhas e decotes das garotas e calças justas e cabelos compridos dos rapazes, que afirmavam e referendavam o consumo, o carro, as roupas, enfim, os elementos da cultura de massas. Vai se ordenando aí uma divisão do campo musical popular entre a MPB, uma música engajada, nacionalista, séria, de bom gosto, universitária e o ie-ie-iê, com letras ingênuas, românticas ou com referências ao consumo e padrões “imperialistas”, despretensiosa, vista como inferior e de baixa qualidade, destinada a uma juventude desinformada e alienada. Aqui, é possível identificar uma espécie de divisão e busca por distinção na luta por hegemonia no campo musical, tendo como principal aliada a TV.72 Esta luta no campo guardava intensas ligações com a segmentação das culturas jovens, o que teria permanecido nos imaginários, na memória histórica até hoje, em que os depoentes muitas vezes buscam enquadrar-se entre “alienados” ou “engajados”. Isto em relação à música que gostavam de escutar e até com o grau de envolvimento nos movimentos estudantis. Uma dicotomia cristalizada em termos absolutos, não permitindo muitas vezes, que se perceba as mediações entre elas, os limites de tamanha divisão. As memórias, ao tentarem dar um sentido ao passado e às vidas vividas, construindo uma narrativa coerente, muitas vezes reafirmam esta dicotomia, mas é preciso reconhecer que ela é uma construção histórica pois a partir desta época, em que o jovem foi afirmado como contestador e a juventude desta época vista, aos olhos de hoje, como símbolo máximo de engajamento, conscientização, mobilização e inconformismo, a noção de participação política encontra-se restrita a uma idéia de prática político-partidária efetiva, onde o que lhe escapa é visto como indiferença e alienação. A década de 60, não só no Brasil, mas em todo o mundo, ficou na memória histórica e na História oficial como marco, um monumento, considerada como “pórtico às profundas transformações políticas e sóciocomportamentais do mundo depois da Segunda Guerra”.73 Um momento-chave, enfim, de encadeamento das manifestações e dos rumos históricos que se delineariam depois.

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Patrícia FARIAS, Jovem Guarda ou respostas que não foram perguntadas. In: Angela Maria DIAS (Org.), A missão e o grande show: políticas culturais no Brasil dos anos 60 e depois. 73 Angela Maria DIAS (Org.), A missão e o grande show. 329

O que se vê ocorrer, desta forma, é uma construção do ideal de participação política baseado nos anos 60, os anos rebeldes, “anos de chumbo”, em que o passado é visto como ideal, não percebendo nos dias atuais, configurações históricas, sociais, culturais diversas daquele tempo, quando a própria noção de participação política se transformou, não estando muitas vezes caracterizada por um discurso político articulado ou mesmo efetivo a longo prazo, como nas gerações passadas74. Assim, nas memórias, apenas uma participação política mais efetiva é lembrada como legítima, sendo que os que não a tiveram buscam construir seu passado juvenil pelo menos como consciente, ouvinte e apreciador das músicas engajadas dos festivais. Ou ainda, aqueles que gostavam, escutavam e se identificavam mais com outras formas musicais, como o rock ou ie-ie-iê, referem-se ao seu passado como apolíticos, não percebendo que a noção de política que têm é fruto de uma cristalização histórica que exclui outras formas diferenciadas de se inserir no mundo da “coisa pública”. O que se tentou perceber na trajetória deste sub-capítulo sobre a juventude foram as noções, que se encontravam em jogo naquele momento, sobre o significado deste termo, tanto no campo das Ciências Sociais como entre os discursos normativos mais presentes no cotidiano, ditados pela família, escola, religião e mesmo pelos meios de comunicação, que guardavam ainda permanências de modelos mais tradicionais e inovações nos comportamentos e na identificação juvenil mais adequada aos novos tempos do pós-guerra, perfazendo um certo discurso do equilíbrio. Aliado a isso, foi intenção também notar como a Bossa Nova – movimento musical que se assumiu como inovador, moderno e jovem, fazendo disso a sua marca de distinção – captava e expressava estas formas de ser jovem, tanto em suas letras como em sua sonoridade. Buscou-se perceber ainda os elementos que permearam a noção de juventude naquela especificidade histórica – a idéia de participação política –, que articulada ainda a outras questões mais gerais, ajudou a construir um campo musical popular no Brasil e suas relações com o mercado e a indústria cultural, colaborando para compor um imaginário sobre a época que vê a juventude numa dualidade entre “engajados” e “alienados”. Compreender como as memórias dos ouvintes, hoje adultos, constróem – nos jogos de lembrança e esquecimento – as experiências de escuta que se formulavam então, ressaltando sensibilidades, percepções e formas de inserção no mundo, permitindo interpretar fragmentos das

74

Regina NOVAES, Juventude e participação social: apontamentos sobre a reinvenção da política. In: Helena ABRAMO et alli. (Orgs), Juventude em debate. 330

experiências juvenis de então, não encarceradas em modelos, nem sempre completamente contestadoras e revolucionárias, mas mudanças fragmentárias e táticas improvisadas no próprio cotidiano, que apontaram para o devir de muitas questões, conquistas, dilemas, contradições que se tem nos dias de hoje. Jovens dos anos 50 e 60, convivendo, em diferentes graus, com a presença da modernidade, do mundo do consumo, de novos valores e da existência das mídias em suas vidas como presença cada vez maior, constante e colaboradora para as definições de suas identidades. Revistas, rádio, cinema, fonogramas, TV adquirindo peso, força e contigüidade no cotidiano, ajudando a elaborar modos de sentir, de se relacionar com o mundo objetivo e imaginário, formas de escuta do mundo, em que a Bossa Nova, como tipo de canção e sonoridade mais fortemente presente em suas memórias, exerceu papel importante em suas experiências. Escutando músicas com poesia e melodia que sinalizavam um tom coloquial, de fala cotidiana, volumes mais baixos, ritmo sincopado, mas que parecia suscitar uma idéia de cadência harmoniosa, performances mais sutis, enfim, que buscavam caracterizar-se como algo moderno, estes jovens pareciam estar experimentando – o que aflora em suas memórias de hoje em algumas lembranças explícitas e em alguns não-ditos – aquilo que a juvenilização acentuada da sociedade começava a delinear: maneiras de elaborar o seu sensorium, as formas de lidar com as tecnologias em suas subjetividades, em que olhar, escuta, sentidos variados vão se transformando e se preparando gradualmente para uma sociedade em que o contato com as mídias assumiria um papel de muito destaque. Falar em juventude, assim, é sublinhar suas capacidades de perceber, lidar e relacionar-se com o seu presente.

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Cap. 3.4. – Homens e mulheres “Ao invés de querer definir o outro (‘O que é que ele é?’), me volto para mim mesmo: ‘O que é que eu quero, eu que quero te conhecer?’. O que aconteceria se eu quisesse te definir como uma força, e não como uma pessoa? E se eu me situasse como uma outra força diante da tua força? Aconteceria o seguinte: meu outro se definiria apenas pelo sofrimento ou pelo prazer que ele me dá.”

Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes Este capítulo tem como proposta pensar sobre homens e mulheres. Após dezenas de séculos, quando as diferenciações sociais de gênero fixavam papéis rigidamente definidos para homens e mulheres, com prevalência de uma hierarquização dos homens em detrimento do feminino – o patriarcalismo – tem-se hoje, no mundo ocidental, sociedades em que os preceitos femininos são valorizados, e a mulher surge como um sujeito socialmente reconhecido, em um processo de “ruptura histórica na maneira pela qual é construída a identidade feminina, bem como as relações entre os sexos”, como argumenta Gilles Lipovetsky1. Se até há alguns séculos as mulheres eram sujeitas à procriação e a uma moral severa, hoje podem escolher entre ser ou não mãe, ou ainda adiar essa decisão, tendo conquistado a liberdade sexual e o direito de exercer uma carreira profissional. Esta “evolução” do feminino na modernidade, especialmente no século XX, pode ser vista como uma das principais mudanças sociais desta época. São mudanças profundas, mas relativamente rápidas, ricas em possibilidades para o futuro, tendo alterado as relações entre os gêneros, reposicionando papéis e identidades, tanto dos homens quanto das mulheres. Num mundo em que o individualismo, a afirmação do eu, da busca de realização pessoal, os valores privados, e a intimidade são tão valorizados na sociedade2, as relações entre homens e mulheres - ao se inserirem com maior predominância neste âmbito da vida social - são essenciais e devem ser analisadas. Para isso, será utilizada a categoria de análise gênero, que cada vez mais se afirma nos estudos de áreas diversas, como História, Antropologia, Sociologia, Psicologia, entre outros. Aqui, esta categoria é entendida como um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, colocando-se como a organização social da diferença sexual, mostrando-se como um saber que estabelece significados para as diferenças

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Gilles LIPOVETSKY, A terceira mulher: permanência e revolução do feminino, p.231. Cf. Gilles LIPOVETSKY, Op.cit.. E também Anthony GIDDENS, A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas.

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corporais, em que estes significados variam de acordo com as culturas, os grupos sociais e o momento histórico.3 Segundo Elisabeth Badinter4, em grande parte da história ocidental, as relações homem/mulher têm se inscrito num sistema mais amplo de poder que norteia as relações entre os indivíduos, sendo o patriarcado não apenas uma expressão desta hierarquia de opressão sexual de gênero, mas também de um sistema político, apoiado numa teologia. No ocidente, entre os séculos XVI e XVII, os teóricos do Absolutismo procuraram justificar a autoridade do rei, ligando-a a Deus e ao Pai. No entanto, as revoluções burguesas e os ideais democráticos dos séculos XVIII e XIX, buscaram livrar-se do patriarcado político, desfazendo a figura do soberano o que, de alguma forma, também contribuiu para solapar o poder paterno. Estava aí colocada a primeira grande causa do desmoronamento desse sistema. Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade não apenas esmoreceram a figura do pai soberano masculino, como também abriram espaço para se repensar as especificidades de cada sexo, os papéis atribuídos a homens e mulheres numa nova distribuição, mais fluida e não tão hierarquizada. Em uma república democrática, a fraternidade entre irmãos iguais e livres deveria substituir os ideais de submissão, hierarquia e paternalismo do Antigo Regime. Estava começando a se abrir o espaço para a entrada das mulheres como sujeitos, mudança que não se deu de maneira tranqüila ou rápida, mas num campo de lutas em busca de conquistas cívicas, educativas e políticas. Não que, em outros momentos, as mulheres não possam ser interpretadas ou compreendidas como sujeitos e agentes da história, assumindo papéis não prescritos, driblando as ordens, exercendo um outro poder nas fímbrias e bordas dos discursos oficiais5, mas o que se estabeleceu neste momento foi a possibilidade de afirmação social, ocorrendo nos próprios discursos da mulher como sujeito histórico. Entre os séculos XVIII e XIX – momento em que se instaura a Modernidade –, solidificam-se os papéis rigidamente prescritos aos homens e mulheres, após as modificações que se verificavam desde a Idade Média na condição da mulher. A partir do século XII, a mulher – até aí vista e representada hegemonicamente de forma depreciativa, como alguém perigoso, misterioso, maléfico e diabólico – passa a ser objeto de veneração masculina, com o código do

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Joan Wallach SCOTT, Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Eliane M. T. LOPES e Guacira LOURO, (Org.), Mulher e Educação. Educação e Realidade, v. 16, n.2, p.5-22, 1990. 4 Elisabeth BADINTER, Um é o outro. 5 Cf. Maria Odila Leite DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 333

amor cortês que exaltava a mulher como o “belo sexo”, em uma idealização da mulher-musa que se aliava ao culto mariano e a elevava como ser especial por possuir a função materna6. No século XIX, instaura-se uma modificação e não uma abolição da hierarquização dos gêneros, pois se começa a designar com maior evidência as funções sociais de cada sexo, sendo o homem ligado à esfera pública do trabalho, da política, das decisões, da autoridade e da racionalidade; e a mulher, dentro do lar, atuando na esfera privada, definida como ser frágil, dependente, sensível, emotivo, ligado à natureza e aos instintos. No século XIX, com a industrialização, este modelo se solidificou, colocando os homens no mercado de trabalho e a mulher como “rainha” do lar, responsável por sua organização e pela educação dos filhos, desempenhando a função de esposa e mãe, como algo naturalizado e próprio de uma suposta “natureza feminina”. Entretanto, estas mudanças são ambíguas, explicitando um século que pode ser considerado como contraditório, pois eram colocadas num pedestal, enaltecidas, idolatradas, idealizadas, ao mesmo tempo que enfrentavam forte opressão masculina, sendo confinadas e tuteladas como nunca antes havia acontecido, processo que resultou em um aprofundamento da divisão das esferas próprias a cada um dos sexos, como argumenta Michelle Perrot7. Mas foi também neste mesmo momento histórico que se deu, de modo tenso e difícil, seu acesso a liberdade, criando as condições para a conquista do status de sujeito, pondo em pauta uma certa consciência de gênero. O que se delineou, assim, foi uma nítida e profunda oposição e afirmação das diferenças entre homens e mulheres, designando o que é próprio, específico, essencial e até “natural” de cada sexo, o que acabou por conduzir a uma oposição binária. Com os avanços das conquistas femininas durante todo o século XX, desde o trabalho fora do lar até o controle da fecundidade e a liberação sexual, entre tantas outras coisas, o que vem dando contorno aos tempos atuais é um apagamento ou borramento de fronteiras nítidas e rigidamente estabelecidas entre o que é específico dos homens e das mulheres, quadro que se verifica ao se perceber a quantidade de mulheres sozinhas ou que lideram as famílias ou ainda no fato de os homens estarem mantendo cada vez mais uma relação com a paternidade, o que não se verificava em outros momentos. Tal fato, traz à tona os ideais de um homem sensível, ou “homem feminino”, valorizado socialmente, em detrimento da figura do “machão”, como atesta Sócrates Nolasco8. O paulatino esvaecimento dos referenciais sociais e culturais rígidos e o 6

Cf. Gilles LIPOVETSKY, A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. Cf. Georges DUBY e Michelle PERROT (Dir), Histoire des femmes en Ocident, vol. 4. 8 Sócrates NOLASCO, O mito da masculinidade.; Sócrates NOLASCO (Org.), A desconstrução do masculino.

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surgimento de uma plasticidade dos papéis sexuais, faz com que seja cada vez mais difícil determinar a diferença entre ser homem e ser mulher no plano social e cultural. Conduz-se aí um estabelecimento de “mínimas diferenças”, como observa Maria Rita Kehl9, em que a interpenetração dos territórios – antes bem apartados e diferenciados – e a percepção de características masculinas e femininas presentes em todos os indivíduos causam mal estar, angústias e perda de referências, sem que se esteja certo dos novos pontos referenciais. Um problema ainda muito distante de ser superado, diante de um estado de indefinição nas relações homem/mulher, em que não se sabe o que se quer e muito menos o que não se quer ou de que maneira, tudo isso pondo em xeque as funções que caberiam a cada gênero, se é que ainda existem essas funções específicas. Neste sentido, surge a questão: deve-se considerar as diferenças sexuais e de gênero, numa tentativa de obter “portos seguros” para as experiências na vida social, ou tentar esvanecê-las por completo, argumentando sobre a semelhança e a não distinção das especificidades masculinas e femininas? Este foi, e ainda é, um dos grandes debates dos movimentos feministas iniciados no final da década de 60. Na discussão sobre a Bossa Nova, a questão do gênero assume destaque quando durante os depoimentos se revelaram diferenças nos sentidos dados por homens e mulheres a este mesmo estilo musical, ressaltando que esta atribuição de sentidos, estas leituras das músicas têm a ver com o lugar social de cada receptor e seu papel na sociedade10. As relações sociais de gênero são importantes nesta reflexão, como uma questão presente naquela época, adquirindo importância para se poder pensar hoje num momento do passado que apontou para tantos elementos que adviriam mais tarde. Não se supõe aqui uma perspectiva de história linear e evolutiva, mas um movimento histórico que em suas rupturas e fissuras, em suas muitas e diversas temporalidades parecia já apontar para os movimentos feministas dos anos 70 e para os papéis que as mulheres assumiriam a partir dali. Estes ouvintes eram homens e mulheres, com particularidades e identidades de gênero, algo que não pode ser descolado da análise de suas memórias. Memórias de um tempo de mudanças significativas experimentadas em meio a suas vidas cotidianas na cidade do Rio de Janeiro, como jovens que eram e como ouvintes das sonoridades e das canções daquele momento, em contato também com outras formas midiáticas que discursavam e falavam sobre os papéis de

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Maria Rita KEHL, A mínima diferença: masculino e feminino na cultura, passim. Elizabeth FLYNN e Patrocinio SCHWEICKART, Gender and Reading: essays on readers, texts and contexts.

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gênero. O estudo dos ouvintes da Bossa Nova não pode ignorar estas questões, das quais a própria Bossa Nova também não se distanciou. Considerando esse olhar para o passado, interpretando os limites das conquistas femininas e as modificações das relações entre homens e mulheres é possível perceber até que ponto existem permanências, invariâncias, rupturas ou emergências no que tange aos papéis de gênero. Partindo dessas particularidades de gênero, é possível chegar à questão da memória construída por homens e mulheres. Marina Maluf discute sobre a existência ou não de uma memória especificamente feminina, indagando se existiriam mecanismos de funcionamentos da memória próprios às mulheres e outros próprios aos homens. Para além da memória ser uma forma de recapturar o passado segundo uma seleção significativa dos eventos vividos e revelados a partir do ato pessoal de lembrar, esse processo está posto dentro da trama coletiva da existência, em que “o indivíduo encontra-se impregnado de elementos que ultrapassam os limites de seu próprio corpo e que dizem respeito aos conteúdos comuns dos grupos aos quais pertence ou pertenceu”11 As lembranças estão ligadas intimamente à vida social e à historicidade de quem rememora, marcada por práticas, valores, formas de representação. Os pertencimentos sociais dos indivíduos dão cores diferenciadas tanto às significações quanto à própria maneira de reconstrução desse passado. Não causa espanto perceber que as mulheres se atêm muito aos detalhes da casa, da família, dos objetos e do vestuário destacando elementos que se constituíram ao longo de suas trajetórias como próprios ao feminino. Os homens desenvolvem explicações de um modo mais distanciado e mais geral, presos a uma racionalidade que funciona como um freio as emoções. Acompanhar o movimento da memória de homens e mulheres é um modo de conhecer o lugar social e cultural de onde falam e como falam e a importância que atribuem aos seus papéis na sociedade e aos fatos que narram. As análises aqui desenvolvidas afastam-se das especificidades memoriais dos gêneros que partiriam de características biológicas ou de natureza – embora possam haver questões relevantes nesse âmbito –; em vez disso, considera que as singularidades estão, como argumenta Michelle Perrot, “nas práticas sócio-culturais presentes na tripla operação que constitui a memória – acumulação primitiva, rememoração, ordenamento da narrativa – [que]

11

Marina MALUF, Ruídos da memória: a presença da mulher fazendeira na expansão da cafeicultura paulista. São Paulo, 1994. Tese (Doutorado em História Social) FFLCH-USP. p. 96. 336

estão imbricadas nas relações masculinas-femininas reais e, como elas, é produto de uma história”12. É impossível esquecer, no entanto, que as mulheres e os homens cujas memórias estão sendo analisadas foram educados majoritariamente dentro dos padrões tradicionais dados pela família, Igreja, imprensa, discursos variados. Muitos tiveram que demolir, ou pelo menos relativizar, vários destes padrões e construir novos parâmetros e valores. Tendo como referência os padrões de seus pais, mães, avós e tios, eles tiveram que enfrentar mudanças radicais na sociedade, que envolviam desde a entrada da mulher no mercado de trabalho até conflitos com instituições como família, casamento, sociedade, religião, democracia, reconhecimento da sexualidade e dos direitos igualitários dos gêneros que começavam a ser difundidos socialmente, além de serem exigidos a assumir posições políticas. Todas estas novas demandas sociais vivenciadas por estes sujeitos a partir das décadas analisadas, exigiram-lhes novas posturas, tornando-os mais inquiridores, revolucionários e dialógicos, num momento em que ainda não possuíam um “espelho onde se mirar, mas apenas imagens fragmentadas, estilhaçadas, geradora de angústias, provocando sensação de desenraizamento”13, entre outras conseqüências. Compreender a memória destes homens e mulheres hoje, é refletir também sobre este mosaico de mudanças que afetaram as identidades e as relações de gêneros pelas quais estes sujeitos passaram e que, de alguma forma, estão presentes – de diferentes maneiras e intensidades – nos modos de rememorar o vivido.

Alguns aspectos teóricos A publicação de O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, em 1949, pode ser considerada o grande marco na propagação dos preceitos feministas dentro e fora da academia. Mesmo sendo tão criticada por não tratar de mulheres específicas, e sim da mulher como fenômeno universal, desconsiderando particularidades sociais, culturais e históricas de cada grupo de mulheres – influenciada pelas idéias existencialistas acerca do “ser em si”, “ser para si” e “situação” – Beauvoir chegou a afirmar que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Essa foi a primeira

12 13

Michelle PERROT, Práticas da memória feminina. Revista Brasileira de História, v.9, n.18. p. 18. Maria José Motta VIANA, Do sótão à vitrine: memórias de mulheres, p. 42. 337

manifestação do conceito de gênero, como argumenta Heleieth Saffioti14. Segundo esse prisma, o feminino não é dado pela biologia ou pela anatomia, mas construído cultural e socialmente, ser mulher é uma aprendizagem. Esta idéia é essencial para se repensar toda a visão das mulheres sobre a vida em sociedade, como também suas condutas e, por conseqüência, a dos homens. Daí em diante, debates, estudos e movimentos sociais foram realizados em busca de tematizar a mulher e seu papel na sociedade. Primeiramente, desenvolveu-se uma reflexão que tinha como base a suposição das mulheres como uma categoria homogênea dada pela biologia, que se movia em papéis e contextos diferentes, mas que possuíam uma certa “essência” feminina. Este discurso foi muito utilizado pelos movimentos feministas nos anos 70, firmando o antagonismo com os homens e a idéia de uma identidade coletiva entre as mulheres o que possibilitaria uma mobilização política e social. Já no final da mesma década, começou-se a questionar a viabilidade de uma categoria tão genérica como “mulheres” para se discutir a questão, introduzindo-se, assim, a noção de “diferença” como um problema a ser analisado. Passou-se a pensar na existência de múltiplas identidades, articulando a noção de gênero às noções de classe, etnia, geração, procurando as especificidades e negando a idéia de um sujeito universal feminino. Segundo Heloísa Buarque de Hollanda15, a crítica da cultura feminista adquiriu importância num contexto particular, quando a questão da alteridade começou a se evidenciar nos debates a partir da década de 70. No que diz respeito ao plano político e social, esse debate ganhou espaço a partir dos movimentos anticoloniais, étnicos e raciais, de mulheres, de homossexuais e movimentos ecológicos que se consolidavam como novas forças políticas. No plano acadêmico, filósofos franceses pós-estruturalistas (Foucault, Deleuze, Barthes, Derrida e Kristeva, entre outros) intensificaram a discussão sobre a crise do conceito e da noção de “sujeito”, introduzindo temas que tinham como foco a diferença, a alteridade, a marginalidade. Isso acabou gerando, em parte da reflexão feita nas ciências humanas, uma certa recusa em relação aos discursos totalizantes, hegemônicos.

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Heleieth SAFFIOTI, Primórdios do conceito de gênero, Cadernos Pagu – Simone de Beauvoir & os feminismos do século XX, n.12, 1999. 15 Heloísa B. HOLLANDA, Feminismo em tempos pós-modernos. In: Heloísa B. HOLLANDA, (Org.), Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. 338

Ainda segundo Buarque de Holanda, é possível perceber na atualidade, dois pólos conceituais que dividem o campo teórico/epistemológico na crítica feminista: o feminismo angloamericano e o feminismo francês. “A corrente anglo-saxônica, muito prestigiada na área da teoria literária, vem há quase vinte anos, procurando denunciar os aspectos arbitrários e mesmo manipuladores das representações da imagem feminina na tradição literária e particularizar a escrita das mulheres como o lugar potencialmente privilegiado para a experiência social feminina. (...) Por outro lado, o feminismo francês, mais vinculado à psicanálise, vai trabalhar no sentido da identificação de uma possível ‘subjetividade feminina’. Enquanto as feministas americanas dos anos 60 declararam guerra ao falocentrismo freudiano, as francesas atentam para a psicanálise entendida como teoria capaz de promover a exploração do inconsciente e a emancipação do pessoal, caminho que se mostrava especialmente atraente para a análise e identificação da 16 opressão da mulher”.

Numa vertente um pouco diferente, estão os estudos de gênero vinculados ou apoiados mais propriamente nos métodos da história social. Estudos que enfatizam o trabalho feminino e suas condições, entre outros temas, são bastante significativos desta perspectiva, sendo criticados exatamente por sua característica fortemente descritiva, residindo aí a sua limitação. Conforme atenta Louise Tilly17, a contribuição principal dessa abordagem descritiva foi a de evidenciar a experiência das mulheres, indo além da interpretação de discursos, textos e linguagem (como defende Joan Scott), trazendo a prática concreta das mulheres. Scott critica esta tamanha preocupação da história social com a visibilidade, levando em consideração que a experiência também contém certa invisibilidade e que certas práticas não estão explicitadas, merecendo e necessitando de um esforço interpretativo18. Em diálogo com ambas as abordagens historiográficas apontadas acima, pode-se ver, no Brasil, um debate que passa por estas questões. Maria Odila Dias argumenta que é preciso, para se trabalhar com mulheres na sociedade, libertar-se de categorias abstratas, de idealidades universais, como “condição feminina”, por exemplo, “mas sim buscar instrumentos metodológicos e teóricos que dêem conta da própria instabilidade e não fixidez do tema. Não procurar certezas, verdades absolutas no que tange à vida das mulheres, pois isso estaria reproduzindo, como espelho distorcido, as próprias categorias do sistema de dominação que pretendem criticar, mas buscar fazer da teoria feminista uma forma outra de construção do conhecimento, onde serviria como um instrumento de crítica aos modelos científicos deterministas, cientificistas, racionais explicativos e universais. Buscar sim, o contingencial, o efêmero, o movediço, os papéis informais, as

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Idem. p. 11-12. Louise TILLY, Gênero, história das mulheres e história social. Cadernos Pagu - desacordos, desamores e diferenças, 1994, p.29-62. 18 Joan Wallach SCOTT, A invisibilidade da experiência. Projeto História, n.16, p. 297-325. 17

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situações inéditas e atípicas das mulheres permitem justamente a reconstituição de processos sociais fora 19 de seu enquadramento puramente normativo.”

A autora propõe um método de abordagem feminista que procure interpretar tanto os discursos quanto as práticas, valendo-se de fontes em que estão explicitadas as ideologias e os papéis prescritos às mulheres, interpretando nelas próprias, nos ocos do discurso, nas fímbrias e no não-dito sua atuação. Com isso, pode-se reconhecer papéis não previstos no normativo, saindo-se, assim, da esfera estritamente do poder, ainda que o tome como ponto de partida, mas incorporando modos de subversão. Neste sentido – nestas maneiras de subverter o normativo – abre-se a possibilidade para se pensar a recepção de obras literárias como algo que propicia esta subversão; como um dos locais privilegiados para que se possa compreender essas práticas desviantes. Em busca de uma “teoria feminista da leitura”, Elizabeth Flynn e Patrocinio Schweickart20 argumentam que a maioria dos estudos sobre leitura e leitores realizados atualmente deixam escapar questões como raça, classe, sexo, não dando valor aos sentimentos e impasses que acompanham estas realidades, o que acaba por atomizar leitor e texto, formando hiatos entre estes, sem dar conta da interação que há entre ambos nem considerar o mundo fora do texto, fator de suma importância para se compreender o leitor. Elas propõem a necessidade de pensar a leitura em termos específicos, afirmando que há uma leitura própria as mulheres, uma leitura feminina. Para a crítica feminista mais recente, a idéia de autoria ressalta e associa esta noção a funções falocêntricas da visão do autor como autoridade. A crítica feminista destaca três momentos para uma leitura das mulheres: o primeiro seria uma leitura ou interpretação da experiência das mulheres; o segundo seria o ler como uma mulher e, num terceiro momento, haveria uma releitura da experiência. 21 Esta teoria, ao propor a idéia de uma leitura feminista de textos, não trabalha com as especificidades históricas, o que a precipita para aquilo que tanto critica: a essencialização do feminino e uma descontextualização desta leitura, o que provoca uma noção de um modo feminino de ler como condição feminina imanente. Para evitar esse tipo de postura é preciso estudar e analisar a leitura feminina dentro de uma especificidade histórico-social, o que evitaria

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Maria Odila Leite DIAS, Teoria e método dos estudos feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do cotidiano. In: Albertina COSTA e Cristina BRUSCHINI (Org.), Uma questão de Gênero, 1993, p.39-53. 20 Elizabeth FLYNN e Patrocinio SCHWEICKART, Gender and Reading: essays on readers, texts and contexts. 21 Cf.: Jonathan CULLER, Lendo como mulher. In: _____ Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pósestruturalismos. 340

a armadilha de se pensar uma leitura ou escuta das mulheres como algo pertencente a uma certa “natureza” ou “condição” feminina. Estes estudos centram suas reflexões numa suposta e natural especificidade da linguagem e/ou escrita femininas ou ainda na afirmação de sua identidade. Nos inícios do movimento feminista, as questões da identidade e diferença foram importantes, tendo conseguido abrir espaços e canais de expressão institucionais como imprensa feminista, cinema de mulher e estudos feministas, todos afirmados enquanto área de conhecimento. A introdução do conceito de gênero como categoria analítica representou o aprofundamento e a expansão das teorias críticas feministas. O estudo das relações de gênero, agora substituindo a noção de identidade, passa a privilegiar o exame dos processos de construção destas relações e das formas como o poder as articula em momentos datados social e historicamente, variando dentro e através do tempo, e inviabilizando o tratamento da diferença sexual como "natural". Este tipo de perspectiva epistemológica permite o surgimento de um conceito relativizado de gênero como um saber histórica e culturalmente específico sobre as diferenças entre homens e mulheres, levando um estudo como este, sobre os ouvintes homens e mulheres da Bossa Nova, a deixar de ser apenas uma tentativa de corrigir ou suplementar um registro incompleto do passado (onde não aparecem as mulheres), para ser um modo de compreender criticamente como a história e o tempo operam enquanto lugar da produção do saber de gênero. A opção por construir um conhecimento não absoluto, que não busca certezas, mas que se dá no campo movediço da história e do cotidiano é o que faz com que a categoria gênero seja um instrumento útil para a compreensão da historicidade das relações entre os sexos (e suas interconexões), que são também movediças, mutantes e sem limites pré-estabelecidos, em que se usa da própria instabilidade das categorias como um recurso de análise22. Esta análise considera as questões relativas aos homens e mulheres ouvintes da Bossa Nova levando em conta a categoria gênero onde o aspecto relacional é fundamental, o que faz com que a compreensão das mulheres se dê a partir da compreensão dos homens. A reflexão sobre a categoria gênero possibilita um repensar sobre outras categorias23. Destaca-se a sua influência para se pensar a abertura ao entendimento do âmbito pessoal como sendo algo político, levando a uma expansão da noção de poder que deixa de ser trabalhada apenas no espaço da 22

Sandra HARDING, The instability of the analytical categories of feminist theory. In : Signs, Chicago: s/n., 1986. Ana Carolina ESCOSTEGUY, A Contribuição do Olhar Feminista. In: Revista Famecos (Prog. de Pós-Graduação em Comuincação da PUC/RS). n.09.

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esfera pública, passando a estar presente também no campo da subjetividade e do sujeito; o que coloca as questões de gênero e sexualidade como centrais para a compreensão da própria categoria 'poder'. A política, como bem lembra Joan Scott, “é, antes, o processo pelo qual jogos de poder e saber constituem a identidade e a experiência. Identidades e experiências são, nessa visão, fenômenos variáveis, organizados discursivamente em contextos ou configurações particulares”24. Segundo Escosteguy, “desta forma, política e poder ganham uma dimensão maior nos estudos de gênero. Muito apoiados nos estudos dos críticos literários como Jacques Derrida e outros associados ao pós-estruturalismo, eles sublinham a importância tanto da intertextualidade, a maneira como os argumentos são estruturados e apresentados, quanto do que é literalmente dito, chamando a atenção para as forças de significação em guerra no interior do próprio texto. As disputas em torno do significado textual dos discursos, sempre pensados enquanto dualidades, polarismos opostos, oposições fixas que escondem a heterogeneidade de cada categoria, são formas de manutenção do poder. No entanto, estas mesmas disputas em torno da significação textual introduzem novas oposições, revertendo hierarquias, expondo termos reprimidos, contestando o estatuto natural dos pares aparentemente dicotômicos e expondo sua interdependência e instabilidade interna. Este tipo de análise, que Derrida chama de ‘desconstrução’ permite uma reflexão sobre os processos conflitivos que produzem os significados. Tal teoria é profundamente política, uma vez que, colocando o conflito no centro de sua análise, evidencia o quanto a hierarquia e o poder são inerentes aos processos lingüísticos e textuais analisados. Isso para os estudos de gênero é de grande valia, pois possibilita um pensar sobre os discursos feitos sobre as mulheres, encarando-os de maneira crítica, buscando salientar as suas ambigüidades, suas sutilezas de sentido, procurando interpretá-lo em sua 25 textualidade, neutralizando os determinismos essencialistas e a-históricos.”

Nesta discussão, procura-se desenvolver uma análise que se afaste de uma postura dicotômica sobre as relações entre os gêneros, postura esta que leva muitas vezes à “vitimização” ou “heroicização” da mulher, além de não contemplar o relacional, mas o “papel das mulheres na História”, considerado – ainda que este argumento seja tantas vezes verdadeiro – oprimido, esquecido e ocultado. Busca-se investigar a respeito das diferenças entre homens e mulheres como gêneros e as relações entre ambos, recuperando as experiências narradas dos ouvintes da Bossa Nova em sua complexidade, e entendendo os mecanismos das relações sociais entre os sexos. Surge, assim, a percepção de que as noções de homem e mulher não são identidades únicas, a-históricas e essencialistas, mas constituídas historicamente e culturalmente, fazendo-se imprescindível, a análise da historicidade destas noções. Promoção do feminino

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Joan Wallach SCOTT, Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Eliane M. T. LOPES e Guacira LOURO (Org.), Mulher e Educação, Educação e Realidade, v. 16, n.2, p.5-22. 25 Ana Carolina ESCOSTEGUY, Op.cit. 342

Edgar Morin aborda a promoção dos valores femininos nas culturas modernas, ocorrida entre os anos 50 e 60 – período analisado por esta pesquisa –, destacando aqueles divulgados pelo cinema norte-americano e pela imprensa, que têm como alvo o público feminino26. Segundo ele, a cultura de massas dirige-se facilmente para os valores femininos, partindo de uma certa identificação com uma sociedade que está atingindo níveis de bem-estar e riqueza, em que são atenuados os aspectos mais brutais da condição humana (como luta pela vida, violência física), acentuando-se uma “feminização” no seio da cultura das sociedades ocidentais modernas. Nessa sociedades, a práxis cultural dominante concerne aos valores associados ao feminino, como amor, conforto, bem-estar, felicidade, saber viver cotidiano e afirmação da individualidade privada. Neste processo, ainda segundo Morin, o homem incorpora esse valores, assumindo um lado mais sentimental, uma paternidade compartilhada com a maternidade nos cuidados com os filhos, um companheirismo que busca ser mais igualitário nas relações amorosas. O que se observa já na década de 50 é o início de um processo de “desvirilização” masculina, com a perda daquilo que por séculos foi associado como pertencente à identidade dos homens, que teria, e tem, implicações importantes nos nossos dias.27 “pra mim o Chico Buarque é o maior letrista. E quando encontro ele é uma coisa impressionante, porque pra mim é como ver o (...), ‘é uma coisa que me dá até arrepio porque eu acho as letras do Chico uma coisa... no papel de mulher, por exemplo, melhor ainda, porque ele escreveu monte de canção no papel de mulher. Eu gosto muito quando o Chico faz canção no papel de mulher porque ele desenvolve uma sensibilidade feminina que é um desafio, não é? (...)tem uma canção do Chico ‘Com açúcar e com afeto’ é uma mulher que fica em casa, espera o marido, mas já se vê o sofrimento dela; uma outra, ‘quando você me deixou, meu bem’, é já outro tipo de mulher... A mulher que deu a volta por cima...Já deu a volta por cima, ‘muitos homens me amaram bem mais e melhor que você’, já há um reconhecimento da sexualidade dela, que tem outros homens que podem me mar melhor que você, é um papel diferente de desenvolvimento, são duas mulheres diferentes. Isso você pode seguir o desenvolvimento, dentro da música, dessas mulheres.”

(Massimo) Massimo lembra de Chico Buarque em vários momentos de seu depoimento, mesmo asseverando que ele não pertence à Bossa Nova. Mas remete-se muito ao compositor por julgá-lo

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Edgar MORIN, A promoção dos valores femininos. In : ____ Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo I - Neurose. 27 Vários estudos no campo da Psicologia e da Psicanálise vêm, nos último anos, buscando compreender este novo lugar social e cultural do homem e do masculino. A este respeito, conferir: Elisabeth BADINTER, Um é o outro; _______ XY: sobre a identidade masculina. E também: Sócrates NOLASCO, O mito da masculinidade; ________ (Org.), A desconstrução do masculino. Já no campo das Ciências Socias também alguns estudos vêm focalizando o mundo masculino nas sociedades contemporâneas, destacando-se os trabalhos: Maria Isabel Mendes de ALMEIDA, Masculino/Feminino - tensão insolúvel: sociedade brasileira e organização da subjetividade; Mirian GOLDENBERG, Ser homem, ser mulher: dentro e fora do casamento, entre outros. 343

um “especialista da sensibilidade feminina”, algo valorizado também por outros depoentes homens e mulheres. A música, para Massimo, ajuda a expressar esta sensibilidade que a maioria dos homens não conseguia verbalizar ou até demostrar, mas que o artista tinha a capacidade de fazer. Memórias de um homem pertencente a uma geração que vive num mundo atual em que os homens já experimentam – não sem dificuldade – a plasticidade dos papéis de gênero. Memórias que expressam os tempos atuais em que se olha para trás e se percebe nascendo nos anos 50/60, com aquele ritmo diferente, aquelas letras mais coloquiais e até com o timbre de Chico mais anasalado e de baixa potência – tão diferente do padrão vocal hegemônico que se tinha até então – cores de um tempo em que esta desvirilização começava a se fazer presente, se não explicitamente, pelo menos intuitivamente. “Eu acho que a época da Bossa Nova foi uma época muito rica da música brasileira, porque em primeiro lugar surgiram pessoas, compositores fantásticos onde a letra, o conteúdo tinha um valor muito grande prás pessoas e aquilo foi uma mudança realmente... mudança de ritmo... aquele ritmo.... porque o ritmo que nós conhecíamos, da musica americana e o ritmo americano e do Caribe, que aquela época tava muito na moda... aquilo era uma coisa fantástica... musica dançante era tudo aquilo que a gente queria... E ai surgiu a Bossa Nova, que não era uma musica dançante... era uma musica onde o instrumental era muito forte... onde os quartetos, os trios eram muito importantes... a música, o som que você tirava....e ai nos final dos anos 50 e inicio dos 60 surgiram uma infinidade de novas pessoas, aproveitando aquele ritmo. (...) Mas este movimento foi um movimento que surgiu e começava ali uma nova época... um novo tipo de música....(...) Eu tenho um carinho enorme de lembrar dessa época... eu tinha terminado o ginásio e tinha passado para o científico e eu era do Pedro II, um colégio com tradição, cento e tantos anos e a gente tinha um orgulho enorme de vestir aquele camisa... E eu ia de bonde para o Pedro II, que era no centro da cidade e nós íamos discutindo dentro do bonde aquela nova letra, nova música da Bossa Nova, época em que o Jorge Bem entrou no meio e foi uma febre.... aquela ‘Chove chuva, chove sem parar’ e aquela ‘Ô ô ô ô a ria a aiô, oba, oba, oba’... quer dizer o cara também ele criou um tipo totalmente... era Bossa Nova, mas um tipo totalmente diferente... inclusive em conteúdo, que fala do cotidiano, o linguajar bem... bem... bem do dia a dia... Então eu lembro com carinho porque eu lembro de uma época de juventude que a gente procurava tudo.. o jovem quando descobre a música... ele entra numa .... num.... num ramo de atividade, ele entra com fervor.. então isso transformou aquela época.. eu era jovem, graças à Deus naquela época...” (Armando)

Armando rememora sua juventude com forte carga de emoção, feliz em poder narrá-las, em ser chamado a contá-las nos dias de hoje. Ele demostra o carinho que tem por aquela época e pela oportunidade de falar, trazendo-a de volta. No seu depoimento, põe em destaque uma visão masculina do mundo que atravessa mudanças operadas por esta promoção do feminino desde os anos 50, valorizando a sensibilidade e o fato de as mulheres estarem assumindo posições cada vez mais altas e importantes na sociedade, deixando os homens para trás. Essa postura é assumida explicitamente em sua memória voluntária. Mas é nos traços involuntários de suas rememorações que isto é mais facilmente identificado. Quando começa a falar da Bossa Nova descontraidamente num bar, numa manhã de sábado ensolarada, ele vai a princípio explicando o 344

que foi a época e o que foi o movimento musical com suas inovações rítmicas e melódicas. Sem querer, ou perceber, ele vai se deixando tomar por uma memória afetiva, passando a se lembrar de quando ouvia e cantava com os amigos no bonde, indo para o colégio, as músicas que pareciam representar um tempo que se mostra como o da sensibilidade, que ele não consegue expressar verbalmente, mas que é possível extrair dos não ditos de seu discurso. Quando fala que aquela época expressou uma música cujo conteúdo fazia muito sentido na vida das pessoas, dá a conhecer que aquilo que era cantado lhe afetava, propunha um outro espírito do tempo que se anunciava. Em seguida, fala de uma mudança de ritmo, que pode ser interpretada tanto como a de um ritmo musical – que é o que sua memória voluntária busca dizer – quanto de um novo ritmo afetivo, do tempo interno das sensações, em que as músicas dançantes, que era o que mais os jovens gostavam, segundo ele, deu lugar à Bossa Nova, uma música que não era para se dançar, mas para se criar uma outra relação com a escuta. Ele valoriza o instrumental mesmo sem ter tido qualquer formação musical. O fato de dar mais importância à parte sonora do que às letras, revela uma escuta atenta que se fixou na memória de maneira afetiva, mesmo quando fala que “aquele ritmo era...” algo que não consegue colocar em palavras. Suas memórias, cheias de hesitações e reticências, expressam uma certa dificuldade de transformar o que lhe vem à mente em linguagem, revelando uma memória do homem que conviveu e participou deste processo de recrudescimento dos valores tradicionalmente associados ao masculino para assumir valores mais femininos. Vejamos uma canção que apresenta aspectos interessantes sobre esta sensibilidade, romantismo tão propagado pelos memorialistas. “Se você quer ser minha namorada Ah! que linda namorada Você poderia ser Se quiser ser somente minha Exatamente esta coisinha Essa coisa toda minha Que ninguém mais pode ser Você tem que me fazer um juramento De só ter um pensamento E ser só minha até morrer E também de não perder este jeitinho De falar devagarinho Essas histórias de você E de repente me fazer muito carinho E chorar bem de mansinho Sem ninguém saber por quê

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E se mais do que minha namorada Você quer ser minha amada Minha amada, mas amada pra valer Aquela amada pelo amor predestinada Sem a qual a vida é nada Sem a qual se quer morrer Você tem que vir comigo em meu caminho E talvez o meu caminho Seja triste pra você Os teus olhos tem quer ser só dos meus olhos Os teus braços o meu ninho no silêncio de depois E você tem que ser a estrela derradeira Minha amiga e companheira No infinito de nós dois”

(Minha namorada 28)

No discurso poético, há uma distinção entre a namorada e a amada, isto é, entre um amor que pode ser passageiro e momentâneo e o amor eterno, “predestinado”. O discurso é produzido sobre o desejo que este “eu lírico” masculino tem sobre a mulher, ajudando a caracterizar também um “dever ser” para ela, construído pelo homem. Enquanto namorada, a mulher deve ser bela, fiel, mantendo sempre um jeito delicado, frágil e carinhoso. Já como “amada prá valer”, ela deve ser companheira, amiga, e ainda exclusiva de seu amado e, mais do que isso, tem de ser forte, para ajudá-lo. De qualquer forma, percebe-se a construção de um relacionamento em que a mulher deve ser submissa, mas também a “estrela verdadeira”, a “amiga e companheira” do homem. Embora circunscreva as funções, os papéis e os espaços delimitados para as mulheres e os homens, a canção permite vislumbrar cores de uma relação mais igualitária entre homem e mulher, em que esta última teria suas funções enaltecidas por aquele. Não que a mulher companheira, “rainha do lar”, já não estivesse presente nos papéis sociais atribuídos aos gêneros (como também atestam canções mais antigas como Amélia e Emília), mas aqui é uma construção de uma mulher que é bela, com prevalência para o romantismo, com uma melodia em que estão presentes notas em ascendência, compondo uma tessitura maior entre elas, ajudando a dar este cunho lírico à canção. A gravação desta música mais recorrente na memória dos ouvintes analisados é a de Carlinhos Lyra, um dos autores que é sempre lembrado pelos memorialistas como alguém “muito lírico”, com um timbre de voz que lembra a de um trovador. Estas características românticas das canções assumiram um tal grau de evidência que ficaram registradas na memória da escuta de tantos depoentes. 28

Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, 1963. 346

Nesta canção, entre outras coisas, utiliza-se termos diminutivos como “coisinha”, “jeitinho”, “devagarinho”, “mansinho”, sugerindo uma forma de tratamento carinhosa, caracterizando a construção da mulher-namorada, a mulher-garota como frágil e necessitada de proteção. Estas expressões também denotam um aspecto da linguagem musical/poética da Bossa Nova, com traços cariocas, em que são usadas muitas expressões no diminutivo29. Em outras canções também tem-se esta “mulher-garota”, a namorada, a menina, a “pequena”, evidenciada como “garota de Ipanema” uma mulher sensual e bela; um “amor de pequena” que é a “Teresa da praia”; como a “pequena” que vê o mar com o namorado de mãos dadas; como um “chapeuzinho de maiô” que ignora o “lobo bobo”. “Essa mulher por exemplo, a ‘Garota de Ipanema’ é uma garota já... não é uma garota nesse sentido social, de repente até chamaria ela de mulher objeto. E a outra mulher, você falou, era aquela da ‘minha namorada’. ‘Minha namorada’ acho que é uma das melhores canções do Vinícius, uma canção maravilhosa.... E o importante nessa canção é que a mulher... claro que era uma visão ainda épica da mulher, uma idealização de mulher, uma idealização de que é boa, o que infelizmente não existe, existe só no começo, no começo, depois a relação vira mais complicada entre homem e mulher, depois de alguns anos... No começo o que os homens esperam da mulher é isso. Então essa é uma canção do começo de namoro, é uma canção de começo de namoro, como todos começos de namoro são idealizados. Mas tem que ser, você tem que acreditar, se não acredita como é que se apaixona ? Não se apaixona nunca. Aquelas mulheres daquela época... elas já não eram mais assim talvez...Eram... Alguém é aquilo que você imagina que ele pode ser, entendeu? A idéia é sempre algo com relação ao outro. Na imaginação eu posso ser muito gentil com uma pessoa que gosto e ser muito chato pra uma pessoa que... mas não é a realidade.”

(Massimo) Massimo, ao rememorar as canções que tratam das mulheres – mulheres ideais como ele diz – mostra uma operação de reflexão e de crítica sobre aquelas construções masculinas sobre o feminino. Ele procura ressaltar que era uma visão “ainda épica”, algo que ainda estava presente naqueles tempos mas que hoje não existe mais. Ele identifica uma mudança entre os tempos em que se acreditava na inocência e na visão idealizada da mulher e um tempo em que se reconhece as dificuldades dos relacionamentos homem/mulher, em que a visão da “minha namorada” é apenas fruto do encantamento do início do namoro, da relação, necessária inclusive para que a paixão aconteça. Mostra, assim, uma memória que tenta fazer uma crítica àquela forma como as construções femininas na Bossa Nova eram feitas, asseverando porém, que era uma visão da época e que, de alguma forma, se relativizada, mantém-se atual, assegurando a crença no amor, na paixão e no encontro. Memórias fruto de uma experiência marcada pelas dificuldades

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Augusto de CAMPOS, Balanço da Bossa e outras bossas: antologia crítica da moderna música popular brasileira. 347

encontradas nas relações entre os gêneros, em que os papéis modificam-se, perdem-se e se transformam. “dizem que a Bossa Nova falava muito da mulher, uma mulher muito muda, que vai ser minha namorada, quietinha no seu lugar. Mas pra mim não. Não tinha essa crítica assim, não. Achava tudo lindo, adorava. Era uma coisa muito romântica. Não tinha essa crítica assim sobre o fato de falar da mulher. Quer dizer, a não ser agora, você olhando pra trás, né? Eu sou fã do Vinícius até hoje.” (Rita)

Rita também procura relativizar aquela visão da mulher existente na Bossa Nova, tentando achar, no movimento de olhar para trás, uma crítica que, segundo ela, naquela época não havia ou estava esmaecida pelo tom romântico, belo, inocente, utópico que a canção possuía ao olhar para os relacionamentos homem/mulher. Lembranças de escutas, que ambos os narradores nos contam e que apontam para o fato de que as mudanças ainda eram apenas pressentidas no início dos anos 60 no que tange aos relacionamentos homem/mulher. Mas que, hoje, ao serem relembradas em trama com as canções que falavam sobre o assunto, apontam para uma série de estratégias e táticas que foram ou que tiveram de ser moldadas na longa trajetória destes sujeitos na suas construções como homens e mulheres ao longo destas décadas de transformação. O fato de destacar que ainda hoje é fã de Vinícius de Moraes, longe de demonstrar sua escuta acrítica da música, desvenda o fato de Rita olhar para o passado, com olhos presentes, percebendo os movimentos do tempo, mas fazendo uma apreciação que reconhece naquela escuta e na de hoje o tom ainda necessário de romantismo ou de credulidade que parece ter se perdido ou se modificado a tal ponto que se pensa que não existe mais. Giddens lembra que um dos grandes elementos que passaram a fazer parte da vida privada nas culturas ocidentais, regendo aspectos do mundo doméstico e da subjetividade, foi o ideal de “amor romântico”. Este amor romântico era essencialmente um amor feminilizado, uma tarefa, um aspecto do mundo feminino, o que serviu tanto para subordiná-las no lar, no espaço privado, isoladas do exterior, como também para, de alguma forma, dar-lhes um poder, uma “asserção contraditória da autonomia diante da privação” 30. Se entre os homens o amor romântico era algo mais distante, pertencente a um domínio que não lhes dizia respeito, referindo-se ao mundo doméstico, à família, sendo um amor respeitável à mãe de seus filhos – em que a paixão expressava-se majoritariamente fora deste âmbito –, entre as mulheres a associação entre os ideais do amor romântico e da maternidade permitiu-lhes o desenvolvimento de novos domínios 30

Idem, op cit., p. 54. 348

da intimidade. Dito de outro modo, entre os homens foi-se esvaindo a qualidade e a profundidade das relações de camaradagem entre pares, no sentido de trocas e de fortalecimento de subjetividades, sobrando apenas as relações que se dão nas disputas, esportes, ou na guerra. Já entre as mulheres ocorreu o inverso, pois, majoritariamente voltadas para as questões subjetivas, ou domésticas, estabeleceram entre si ligações de profundidade nas confidências, nos trabalhos manuais em conjunto, ajudando a elaborar frustrações, perdas, desapontamentos, paixões, amores, dores, enfim, ajudando a elaborarem uma narrativa de suas subjetividades e adentrarem com mais facilidade no reino da intimidade. Entre os muitos depoimentos coletados para esta pesquisa, algo foi revelador das diferenças homem/mulher: as diferenças nas maneiras de rememorar e falar sobre si. Desde as primeiras abordagens, por telefone ou não, antes das gravações dos depoimentos, as mulheres se mostraram muito mais acessíveis, dispostas a falar, a lembrar, a falar de questões estritamente pessoais e privadas, entregando-se tantas vezes ao ato da memória, emocionando-se, chorando, rindo. Elas deixaram de lado com mais facilidade que os homens a questão da Bossa Nova e de ter que falar racionalmente sobre o assunto, para falarem de suas experiências vividas, sentidas, lembradas ou esquecidas. Entre os homens isto deu-se de maneira diferente. Eles muitas vezes ficaram reticentes em aceitar falar por acharem que não são especialistas em música (embora fosse exaustivamente explicado que não era este o objetivo da tese), o que, segundo eles, impediria qualquer tipo de contribuição. Outros, mais prontamente aceitaram o desafio, mas na maioria das vezes, não conseguiram deixar a posição mais distanciada da análise racional sobre a Bossa Nova e a época em que ocorreu, contando elementos da história oficial, dos “50 anos em 5” de JK, a efervescência cultural da época, os aspectos musicais, as curiosidades sobre o movimento e seus artistas, leitores que foram – quase todos – do livro Chega de saudade, de Ruy Castro. Mesmo quando conseguiam falar de si, o que se percebia era muita hesitação, não por má vontade ou falta de confiança, mas por notória dificuldade em elaborar questões relativas às suas subjetividades. Um deles, em tom muito irônico e despojado, comentou, ao final da gravação, que “achou que iria falar de Bossa Nova”, mas que a pesquisadora, “de maneira subliminar conseguiu arrancar” questões de sua vida. Claro que aqui deve-se considerar que a pesquisadora era uma mulher e desconhecida de todos os depoentes. Porém, não se pode deixar de reconhecer este traço

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característico do mundo masculino, da racionalidade, da explicação dos fatos e da postura que busca uma distância segura do contato com o mundo interior. As falas de Armando e de Massimo vistas acima, com suas pausas e reticências, revelam uma característica do masculino em nossa sociedade que, embora valorize a sensibilidade, os valores femininos e se esforcem para uma relação mais igualitária entre os sexos, tem dificuldade em elaborar narrativas sobre seu mundo interior, falando muito bem e com desenvoltura dos aspectos da vida pública. Suas memórias, ainda mais, deixam perceber que há, sim, uma valorização das sensibilidades, expressas nas formas como se lembram das canções e da época da Bossa Nova como um tempo em que estas coisas estavam sendo germinadas, pelo menos para eles e sua geração. É possível inferir que as mulheres têm maior habilidade em falar de si, não por serem mais sensíveis, mas por terem ensaiado isso por toda a vida como resultado das muitas horas de conversas, confidências, trocas de anseios, dificuldades, sentimentos que as meninas travam desde cedo entre si – algo que, entre os homens, não constituiu-se como prática comum. Interessante indicar um estudo realizado por Maria Isabel Mendes de Almeida sobre a subjetividade masculina.31 Trata-se de um trabalho no campo das Ciências Sociais, em que a autora buscou entrevistar homens de meia idade das camadas médias cariocas a fim de identificar traços dos tempos coloniais permanentes na subjetividade destes homens modernos. Uma de suas considerações, diz respeito à falta de titubeio, hesitações, sentimentos de dúvida, gagueiras ou silêncios que estes homens demonstravam ao falar de suas questões mais íntimas e pessoais. A fluência nas palavras e opiniões sobre variados assuntos, num “livre fluxo” da narrativa sem qualquer traço de constrangimento ou mal-estar, foi considerado pela pesquisadora como uma estratégia reveladora da fragilidade ou quase ausência de linhas divisórias entre o público e o privado como uma falta de comedimento e discrição que pudessem protegê-los de expor sua subjetividade. O que a pesquisadora pôde concluir é que esta aparente falta de hesitação e de resguardo da subjetividade e intimidade funcionava muito mais como uma máscara de proteção e disfarce, do que era mais profundo associado a uma falta de habilidade ou familiaridade em conviver consigo mesmo, onde o “estardalhaço” verbal a que recorriam funcionava como um tampão. A ausência de hesitação se relacionaria com uma “referência de externalidade ou exo-referência” na

31

Maria Isabel Mendes de ALMEIDA, Masculino/Feminino - tensão insolúvel: sociedade brasileira e organização da subjetividade. 350

construção do processo de subjetividade masculina, no qual o que era falado sem travas eram elementos periféricos e superficiais da intimidade e do mundo interior. O uso da ironia, do sarcasmo e do fluxo incontrolável da fala sobre a intimidade mostram-se como estratégias para mascarar e não expor a densidade desta mesma intimidade. A fala destes homens analisados por Maria Isabel Almeida não se encontra tão distante da dos entrevistados desta pesquisa. Embora os primeiros demonstrem facilidade em falar de si mesmos, ao contrário dos aqui entrevistados, que mostraram-se mais resguardados e distantes, o mecanismo de contato, de elaboração e de externalização da intimidade e da subjetividade são os mesmos: em ambos existe uma pouca familiaridade em constituir o mundo interior da mesma maneira que as mulheres. A isso não se atribui uma negatividade em si, mas a deflagração de uma diferença crucial em termos da construção de gênero. A maioria dos meus entrevistados concordava que a questão da sensibilidade seria mais afeita ao feminino, mas também esboçavam a necessidade em tomar contato com esta forma de ser, em assumir posturas antes imaginadas como essenciais e restritas apenas ao mundo das mulheres. Nas suas memórias, de modo mais forte, ficou presente a noção de que estas mudanças começaram a se desenhar nos anos 50 e 60, pressentidas por eles hoje ou ainda naquela época, de maneira racional ou não. Verifica-se naquele momento a emergência ou a promoção dos valores e da presença feminina no social, estando nos discursos da imprensa, na publicidade, nas canções. Não que em outros momentos esta presença já não se tenha dado, como descreve Denise Sant’anna32. Segundo ela, desde o início do século XX já existia uma intensa publicidade voltada para a mulher e para o embelezamento feminino. Esta permanência tem-se modificado, o que leva a se concluir que a presença feminina na imprensa e como público receptor de produtos – simbólicos ou não – possui uma história. Desta forma, há que se pensar nas especificidades dos anos 50 e 60. A década de 50 é o momento em que uma cultura norte-americana começa a penetrar no país cada vez mais fortemente, influenciando a publicidade, a imprensa e os discursos normativos. São inúmeras as revistas femininas que passam a circular neste período, entre elas Querida e Capricho, e mais adiante Cláudia e outras. Mesmo nas revistas de variedades, como Cruzeiro e Manchete, e em jornais como o Última Hora, há cada vez maior espaço para matérias de interesse feminino, como conselhos de beleza, culinária e mesmo conselhos sentimentais, tudo 32

Cf. Denise Bernuzzi SANT’ANNA, Propaganda e história: antigos problemas, novas questões. Projeto História, n.14, 1997, pp.89-112. E também ____ Cuidados de si e embelezamento feminino: fragmentos para uma história do corpo no Brasil. In: ____ (Org.), Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais, s.d. 351

isso compondo um mundo feminino. Se por um lado há um ideal de modernidade buscado nos anos 50 e início dos 60 pela imprensa e pelos discursos mais gerais da sociedade (inclusive na política, economia, nas artes), por outro lado há realmente uma intensificação de recursos modernos usados pelos meios de comunicação, com o emprego das imagens, da fotografia e da cor, mudanças advindas principalmente da escola americana de publicidade. Da mesma forma, estava ocorrendo também uma remodelação no discurso que falava à mulher, em que os conselhos de beleza, por exemplo, já não tratavam o assunto como acessório à saúde, discutindo a sua falta com longos discursos médicos. Passa a surgir uma noção de glamour e de “modernidade” que permeiam este novo discurso, destacando um falar direto “de mulher para mulher”, num tom mais informal e descontraído, não mais como a mediação médica. O discurso modifica-se e sua preponderância e abrangência também. Os conselhos são dados por belas mulheres ligadas ao mundo artístico, como as estrelas de cinema. O que se busca aqui é pensar na escuta de canções, algo difundido pelos agentes culturais e as estruturações de seus campos num momento que se relaciona com a posterior consolidação de um “mercado de bens simbólicos”33 no Brasil. É importante considerar estas modificações que se travam na publicidade, na imprensa, no campo da cultura e, de uma maneira mais geral, no cotidiano, traduzida por esta promoção de valores femininos com uma paulatina constituição de uma mulher-sujeito. Convém refletir um pouco mais sobre esta questão da beleza associada ao feminino. Segundo Lipovetsky34, a beleza não tem os mesmos sentidos no masculino e no feminino. Nos discursos, na cultura de massas, nas variadas linguagens artísticas, a mulher é identificada como sendo o “belo sexo”. Esta articulação é uma construção histórica. Nem sempre as mulheres foram vistas assim, sendo este culto à sua beleza algo que remonta ao alvorecer dos tempos modernos no ocidente. Antes disso, ela era assimilada como ser perigoso, pérfido, diabólico; não era exaltada em sua beleza, mas tinha nela seu elemento de sedução, armadilha. É a partir da Renascença, que se começa a perceber a invenção do “belo sexo”, com a exaltação da mulher em função dessa sua qualidade que a tornaria um ser adorado e venerado por seus atributos físicos e espirituais.

33 34

Renato ORTIZ, A moderna tradição brasileira, passim. Gilles LIPOVETSKY, A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. 352

A mulher foi assumindo uma nova posição, ainda que simbólica, exprimindo uma nova diferenciação entre os sexos, apesar dessa diferenciação ocorrer dentro de uma hierarquia, com a mulher assumindo direito às homenagens e à notoriedade social, mesmo que para apenas afirmar seu lugar social. Vai-se operando, assim, por meio da veneração da beleza feminina, uma certa aproximação entre os gêneros, quando a mulher passa a ser vista como mais próxima, amiga, companheira, e não mais como maligna e diabólica, o que é próprio à dinâmica da modernidade que começou a postular para ela a possibilidade de se firmar como sujeito. Com a expansão do capitalismo e da cultura de massas, a promoção do ideário do belo sexo foi acompanhado de uma lógica normativa e prescritiva, em que a imprensa feminina teve papel importante ao difundir modelos estéticos que se inseririam no cotidiano das mulheres. O discurso sobre a beleza nas revistas dos anos 50 não parte mais dos poetas ou dos médicos, assume um tom direto, dinâmico, aberto a quem quiser ler, deixando de ser algo propagado em segredo entre as mulheres, como uma certa mágica passada de mãe para filha, mas algo a serviço e à disposição de todas, ligado, é claro ao consumismo dos cosméticos e produtos de beleza, aos prazeres narcísicos da sedução, da busca pela juventude. A maquiagem, por exemplo, deixa de ser encarada como restrita às coquetes e às mulheres de reputação duvidosa para estar a serviço de moças e senhoras que queiram permanecer belas, jovens, mantendo o casamento com seus encantos, evidenciando a legitimação do consumo feminino em busca da beleza. Segundo Lipovetsky, a cultura da beleza feminina enveredou, a partir daí, pelo caminho do voluntarismo moderno, cuja característica é a recusa da acomodação às realidades recebidas da natureza, pois a beleza é algo a ser conquistado e mantido.35 Merli Leal Silva, ao analisar a publicidade e os papéis de gênero, mostrando a construção de mulheres e homens nas campanhas publicitárias e na imprensa especializada, ressalta a desigualdade entre gêneros que aí se expressa, argumentando que isto pode ser melhor compreendido por meio da análise dos papéis socialmente confiados a mulheres e homens. A publicidade ajuda a refletir a forma como os padrões estabelecidos socialmente estão instaurados, uma vez que não é sua função criar conflitos sociais, mas vender produtos a um número cada vez maior de pessoas. Segundo a autora, aparece na imprensa dirigida às mulheres a recorrência de temas ligados à culinária, decoração, embelezamento, cuidado com os filhos, agrados ao marido, enfim, temas relacionados a formas de proporcionar prazer aos outros, sendo o “sucesso feminino 35

Idem. 353

algo vicário”36, vivido em função dos outros. Surgem, desta forma, os comportamentos “naturalmente” masculinos (força, decisão, racionalidade, liberdade) e os comportamentos femininos (submissão, fragilidade, indecisão, dependência, emocionalidade, instinto). Também Dulcilia Buitoni37, ao estudar as construções do gênero feminino nos meios de comunicação, atenta para as “distorções” da mídia e dos seus discursos, agudizando o papel formador da imprensa sobre as mulheres e seu poder de convencimento, destacando padrões e papéis prescritos e seu fraco potencial informativo, geralmente tratando do papel tradicional legado à mulher: esposa, mãe, dona de casa ou jovem à procura do amor. Porém, é necessário relativizar este tipo de abordagem. Por volta dos anos 40 e 50, surge, na imprensa feminina, um discurso sobre a mulher e sua beleza com sentidos um pouco diferentes do que se tinha até então. Se as revistas destinadas às mulheres reforçavam um papel prescrito, normatizando massivamente estes padrões, elas também têm outra face de ação, quando promoviam a individualidade e personalidade do eu feminino, elevando-as à categoria de sujeito, numa apropriação estética de si. Ao mesmo tempo, por esta época, é possível identificar um novo jeito de representar esta beleza feminina, em que seu ser maléfico, anjo ou demônio, é substituído por um ideal de mulher bela e sedutora sem ser perversa, numa construção que começa a reconciliar a aparência erótica e a generosidade, o sex-appeal e alma pura, elementos antes polarizados. Esta representação foi feita pela figura das pin-ups, cuja imagem inunda as páginas das revistas, as fotografias de publicidade e o cinema, difundindo este imaginário de uma nova mulher, em que a sedução conjuga-se com a jovialidade, o bom humor, a leveza, a vitalidade. Um “erotismo cotidiano”38 que se instaura em que a mulher dita moderna é sexualizada e sedutora, mas busca o amor, o companheiro ideal, a felicidade. A sedução feminina passa a incorporar assim, uma beleza sexy direta, des-sublimada, desinibida, natural, evidenciada por saias curtas, corpos esbeltos, jovens, dinâmicos e esportivos, articulando sensualidade e inocência, erotismo e alegria. Nas canções da Bossa Nova, isso é evidenciado, apontando para um falar das mulheres e seus atributos físicos, seu jeito, sua feminilidade. Isso não era novo, pois o samba, o sambacanção, e a própria tradição da canção – desde os trovadores medievais - que precedeu a Bossa 36

Merli Leal SILVA, Publicidade e papéis de gênero. In: Revista Famecos (Prog. de Pós-Graduação em Comunicação da PUC/RS), n.10. 37 Dulcilia S. BUITONI, Mulher de Papel. 38 Edgar MORIN, A promoção dos valores femininos. In : _____ Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo I - Neurose. 354

Nova também tinham o tema da mulher como um dos seus principais centros narrativo. Mas, na Bossa Nova, particularmente, este tema reclama para si uma “modernidade”, um jeito novo de olhar a mulher, um jeito moderno e não arcaico, como está tão presente na memória de seus autores fundadores. Porém, deve-se que compreender que muito desta “modernidade” desejada, foi construída na tentativa de diferenciar-se dos seus precedentes que, em parte, estava apenas transformando o discurso em algo mais em consonância com uma emergência e valorização do feminino na sociedade. “Eu não sei se naquela época era uma nova visão da mulher, ou se foi uma visão nossa da mulher, porque como os compositores eram mais velhos naquela época, se você pegar Caymmi, Fernando Lobo, Ary Barroso, os antigos, que já tinham passado, eles tinham o olho diferente. Então nós tínhamos uma visão mais romântica da coisa; nós víamos a namorada de um jeito mais romântico, não era a pecadora, a ingrata, a perfídia. Sabe, era diferente .... era otimista ... era otimista. Nós queríamos cantar a nossa 39 namorada ... antes que os outros cantassem.” (Lula Freire ) (grifos meus)

A lembrança do compositor registra que a mulher construída na Bossa Nova era a namorada, a garota posta dentro de uma visão romântica sobre a mulher que era “nossa”, isto é, dos bossanovistas. Essas canções constróem a imagem de que nos compositores dos sambas e sambas-canções mais antigos a mulher e sua sensualidade estavam vinculadas à perdição, à perfidez e à ingratidão, o que não aconteceria na Bossa Nova, com seu discurso romântico, em que falar a namorada, a amada, assume a conotação de um ideal de amor romântico que se espalhava nos anos 50, valorizado pelos meios de comunicação pelas revistas e pelo cinema.40 Lula Freire identifica-se como sendo, à época da Bossa Nova, um rapaz pertencente a um grupo de jovens “sem engajamento nenhum”, cuja única preocupação era o “amor, o sorriso e a flor”, em que o jovem “tinha que estar na praia e tinha que ter aquela vida leve que é do Rio de Janeiro, aquela leveza do Rio de Janeiro, que é a cara da Bossa Nova”, numa alusão ao cotidiano que quer assumir como seu e de sua geração. A sensualidade da mulher mostra-se na Bossa Nova como não-vulgar, mas ligada a uma certa ousadia comportamental, a uma modernidade nas formas de ser e agir. Por outro lado, nos discursos masculinos feitos sobre as mulheres no samba-canção, a sensualidade é articulada à perdição, à busca da liberdade e satisfação para seus desejos mais ocultos, em que a mulher opta

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Depoimento concedido no dia 26/02/96, em São Paulo. Carla BASSANEZI, Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher, 1945-1964, p.63. 40

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por um mundo de prazeres com outros homens, em detrimento do par amoroso-familiar. Nessas composições, entende-se a essência feminina como infiel, não confiável, traidora e pecadora. Na Bossa Nova, embora as mulheres sejam mais valorizadas – ao tê-las como inspiração para as canções, em que seriam construídas de maneira “moderna” e não como “os antigos, que passaram” – o resultado é uma construção de um modelo ideal, uma musa que inspira mas não participa do movimento e da vida pública. Isto revela tanto quanto encobre visões inovadoras sobre as mulheres, especificando o lugar que deveriam ocupar no social, não devendo pertencer ao ambiente musical/artístico, mas ser apenas a musa que inspira, contempla e não participa. A estética perfeita era muitas vezes o mote para as canções, numa valorização da beleza, ideário no qual repousava várias músicas da Bossa Nova. Essa exaltação à beleza da mulher, acontecia em um momento em que vários meios culturais confirmavam e ajudavam a construir este imaginário, com as revistas de variedades Cruzeiro ou Fatos & Fotos, que traziam inúmeras reportagens sobre os concursos de Miss Brasil e Miss Universo, destacando o sucesso das brasileiras, afirmando sempre uma imagem positiva do Brasil no exterior, priorizando o estigma do “país das mulheres bonitas”, num primeiro momento, e mais adiante, o “país da Garota de Ipanema”. A valorização do corpo, para além do rosto bonito, presente na Bossa Nova, se relaciona com o hábito que se instaurava naquela época, de freqüentar praias e expor o corpo ao sol. O falar da beleza concentra-se não apenas na mulher-musa, mas também na construção de outra musa, exaltada como bela: a cidade do Rio de Janeiro, cuja referência é feita muitas vezes em função da mulher e de seu corpo, como quando diz-se que o “Rio é lua amiga, branca e nua”, ou quando se fala que a cidade é o “Rio da mulher-beleza”. Fica claro, quando isso acontece, que a musa pode ser tanto a mulher quanto a cidade, compondo um imaginário que se difunde – não apenas com a Bossa Nova –, associando a geografia da cidade ao corpo feminino e a sua sensualidade. A beleza da mulher é destacada por meio do seu “balanço”, da sua capacidade de sedução, do seu charme. Presente de diversas formas nas canções, vê-se em muitos momentos esta sensualidade valorizada, admirada e positivada. Este balanço é visto no seu modo de dançar de acordo com o balanço do mar, o que a faz persuadir os homens, estabelecendo uma relação entre a música e o meio urbano, mulher e mar. Em Garota de Ipanema, o homem tem consciência de que toda esta beleza não tem um único dono, não pertence a ninguém, mas ao “mundo”. Percebe-

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se nessa canção a ausência de uma intenção de domínio, uma vez que a beleza “passa sozinha”, independente numa atitude que insinua um elemento de liberalização da mulher. Na sua acepção mais freqüente, que insinua uma fascinação, um deslumbramento, a capacidade de sedução da mulher representada nesta canção, surge em seu sentido estético e sensual, contrário a um procedimento pérfido de dominação da mulher sobre o homem. Este aspecto estético, diz respeito “ao despertar ou refinar de uma sensibilidade”41, articulando-se sedução à sexualidade fora do contexto moral. Na Bossa Nova, a sedução possibilita o encontro, o relacionamento e o amor bilateral, tornando-se algo positivo. Em Garota de Ipanema estão presentes aspectos desta construção que faz da canção um veículo eficaz na expressão de uma genialidade sedutora. Renato Mezan chama esta capacidade de sedução de “genialidade erótica”, mostrando que a forma artística mais adequada para exprimi-la é a música, sendo ela, das artes, a “que mais se afasta da reflexão da linguagem e a única que se desdobra na sucessão, tornando-se assim, apta a expressar o movimento e a imediatez próprias à genialidade sensual.”

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Sob outro aspecto, a capacidade de sedução faz

ainda os homens entenderem que a beleza não pertence a ninguém. Esta mesma construção de liberalização da mulher é feita em Teresa da praia, em que a disputa pela bela garota termina quando se conclui que ela “não é de ninguém”. Ela pertence a praia (como a garota de Ipanema, que não é só do seu autor, mas do “mundo”). Em Teresa da praia, está presente um componente tradicional do imaginário masculino, que é o da camaradagem, do companheirismo, da amizade e da solidariedade entre os homens, elementos que devem ser preservados, uma vez que a mulher se mostra como alguém volúvel e instável, que passou o verão com um, e o inverno com outro. Ao se falar sobre a mulher-musa, com seu charme, beleza, sensualidade, o homem colocase numa posição de admirador, alguém que espera identificar o sentimento de sua amada. Em Este seu olhar, está presente um desejo de saber decifrar a mensagem emitida através dos olhos da mulher, uma vez que estes trazem a ilusão do amor que se quer correspondido. Esse olhar “fala de umas coisas que não posso acreditar”, diz o compositor. O homem, nessa canção, é o sujeito da ação, o sujeito amoroso, aquele que sente e por isso age; mas que no entanto, aguarda a atuação da mulher, posto que ela é quem tem o controle da situação. O homem aguarda uma definição de sua amada, colocando-se em posição inferior.

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Cf. Renato MEZAN, A sombra de Don Juan e outros ensaios, p.26. Idem, Op. cit., p.15. 357

Este amor construído nas canções, muitas vezes impossível, difícil ou até platônico, possui como uma de suas características uma alternância rítmica entre o ter e o não-ter. Segundo Georg Simmel, isto está na base das relações em que o objeto é uma mulher e o sujeito um homem, e o valor da aquisição advém não só da dificuldade em alcançá-la, mas dos movimentos ondulatórios do coquetismo, caracterizado pelo “despertar do prazer por uma antítese/síntese original, por meio da alternância ou concomitância de atenções ou ausência de atenções, entrega e recusa”43. Este olhar que fala de coisas indecifráveis, bem como o requebrar e o andar balanceado – uma exposição do corpo mantendo ao mesmo tempo a reserva, simbolizando o gesto de se voltar para se desviar em seguida, ritmando uma alternância contínua – estão na base deste comportamento coquete feminino, em que há um esquivar-se pelo olhar e maneiras furtivas de se dar, sem lançar mão do segredo, do disfarce, do uso de subterfúgios, da indefinição. Uma decisão definitiva põe fim à arte do coquetismo, em que sim e não estão intimamente ligados, compondo táticas e formas de manipular sedutoras, numa demonstração de poder. A recusa, mesmo que mascarada, não completamente verdadeira ou assumida, é vista na cultura patriarcal como um atributo e até uma prerrogativa feminina, constituindo-se como um de seus poderes. Já entre os homens, a recusa de uma mulher que vai ao seu encontro é mais difícil, penosa, contendo algo de não-cavalheiresco, sendo censurável e até objeto de questionamento de sua masculinidade. O mundo masculino, tantas vezes retratado como o da audácia, da conquista, da coragem, da honra na construção da identidade social masculina e dentro da canção popular brasileira, aparece na Bossa Nova como indefeso, fraco e angustiado, em que o espaço poético e musical coloca-se como uma das poucas instâncias nas quais os homens permitem-se falar e expor sobre seus sentimentos em relação ao sexo oposto.44 Coloca-se em pauta, neste discurso poéticomusical da Bossa Nova, um homem que não tem vergonha de se mostrar frágil. Esta nova construção social da beleza e do feminino acabaram por contribuir para um imaginário mais igualitário de relações entre os gêneros, em que a mulher deixava de ser vista como o demônio que levava à perdição, a metade perigosa do mundo em essência, numa espécie de ontologia do ser feminino, passando a ser cada vez mais encarada como o outro que é próximo, a companheira, a amiga, num paulatino recuo da alteridade anuladora do feminino,

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Georg SIMMEL, Psicologia do coquetismo. In: _____ Filosofia do amor. p. 95. Ruben George OLIVEN, A mulher faz e desfaz o homem. Ciência Hoje, v.7, n.37, p.54-62,1987. 358

permitindo relações entre homens e mulheres que buscam a igualdade e a não hierarquização. Um processo ao qual não só se assiste como se participa até os dias de hoje. Claro que as relações entre homens e mulheres não se estabeleceram assim pura e simplesmente nas práticas cotidianas ainda nos anos 50 e 60. Nem mesmo hoje é possível afirmar essa igualdade de forma tão decisiva, mas, de qualquer forma, ali já se apontava um imaginário que construía desta maneira os papéis de gênero e as relações entre eles, o que leva a uma reflexão sobre os discursos que eram construídos na época e que tinham a ver com mudanças efetivas na sociedade no que tange às relações homem-mulher. A promoção dos valores femininos e a intensa movimentação dos movimentos feministas dos últimos 30 anos transformou aspectos da dinâmica de encontro e desencontro entre os sexos. Segundo Maria Rita Kehl, “os significantes do masculino e do feminino” deslocaram-se a tal ponto que vê-se muitas vezes hoje caber aos homens o papel de “narcisos frígidos e às mulheres o de desejantes sempre insatisfeitas”45. Muitas vezes eles se colocam aterrados, frágeis diante da audácia do desejo feminino que até poucas gerações atrás faziam das investidas do desejo masculino o mote para o coquetismo, que hoje, freqüente e ironicamente, parece estar invertido. A questão da masculinidade vem gerando debates, pesquisas, reflexões em algumas áreas do conhecimento, mais notadamente na Psicologia e Psicanálise. Segundo Sócrates Nolasco, os discursos da mídia e outros corroboram para a visão de que o homem está mudando, o que significa, para o autor, a idéia de uma “autorização social” para que ele possa sentir, comportar-se ou participar de atividades até então consideradas estritamente femininas, entrando em contato com situações e sensações que até décadas atrás lhes eram interditas. Analisando Grupos de Homens que se reúnem para trocar experiências e angústias em relação ao novo papel das mulheres, como também deles próprios na atualidade e o esgotamento do modelo masculino construído culturalmente, o autor atenta para o fato de que eles têm procurado compreender como fazem suas escolhas profissionais e amorosas e questionar preceitos como a agressividade, o poder, a força, a competitividade e a racionalidade que se constituíram como características essenciais do masculino. Esse indivíduos se mostram “à procura da humanização do seu papel social e da aquisição de uma linguagem afetiva para suas vidas”.46

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Maria Rita KEHL, A mínima diferença: masculino e feminino na cultura, p.19. Sócrates NOLASCO, O mito da masculinidade, p.25. 359

Mesmo sem querer reduzir esta busca dos homens a uma mera contrapartida ao movimento das mulheres, não se pode negar que este processo de emancipação feminina gerou e gera crises no mundo masculino, fazendo-os repensar os modelos, as “verdades” e as essências do que se tornou corrente afirmar como sendo masculinas. O momento atual revela uma crise de todos os modelos, tanto masculinos quanto femininos.

Bossa Nova entre homens e mulheres As letras das canções da Bossa Nova destacaram um aspecto importante e recorrente na música popular brasileira: a questão da musa-mulher. A possibilidade de ser cantada da música popular – diferentemente da música erudita – bem como a possibilidade de várias interpretações desse cantar, remete-se a um sentido metafórico que seria o cortejar e seduzir, usando-se assim, a linguagem do canto sobre o amor.47 A freqüente aparição da mulher nas letras e no ideário da música popular brasileira contrasta muitas vezes com a pouca participação e com as restrições impostas àquelas que participavam do ambiente musical como autoras ou intérpretes. No próprio movimento da Bossa Nova, a vantagem numérica é dos homens. Nas inúmeras reuniões que aconteciam nos apartamentos dos jovens músicos, a grande maioria dos participantes era de rapazes, entre eles Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Carlinhos Lyra, Oscar Castro Neves, Luiz Carlos Vinhas, Chico Feitosa, e tantos outros. Dentre as canções compostas ali, ou ali apresentadas, não se encontra nenhuma composta por mulheres. Entre as poucas que cantavam, muitas ainda não o faziam profissionalmente, enfrentando para isso adversidades e restrições de ordem familiar. Ausentes na composição e em parte na perfomance musical, elas estavam fortemente presentes no conteúdo da grande maioria das canções. Os homens, ao fazerem das mulheres o mote de suas canções, constróem um discurso masculino sobre o feminino, por meio do qual o sujeito que fala constrói e representa a sua realidade social e organiza suas relações consigo mesmo e com os outros. Na Bossa Nova, esse discurso se mostra como uma construção que acentua uma certa internalização de regras, preceitos e subjetividades que circulam no meio social, e que no momento em que transformam em canção passam a difundir formas de ser e de agir e, neste caso em particular, olhar para a 47

Eliane Robert MORAES, A musa popular brasileira. In: BARROSO, Carmem e COSTA, Albertina O. Mulher, mulheres. São Paulo : Cortez, Fund. Carlos Chagas, 1983. p.56. 360

mulher. A investigação sobre estes discursos não representa apenas o homem/autor individual, mas permite pensar também sobre suas relações com os outros/outras. 48 Mas como este falar sobre a mulher – de uma maneira que se queria inovadora – era recebido, percebido e escutado pelos ouvintes, homens e mulheres, da Bossa Nova? Refere-se aqui aos ouvintes anônimos, às muitas moças e rapazes que freqüentavam os shows nas universidades cariocas, ouviam-na no rádio e nos discos. A busca, portanto, é pela construção memorial destes homens e mulheres num esforço para interpretar a escuta que elaboravam desta “nova” música, deste “novo” movimento musical que se propunha moderno, diferente, falando de formas de relacionamento homem/mulher que pareciam mais liberais, mais otimistas, com o “amor, o sorriso e a flor”, falando de “um chapeuzinho de maiô” que “traz um lobo na coleira que não janta nunca mais”, ou ainda de uma garota de Ipanema dona de uma beleza que não é de ninguém e que “passa sozinha”. Nas memórias de outro autor da Bossa Nova, Ronaldo Bôscoli, estão presentes as lembranças de quando conheceu Nara Leão (que foi sua namorada e noiva), em seu famoso apartamento na Avenida Atlântica. Segundo ele, ali se deu o “encontro do poeta com sua musa”. “Hoje, lembrando da cena, percebo nitidamente o fascínio e o encantamento que Nara me causou na segunda vez em que a vi. Um impacto. Me senti o próprio Adão diante do pecado original. (...) Mas já era tarde, Nara tomou meu coração. Tremendo lobo bobo, com anos de estrada, já trazendo desencantos de amores tantos (como disse na música que fiz para ela, Se é tarde, me perdoa), me apaixonei inteiramente por aquela menininha. (...) Para Nara, fiz a canção que melhor retrata a situação que vivi com ela : ‘Lobo 49 bobo’”.

Nara, musa desta canção composta em parceria com Carlinhos Lyra em 1957, inspiradora dos versos de Bôscoli, é o modelo de uma mulher ideal, este “chapeuzinho de maiô” que vai à praia, é sensual e domina sutilmente o homem. “Era uma vez um Lobo Mau Que resolveu jantar alguém Estava sem vintém Mas arriscou E logo se estrepou Um Chapeuzinho de maiô Ouviu buzina e não parou Mas Lobo Mau insiste E faz cara de triste 48

Reinaldo ORTIZ, Discursos masculinos. In: Sócrates NOLASCO (Org.), A desconstrução do masculino, p.148155. 49 Ronaldo BÔSCOLI, Eles e eu: memórias de Ronaldo Bôscoli (depoimento a Luiz Carlos Maciel e Angela Chaves), p.164. 361

Mas Chapeuzinho ouviu os conselhos da vovó Dizer que “não” pra lobo, que com Lobo não sai só Lobo canta, pede, promete tudo, até amor E diz que fraco de Lobo É ver um Chapeuzinho de maiô Mas Chapeuzinho percebeu Que o Lobo Mau se derreteu Pra ver vocês que Lobo Também faz papel de bobo Só posso lhes dizer, Chapeuzinho agora traz O Lobo na coleira que não janta nunca mais”

(Lobo bobo) A própria conotação maliciosa e bem humorada (“Era uma vez um lobo mau/Que resolveu jantar alguém”) que permeia toda a canção, já apresenta diferenças da musicalidade estabelecida antes da Bossa Nova, tantas vezes chorosa, pessimista e trágica. Há aqui uma construção simples, direta, numa fala coloquial, alegre, que em nenhum momento traz cores patológicas; uma linguagem sintética, jornalística. O aspecto da “cantada” e da sedução surge mostrando um lobo, ou seja, o homem experiente, cortejando a chapeuzinho, a garota – um chapeuzinho de maiô que está na praia, espaço de convivência, de namoros e de encontros. No início, o “lobo” retratado usa de artifícios para conquistar seu “chapeuzinho”, que o ignora por “ouvir os conselhos da vovó”, isto é, os avisos de uma moral ainda conservadora, em que não se permitia às moças de família sair à sós com os homens. O “lobo canta” a moça, prometendo-lhe sinceridade e “até amor”, numa conotação que sugere que o homem corteja a mulher e, quando a conquista, a abandona. Porém, no final da canção, surge a transformação do lobo experiente, em “lobo bobo”, uma vez que ele “se derreteu”, apaixonou-se, e ainda deixou a moça perceber. Daí em diante, chapeuzinho, por sua capacidade de sedução, traz “um lobo na coleira que não janta nunca mais”. É a mulher que, de alguma forma, detém o controle do homem e do relacionamento. A canção Lobo bobo, ao mesmo tempo que traz a idéia de sensualidade e de valorização de uma mulher liberal em contraposição ao retrógrado, aponta ambigüidades ao falar que, nesta praia onde está “o chapeuzinho”, ainda existem controles morais e comportamentais que não permitem a uma moça entrar no carro de um rapaz. Esta canção possui uma melodia que lembra canções infantis ou até cômicas, isto por ter como mote uma fábula infantil e se estruturar com uma melodia de notas próximas que se repetem numa reiteração entre os versos.

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A interpretação desta canção mais citada pelos ouvintes é a de João Gilberto, gravada em 1959, no seu primeiro LP, o Chega de saudade, em que a tradicional orquestração que acompanhava as gravações da época foi dispensada, deixando apenas o acompanhamento rítmico, alguns sopros e o violão de João Gilberto. Seu timbre de voz, como já comentado, por muitas vezes não agradava os ouvintes, que o consideravam como diferente e inovador demais, sinônimo de falta de talento vocal, ou ainda como algo que se mostrava muito hermético e elitista. De qualquer forma, é importante registrar que era uma voz masculina, uma voz que parecia não corresponder ao padrão vocal comum na época, o que era considerado de bom gosto, distinto e romântico, como Frank Sinatra, Dick Farney e Lúcio Alves, por exemplo. Lobo bobo, que no final citava brincadeiras infantis e se referia à conquista de “um chapeuzinho de maiô” por um lobo que se mostra ao final bobo diante de uma mulher que de objeto de conquista passa a ser a que domina e “laça” o conquistador, parecia combinar com o que a voz, o timbre, a performance moderna de João Gilberto começava a evocar. O discurso normativo em circulação na imprensa para as moças do final da década de 50, era o do equilíbrio numa linha tênue entre uma valorização da ingenuidade e da mansidão como algo inerente ao feminino e uma certa tentativa de colocá-las como participantes de um mundo que se queria moderno, a década de 50. “A rua onde se localiza o Instituto de Educação irradia poesia, música profunda da vida. É ali que estuda o ser humano mais frágil, cheio de graça (...). As futuras professoras, no frêmito de uma juventude 50 incomparável.”

Valoriza-se a figura jovem, sua feminilidade e fragilidade como naturais, essenciais, próprias às mulheres, aliado a um ideário de uma mulher que trabalha, que deve ter sua profissão, que naquele momento tem um de seus modelos no magistério, algo que parecia perfeito para a natural habilidade feminina de cuidar de crianças e ser mãe, num prolongamento dos padrões do âmbito privado para o público. No entanto, outros aspectos também são sentidos neste discurso normativo: “P: Uma moça de personalidade e energia deve fazer-se de frágil para atrair o homem que gosta ? R: Não. Seja natural, pois assim agradará mais. Hoje em dia os homens preferem as moças de espírito prático e iniciativa (...) Foi-se o tempo em que os homens preferiam estes tipos [as frágeis]. A vida moderna requer de todos muita fibra e disposição.”51 50

“Luzes da cidade”. Ultima Hora, 01/09/56. 2º Caderno, p.2. “Eles e elas”. Última Hora, 03/09/56. 2º Caderno, p.3. Esta era uma sessão fixa do jornal, na qual mulheres faziam perguntas e pediam conselhos de ordem sentimental e recebiam respostas da colunista.

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Tem-se, aqui, a construção de uma mulher que vive no “mundo moderno”, o qual requer praticidade, iniciativa, fibra, disposição. Estes elementos apontam para um dever ser da mulher que, se por um lado, corrobora muitas questões já um tanto permanentes quanto à normatização dos papéis femininos – como o desejo de agradar os homens e ajudá-los – por outro, ressalta aspectos tão em voga naquele momento histórico que é do ser uma mulher “moderna” que não sucumbe apenas às tarefas do lar e de seus corolários, mas busca um equilíbrio, apontando para um papel feminino que é de “fibra” e “espírito prático” mas também de esposa e dona-de-casa. Lobo bobo mostra-se em articulação com este discurso de equilíbrio que trazia tanto questões mais permanentes ligadas aos papéis femininos e masculinos, como também inovações comportamentais para a época. Esta “liberalização” da mulher enfatizada na canção acima, com uma valorização de sua sensualidade, não pode ser entendida em termos absolutos. A mulher que tocava violão e cantava informalmente era razoavelmente aceita pela sociedade e pela sua família, mas quando esse cantar se transferia para boates e shows não era bem aceito pelas camadas médias. Os pais de Nara Leão, por exemplo, aceitavam e estimulavam as reuniões de jovens em seu apartamento, mas quando de sua primeira experiência profissional – cantando na boate Bon gourmet, no musical Pobre menina rica – as reações foram de preocupação e até indignação. Num momento posterior, quando Nara rompeu com Bôscoli e com a Bossa Nova, assumindo sua carreira de artista, demonstra de modo incisivo aspectos que dizem respeito à sua relação com o ideário já explicitado52. “Na Bossa Nova o tema é sempre na mesma base : amor-flor-mar-amor-flor-mar, e assim se repete. É tudo complicado. Precisa-se ouvir sessenta vezes o que se diz para se entender. Não quero passar o resto da vida cantando ‘Garota de Ipanema’ e, muito menos, em inglês. Quero ser compreendida, quero ser uma cantora do povo. Chega de Bossa Nova. Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento. Quero o samba puro, que tem muito mais a dizer, que é a expressão do povo, e não uma coisa feita de um grupinho para outro grupinho.(...) Eu não tenho nada, mas nada mesmo, com um gênero musical que não é o meu e nem é verdadeiro. A Bossa Nova me dá sono, não me empolga. Pode ser que no passado, eu tenha sido uma tola, aceitando aquela coisa quadrada, que ainda tentam me impingir. Eu não sou isso que querem fazer parecer que eu sou : uma menininha rica, que mora na Av. Atlântica, de frente 53 para o mar.”

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Segundo depoimento a mim concedido em 30/05/96, em São Paulo, a cantora e violonista Wanda Sá também ressalta que até a gravação de seu primeiro disco, em 1964, seus pais encaravam tudo como “uma brincadeira”, não aceitando a profissão de músico como algo ideal e digno, sendo “coisa de vagabundo”. 53 Fatos e Fotos, 17/10/64. 364

Apesar de não ser objetivo desta discussão analisar a trajetória e a apreciação musical apenas das cantoras que participavam da Bossa Nova, o caso Nara revela alguns aspectos interessantes quanto à questão da mulher como participante dos movimentos musicais e mais do que isso, dos movimentos sócio-culturais na história. Tomando o cuidado de pensar que sua fala está inserida num momento de discussão e até de briga e rompimento pessoal com o movimento e muitos de seus integrantes (inclusive Bôscoli), a entrevista de Nara Leão coloca aspectos de sua recepção daquele ideário proposto pela Bossa Nova do qual participava ativamente e não apenas como espectadora. Ao falar que na Bossa Nova era “tudo muito complicado”, sendo necessário “ouvir sessenta vezes” para poder entender, revela não só que considerava esse estilo musical elitista como sua vontade de sair deste meio e “ser uma cantora do povo”. O que Nara diz permite compreender que estas participantes/ouvintes da Bossa Nova não se restringiam apenas a “zona sul”, trancadas nos seus apartamentos. Elas estavam também preocupadas em reconhecer outros territórios da cidade. Estas considerações não deixam de ter ligação com o fato de Nara, neste momento, estar tomando contato com a militância estudantil na UNE e nos CPCs, juntamente com seus amigos Carlinhos Lyra, Geraldo Vandré, Nelson Lins e Barros, na qual as discussões sobre cultura popular, imperialismo e engajamento se inflamavam e sugeriam alguns outros caminhos para estas jovens cariocas dos anos 50. Ao se referir a Bossa Nova como a “coisa quadrada” que “tentavam [lhe] impingir”, Nara afirma a necessidade de querer se livrar do estigma da musa inferido não só por seu noivo Bôscoli, mas por outros integrantes do movimento que muitas vezes a rechaçavam em seu intuito de seguir carreira como cantora. Ela deveria permanecer como a musa das saias curtas, que tocava violão nos shows universitários com os joelhos de fora. Essa postura se coloca como uma idealização das mulheres, uma tentativa em resguardar a “musa”, perpassada por toda uma carga discursiva sobre o que seria essa mulher ideal elaborada pelos discursos normativos. A trajetória de Nara mostra-se rica para essa interpretação, uma vez que, ouvinte que era da Bossa Nova, mesmo que também participante deste movimento como cantora (ainda que como amadora num primeiro momento), ressalta aspectos de uma mulher que queria ser muito mais do que musa ideal. Relendo seu rompimento com a Bossa Nova, sua entrada para os CPCs e as discussões esquerdistas do momento, ali está muito mais do que um posicionamento político, partidário e militante, mas um posicionamento de uma mulher que não conseguia ter visibilidade

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dentro do movimento. Ao dizer que era “muito mais que uma menina rica que mora de frente para o mar”, ela busca sublinhar posições das mulheres que, se não lhes foram negadas, pelo menos não puderam aparecer na história da Bossa Nova. É preciso atentar também para ouvintes que não participaram destas reuniões musicais da Bossa Nova, refletindo sobre como, em seu cotidiano no Rio de Janeiro – uma cidade que convivia com aspectos de metrópole complexa e acelerada, mas que tentava manter e ver na natureza uma possibilidade de resistência a esse processo, como muitas vezes a imprensa ressaltou – entre matinês, cursos de datilografia ou de violão, estudos, leituras de revistas que procuravam regrar seu papel na sociedade, reservando-lhes o papel de namoradas puras, noivas compreensivas, esposas dedicadas ao marido e aos filhos, sendo ainda modernas e práticas, escutaram esta formulação de uma “musa” ideal, falada em Lobo bobo. São os sentidos que estas ouvintes deram às canções o que se procura recuperar. “Eu escuto muito Bossa Nova hoje. Gosto. Agora mesmo no Natal eu ganhei MPB 4 e Quarteto em Cy que eu gosto. Os Cariocas. Minha filha de 20 anos adora. Bossa Nova, Vinícius, ela adora. Adoro as letras, adoro tudo. Essa coisa de falarem da mulher. Letra de Bossa Nova é muito falando da mulher ideal, a Garota de Ipanema, a Chapeuzinho de Maiô e tal, tal, tal. Isso na época, a mim não incomodava nada. Sinceramente, não. Eu achava engraçado aquele negócio do Lobo Mau, não sei o que. Todos eles adorariam ser Lobo Mau e arranjar um Chapeuzinho mesmo [risos]! Sabe, o negócio era você não se deixar ser Chapeuzinho, entendeu? Acho que era por aí. Tinha milhões que adoravam ser Chapeuzinho, ser engolidas pelo Lobo ou sei lá o que. Então eu acho que, eu acho que era uma coisa muito mais de dentro pra fora, sabe? Eu não sentia nada assim.” (Marta)

Marta afirma que adora as letras até hoje e que gostava delas na sua juventude. Segundo conta, o fato de falarem de uma mulher musa, não a incomodava. Ela não percebe nisso um cerceamento ou uma definição de lugares sociais estipulados a elas. As palavras de Marta permitem compreender que a escuta desta canção, independentemente do que a autoria quisesse expressar, fazia uma leitura diferenciada da canção, considerando-a engraçada e não como algo em si provocativo. O movimento de sua memória faz conhecer que o que era cantado, por um intérprete cujo timbre, naquele momento, era considerado moderno, inovador e até irônico, trazia uma musicalidade que poderia provocar uma escuta com outros sentidos para esta canção. Quando diz que os homens queriam mesmo ser lobos e arranjar um chapeuzinho, assim como muitas moças adorariam ser engolidas por esses lobos, permite conhecer que estes eram os papéis de gênero que circulavam na época, mas que sua escuta interpretou de outra forma. Ao falar que era “uma coisa de dentro pra fora”, que o “negócio era não se deixar ser o chapeuzinho”, ela mostra que, para além de uma construção ideal da memória – que tende a ver 366

no passado questões que hoje são pensadas mas que na época vivida talvez não fossem correntes, como perceber a intencionalidade masculina de cercear a mulher, mas não ligar para isso –, realmente sua escuta da canção revela formas táticas de experiência cotidiana feminina, em que ao se utilizar dos discursos hegemônicos masculinos, faz uso diferenciado dos mesmos, subvertendo seus significados e comportamentos. Esta fala, no entanto, é fruto do presente, do momento atual em que as mulheres já assumiram outras posições dentro da sociedade, assim como os homens. Um tempo que assiste a muitas conquistas feministas já consolidadas, em que mulheres como Marta conquistaram seu espaço no âmbito público, no trabalho, como também no âmbito privado, nas relações familiares, pessoais e amorosas. Ela mesma lembra que em sua juventude era muito mais liberal do que muitas de suas colegas, brincando que já “era muito moderna prá época, quase uma Leila Diniz”. Assim, quando Marta se refere à percepção já na época de que havia um discurso masculino mas que este poderia ser suplantado por astúcias sub-reptícias, presente está em sua construção memorialística aquilo que foi incorporado por uma geração que assistiu ou participou dos movimentos feministas e dos debates e conquistas por ele gerados, sendo que Marta é um pouco mais jovem que outras ouvintes entrevistadas que não assumem em suas memórias tanta liberdade de costumes. Nos anos 70, a mídia começava a expressar os anseios e os novos papéis sociais que caberiam às mulheres. Buscando compreender representações da mulher na TV, Cláudio Cardoso Paiva, ao analisar a série de TV Malu mulher, enfatiza elementos que mobilizavam as formas do masculino e do feminino na sociedade que tomava novos rumos. “na pele de ‘Malu’, a ‘namoradinha do Brasil’, Regina Duarte, o arquétipo televisual para milhões de jovens brasileiras, irá se tornar uma mulher livre. O retrato da mulher média brasileira, no desempenho de Regina Duarte, irá ganhar novos contornos. Diva, lésbica, mãe, namorada, heroína, vilã, as personagens, como mulheres imaginárias irão povoar a imaginação popular além dos limites da ficção. Uma vez que os cantores, astros e estrelas do cinema, teatro e televisão estruturam no imaginário social, mostram-se como receptáculos dos desejos, das projeções, da economia libidinal do público, a sua conduta na ficção e na vida ‘real’, apresentada cotidianamente através das ‘revistas do coração’, produzem um tipo de emanação 54 que faz sonhar o público; eles encarnam aquilo que o público gostaria de ser ou ter por perto.”

Entre as ouvintes entrevistadas, muitas lembram-se freqüentemente das canções, articuladas sempre à intérprete da mesma, seus jeitos de se vestir, de se portar, sua performance, 54

Claudio Cardoso PAIVA, Quem ama não mata ou mata? Identidades da mulher na mídia: Família, Trabalho e Sexualidade (Texto disponível na Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação). 367

numa memória que registrava uma escuta musical bastante articulada ao que representavam estas cantoras que começavam a ter maior espaço naquele campo artístico e naquela sociedade. Entre elas, destacam-se nas lembranças Nara Leão, a famosa cantora das “saias curtas e dos joelhos de fora”, com seu jeito meigo, sutil, mas ao mesmo tempo forte, que bradava o protesto e sua própria opinião. Ou ainda Elis Regina, lembrada sempre pela força de sua voz e de sua interpretação, sua performance expansiva e contagiante nos palcos. Estas lembranças permitem reconhecer as identificações que estas mulheres constróem hoje e que lhes surgem na memória apontando para padrões femininos fortes, presentes e atuantes, que foram uma das bases para muitas de suas experiências vividas na juventude como mulheres. A construção feminina na Bossa Nova é feita sobre a mulher carioca (“E além do mais/Ela é carioca”), lembrando-se de seu balançado, seu “jeitinho” de andar, sua pele morena queimada do sol das praias. Destaca-se a mulher e seus atributos físicos, numa referência clara ao hábito que se expandia de freqüentar as praias da zona sul do Rio de Janeiro. Nesta construção sobre a mulher carioca, estes padrões estéticos e comportamentais lançados na sociedade, contribuíram para a consolidação de um ideário que valorizava esta sensualidade não-vulgar (que freqüentava a praia), esta liberdade, alegria, irreverência, este prazer pelo sol, mar e praia55, tão presentes na vida carioca. A circulação social da música mostra-se inteiramente neste sentido. A Bossa Nova captou elementos de uma mudança comportamental, colocando e representando nas canções formas mais liberalizadas das mulheres, uma certa ousadia nos hábitos sociais. Por outro lado, a sociedade absorveu muitos destes elementos, produzindo novas formas de relações entre os gêneros, intervindo nas relações interpessoais cotidianas, e provocando um maior aparecimento e inserção da mulher em lugares muitas vezes exclusivos dos homens, como a música. A Bossa Nova expressava alguns desses preceitos e valores culturais que já se encontravam em formação e circulação na sociedade, apreendendo-os, e também propondo ao meio social formas de ser e agir, em que sobressaia este aspecto de valorização de uma certa vanguarda comportamental: a sensualidade da mulher, associada a sua ousadia comportamental, numa atitude moderna mas não-vulgar. O aspecto sensual da mulher mostra-se como um elemento novo na produção musical bossanovista enquanto em outros estilos, a mulher é

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A praia se mostra como espaço de liberdade, território neutro, aberto, com “clima descontraído, conversa frouxa, a luminosidade tropical, o calor relaxante, o riso solto, a brisa suave cheirando a maresia [que] forma um todo harmoniosamente integrado.” (Cf. Eli DINIZ, Retorno às origens. In: Estudos Feministas, v.2, n.2, 1994. p.461). 368

representada como submissa, passiva, centrada no lar e a serviço do homem, destituída de qualquer traço de sensualidade. O parâmetro de mulher é a “Emília” ou a “Amélia”. No sambacanção, há um componente de sensualidade mas como algo negativo, uma vez que fica restrito à mulher de cabaré. Muitos destes elementos explicitaram-se mais fortemente no momento posterior ao da Bossa Nova, personificados em Leila Diniz, figura que se tornou de alguma forma um mito56. Carioca das camadas médias urbanas do Rio de Janeiro, Leila era intelectualizada e politizada, dona da própria sensualidade e de uma ousadia sem par naquele momento. Estas características, embora sejam mais comuns no final dos anos 60, juntamente com os movimentos de contracultura, feministas, tropicalistas, foram gestadas algum tempo antes, na época da Bossa Nova, quando o movimento musical ajudou a construir este imaginário social, no qual muitas destas premissas já circulavam socialmente.57 O “feminismo” assumido por ela – embora nunca tenha se afirmado sob este rótulo – era traduzido pela busca da liberdade de expressão e por seu aspecto comportamental na vida privada, nos seus relacionamentos, muito mais do que na esfera das lutas políticas institucionalizadas. Afirmando a feminilidade, Leila Diniz assumia posturas que valorizavam novas relações entre os gêneros e novas formas de encarar a vida. A ousadia de sua postura se chocava freqüentemente com os movimentos feministas. “Nos anos 60 ser jovem ... a gente passou por todos os períodos, vamos dizer, de desenvolvimento, porque antes de 68, na verdade a gente fala que foi em 68, na verdade a minha geração tinha 20 anos, eu nasci em 48, em 68 a juventude fez a revolução em Paris, era revolução no mundo inteiro. Pra mim, ele fala que foi em 68, mas foi a descoberta da pílula que mudou a relação entre homem e mulher. A Revolução de Maio foi importante, eu não quero diminuir o fato da Revolução de Maio, foi uma época boa porque a gente tinha e esperança que o mundo pudesse mudar e mudar agora. (...) Mas na realidade, o que eu queria falar da relação homem/mulher, tinha uma relação homem/mulher antes da pílula... Então era uma situação muito complicada, porque ser adolescente na nossa época, antes da pílula, antes de 68 era muito sério, porque... era uma conquista complicadíssima, o que ajudava a criar um clima de mistério. Depois chegou 68, depois de 68 as mulheres mudaram, as mulheres falaram também ‘vamos fazer uma revolução’! E a gente ficava, ‘vamos fazer amor, vamos pra cama direto, não vamos complicar a história.’ Então ficou mais simples, mas depois virou logo complicado, logo depois, porque chegavam as feministas, e logo depois, eu não lembro mais... em 72, 73 chegaram as feministas com razão. Mas elas eram um pouco fanáticas, meio exageradas, então chegaram e complicaram as coisas mais ainda... os homens eram babacas... se ela não tinha três orgasmos numa noite, você não era ninguém, então se não tinha três orgasmos era melhor não ter nenhum... se você não bater os três orgasmos... era uma competição. Depois sossegaram as feministas... no 56

Mirian GOLDEMBERG, Toda mulher é meio Leila Diniz. Maria Alice Carvalho ressalta que Leila Diniz teria, no Rio, a sua tradução, sendo ela um discurso sobre a identidade da cidade e um instrumento que liga os cariocas aos seus espelhos, pois cada carioca é um pouco do que todos gostavam nela, e a isso chamam de Rio de Janeiro, personificando assim, este jeito carioca de ser, esta “cor local” (que a Bossa Nova ajudou a construir), como alguém que desafiava o tradicional, o imposto e mostrava em si este “moderno”, ligado às formas comportamentais, à ousadia. (Cf. Maria Alice Rezende de CARVALHO, Quatro vezes cidade. Op.cit., p.95-6). 57

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resultado de 68, o homem foi pra cozinha cozinhar ele mesmo, porque... mas ta certo, aprender a cozinhar... depois deu um sossego assim e pum, veio a Aids logo... Então, na minha geração, eu sempre falo, passamos a época pré 68 pra frente, 68 durou até setenta e tantos, depois chegaram as feministas, aí ponto, depois elas se acalmaram também. Mas conquistaram direitos também, o papel da mulher mudou com o resultado de 68, não foi o homem que mudou, foram as mulheres que mudaram, felizmente pra mim, porque tinha homens que se queixavam. De todas as passagens que mudou o mundo, foi o direito de reconhecer a sexualidade da mulher...” (Massimo)

Lembranças de experiências diversas da vida na juventude: a de antes e depois de 1968, ano considerado um marco pelas revoltas juvenis e estudantis. Para o memorialista, porém, mais do que estas revoltas, foi fundante a invenção da pílula anticoncepcional, que trouxe maior liberdade à vida sexual das mulheres e também modificações, segundo permite compreender, nas relações entre homem e mulher, pois se as conquistas eram mais difíceis antes, agora teriam se tornado mais fáceis e perdido muito do “clima de mistério”. Segundo conta, não só os homens fizeram a revolução – aquela partidária, nas ruas, etc – mas as mulheres também a fizeram, no âmbito privado, na vida afetiva e sexual. Embora afirme que tudo ficou mais fácil, também permite notar que logo depois não foi assim, pois com o feminismo, as mulheres passaram a exigir seus direitos, entre eles o de “três orgasmos por noite ou não ter nenhum”, o que permite perceber que os homens, como nos lembra Massimo, se sentiram acuados, inferiorizados, pressionados, em competição. Embora voluntariamente tente construir uma trajetória de sua vida como alguém que viveu estes movimentos de modernização dos costumes “porta a dentro”, no ambiente privado, e valorize tudo isso, dizendo que achou ótimo as conquistas das mulheres – pois haviam homens que não gostaram –, ele, ainda assim, deixa entrever uma certa posição de incômodo, ou pelo menos, de falta de familiaridade com estas novas posições sociais assumidas pelas mulheres, e a troca dos lugares sociais, em que os homens “foram para a cozinha”, segundo ele. Lembrando mais uma vez das considerações de Maria Isabel Almeida e seu trabalho sobre a subjetividade masculina, ressalte-se que é comum entre os homens de meia idade a narrativa sem hesitações, reticências, reservas ou constrangimentos sobre sua vida íntima. Massimo assume conscientemente o discurso de que a mulher mudou, que isso foi bom, que os homens são “uns babacas”, colocando-se como inferior nas relações. Depara-se com uma narrativa em fluxo que acaba por tentar resguardar traços mais profundos da subjetividade, mas que podem ser observados na situação da pesquisa e do depoimento ocorrido numa tarde ensolarada de sextafeira, num bar do Leblon. 370

“na época, você tinha por exemplo a esquerda existencialista, a esquerda sartriana, ela absorveu muito bem esse lado da pílula, essa exaltação à liberdade, porque o Marcini - que era muito forte do ponto de vista revolucionário junto aos jovens e juntos aos movimentos de esquerda - era muito triste com relação a isso, a sexualidade. O Marcini não tinha nada disso, o sujeito era revolucionário, era revolucionário, era um sujeito formidável que abandonava tudo, inclusive os seus amores, os seus afetos pra enfrentar luta armada e vanguarda, não sei que. Quer dizer, eu acho que até o movimento político, revolucionário ganhou um colorido todo, tanto que mesmo aqui no Brasil muita moça já participou na época em 64, 68, etc, já tinha muita mulher na faculdade de Filosofia, então já era um pouco essa liberdade trazida talvez pela pílula, como você já falou, trazida por uma maior liberdade, quer dizer, ganhou um lado sentimental, como era também com o Che Guevara que falava de um novo homem na América, misturou um pouco de amor com política, isso eu acho que também foi importante... (...) no caso da ‘Garota de Ipanema’, eu acho que entra assim um pouco desse lado político também, aquela idéia de ‘vamos ser revolucionários, mas também vamos viver a vida’, eu acho que tinha um pouquinho de influência do existencialismo, do anarquismo, uma coisa assim, no sentido mais lúdico também, não ficar só... isso existia muito nessa época. Incorporar esse valor da estética da beleza e coisas que antes era muito fechado, pensava só em fazer as mudanças sociais, revoluções, etc. ‘hay que endurecer sem perder a ternura jamais’, não tinha uma coisa assim? Eu acho que o Chico, o Vinícius, o Tom Jobim, sempre eles deram muito esse toque de Ipanema nesse sentido, Ipanema como Paris.” (Joubert)

Joubert narrou suas memórias junto com Massimo, uma situação que foi inusitada e inesperada, mas que se revelou bastante profícua para compreender elementos da subjetividade masculina, das memórias afetivas, das lembrança apoiadas no grupo, nos pares. Ambos ressaltaram o aspecto de que a Bossa Nova representava este clima novo que circulava nos anos 50 e 60, como uma música que para eles expressava tudo isso na sua forma de ser cantada, no ritmo mais cool. Uma escuta atenta desta musicalidade que se fixou na memória e hoje pode ser elaborada nestes termos. Joubert fala de uma atuação política existente nos movimentos estudantis aparentemente dissonante com o que majoritariamente é dito sobre este assunto. Segundo ele, a política extravasava as questões públicas e institucionais e era influenciada por idéias existencialistas que previam uma libertação também no âmbito privado de viver o amor, viver a vida, um lado mais lúdico de misturar revolução, política e sensibilidade amorosa. O que permite conhecer por suas lembranças é que isso se devia também à presença de mulheres na Faculdade de Filosofia já em 1964, fato que, segundo ele, parecia ajudar a trazer este clima de maior “delicadeza”. Para o adulto que rememora esses tempos, a Bossa Nova - e o que ela reverberava na escuta, por já se ter assistido ao movimento organizado das mulheres, a várias conquistas e até a uma crítica ao feminismo mais exacerbado - também ajudava a conformar esse clima, esse espírito, em que a delicadeza e a sensibilidade saíam das fronteiras do feminino, instituindo-se entre os homens.

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“Tanto os homens quanto as mulheres tentavam... a coisa era difícil... mas naquela época [longa pausa] o lado feminino, a parte feminina era mais recatada, entendeu ? Ela não se expunha tanto porque ela tinha medo de ser falada.... então quando a gente chegava nas festas e via uma menina mais saidinha e que você podia dançar um pouco mais colado, um pouco mais de carinho... enfim... então, a moça era logo tachada como ‘essa ai é garota fácil’. E isso naquela época era uma coisa muito importante, as mulheres se preocupavam com isso... depois não, ficou de igual pra igual. Então o homem tenta e a mulher tenta também, os dois tentam.... na sua liberdade... mas naquela época aos homens tudo era permitido e às meninas não... só era permitido o recato... esperar arranjar um namorado.... pra poder... elas tavam sempre esperando... aparecer um príncipe encantado... hoje o príncipe encantado pode ser de um lado ou de outro.. pode ser o príncipe ou a princesa....Agora isso trazia prá gente... a gente ia prás festas... e ficava alucinado pra gente dançar uma música e dar um beijinho no rosto de uma menina... aquilo era o supra sumo... pra uma menina era uma permissividade, naquela época....conseguir... ás vezes era até roubado, né? (...) A Leila tava algumas décadas à frente... ela foi uma pessoa que... muito prá frente da época dela, mas ela não conseguia que muita gente... levasse a vida que ela levasse, pois ela era uma artista... à uma artista era permitido ter uma vida permissiva, não à uma garota normal, a que era professora, etc. A liberação não era assim, não... A liberação pode ter sido decretada, mas ela só aconteceu após muitas conquistas das mulheres... principalmente das mulheres, porque ao homem tudo era permitido.... a cultura da época falava que... dizia que... a mulher... a mulher pro casamento era a mulher recatada.., como nas músicas... uma visão totalmente de hoje, porque hoje a mulher recatada talvez ela esteja totalmente fora dos padrões... porque não conhece a vida como deveria... a chance de conseguir uma vida certinha é muito mais difícil pra uma pessoa... do que pra uma menina que tenha experiência de vida como mulher, como... como... trabalhadora.. como tudo... a experiência hoje conta... e a experiência pode trazer vantagens e não desvantagens. Antes uma mulher liberada era uma desvantagem pra ela, hoje em dia uma mulher que é liberada de cabeça... no lado profissional, no lado pessoal, ela é uma mulher muito mais completa... eu acho que essa liberdade facilitou a vida das mulheres. (...) Mas o lado masculino tá assustado também porque hoje em dia... hoje em dia... inclusive até as estatísticas tão falando.... as mulheres estão tomando conta de varias áreas ... do nosso mundo atual.. elas tão dominando, elas são maioria... quer dizer isso ai ao longo do tempo vai fazer com que os homens fiquem mais medrosos em relação... em relação... à mulher.... Hoje em dia tem muito homem que tem medo da mulher, porque elas são tão independentes que eles têm medo, querem voltar àquela cultura do passado onde eles dominavam.... porque hoje em dia as mulheres subliminarmente as mulheres... elas está comandando.. isso pra um homem é um negócio terrível, complicado... a mulher..... ela toma atitude... e quando ela toma uma atitude... porque geralmente a mulher amadurece mais cedo que o homem. Então quando uma mulher toma uma atitude, o garoto ainda não esta maduro o suficiente fica amedrontado... vocês ainda vão dominar o mundo um dia (..) O que vai acontecer é uma mistura dessas duas forças.. e ai a gente vai tocar pra frente... não é a mulher excluída do poder.... ela tem que ser incluída no pode cada vez com mais força... (...) Os homens talvez ate entendam mas.... não sei se ... profissionalmente sim, mas eu não sei se no interior deles.. como eles se sentem.. a grande duvida de hoje é como se sente um homem que é inclusive gerenciado por uma mulher... na empresa... como é que.. ele faz o trabalho dele direitinho.... mas não sei se... (...) porque agora provou-se que a mulher tem tanta capacidade quanto os homens, ela também pode ser o poder... e isso mexe... ainda mais com a nossa cabeça de... latino, né ? O latino é complicado... ele é meio machista por natureza.” (Armando)

Como se pode ver na fala de Armando, existem aspectos dissonantes nesse discurso mais hegemônico. Ele, mesmo valorizando as conquistas femininas como importantes e imprescindíveis que ajudaram a sua geração a viver melhor e mais livremente, argumenta, no entanto, que isto não era privilégio de todas as moças de sua geração. Podia-se, portanto, ser bem visto e aceito como ousadia e vanguarda comportamental em meios mais intelectualizados entre os artistas da zona sul. Mas entre os pares que viviam no bairro de Piedade, na zona norte da cidade, que embora freqüentassem sempre a zona sul, as praias, os shows, gostassem da nova

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música que surgia, participassem de grupos musicais vocais (como nos conta Armando sobre uma namorada que também participava do grupo), isso não se dava, não era prática comum. Segundo suas memórias, Leila Diniz “fazia tudo isso porque era artista”, mas para as meninas com uma “vida comum” não havia estas liberalidades. Outro aspecto que revela suas ressalvas quanto às mudanças na posição das mulheres na sociedade é sua fala sobre como os homens lidam com isso hoje, sublinhando a dificuldade em conviver com a liderança das mulheres que, segundo ele, no fundo não aceitam. Apesar de uma postura mais tranqüila em relação ao trabalho, ocorrem resistências em relação às questões domésticas e íntimas. Esses são indícios que permitem compreender que o convívio com a emancipação feminina não foi ou é harmoniosa. Aparentemente se permite a presença da mulher em âmbito público, domínio que antes era exclusivo a eles, mas há uma negativa em estabelecer modificações, eles mesmos, no âmbito privado, com novas formas de relações amorosas e modos de educar e criar os filhos. Considerando-se que o mundo privado e seus elementos foram historicamente postos sob o comando feminino, em que sentimentos e relações amorosas, de alguma forma, já eram manipuladas por elas, como um jogo de sedução, parece que agora é dado ao mundo masculino o reconhecimento e a consciência deste processo no qual eles ainda não se permitem participar completamente, de modo a ser possível novas regras, estruturas e permanências, em que as mulheres não fossem mais obrigadas a assumir a chamada “dupla jornada”, que supõe esta inserção tanto no público como no privado. Na medida em que esta interpenetração de territórios masculinos e femininos encontra-se cada vez mais aguçada nos nossos dias, é possível notar que os mais afetados por ela são os homens, não apenas porque ela significa uma perda de poder, mas porque coloca a própria identidade masculina em xeque. Segundo Badinter58, a constituição da masculinidade, do tornarse homem é um processo muito complexo, talvez maior até do que o que ocorre entre as mulheres. Sem adentrar demais nas discussões psicanalíticas, cumpre dizer que a identidade masculina elabora-se na negação do sexo oposto, no caso da mãe, com quem mantém uma relação de simbiose até os primeiros anos de vida. Para identificar-se como homem, é preciso que o menino negue as características femininas que possui, o que pode ser observado em variadas culturas pelos rituais de iniciação, no qual são os outros homens que engendram o homem. Se 58

Elisabeth BADINTER, XY: sobre a identidade masculina. 373

muitas vezes pode-se argumentar que as mulheres estariam perdendo sua feminilidade hoje em dia, caminhando para uma interpenetração de territórios sexuais, raramente duvida-se da identidade delas. A conquista de atributos masculinos é, para a mulher, considerado um direito seu, um algo a mais, pois a feminilidade não lhe pode ser roubada. Sendo uma “máscara sobre um vazio”, todo atributo masculino-fálico virá sempre incrementar a feminilidade59. Já entre os homens, é exigido sempre que ele prove, mostre, ateste sua identidade masculina, pois todo e qualquer traço de feminização é sentido como perda de si mesmo, “como ameaça que afinal se cumpre”, uma vez que sua subjetividade foi elaborada pela negação do feminino. Acrescente-se a tudo isso o fato de as referências seguras de identificação dos sexos estarem cada vez mais se esmaecendo, o que torna o debate ainda mais complexo, pois não é possível aceitar apenas as explicações essencialistas que prevêem um masculino universal e único, devendo-se refletir sobre a plasticidade e a multiplicidade da masculinidade atada a um tempo e um lugar. Nos discursos dos homens acima citados, há índices de questões que pertencem ao ser masculino, mas também elementos da cultura e da sociedade em que viveram e vivem, onde elementos de uma cultura com marcas de uma “latitude latina”60 deve ser levada em consideração. Traços de uma constituição masculina dos tempos coloniais que valorizavam o poder, o prestígio e um desejo de reconhecimento social que é acompanhado de um apelo em ser carismático, sedutor e galanteador – características que se definem pelo que os homens imaginam que se espera deles. Outra característica desta cultura masculina latina é o distanciamento do homem em relação à dinâmica do mundo privado e o envolvimento afetivo com a opção por ter filhos. Isso vem sofrendo modificações, em que as funções de pai, a afetividade e o cuidado com os filhos, a “paternagem”61, sugerem que elementos novos estão sendo incorporados pelos homens, mesmo que estes traços culturais da homem latino ainda estejam longe de ser sanados completamente. Assumir estes novos papéis, estas novas sensações, comportamentos e afetos implica para os homens defrontar-se com a instabilidade e a indeterminação, o que para muitos significa pôr em dúvida a própria escolha e identificação sexual. Compreender os mitos de uma sociedade permite que algumas de suas questões sejam melhor apreendidas, o que justifica retomar o debate sobre Leila Diniz que, de alguma forma, 59

Maria Rita KEHL, A mínima diferença: masculino e feminino na cultura, passim. Sócrater NOLASCO, O mito da masculinidade. 61 Elisabeth BADINTER, Op cit. 60

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tornou-se um mito para as mulheres que viveram os anos 60. É comum entre as memorialistas mais jovens, que tinham por volta de 20 anos no final desta década, a lembrança da atriz como símbolo de sua geração, ícone das conquistas realizadas por elas próprias – como lembra Rita e também Marta – numa narrativa memorial que sugere uma proximidade, uma identificação com Leila, e não uma distância como aquela que Armando nos falava, como se fosse algo restrito à vida de uma artista. Isso tem relação com a própria experiência de vida destas mulheres, que viveram e experimentaram conquistas e novidades exatamente no momento em que Leila estava viva e propagando estas idéias. Sua morte prematura, sem dúvida, ajudou a alavancar e valorizar sua imagem. Outras mulheres, embora considerem a importância da figura de Leila, sugerem leituras diferentes. “Eu conhecia a Bossa Nova de ler e ouvir... porque também pelas músicas a gente conhece muito o lugar, conhecia muitos fatos, as histórias que eu ouvia... inclusive, você veja bem, a história da Leila Diniz, aquela coisa toda, tudo a gente ouvia mais pelo rádio do que pela televisão (...) Aí eu ouvi falar de Leila Diniz e ... Olha, você sabe que quando eu vim pra aqui pro Rio... Mas, olha, eu era criada assim [com uma moral conservadora], mas eu tinha...Eu era meio rebelde, entendeu? Então entendia a situação dela. Porque ela era mais rebelde. Aquilo era rebeldia dela, né? Então, eu era também assim um pouquinho rebelde. Sabe por que que eu era rebelde? Olha, eu não...Na minha época de menina... Não, moça, moça! Não andava de calça comprida, não andava de bicicleta...E eu fazia tudo isso. Minha avó quando me via de bicicleta, faltava me bater. Sabe, não podia andar de bicicleta, não podia usar calça comprida. Eu usava, né? Não podia beijar na boca, eu beijava. Então, quando...Esse lance da Leila Diniz, eu não estranhei! Até me identifiquei um pouco! Claro, eu falei assim ‘Puxa, ela tá mais que certa. Ela tem que viver a vida dela de acordo...Como ela quer viver!’ E acho que todo mundo tem o direito de viver a vida, viver bem, entendeu? Sente bem, tem que fazer aquilo mesmo. (...) Então, eu era meio rebeldezinha, sabe? Coisa assim: ‘Ah, não faz isso’, aí que eu ficava mais danada da vida e ia fazer. Aí quando eu cheguei ao Rio, já tinha filhos quando a Leila Diniz...A Leila Diniz eu já tinha filhos. Então, eu achei aquilo normal, eu achei normal. A pessoa ter um pouco... Eu acho que ninguém deve invadir muito a privacidade do outro. Eu acho que aquilo era dela. E outra, melhorou muito, sabe, aquela coisa de...Muita coisa que mulher não podia fazer, as mulheres já passaram a fazer, não é mesmo? Foi diferente. Ela mudou muito. Mudou muito pra cabeça das mulheres daquela época, sabe. A minha, não, porque já tava já casada, muitos filhos, não mudou muito, não...” (Dinah)

Em primeiro lugar, o que chama atenção nas memórias de Dinah é a sua livre associação entre a Bossa Nova e Leila Diniz. Ao contar que conhecia a Bossa Nova e outras coisas que ocorriam “do lado de lá das montanhas” pelo rádio e pelas revistas, uma vez que morava na Ilha do Governador na zona norte do Rio e quase nunca ia até a zona sul, fornece elementos interessantes para pensar a difusão dos padrões comportamentais que se difundiam até em locais mais distantes, ultrapassando o ambiente mais progressista da zona sul. Sua identificação com Leila não é de proximidade como acontece com Marta ou Rita, mas algo distante, visto e escutado de longe, como coisa de artistas, algo que só poderia ocorrer naquele universo. Por mais

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que diga que também era muito rebelde e que desafiava as regras familiares, Dinah não se coloca como herdeira ou mesmo participante das mudanças que estavam ocorrendo na sociedade. Suas memórias até negam, voluntariamente, que aquilo que ouvia no rádio e lia nas revistas tenha mudado qualquer coisa na sua vida. Segundo ela, por estar casada e com filhos, não poderia mais mudar. Essas mudanças não eram mais possíveis de ser vivenciadas por ela. No entanto, em algumas dobras de sua narrativa, o que se encontra é uma mulher que hoje é viúva, está com 62 anos e dedica-se quase exclusivamente a cuidar da família, dos filhos, netos e bisnetos, e que tem os tempos atuais como melhores que os do passado, o que a diferencia de grande parte dos memorialistas que expressam uma tendência ao saudosismo. Dinah descreve uma trajetória que, burlando sutilmente – mesmo que hoje suas memórias até neguem isso – as restrições, encontrando brechas nos sistemas comportamentais hegemônicos, produz uma forma de rememorar que é fruto da trajetória de quem vê o presente como mais ameno, mais fácil de se viver, denotando sua inserção e participação nas mudanças ocorridas no tempo pelas fímbrias, pelas lacunas. Por mais longe que ache que estava do mito feminino que desafiou regras, de alguma maneira sua trajetória permite compreender uma proximidade com tudo isso – se não na aparência mais imediata, pelo menos no valor que isto gerou na sua vida e que se registra de alguma forma em sua memória afetiva. “eu que gostava da Emilinha Borba; quando criança, eu gostava muito da Emilinha Borba. (...) Então... e a moralidade excessiva, que não é só da classe média. Até entre os artistas havia isso. E os artistas eram considerados, vamos dizer assim, uma classe mais livre, mais independente, de quem não se cobrava tanto. Mas você repara, quando havia uma separação e eles tinham um caso, era tudo escondido. Quer dizer, a moralidade também existia entre eles. E eu falei na Emilinha por que? A Emilinha tinha uma música, gravava uma música... eu também não gostava de tudo que ela gravava não, mas havia umas coisas boas. E eu me lembro dessa música, eu era ainda muito garota, eu tava por volta de uns dez anos. Essa música chamava ‘Aconteceu’ e eu não entendia... Porque a música era ‘aconteceu, porque você não sabe nem eu, talvez seja o tempo que é nesse mundo quem faz e desfaz e amor que nasceu entre nós cada vez cresce mais’, depois veio uma frase assim ‘eu sei que não tenho o direito de amar a mais ninguém neste mundo, mas o que fazer se eu te quero e você me quer’, e era um negócio assim, eu tinha uns 10 ou 12 anos e ainda não captava bem essa história, eu falava: - Meu Deus, por que que a pessoa não tem mais direito de amar a ninguém nesse mundo? Aí fui me consultar com as minhas irmãs mais velhas, eu lembro que eu era muito garota, quer dizer, era em 1950, eu tinha por volta de 10 anos e as minhas irmãs falaram: - Sua boba, é porque ela já deu pro cara. Aliás eu acho que antigamente não usava a palavra já ‘deu’, isso é de hoje em dia, ela deu pro cara, não pode mais amar ninguém, casar com ninguém, e eu fiquei impressionada. (...) Mas ao mesmo tempo, Emilinha Borba, que era uma mulher assim que cantava na noite, artista, tudo isso, cantava uma música e dizia que não tinha mais direito de amar ninguém nesse mundo. Então eu acho que durante muito tempo houve assim uma rigidez de costumes, houve uma coisa até assim bem falsa, hipócrita, que hoje, graças à Deus acabou, mas eu tenho medo que tenha também escorregado demais pro outro extremo... então agora pra mim você vê liberdade demais, a minha cabeça ainda não aceita você conhecer o cara hoje e já dormir com ele à noite... dormir não, ficar acordada ! então são coisas assim que a minha

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cabeça não aceita, então eu acho que tudo passou... é lógico que pode haver uma paixão arrebatadora e tal, mas eu não vejo assim que isso seja muito lógico, muito normal, mas o que havia era terrível.”(Maria

Amélia) Maria Amélia também valoriza os tempos atuais no que tange às moralidades que eram, segundo ela, excessivas. Tempos “terríveis” em que tudo era proibido, mesmo para as mulheres que vivam no meio artístico. Embora considere que as mudanças foram para melhor, lembrando que a vida dos artistas também era complicada e difícil, permeada por restrições, ela deixa perceber que teme pela liberalidade assumida na atualidade, quando julga que a sexualidade pode ser vivida sem limites. Mesmo que aparente conservadorismo, como uma mulher que sempre trabalhou, construiu sua trajetória aliando família, marido e filhos e também uma carreira na vida pública (chegou até a ser candidata a deputada), Maria Amélia descreve, em vários momentos de sua narrativa, sua experiência como “vencedora”. O que se apreende, assim, é alguém que aliando o ideal normativo às moças e mulheres casadas e as possibilidades de ação em meio a isso, constitui seu passado e seu presente de forma instigante. Maria Amélia, como Dinah, pertence a uma geração que não teve no mito de Leila Diniz algo tão próximo, elemento de identificação ou de referência mais imediata. Entretanto, o movimento da memória de ambas demonstra a busca por construir uma trajetória na qual sua geração foi vencedora, tendo driblado as dificuldades e aberto espaço para uma experiência feminina, hoje, mais fácil. Mesmo dizendo que eram “tempos difíceis”, elas colocam-se num lugar de valor, ainda que para mostrar como sofreram. Além do depoimento de mulheres ouvintes, tem-se nas memórias de um compositor da Bossa Nova, a presença delas, referindo-se a um momento anterior àquele movimento musical. “Minha mãe bebia e jogava muito. Depois que se separou abriu asas e voou. Se aproximou mais do pessoal de teatro, da música, que ela adorava. Minha irmã Lila e eu ficávamos mais ou menos ao Deus dará. Mas havia também um lado bom e importante. Ela trazia para casa uma porrada de artistas. Vinham beber e conversar. Convivi nessa época com Ciro Monteiro, Orlando Silva e muitos outros, inclusive Lúcio Alves. Minha casa era um centro musical e artístico. (...)hoje eu entendo e sei que ela era da turma da boêmia. Inteligentíssima, cativante, safa, todo mundo gostava dela (...) foi uma pessoa maravilhosa, pródiga, liberal. Mas não podia ter sido nunca mãe de ninguém, não nasceu prá isso, devia ter sido só irmã ou amiga. Minha tendência para a música definiu-se por volta de 1949,50 - muito certamente graças à minha 62 convivência com músicos.”

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Ronaldo BÔSCOLI, Op. cit., p.16-7. 377

Sua mãe, Angela Luiza Esquerdo, casou-se com um médico de poucas posses, enfrentado a desaprovação da família. Após alguns anos do nascimento dos filhos, o casal mudou-se para mais longe da família de Angela. Segundo o memorialista, seu pai não aceitava e nem convivia bem com as “diferenças” da esposa que passou a freqüentar teatros de revista e a boêmia do Rio de Janeiro, entregando-se ao jogo e, principalmente ao alcoolismo, que lhe acompanharia até o fim de sua vida. Neste acerto de contas com o passado, em que a memória é o fio condutor para esta busca e este encontro, Bôscoli compreende, a partir de seu distanciamento presente, o papel da mãe em sua vida. Foi por meio dela que ele teve acesso ao ambiente musical e à boêmia. Essa associação, no entanto, faz-se de maneira unívoca, em que, mesmo destacando os aspectos negativos do comportamento da mãe (ressaltados também em outras passagens de sua memória), Bôscoli lhe reserva um caráter positivo, como alguém que lhe proporcionou entrar na vida artística. Ele ressalta a mãe como “pródiga”, “liberal”, “cativante”, “safa”, o que permite enxergá-la como alguém especial e diferente, uma mulher que fugia ao padrão da época, numa construção de imaginário de modernidade. Convém indagar se ela, ao promover reuniões musicais em sua casa e ao se inserir na boêmia artística, estaria ressaltando aspectos do cotidiano de mulheres dos anos 50. “Elsa Martinelli é uma artista que (...) despontou assim para o sucesso como um dos elementos mais brilhantes do cinema italiano. O seu extraordinário fascínio e sua espetacular beleza (...) também na sua vida privada [ajudou-a] a conhecer o sucesso, contraindo matrimônio. Tem hoje um filho que, para ela, é a sua maior felicidade (...) Acima das glórias da carreira, coloca o seu amor de mãe ! Deixou de ser 63 manequim de modas para ser ‘estrela’ e não terá dúvidas de deixar o cinema pelo filho”.

Como enfatiza esta reportagem, a mãe ideal deveria largar tudo pelo filho. Esse discurso procura construir a mulher como alguém que tem a sua realização no lar, no ambiente doméstico privado, na maternidade, em que a carreira profissional (e ainda mais a artística) deveria ser deixada de lado. É possível perceber nas memórias de Bôscoli, ao falar da mãe, uma certa mágoa encoberta por ter tido uma mãe que não era dedicada exclusivamente aos filhos, e à família. Embora monte a imagem de Angela Bôscoli univocamente, falando de sua “modernidade”, buscando consciente e voluntariamente encará-la de maneira positiva, involuntariamente ele próprio salienta que ela “não nasceu prá ser mãe” de ninguém: a mulher que vivia na boêmia era mal vista e fugia ao padrão de boa mãe. É possível entrever nestas memórias que a mãe ideal

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“O filho é sua maior felicidade”. Jornal Última Hora. Tablóide Feminino. 01/09/58, p.7. 378

para ele não poderia ser esta mulher atenta e inserida no ambiente musical. Sua transgressão menos constituía-se num desvio e mais a acabava por enquadrá-la no discurso normativo, determinante do que uma mulher “não deveria ser”. “O macacão da operária, longe de desfeminizá-la, simboliza um novo sentido de vida, acrescentando-lhe características novas, sem abjurar o gosto de servir, como companheira do homem na sociedade conjugal. O casamento é o sonho das horas de repouso, a maternidade um fim, o trabalho competitivo um recurso que se vê obrigada a aceitar, quando não a disputar, premida pela necessidade que não reconhece 64 nenhuma discriminação.”

Esta outra reportagem versa sobre dois projetos de lei que deveriam ser aprovados no Senado Federal naquela semana de abril de 1959 a respeito dos estatutos da sociedade conjugal: um visava “eliminar as restrições à capacidade jurídica da mulher” e o outro reclamava “plena igualdade de direitos para os cônjuges, libertando a mulher de toda submissão injusta do marido”. O discurso buscava mostrar-se de acordo com estes projetos, os quais só viriam a confirmar uma realidade que já se apresentava: o número cada vez maior de mulheres que trabalhavam fora de casa. No entanto, ao incorporar estas modificações da sociedade, “concordando” com elas, este discurso permite interpretar que mesmo as reformulações e atualizações têm como objetivo regrar a mulher, ressaltando que é a necessidade que a faz trabalhar competitivamente. Reafirmando o modelo tradicional, o texto deixa claro que seu lugar é o lar, que esta operária trabalha por falta de opção mas que seu fim maior é casar e ter filhos. Esse discurso traz inovações nos papéis destinados às mulheres, mas comporta elementos que visam a direcionar a mulher para a estabilidade social que se queria. A moral mais conservadora que buscava sustentar a dominação masculina não via com bons olhos o trabalho feminino fora do âmbito doméstico, considerando-o como uma ameaça à estabilidade. Segundo Carla Bassanezi65, no período pós-guerra, a participação crescente da mulher no mercado de trabalho foi um dos fatores de maior importância no conjunto das mudanças nas relações homem-mulher e nos papéis de gênero que se travavam no período. Com as novas possibilidades surgidas a partir do desenvolvimento dos setores terciários, as mulheres foram ganhando o estatuto de assalariadas, apresentando um potencial maior de mudança no status social e econômico.

64

“Carta de alforria para a mulher casada”. Revista Manchete, 04/59. Carla BASSANEZI, Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher, 1945-1964. 65

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Neste momento, se o papel reservado à mulher é preferencialmente o de estar centrada no lar, estando a serviço do bem-estar do marido e dos filhos, circunscrita ao mundo privado, vê-se em outras matérias femininas que também é dito que ela deve interessar-se por questões públicas como “assuntos internacionais”, para assim agradar o marido, fazer-lhe companhia, tornando-se, dessa forma, uma esposa ideal. Ela deve ainda saber receber amigos e animar as reuniões. Este é um discurso que, incorporando algumas questões consideradas mais liberais em relação ao papel da esposa, visa a manter o padrão destinado às mulheres de ser esposa e mãe. Algumas das mulheres ouvintes analisadas contam que trabalhavam quando solteiras, mas que, com o casamento e a maternidade, acabaram deixando a carreira, passando a se dedicar exclusivamente ao mundo doméstico, como Dinah, por exemplo. O trabalho e a carreira, em sua trajetória, não é algo que tenha algum componente de realização pessoal ou um valor central. Carla Bassanenezi66 chama a atenção para o fato de que no pós-guerra e nos anos 50, embora as mulheres tenham entrado no mundo do trabalho de uma maneira sem precedentes, era comum entre as moças das camadas médias que trabalhavam ou estudavam, interromper estas atividades com o casamento. O ideário circulante era o de que o casamento deveria estar em primeiro plano e não a vida profissional, reconhecidos até como irreconciliáveis. Muitas entravam no mercado de trabalho para ajudar na renda familiar ou, de outro modo, isto assumia certa importância e aceitação para as moças que não se casavam, as “solteironas”, o que reforça esta idéia de incompatibilidade entre o mundo público do trabalho e o privado da vida doméstica. Entre outras memorialistas, é possível perceber o trabalho como algo valorizado em suas memórias de hoje, ressaltado como algo que nunca deixaram de realizar, mas não se pode afirmar que a carreira tenha assumido uma posição central em suas vidas, concorrendo com o casamento ou com a maternidade. Embora muitas tenham trabalhado desde solteiras, após o casamento, em quase todas as épocas, este trabalho parecia apenas uma complementação da renda familiar ou ainda como fonte para os próprios gastos. Os discursos mudavam nos anos 50 – quando algumas revistas femininas e artigos voltados às mulheres já argumentavam a favor do trabalho feminino – e a memória conserva alguns de seus traços, mantendo inalterados alguns aspectos principais. Entre os homens, esta questão não é sequer discutida. Para o universo masculino, o trabalho, a provisão, o sustento da família e a honradez provenientes disso mostram-se como

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Idem, Op. cit. 380

permanências para a constituição de suas identidades há vários séculos. Para as mulheres destas gerações, as mudanças têm a ver com suas trajetória e mesmo suas idades. “eu perguntava pra minha mãe como é que fazia pra poder ter irmãos... ela falava que eu tinha que aprender a escrever, escrever uma carta, não me lembro se era pra Jesus, Nossa Senhora, ou Papai Noel, mas que eu tinha que escrever uma carta pedindo um irmão ou uma irmã e deixar no carrinho de chá do corredor lá em cima... e eu com esse negócio de ser analfabeta, de não saber escrever e não saber ler e querer irmão, quer dizer, era o meu estímulo pra escrever e pra ler... meu avô Leôncio Correa, poeta paranaense morava com a gente, meu avô e minha avó, moravam... a casa era grande, com a gente e eu vivia cercada de livros... e meu irmão, metido a inteligente, muito inteligente, hoje ele é PhD em literatura latinoamericana, porque lá em casa ele é o inteligente da família e eu era a moleca burra... Então isso foi muito bom pois fez eu ser bastante estudiosa, que eu não queria ser tão retardada; família tão inteligente, minha mãe fez três faculdades, meu pai era super inteligente, trabalhava no Banco do Brasil e era campeão de xadrez, foi campeão internacional de bridge. (...) Uma vez, eu roubei uma cartilha e, eu me lembro que eu sempre tive chave na porta, eu trancava a chave, eu botava um pano assim pra não ver que tinha luz, pra não ver que tinha abajur... e ficava lá com a perninha firme, com aquela cartilha, então tinha um barco, letra ‘B’ tinha uma bola e eu aprendi a ler... só que tem que aquilo era um crime... eu não podia estar no primeiro ano, eu não podia ter roubado a cartilha, eu não podia aprender a ler... nem podia escrever a tal carta...(...) Então pra mim a cultura foi uma coisa que eu adquiri por iniciativa própria, uma coisa proibida... a gente aprende na psicanálise que o proibido é o desejado, mas eu não podia contar pra ninguém, só as professoras lá que não sabiam o que fazer comigo de tanto que eu fugia pro primeiro ano sem poder. (...)Eu entrei pra faculdade obrigada pelo meu irmão, eu não queria não; eu queria fazer, depois de muito pensar, desde os 15 anos eu comecei a pensar na profissão que eu queria seguir, que eu queria uma coisa que eu pudesse ser boa, que eu gostasse, que eu tivesse independência financeira e que eu pudesse ter filhos sem precisar casar, ou se eu fosse casar e tivesse filhos e o marido fosse embora, que eu pudesse, porque minha paixão era ter filhos; então eu ficava quebrando a cabeça... pra que que eu servia? do que que eu gostava ? eu servia pra que?” (Gloria)

Nas memórias de Gloria, o trabalho, a carreira e os estudos têm papel central e sua trajetória é estimulada por tudo isso, já dentro do núcleo familiar, gerando, muitas vezes, até um certo desconforto, que a memorialista deixa transparecer em alguns momentos, mas que, sem dúvida foi fundante para a sua experiência e sua constituição como mulher-sujeito. Lembranças que fazem refletir sobre o fato de ela pertencer a uma geração de mulheres em que a independência financeira e também profissional é valorizada, sendo que os atributos intelectuais e racionais deixavam de ser prerrogativa exclusivamente masculina. Memórias que informam também sobre a importância que todo este processo assume hoje para ela, que trabalha, vive só e tem intensa atividade profissional, intelectual e artística. Entre as mulheres de uma geração mais jovens isto é ainda mais valorizado. Isto porque elas trabalhavam antes de se casar, moravam fora da casa dos pais e se sustentavam sozinhas. Com o casamento, assumiam posições de maior equilíbrio com seus pares, no que tange à carreira, à vida financeira e à divisão das tarefas domésticas. Isso é muito valorizado em suas memórias, sublinhando o pioneirismo de suas ações, colocadas como protagonistas destas séries 381

de mudanças ocorridas nos papéis de cada gênero. Outras ainda fazem perceber que, embora realmente pioneiras em muitos aspectos, só enfrentaram a vida profissional, dedicando-se de fato, após se separarem ou se divorciarem, quando o trabalho passou a ser uma forma de suprir as necessidades financeiras, como também de promover suas descobertas como sujeitos, seres independentes que têm na carreira um valor. Segundo Lipovetsky67, os anos 50 são o último momento em que a sociedade sustentou um discurso da sagração da mulher no lar, no ambiente privado e doméstico, que seria seu universo “natural”. Se, por um lado, isso confinou desde o início da modernidade as mulheres a este espaço, compondo uma diferenciação máxima entre os sexos na contracorrente dos ideais modernos ocidentais de igualdade, por outro lado também enobreceu as funções destinadas à mulher, consagrando-a como “rainha do lar”, senhora absoluta deste espaço, e resultou na celebração das funções femininas que possuem reconhecimento social por serem realizadas no local em que a vida familiar era organizada: a criação dos filhos e o cuidado com o marido. Desse modo, estava se esboçando nesta época uma nova imagem da mulher do lar como uma mulher moderna, como se percebe por meio da publicidade de várias revistas femininas e de variedades, ao recomendar que esta rainha do lar moderna deveria ter aparelhos domésticos que a auxiliassem no trabalho, sobrando-lhe tempo para cuidar da aparência, elemento cada vez mais valorizado como produto a ser conquistado individualmente. Entra em cena uma outra mulher, a que consome e que se rende aos milagres possibilitados pelo conforto da vida moderna. Além do desenvolvimento das atividades econômicas que levaram as mulheres a saír do lar e irem para o mercado de trabalho, aconteceram também mudanças na maneira como a sociedade passou a encarar o assalariamento feminino, até aí, visto como algo errado. O impulso e desenvolvimento de uma sociedade de consumo estão intimamente relacionados a esta nova imagem do trabalho feminino, quando para se ter acesso ao mundo das necessidades e novidades fabricadas torna-se necessário rendimentos familiares suplementares. Esta mesma sociedade de consumo, lançando socialmente valores como felicidade, amor, sexualidade e lazer contrapunhase à própria idéia da mulher, que tem na família sua fonte única de realização, levando a uma paulatina valorização do individualismo, como um desejo de viver para si mesma, ter “sua

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Gilles LIPOVETSKY, A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. 382

própria vida”, celebrando a liberdade e o bem-estar individual.68 Estas foram mudanças que aconteceram gradativamente. Por mais que este ideário do trabalho feminino já começasse a circular socialmente, vociferando a favor de uma independência ou autonomia da mulher, as tais reuniões boêmias/musicais promovidas por Angela Bôscoli, de fato, não se encontravam entre as normas reservadas às que eram casadas e mães. Ela é apresentada nas memórias do filho como uma mulher desquitada que freqüentava a noite e a boêmia, entregando-se ao jogo e ao álcool. Tudo isso a colocava como alguém que fugia aos padrões que, naquele momento, eram reservados às senhoras casadas. Se Ângela não pode ser um exemplo ideal em busca de um entendimento sobre um conjunto maior de ouvintes daquele momento, ela não pode também ser ignorada. Sua trajetória ressalta aspectos relacionados a mulheres que começam a fazer parte do ambiente musical – mesmo que a primeira vista esta participação seja apenas contemplativa –, onde, anos mais tarde, começariam a despontar como cantoras. No entanto, esta participação de Ângela não pode ser encarada como apenas de assistência. O fato de promover estas reuniões em sua casa, por um lado, revela sua inserção neste meio e seu conhecimento das pessoas ligadas a ele, enquanto que, por outro lado, ressalta aspectos de sua experiência como ouvinte musical daquele momento, uma experiência em diálogo, (re)elaborando questões ali propostas. Talvez seja necessário compreender como estavam vivendo as mulheres da década de 50 entre os ideais de senhora casada e esta transgressão tão declarada de Angela Bôscoli. Como estavam as ouvintes anônimas – que não estavam totalmente alheias aos assuntos musicais e artísticos do momento, mas que também não transgrediam da mesma forma que Angela Bôscoli – escutando, apreciando, enfim, dando sentido à produção musical deste período pré-Bossa Nova. “E eu me lembro, do que eu me lembro na minha vida em relação à Bossa Nova, é que eu me casei em 58, né? Então eu tava grávida do primeiro filho e havia a Copa do Mundo ao mesmo tempo, a da Suécia. E nos viemos aos domingos pra casa do meu sogro, as irmãs do meu marido. E um dos irmãos do meu marido, esse que hoje em dia me acompanha, toca piano nos meus shows de música francesa, já era pianista, estudava piano, era ligadíssimo na música, tava encantado com a descoberta da Bossa Nova, João Gilberto, da modificação do acompanhamento do violão. E botava os discos pra gente ouvir. E eu dizia: “Pô, bacana”, gostava. Já comecei a comprar discos, aprender as letras das músicas ao ouvir, principalmente, Tom e Vinícius, Elis Regina, Edu Lobo, Carlinhos Lira. Assistimos a ‘Pobre Menina Rica’, enfim, sempre fomos muito ligados a essa coisa de ir a show e ver e tal. Porque eu curtia muito e Cícero também gosta muito de música.” (Laura)

68

Idem. 383

Laura e o marido, Cícero, dizem que freqüentaram muitos shows da Bossa Nova, no Beco das Garrafas, e em algumas boates de São Paulo. Laura conta que sempre gostou de música – tanto que hoje, aos 69 anos canta, faz shows, grava CDs – e que estava sempre presente no ambiente musical. No entanto, isto era feito junto com o marido, o que a distancia da trajetória de Angela Bôscoli. Laura conta ainda que gostava de ouvir as canções da época de ouro do rádio, gostando de cantores como Emilinha, Marlene e Dalva de Oliveira. Esta época é marcada como sendo a “era de ouro” do rádio no Brasil. Dentro de um contexto mais amplo da radiofonia comercial do período, apareceram e se consolidaram revistas especializadas em música, programas de auditório e os fãs-clubes que davam destaque para ídolos como Dalva de Oliveira, Cauby Peixoto e Marlene – só para citar alguns –, além de fabricar outros. Neste processo de veiculação de signos lançados no social – com os cantores, suas vidas pessoais, o que implicava em padrões de comportamentos, de formas de agir, pensar, e ainda num modelo de desenvolvimento e “modernidade” que se queria no momento – estavam presentes elementos e normas sociais que circulavam socialmente. Para longe de querer estabelecer aqui uma idéia de que estas fãs constituíam uma massa amorfa e passiva, receptáculo dos símbolos impostos pela indústria cultural, pode-se, em vez disso, pensar que elas estavam dialogando com os padrões generalizados por este meio social, uma vez que, no contato com estes ídolos ou na tentativa de conseguir chegar perto deles por meio dos fãs-clubes e das conversas cotidianas sobre sua vida e carreira, ou ainda via leitura de revistas sobre o assunto, estas ouvintes estavam interagindo com valores, símbolos, normas e subjetividades lançadas no social. Esta veiculação de imaginários sociais está dentro de um contexto social, integrando o próprio meio em que foi produzido, cujos padrões não são pura e simplesmente impostos, existindo sempre a possibilidade de articulação de formas alternativas de vida no contato com os símbolos. São as “maneiras de fazer”, os “estilos de ação”, as “táticas”69 dos consumidores, que aqui procuramos considerar para uma compreensão e interpretação das experiências destas ouvintes da “era do rádio” e também da Bossa Nova. “As garotas adoram rádio. Com um apurado espírito crítico, amantes que são da música, do teatro, do samba e de outras artes, elas têm as suas preferências que a gente pode discutir, mas que tem que respeitar. Porque essas preferências são ditadas quase sempre pela maior sinceridade. Se há sinceridade nisso ! ... (...) “Cantor que a gente idolatra é esse Frank Sinatra que chega a fazer chorar (...) Sou louca por um

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Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano - 1. Artes de fazer, passim. 384

sambinha, também adoro uma valsinha” (...) Os gostos vários diferem, mas no fim o que elas querem é 70 despertar atenções, pois se o rádio elas adoram inda muito mais namoram os artistas bonitões.”

Esta era uma coluna fixa da revista O Cruzeiro, na década de 50, em que o autor – A. Ladino – escrevia em forma de verso, satirizando a respeito das “Garotas”, que era o título da seção. Aqui, ele fala que apesar de elas gostarem de rádio, gostam mesmo é dos “artistas bonitões”, com os quais querem namorar; elas até gostam de música, teatro e outras artes, mas no fundo só querem despertar atenções. Pode-se compreender que este texto busca construir a ouvinte musical como alguém fútil, cujas preferências artísticas são um mero passatempo de moças jovens. O autor duvida: “se é que pode [-se encontrar] sinceridade nisso”. O quadro aqui montado coloca o espaço musical dos programas de auditório como um lugar de encontro de fãclubes formados, principalmente, por mulheres. Às jovens, ainda era dado um certo direito de ser tiete ou fã, mas isso não valia para as mulheres mais velhas, casadas, mães de família, que eram desqualificadas quando vistas nestes ambientes71. As mulheres eram consideradas fãs incontroláveis, que gritavam por seus ídolos, numa alusão a idéia de “macaca de auditório”. Um olhar masculino construindo o feminino como sentimental, instintivo, mais propício para o lúdico e o lazer, sem que se levasse a música ou a arte a sério. Um dos homens indicados para ser entrevistado por esta pesquisa recusou o convite. O motivo alegado foi o fato de que não saberia contribuir em nada para a pesquisa, não tinha boa memória, não guardava muito bem os nomes, datas, canções que deveriam, a seu ver, interessar à pesquisadora. Ele se dispôs a indicar uma prima, esta sim, segundo ele, uma tiete que tinha mais domínio sobre o assunto. Com essa postura, ele revelava um olhar para o feminino como depositário das características de fã, como alguém que se interessava muito pela Bossa Nova, tendo guardado todos os acontecimentos na memória. Argumentar que as mulheres são naturalmente mais fãs e “mais ligadas nisso tudo”; é como acreditar que aos homens não é dada a característica da escuta atenta, da escuta de uma musicalidade que gerava significados e emoções capazes de serem registradas na memória afetiva.

70

“As garotas gostam de rádio”, Revista O Cruzeiro, 09/08/52, p. 84-5. “As meninas ardentes e sua vontade de ver seu ídolo (...) [traziam] gritaria e desordem [o que provocou] a expulsão de uma senhora (de seus 40 anos) de um programa de auditório por que estava fazendo muita bagunça”.Revista do Rádio, 09/06/53, nº 196. Citado em Marta AVANCINI, Marlene e Emilinha nas ondas do rádio: padrões de vida e formas de sensibilidade no Brasil. História e Perspectiva, n.3. p.113-135, 1990. 71

385

Porém, em outro trecho das memórias de Bôscoli, pode-se perceber diferenças frente à estas construções femininas da época. “As mocinhas dos anos 50 não eram tão chegadas aos atletas e garotões fortes como as de hoje; preferiam os intelectuais. Era meio moda. Freqüentavam o Amarelinho, o Vermelhinho e o restaurante no terraço da ABI no centro do Rio e, em Copacabana, o Maxim’s, na beira da praia. Minha irmã Lila era uma delas. Ela 72 foi casada com Vinícius de Moraes.”

Se este trecho de suas memórias não pode ser tomado em termos absolutos, uma vez que aqui está uma tentativa de construção de um ideal dos anos 50 como melhores do que os tempos atuais, onde se preservaria entre algumas moças um possível gosto mais refinado e intelectual na escolha dos namorados, por outro lado, a partir de suas lembranças, são ressaltados elementos que possibilitam indícios do cotidiano destas jovens, como sua irmã Lila, garota da zona sul carioca. No movimento da memória de Bôscoli, a tentativa por descrevê-la e a algumas de suas amigas como diferentes do padrão das garotas da sua época, por gostarem dos intelectuais, artistas e boêmios, acaba por, involuntariamente, levantar aspectos das normas prescritas às moças da década de 50. “o preço de uma mulher virtuosa é muito mais alto do que de muitos rubis (...) ajuda economicamente seu marido, dá-lhe conselhos firmes nos seus negócios, dá à família o exemplo do trabalho e ajuda de tal forma 73 o marido (...) não se pretende que a mulher não tenha outra atividade fora do lar.”

Pode-se ver que a questão da inserção das mulheres no chamado “mundo masculino” do conhecimento e do estudo já ocorria naquele momento, o que sugere que Lila não constituía-se completamente numa fuga aos padrões que valorizava uma mulher sábia e culta, que sabia dar conselhos ao marido. Essa parecia ser uma carga a mais entre os deveres das boas esposas. No entanto, pode-se perceber que mesmo esta conquista feminina, mostrava-se também relativizada nos jornais e revistas, em que os discursos da época, procurando articular às mudanças advindas com uma maior emancipação das mulheres, difundiam os padrões femininos. “Aí é que vai o maior engano dos “emancipadores”, porque não se pretende que a mulher não tenha outra atividade fora da família, mas que faça desta o objeto primordial de sua vida (....) cientificamente está provado que uma mulher só atinge a sua plena capacidade emotiva e espiritual como esposa e como mãe. (...) Virá então a pergunta: ‘Deve uma mulher sacrificar uma carreira e casar-se com um homem às vezes

72 73

Ronaldo BÔSCOLI, Op. cit., p. 95. “O rei Salomão e as mulheres”, na seção “Da mulher para a mulher”, Revista O Cruzeiro, 01/05/54. p.47. 386

menos talentoso do que ela ?’ (...) A resposta é sim. Quando não é possível conciliar a carreira e a vida 74 conjugal, é sempre preferível esta àquela.”

O conselho é claro: entre carreira e casamento, deve-se preferir o último, pois é aí que a mulher realiza-se verdadeiramente. Da mesma forma, em muitas colunas femininas, percebe-se que se procura limitar o estudo e uma possível emancipação da mulher, afirmando que ela pode e, até deve estudar, ser culta, mas estes elementos devem servir como um atrativo a mais na realização do ideal da moça da época que seria o de se casar com o homem certo. Não só para este fim, mas também para a vida de casada, a cultura deveria servir à mulher como um auxílio para a manutenção do lar e a educação dos filhos, elementos que ressaltam o papel destinado a elas. Assim, se Lila Bôscoli apresenta em sua trajetória aspectos que a enquadram dentro do padrão para as moças da época, procurando se relacionar ou namorar com os homens equilibrados, mais velhos, responsáveis, vê-se também que a isto articulam-se relacionamentos com intelectuais que são boêmios, o que já se mostra como uma reinvenção dos padrões exigidos. Na forma como Bôscoli revê sua irmã Lila em suas memórias, é possível perceber uma tentativa de construção de uma moça que, para ele, seria o ideal dos anos 50. Em algumas canções da Bossa Nova, faz-se presente a construção do ouvinte ideal para estas canções que se propunham novas. “Se você disser Que eu desafino, amor Saiba que isso em mim Provoca imensa dor Só privilegiados têm ouvido Igual ao seu Eu possuo apenas o que Deus me deu Se você insiste em classificar Meu comportamento de anti-musical Eu mesmo mentindo devo argumentar Que isso é Bossa Nova Isso é muito natural O que você não sabe Nem sequer pressente É que os desafinados Também têm um coração Fotografei você na minha Rolleyflex Revelou-se a sua enorme ingratidão Só não poderá Falar assim do meu amor Pois ele é o maior Que você pode encontrar, viu 74

Idem. 387

Você com a sua música Esqueceu o principal Que no peito dos desafinados Também bate um coração”

(Desafinado) Segundo Brasil Brito, esta canção, composta em 1959 por Newton Mendonça e Tom Jobim, contém elementos que apontam para uma afinidade entre as letras da Bossa Nova e a poesia concreta, em que se valoriza vocábulos, numa busca por essencializar os textos. Esta canção, de acordo com Brito, teve sua letra concebida em relação a sua composição musical, mas identificada com ela, “num processo semelhante àquele que os ‘poetas concretos’ definiram como ‘isomorfismo’ (conflito fundo-forma em busca de identificação)”75. Letra e música, assim, caminham juntas, autodefinindo-se, criticando-se e se referendando reciprocamente. A mulher construída, tratada apenas como “amor”, é identificada como alguém sensível, pois entende de música; como severa em suas críticas, o que a torna ingrata, no momento em que não reconhece e recusa o amor demonstrado pelo autor. Esta mulher é também – característica que os compositores criticam – excessivamente racional (“você com sua música esqueceu o principal”). Vê-se aqui uma imagem da mulher construída como alguém com maior igualdade frente aos homens, na medida em que é colocada como sujeito cujas opiniões e impressões são levadas em consideração (“se você disser que eu desafino, amor, saiba que isso em mim provoca imensa dor”). Com intervalos melódicos complicados, elaborados e cheios de saltos, a música soava estranha, como muitos ouvintes rememoram, mas mesmo assim, a escuta registrou e deulhe significação, soando como representante desta nova sociedade em que as notas dissonantes e difíceis de se acostumar, aliavam-se a um falar lírico, próximo, direto e sem rodeios, a uma mulher que não queria ouvir a novidade e que não se deixava tomar pelos sons, sendo vista como ingrata, e presa à tradição. Algumas das moças que viviam no ambiente das reuniões musicais nos apartamentos dos jovens, possuíam alguma formação musical, mesmo que incipiente, uma vez que essa formação era importante na educação dos filhos. Muitas aprendiam ballet clássico ou piano ou ainda acordeão. Wanda Sá e Nara Leão, por exemplo faziam aulas de violão, com ênfase sobre os acordes dissonantes, as harmonias elaboradas e a nova “batida” do violão. A Bossa Nova contribuiu para a constituição do hábito de se aprender este outro instrumento musical, exigindo 75

Brasil Rocha BRITO, Bossa Nova. In: Augusto de CAMPOS, Balanço da Bossa e outras bossas: antologia crítica da moderna música popular brasileira, p. 38. 388

uma ouvinte intelectualizada, com bom gosto e conhecimento musical, como se vê na canção Desafinado. Uma canção com uma estruturação harmônica muito elaborada, com acordes dissonantes, e mudanças de tom, melodia que alterna notas graves e agudas, enfim, uma canção difícil de ser cantada e escutada. A letra, por sua vez, sugere uma mulher que tem ouvido apurado, julgando-o “desafinado” e “anti-musical”. Há uma ouvinte visada pelos compositores, nas senhas postas pela canção, que aponta para uma ouvinte ideal, o que nem sempre efetiva-se na escuta pela própria característica polissêmica das obras. A canção aponta para ambigüidades, uma vez que a arte e seu discurso, não tendo um compromisso de aderência ao real, como um retrato fiel apontando para um real que “poderia ser”, um vir a ser, um devir. No entanto, estão também presentes aspectos do normativo daquele momento, fazendo-o de maneira a diluir-se com aspectos que apontam para uma superação destes. Ao construir uma mulher “ingrata” que rejeita o amor do “desafinado”, ressaltando características destas moças “fúteis” que ouviam rádio, só interessando-se por cantores famosos e com grande voz, esta canção articula nesta mesma personagem a mulher inteligente, que no entanto é desqualificada (“você com sua música esqueceu o principal”). Nesse sentido, é que vai-se tentando compreender a escuta de uma canção como Desafinado, por exemplo, por mulheres que conviviam com os padrões que se queria para as moças jovens ou para as casadas, que deveriam estudar e trabalhar, mas colocar o casamento e o papel de esposa-mãe acima de tudo, sendo “rainhas do lar modernas”, “suaves ditadoras”, mulheres de personalidade, mas que sabiam agradar o marido. Se, como vimos, há uma certa construção da ouvinte da era do rádio como “macaca de auditório”, o que é uma construção ideal, aqui na Bossa Nova surge a “musa inspiradora” que, também sendo ideal, encobre e mascara a experiência das mulheres que ouviam estas músicas. Neste meio caminho entre a “musa” e a “macaca de auditório”, estão alguns elementos para a interpretação do cotidiano destas ouvintes. Mulheres que nos anos 50 e 60 já estudavam e penetravam cada vez mais no mercado de trabalho, compondo o seu cotidiano entre o que era lançado pelos discursos que regravam o papel das mulheres e suas múltiplas formas de improvisações, elaborando um dia-a-dia marcado por reelaborações e rearticulações dos papéis para elas prescritos. Na escuta destas canções e nos sentidos dados a estas é que se pode encontrar este meio caminho, esta zona de interdito, essas “maneiras de fazer [que] constituem as mil práticas pelas

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quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas de produção sócio-cultural. (...) [Pois] se trata de distinguir as operações quase microbianas que proliferam no seio das estruturas tecnocráticas e alteram o seu funcionamento por uma multiplicidade de táticas articuladas sobre os detalhes do cotidiano (...) não se trata mais de precisar como a violência da ordem transforma-se em tecnologia disciplinar, mas de exumar as formas sub-reptícias que são assumidas pela criatividade dispersa, tática e bricoladora dos grupos ou dos indivíduos”.76 Os sentidos da Bossa Nova foram tecidos na escuta das músicas, no cotidiano de homens e mulheres que, múltiplo e ambíguo, permite compreender e interpretar aspectos da experiência destes sujeitos, seus feitos e emoções, reconstruindo suas experiências de ouvintes musicais de ontem e de hoje. ::: ::: ::: Gilles Lipovetsky enfatiza que, num mundo comandado pela mobilidade permanente e pela orientação para o futuro, tornou-se paradoxalmente essencial refletir sobre as invariâncias do feminino e do masculino considerando-o como o que confere sentido aos novos papéis atribuídos a cada gênero. No caso das mulheres, segundo o autor, enquanto várias atribuições do feminino são cada vez mais questionadas, todo um conjunto de funções tradicionais perduram por sua própria capacidade de se harmonizar ou conviver em tensão com os novos referenciais da autonomia individual – tônica de nosso tempo. O que se mantém do passado não é inexpressivo, pelo contrário, traduzido para outras formas que, dinâmicas e com novos sentidos, colaboram para a autonomia subjetiva de ambos os sexos. Não por acaso, a despeito de tantas mudanças ocorridas nos papéis sociais femininos, as mulheres continuam tendo relações privilegiadas com o que se refere ao doméstico, privado, sentimental e estético. Segundo o filósofo, isso não se deve apenas a um peso social ou a uma ordem normativa, mas também porque estas características femininas não entram em conflito com os princípios de autonomia e livre posse de si, funcionando como vetores de identidade.77 Estas

mudanças

promoveram também, na busca pela realização do eu individual, formas de relacionamento homem/mulher que já não se querem pautar pelas regras e convenções sociais. Não há mais a lógica do amor romântico, em que se conservam as funções atribuídas aos homens e mulheres.

76 77

Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano - 1. Artes de fazer, p. 41. Gilles LIPOVETSKY, Op.cit.. 390

Vai-se estabelecendo uma situação descrita por Giddens como “relacionamento puro”, no qual entra-se numa relação “apenas pela própria relação, pelo que pode ser derivado por cada pessoa da manutenção de uma associação com outra, e que só continua enquanto ambas as partes considerarem que extraem dela satisfações suficientes, para cada uma individualmente, para nela permanecerem(...)O relacionamento puro é parte de uma reestruturação genérica da intimidade. (...) A abertura de um em relação ao outro, condição para o que chamaremos de ‘amor confluente’, é de algum modo o oposto da identificação projetiva [existente no amor romântico]. O amor confluente presume igualdade na doação e no recebimento emocionais (...) introduz a ‘ars erotica’ no cerne do relacionamento conjugal e transforma a realização do prazer recíproco em um elemento-chave na manutenção ou dissolução do relacionamento (...) O amor confluente desenvolve-se como um ideal em uma sociedade onde quase todos têm a oportunidade de tornarem-se sexualmente realizados, e o que o mantém é a aceitação por parte de cada um dos parceiros de 78 que cada um obtenha da relação benefício suficiente que justifique a continuidade.”

Isso, é claro, não impede – mesmo nos que experimentam este tipo de relação – a existência de resquícios ou resíduos de elementos do amor romântico. Ainda persiste a busca da “pessoa especial” ou do “relacionamento especial”, bem como uma vontade em “amar o amor” –, como coloca Barthes nos seus Fragmentos de um discurso amoroso –, a procurar o amor ideal em grande parte da existência. O que se percebe são os papéis antigos combinando-se de maneira inédita e dinâmica com os papéis modernos, reconciliando o antigo com o novo. Os homens ainda permanecem prioritariamente associados aos papéis públicos e instrumentais e a mulher aos papéis privados, estéticos, afetivos. Embora diferenças e mudanças mais radicais estejam se delineando, o que se percebe na atualidade é ainda a prevalência desta divisão de esferas. As identidades sexuais e de gênero não parecem se desfazer, ao contrário, elas se recompõem de um modo em que a alteridade masculino/feminino não se acha arruinada pela marcha da igualdade, ainda que as distâncias diferenciais e referenciais tornem-se apenas tênues, pelo menos na aparência. Retomando Maria Rita Kehl, as formas mais amenas ou mais extravagantes de feminismo, com suas quebras de barreiras promovendo novas identificações entre homens e mulheres, vêm reduzindo a distância entre os dois sexos ao limite de uma mínima diferença.79 Tudo aquilo que a promoção dos valores femininos apontava já nos anos 50 era o devir dos movimentos feministas do fim da década de 60 e da década de 70, momento em que, da feminilidade valorizada, partiu-

78 79

Anthony GIDDENS, A transformação da intimidade, p.68-69 e 72-74. Maria Rita KEHL, Op.cit.. 391

se para um feminismo que tentava combater estes mesmos preceitos femininos, encarando-os como alienantes e rebaixadores. A ideologia feminista passou a ignorar ou recusar a feminilidade – que se dedicava mais à vida privada – valorizando exclusivamente a vida pública. Um movimento de emancipação que muitas vezes vinha confirmar, de acordo com Morin, o “esquema androidiano”80, como se os valores masculinos fossem a plenitude dos valores humanos. Tudo isso, ao aliar o movimento das mulheres com o movimento das etnias colonizadas, das classes exploradas, acabou por esquecer ou deixar de lado a especificidade de uma originalidade “biossocial”81 que caracteriza os gêneros. Dito de outro modo, o autor argumenta que o problema estaria em uma “zona de sombra bioantropossociológica” onde se situa o marco entre o humano e o biológico, as diferenças entre homens e mulheres; maior até que as diferenças entre as raças ou as classes. Uma diferença, porém, que não pode ser encarada como pertencendo à mesma ordem daquela existente entre patrões e proletários, senhores e escravos, pois há uma relação absolutamente original e irredutível que se estabelece entre homem e mulher, proporcionada pelo desejo, pelo sexo, pela coabitação e pela intimidade, muito em função do desenvolvimento histórico do amor romântico. Assim, é que Morin propõe, para pensar as mulheres, uma nova noção: a de “classe biossocial”, que une os fatores biológicos, socioculturais e os traços históricos novos e emergentes.82 Entendidos desta forma, homens e mulheres poderiam caminhar pela trajetória do desdobramento da totalidade abrangente, refletindo uma sociedade configurada por uma nova coreografia para a eterna dança das polaridades.83 A brecha possível parece ser, assim, a osmose entre o feminismo e a feminilidade, entre a busca de igualdade e a preservação das identidades, o estabelecimento de uma igualdade na diferença. Esta nova forma de atividade feminina contém os grãos que germinariam relações de complementareidade entre feminino e masculino, em que ambos se insuflariam e se irrigariam de seu

oposto.

80

Edgar MORIN, Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo II – Necrose, p. 156. Idem, passim. 82 Ibidem. 83 Monika von KOSS, Feminino + Masculino: uma nova coreografia para a eterna dança das polaridades. 81

392

Considerações Finais “Nenhuma época transmite à outra a sua sensibilidade; transmite-lhe apenas a inteligência que teve dessa sensibilidade. Pela emoção somos nós; pela inteligência somos alheios. A inteligência dispersa-nos; por isso é através do que nos dispersa que nós sobrevivemos. Cada época entrega às seguintes apenas aquilo que não foi.”

Fernando Pessoa Após este percurso de reflexões, chega o momento de elaborar algumas considerações finais com o intuito de apontar algumas conclusões, ainda que parciais, alinhavando os fios de interpretação que teceram este trabalho. Em primeiro lugar, é importante dizer que esta tese teve como objetivo captar e interpretar a escuta da Bossa Nova a partir das memórias de ouvintes de um tempo e de um espaço específico: o Rio de Janeiro nos anos 50 e 60. Esta proposta, no entanto, foi apenas a porta de entrada para a compreensão de algo mais amplo e mais profundo: as experiências de escuta e seus significados construídos a partir de uma articulação que considera a música inserida no cotidiano, parte das experiências de jovens, homens e mulheres habitantes desta cidade. Nesse sentido, espero que este trabalho tenha servido como uma contribuição, mesmo que pequena, para uma história da escuta. A memória, matéria-prima principal desta reflexão, permitiu compreender o tempo e o modo como ele é percebido. Memórias que muitas vezes cristalizavam fatos, acontecimentos e sentimentos daquele momento passado, mas que num jogo entre aspectos voluntários e involuntários – com seus silêncios, omissões e esquecimentos – trouxe à tona também elementos do presente e do passado da sociedade daqueles que recordam, tornando complexos os fatos narrados. Memória que se mostrou viva e rica, vinculando diferentes temporalidades, repleta de nuances das sensibilidades de uma época aberta à interpretação e explicitando um tempo denso de significações. Memórias – assim como as canções – evocadoras de imagens e sonoridades, de olhares e de escutas, maneiras de perceber o mundo, enfim, possibilitando conhecer um pouco de uma sociedade que passava por profundas transformações das formas de sensibilidade. Uma escuta – e o que dela foi guardado na memória – perfazendo-se entre diferentes estímulos articulados de maneira complexa pelos cinco sentidos que misturam em nosso corpo e na nossa percepção, a

393

vida que transcorre entre todos1. Lembranças de escutas que estão permeadas pelas maneiras como se experimentam as formas de sentir o mundo hoje, onde a imagem parece tomar dianteira, mas onde a oralidade se faz também muito presente. A Bossa Nova captava estas sensibilidades e as traduzia para suas canções registrando a modernidade que se vivia, redimensionando a escuta numa sociedade que apontava cada vez mais para a visualidade. Essas canções captavam também um tempo e uma vida acelerada, experimentada no turbilhão de uma metrópole que já não era tão calma e harmoniosa como tantas vezes a memória construída sobre aquela época insiste em afirmar. Falar das belezas naturais da cidade articuladas ao ritmo cadenciado da música e das formas mais sutis de cantar e tocar, pode ser visto como uma tentativa de chamar a atenção para os elementos que se esvaíam numa cidade em rápida transformação. Uma tentativa de estancar a aceleração do tempo, convidando a parar diante do mar, das montanhas e da garota que vai à praia, convidando ao encontro numa cidade que estava prestes a deixar de existir. Foi instigante perceber como as visões mais unívocas sobre a Bossa Nova - e os anos 50 e 60 - persistem ainda hoje, colocando-a como sinônimo de um tempo ideal. Perceber o passado como uma época melhor não é exclusividade daqueles que se recordam da Bossa Nova e da cidade do Rio de Janeiro da década de 50 e 60, mas chama a atenção a pungência, entre os cariocas, de uma visão nostálgica do mundo. Isto se torna ainda mais digno de atenção e reflexão ao se considerar a proximidade e a presença da natureza na vida cotidiana das pessoas de um modo muito mais forte do que em outras cidades. Deve-se considerar, do mesmo modo, um passado que se conserva fisicamente em prédios e bairros e também no próprio hábito de cultuálo. Mas também o sentimento de perda está presente na Bossa Nova: a perda de um tempo mais lento, da escuta como o sentido mais cultivado, a perda de uma cidade que já não existe. Um tempo em que o novo passa a ser valorizado cada vez mais em detrimento do antigo, tendo como meios de expressão a imprensa e as canções, em que valores jovens tomam a frente nos discursos e nos imaginários. Tempo também de perda de referenciais fixos, determinados e seguros das 1

Michel SERRES, Os cinco sentidos: filosofia dos corpos misturados 1.

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identidades de gênero, aquilo que pertencia ao universo masculino e feminino, diluindo as fronteiras entre os papéis de homens e mulheres na sociedade. Compreender a Bossa Nova desta maneira, como esta espécie de chave que permite entrar e entrever, pela sua escuta, questões mais amplas sobre aquela sociedade – e não apenas como a música representante dos “anos dourados” hegemonicamente guardados na memória histórica –, permite reconhecê-la como uma expressão das sensibilidades de um tempo, uma espécie de antena das mudanças em processo naquele momento, apontando para o devir de uma série de elementos que se efetivariam mais tarde. Mas este é o momento também de reconhecer os limites desta pesquisa. A necessidade de recortar e pôr fim a um trabalho que ia se abrindo e se desdobrando a cada nova leitura e a cada nova descoberta, fez com que questões também importantes fossem deixadas em segundo plano – sem ser relegadas como menores –, sendo apenas apontadas sem um desenvolvimento mais profundo. Entre elas, está a questão da linguagem musical. Embora tenha sido pensada e levada em consideração nas reflexões, o reconhecimento de limites em relação ao domínio do assunto fez com que estas análises se apoiassem em outros autores, impossibilitando maiores vôos na análise de melodias, harmonias, ritmos e como estes elementos eram operados na escuta das canções. Um tema que surgiu nas leituras, na pesquisa e na própria reflexão sobre as memórias foi a necessidade de compreender a escuta em termos mais biológicos ou neurológicos, considerando suas interfaces com o olhar e com o tato. Essa postura exigiu uma aproximação das Ciências Cognitivas, decisão que se mostrou fecunda, apesar da impossibilidade de uma discussão mais aprofundada, o que desviaria os caminhos desta tese. Uma outra questão que mereceria maior destaque e aprofundamento é a própria noção de sonoridade e seus aspectos técnicos. Uma reflexão mais detida na questão das tecnologias e sua utilização nas músicas permitiria uma melhor compreensão de como a noção de fidelidade sonora possui também um cunho social e cultural, tendo implicações tanto na produção musical quanto nas maneiras de escutar. Na década de 50 e, no caso do Brasil, mais precisamente na de 60, é quando se inicia a era da alta-fidelidade (hi-fi) nas gravações, quando se busca por um som limpo de chiados e de ruídos de fundo. Um som mais realista passa a ser a meta da indústria fonográfica. Como argumenta Iazzetta2, refletir sobre a fidelidade sonora leva a pensar na própria historicidade do termo “fidelidade”, pois em cada época o padrão de escuta teria como sinônimo 2

Fernando IAZZETTA, Os sons do silício: corpos e máquinas fazendo música.

395

de qualidade uma reprodução sonora diferente. Com isso, o centro de referência deslocou-se da performance ao vivo – vista como mais fidedigna - para o significado desta performance, conferindo importância para a compreensão do modo como as formas de gravação das canções se utilizam da incorporação e ampliação da tecnologia no processo de produção do som, marcando diferenças também no padrão de escuta e no que passa a ser considerado ou não de qualidade. Estes mesmos limites do trabalho colocam-se como possibilidades abertas para reflexões futuras, questões a serem exploradas em outras oportunidades. Pensando no som e em sua “fabricação”, pode-se refletir sobre a incorporação das tecnologias na música atual até o limite de quase todas as canções gravadas hoje possuírem pelo menos alguns trechos de música eletrônica, denotando uma paisagem sonora que incorpora os sons, os ruídos da modernidade, da aceleração do tempo e do efêmero, fazendo com que a linguagem musical se ache articulada aos sons da cidade, das máquinas e do mundo. Uma presença cada vez maior, dentro da música, das tecnologias afetando os hábitos perceptivos, as formas de escuta, o que se entende por som de qualidade e o próprio fazer musical. Isso configura um tempo em que a Bossa Nova parece ser apreciada por muitos somente se puder ser relida, reelaborada, mixada com outros sons, ritmos, vozes, intensidades e timbres. Muitas vezes esta é a impressão que fica: para se fazer escutar na atualidade – que não consegue mais conviver com a calma evocada por barquinhos, tardinhas, lobos bobos, garotas de Ipanema – a Bossa Nova precisa expressar este outro espírito do tempo, incorporar esta outra paisagem sonora da atualidade. Uma reflexão mais aprofundada sobre este assunto ficará para os próximos vôos. Por fim, é importante ressaltar que o passado chega pelo presente, numa relação de diálogo estreito. Lembrando Walter Benjamin, o historiador/narrador encontra este passado em ruínas e o restaura, atualizando-o no presente3. Trabalhando com outros tempos, faz-se necessário interpretar o outro - o passado - numa perspectiva relativista. Nisto, o ofício historiográfico muito se relaciona com o antropológico, estabelecendo um diálogo com o outro numa espécie de alteridade. Esta foi também uma das tentativas deste trabalho: a de entabular uma reflexão interdisciplinar entre História e a Antropologia. Se os historiadores se valem da narrativa para interpretar um tempo, uma sociedade, compreendendo seus contextos, gramáticas e linguagens, assim também o faz o antropólogo em sua interpretação das culturas. Ambos intérpretes, historiadores e antropólogos, transformam suas culturas analisadas em uma narrativa. 3

Walter BENJAMIN, Teses sobre a filosofia da História. In: Flávio KHOTE (Org.), Walter Benjamin, p.156.

396

O que a Antropologia parece colocar cada vez mais para os historiadores é a perspectiva de evocar possibilidades múltiplas, rejeitando explicações causais, tentativas de análises objetivas e cientificistas. Ler a experiência como um texto permite sempre uma re-invenção daquele vivido, sendo os textos antropológicos, eles próprios, interpretações4. Assim é que os historiadores também têm se apegado à narrativa, à interpretação da experiência passada como um texto da vida, uma trama de significados que necessita ser captada no cotidiano tenso, fragmentário, plural e múltiplo de temporalidades. Os historiadores podem aprender com os antropólogos a ler um texto “não para descobrir todos os quens, quês, ondes e quandos de um acontecimento, mas para ver o que o acontecimento significou para as pessoas que dele participaram”5. Fazer história em diálogo com o ofício antropológico parece contribuir para o captar de pistas e fragmentos de vestígios do passado, partindo da idéia de o passado ser um texto, uma trama, uma teia de significados múltiplos em suas

4 5

tessituras,

para

assim

perscrutar

fios

da

experiência

vivida.

Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas. Robert DARNTON, O beijo de Lamourette, p. 295.

397

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