Espaço-corpo e Espaço-casa: O Controle e o Autocontrole Redefinindo as Relações Sociais e Transformando Costumes e Hábitos

July 9, 2017 | Autor: Daniela Dias Ortega | Categoria: Modernity, Norbert Elias
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Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História – ISSN 2178-1281

ESPAÇO-CORPO E ESPAÇO-CASA: O CONTROLE E O AUTOCONTROLE REDEFININDO AS RELAÇÕES SOCIAIS E TRANSFORMANDO COSTUMES E HÁBITOS Daniela Dias Ortega1 Silvon Alves Guimarães2 Ms. Sandra Nara da Silva Novais (Orientadora)3 RESUMO Norbert Elias discute no seu livro, “O Processo Civilizador”, algumas transformações espaciais, sobre o corpo e a casa, que foram responsáveis pelo movimento civilizacional que afetou a sociedade humana, especialmente a partir do século XVI. O processo civilizador, segundo Elias, redefine as relações sociais, transforma hábitos e costumes e desperta sentimentos como a vergonha. Observa-se uma interessante mudança nos conceitos sobre o que é público e o que é privado. A espacialidade é fundamentada em cima do controle e do autocontrole dos sujeitos, regidos ainda pelas normas de etiqueta e vergonha, que definem os espaços como a casa, escola, prisão, bordel e motel, definindo no ajustamento e enquadramento espacial o que é ou o que não é permitido fazer aqui ou ali. O processo civilizador gera uma concepção nova sobre o tempo, que se torna uma produção humana, sobre o espaço que é definido pelo outro que exerce o controle sobre o eu, e sobre a produção social, onde o próprio espaço é portador de controle e autocontrole. O espaço-corpo e o espaço-casa são pontos de partida como invenções, construções e produções espaciais importantes. PALAVRAS-CHAVE: Processo Civilizador; Norbert Elias; Espaço Corpo/Casa; Controle; Autocontrole.

INTRODUÇÃO Norbert Elias (1994) discute no seu livro, “O Processo Civilizador”, algumas transformações espaciais, sobre o corpo e a casa, que foram responsáveis pelo movimento civilizacional que afetou a sociedade humana, especialmente a partir do século XVI. É claro que as mudanças de modo algum ocorreram num único período, mas trata-se de segmentos que foram observados em vários períodos, até finalmente chegarem a nossos dias os conceitos entendidos como “modernos”, do ponto de vista da cultura ocidental. 1

Aluna do curso de História da UFG, bolsista do projeto em extensão Caminhos Científicos e Culturais do Homem no Cerrado. Fez intercâmbio cultural na Universidad de Granada – Espanha, nos meses de fev/2012 a julho/2012. [email protected] 2 Aluno do curso de História da UFG. Desenvolve pesquisa com o tema: “A Lepra em Jataí”. De 1920 a 1990. Bolsista PIVIC com projeto de pesquisa em História Medieval. Bolsista voluntário do grupo OJED – Observatório Jataiense sobre Estudos da Diversidade. Bolsista PIBID-História/2012, financiado pela Capes. [email protected] 3 Professora de História na Universidade Federal de Goiás, Campus Jataí. Mestre em História. Doutoranda pela UFISCAR. [email protected]

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O processo civilizador, segundo Elias (1994), redefine as relações sociais, transforma hábitos e costumes e desperta sentimentos como a vergonha. Observa-se uma interessante mudança nos conceitos sobre o que é público e o que é privado. O autocontrole é apontado por Norbert Elias (1994) como a força motriz que age para movimentar estas transformações que estão ocorrendo na sociedade humana. Neste ponto é evidente que as relações espaciais que se redefinem têm nas relações privadas e públicas, que se juntam para o “controle mais complexo e estável da conduta”, o seu patamar. Gradativamente essa idéia de autocontrole, de espaço privado e espaço público diferenciado, vão sendo “instiladas no indivíduo desde seus primeiros anos, como uma espécie de automatismo”, sendo transformada por causa da busca de uma “diferenciação social”, fortalecida por uma crescente “cadeia de interdependência”, que em “cada ação do indivíduo tornavam-se integradas4”. (ELIAS, 1994) A espacialidade é fundamentada em cima do controle e do autocontrole dos sujeitos, regidos ainda pelas normas de etiqueta e vergonha, que definem os espaços como a casa, escola, prisão, bordel e motel, definindo no ajustamento e enquadramento espacial o que é ou o que não é permitido fazer aqui ou ali. Assim o indivíduo produz o espaço exercendo o autocontrole, controlando o outro e sendo controlado pelo outro, para por fim ter-se uma ação civilizada. O processo civilizador gera uma concepção nova sobre o tempo, que se torna uma produção humana, sobre o espaço que é definido pelo outro que exerce o controle sobre o eu, e sobre a produção social, onde o próprio espaço é portador de controle e autocontrole. O espaço-corpo e o espaço-casa são pontos de partida como invenções, construções e produções espaciais importantes. O ESPAÇO CIVILIZADO O que, porém constitui espaço, na visão de Norbert Elias (1994)? Espaço é a própria produção humana. É o que se pensa e se manifesta. Enfim, invocando Nietzsche (1996), podemos dizer que o espaço é o “humano, demasiado humano5”, é o resultado do que se acumulou durante o passar dos anos, possibilitando pensamentos como: “enfim criei o meu 4

Norbert Elias (1994) aponta para o surgimento de sentimentos de vergonha e a popularização de normas de etiqueta como um dos fatores que contribuíram para a transformação do Estado medieval para o moderno, junto com a o monopólio da força, da tributação e da legislação. 5 Alusão a Friedrich Nietzsche (1996) no livro “Humano, Demasiado humano”, onde ele pensa o antropo como aquele que é responsável pela História, a nossa História. Pensa nas tarefas escolhidas ou impostas, mas aceitas pelos homens e, como estas tarefas produzem uma Moral que iguala todos os homens.

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espaço”; “esse espaço é meu”; “a luta para ocupar o meu espaço”. O espaço pode ser descrito também como a “acumulação desigual6” e combinada de escalas – à escala do corpo humano à escala do mundo; à escala da casa à escala da sociedade como um todo. O que se produz então no espaço-corpo é o que se reproduzirá em escala maior no mundo; o que se produz como espaço-casa é o que se reproduzirá na sociedade. Douglas Santos (2002) aponta para o espaço como sendo também uma invenção, ou uma reinvenção a cada tempo; os jeitos de como as pessoas se produzem e se constroem espacialmente. A cada momento pode-se retomar o passado, resignificando os modelos, construindo a geografia do presente, redimensionando o espaço e o tempo, e até modificando a maneira como se entende o tempo. Elias (1998) nos mostra que o movimento redimensionador do espaço e do tempo se torna o ponto de referência geral da distribuição cotidiana das atividades humanas. Por exemplo, no século XVI, as atividades eram regidas pelas forças da natureza. Assim se o sol surgia era hora de se levantar e realizar as obrigações diárias, cuidar da casa, dos animais, negociar, plantar, etc. quando chovia, as atividades eram interrompidas, precisava-se respeitar às leis da natureza. Quando se dava o pôr-do-sol era uma indicação para o encerramento das atividades e o momento do descanso. O tempo então, é parte do processo civilizador que redefine espaços, inventando, construindo, produzindo, controlando, disciplinando. Hoje, ocorreu uma reinvenção do tempo. Com um relógio no pulso o homem “moderno” tem a sensação de que “não pode perder tempo”, “tempo é dinheiro”, etc. Assim nesta reinvenção do espaço apontado pelo tempo o homem e não a natureza tem o controle e o autocontrole sobre as suas atividades do cotidiano. (ELIAS, 1998) O ESPAÇO DO COMPORTAMENTO À MESA Os exemplos apresentados por Elias (1994) em “o processo civilizador” foram selecionados de modo a que pudessem expressar características de pelo menos certo grupos ou estratos sociais, sendo possível perceber no exemplo F da página 102. “...no passado, as pessoas comiam em um prato comum e enfiavam o pão e os dedos no molho, hoje todos

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Milton Santos (2002) em “Por uma Geografia nova” elaborou uma definição de que o espaço pode ser entendido como uma “acumulação desigual de tempos”; onde ocorre uma cooperação entre tempo e espaço no sentido de suscitar uma consciência critica voltada à condição humana de estar no mundo.

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comem com colher e garfo em seu próprio prato e um criado lava de vez em quando os talheres no buffet.” A forma de comportamento que os senhores feudais desenvolviam na corte era chamada de cortesia, mas com a lenta extinção da nobreza e a formação de uma nova aristocracia de monarcas absolutos em meados dos séculos XVI e XVII, o conceito de civilidade passou lentamente a categoria de comportamento social. Estes dois conceitos, civilidade e cortesia, no entanto sempre andaram juntos durante um período da sociedade, sendo estes uma mistura de sociedade cavaleira-feudal e de monarquia absoluta. Assim, ao final do século XVIII, a classe alta francesa passou a adotar mais ou menos um padrão de comportamento a mesa. Os padrões a que o individuo, inicialmente foi obrigado a se submeter, como no costume de comer carne, no uso da faca e ate do garfo, passam a reproduzir, segundo Norbert Elias (1994), em seu íntimo um autocontrole que opera mesmo contra seus desejos conscientes. Assim, com as mudanças sociais, se intensifica a necessidade de reformas dos comportamentos, onde o conceito de “civilidade” passa a encontrar-se num primeiro plano.

O ESPAÇO DO CORPO Norbert Elias, em “O Processo Civilizador”, trabalha com a idéia de um corpo civilizado, onde através da reinvenção do espaço ocorrem “mudanças de atitude em relação a funções corporais” (ELIAS, 1994 p.103), alterando as práticas, as concepções e até mesmo a utilidade do corpo humano. O corpo se torna o “palco” onde atuarão forças tais como: o controle, quando submetido aos olhares públicos; o autocontrole, quando o olhar gerenciador é o do próprio “EU”. A produção do espaço-corpo civilizado define o que é permitido e o que não é permitido. Um conjunto de imposições, disciplina e condicionamentos são agora colocados para que se atinja um grau civilizatório. Vejamos então alguns exemplos de como os manuais de comportamento cumprem um papel fundamental em redimensionar ou, podemos dizer, em reinventar, em criar, o espaçocorpo. Analisando alguns exemplos, faremos também uma reflexão sobre como essas mudanças se encontram atualizadas, ou como foram repensadas para os nossos dias. 4

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Na parte V, “mudanças de atitude em relação a funções corporais”, encontramos no exemplo “B” a seguinte regra: “Não se toque por baixo das roupas com as mãos nuas” (ELIAS, 1994

p.135). Nesta regra podemos observar duas forças civilizadoras em ação: o controle

externo e o autocontrole. O toque do corpo “com as mãos nuas” é censurado, primeiro, porque se trata de um costume de povos não civilizados que se tocavam por baixo das roupas com as mãos nuas. Os conceitos sobre “o público” e “o privado” passam a assumir uma nova dimensão, fazendo necessária uma separação do que sempre esta à mostra, o público – as mãos, e o que sempre está escondido, o privado – as partes por baixo das roupas. Se as mãos, o espaçoexterno, têm que se manter separado do corpo isto nos indica que elas são nocivas, que podem trazer o indesejado do externo para o interno. Podem também indicar a forte influência da igreja no cotidiano formador da sociedade, onde tocar o corpo com as mãos nuas provocaria sensações que constituem impurezas e levam a pensamentos aviltados e promíscuos. Mas por outro prisma, “por Baixo das roupas” também pode indicar que há uma impureza nestas partes e, portanto não devem ser tocadas pelas mãos para que estas não sejam contaminadas. No exemplo “I”, Norbert Elias, acentua este aspecto e vai mais além, mostrando que para se seguir a regra redimensionadora é necessário sacrifício, a pessoa que quer atingir o nível civilizado deve estar disposta ao sofrimento e ao desconforto: Faz parte do decoro e do pudor cobrir todas as partes do corpo, com exceção da cabeça e das mãos. Deve-se tomar cuidado para não tocar com as mãos nuas qualquer parte do corpo que não é habitualmente deixada descoberta. E se for obrigado a assim proceder, isto deve ser feito com grande cautela. Você precisa acostumar-se ao sofrimento e ao desconforto sem se contorcer, esfregar-se ou coçarse. (ELIAS, 1994 p.138)

É preciso conter a necessidade ou intenção de tocar o corpo. O autocontrole tem que ser colocado em prática para se conseguir manter os padrões civilizados. Lembrando que na época a necessidade de tocar o corpo se fazia maior, pois a prática do banho e o uso de produtos de limpeza do corpo, e de cosméticos em geral, eram bem menos comuns que atualmente; com certeza a necessidade de se “coçar” era grande. Mas, trazendo pros nossos dias, no Brasil, o hábito de “coçar o saco”, para os homens, ainda está presente principalmente nos botecos ou bares, principalmente quando os assuntos são futebol, homem traído ou as aventuras amorosas fora do casamento. O espaço-corpo é vigiado de fora, mas também é 5

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auto-vigiado. O tocar-se é então retirado do público e passa a espaços privados. Surge um paradoxo: o espaço privado do corpo é publicamente controlado. Voltando no exemplo “C”, podemos notar a mesclagem que se faz de controle e autocontrole no ato de urinar e no flato: Prender a urina é prejudicial à saúde e urinar em segredo diz bem do pudor... O som do peido, especialmente das pessoas que se encontram em lugar elevado, é horrível. Sacrifícios devem ser feitos, com as nádegas fortemente comprimidas... Substitua os peidos por acessos de tosse. (ELIAS, 1994 p.136)

Não prender a urina, comprimir as nádegas e provocar a tosse no ato da flatulência são formas de pôr o corpo à disposição de atitudes de conveniência social. O inventado espaçocorpo deve estar em “sacrifício” em nome dos bons hábitos civilizados. O sacrifício que se faz, para se ser civilizado, vai ao ponto de manter o controle sobre as funções biológicas que são “desconectadas” do corpo para poderem se adequar aos condicionamentos sociais. Não é que se defina como se deve urinar ou o ato da flatulência, mas o modo, o jeito, o lugar, o momento, a conveniência, são incorporados no redimensionamento espacial, às novas concepções do espaço-corpo. Urinar e peidar são socialmente reinventados: a necessidade biológica se submete ao protocolo social. O espaçocorpo vai, aos poucos, tornando-se etiqueta, moda, modelo, corpo socialmente moldurado, emoldurado. Daí, temos os jeitos atuais de se comportar, o rigor, a disciplina e as normas; ou seja, o processo civilizador também nos inventou e reinventou. ESPAÇO-CORPO EM CONJUNTO COM ESPAÇO-CASA Norbert Elias aponta também para o espaço fora do corpo como produzindo uma nova concepção espacial. A limpeza do corpo foi reproduzida em escala para a limpeza de qualquer espaço, sendo atribuída ao caráter de um indivíduo, ou qualificação de um local, notados em expressões como: “ele é um cara limpo”; “aquele cara é sujo”; “este lugar cheira mal”; “isso não está cheirando bem”. O espaço-casa é reinventado por ser o local que abriga o indivíduo civilizado, portanto o seu abrigo tem que ser redimensionado, pois é ali que primeiro se come e se “Alivia”. Vejamos nos exemplos “A”, “F” e “I” como se impõe regras nestes aspectos:

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Antes de sentar-se, certifique-se de que seu assento não foi emporcalhado... Que ninguém, quem quer que possa ser, antes, durante ou após as refeições, cedo ou tarde, suje as escadas, corredores ou armários com urina ou outras sujeiras, mas que vá para os locais prescritos e convenientes para se aliviar... Quando precisar urinar, deve sempre retirar-se para um local não freqüentado. E é correto (mesmo no caso das crianças) cumprir outras funções naturais em locais onde não possam ser vistas. (ELIAS, 1994 p.135-138)

A casa cumpre assim um papel civilizador. É em casa que se come e se “alivia”. Devese comer em lugar que “não foi emporcalhado”, portanto, limpo. O espaço-casa é um lugar de “aprendizado” e também um lugar de “proteção”. Aprende-se dentro para praticar fora da casa. Aprende-se para proteção dentro da casa. O espaço-casa civiliza para os outros – o público – ao mesmo tempo em que se faz civilizador para o “EU” – o privado. Se fora da casa é necessário seguir normas, regras e imposições para ser civilizado, dentro da casa se forma o espaço de re-civilização. O espaço-casa é subentendido como um lugar que já enfrentou o processo civilizador e onde se volta para recarregar as pilhas, fortalecer as normas. Não seguir este proceder em casa, é a própria barbárie. Não é por nada que as maiores “barbaridades” são entendidas como sendo aquelas que ocorrem dentro de casa, principalmente de pais contra filhos ou de filhos contra pais. Podemos citar como exemplo o caso “Suzane Von Richthofen”7, e o caso “Isabella Nardoni”8, que deixaram o país chocados por fugirem às regras do espaço-casa que aprende para fora e protege para dentro. Tais crimes foram entendidos como a maior “barbárie” que se possa cometer, porque é um crime contra os “meus” no espaço-casa, que é o lugar que já deveria ser “civilizado”. Norbert Elias (1994) mostra assim que o processo civilizador da casa-familia é parte de um processo maior, no qual o redimensionamento, a invenção e reinvenção de idéias – portanto, de espaço, gradativamente, torna-se hegemônico. ESPAÇO DO HÁBITO DE ASSOAR-SE

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O Caso Suzane Von Richthofen, chocou a opinião pública, quando ela foi condenada por planejar a morte dos pais com a ajuda do namorado, Daniel, e do irmão dele, Cristian Cravinhos. Os três estão presos desde 31 de outubro de 2002. 8 O caso Isabella Nardoni, refere-se a morte da menina brasileira Isabella de Oliveira Nardoni, de cinco anos de idade, defenestrada do sexto andar do edifício London no distrito da Vila Guilherme, em São Paulo, na noite do dia 29 de março de 2008. O casal, Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, respectivamente pai e madrasta da criança, foram condenados por homicídio doloso triplamente qualificado.

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Norbert Elias (1994) apresenta com ênfase, em sua análise, outro objeto de controle sobre o espaço-corpo: o lenço. O autor demonstra através de exemplos tirados dos livros sobre boas maneiras do século XIII ao século XVIII, que o hábito de assoar o nariz é uma constante preocupação, em uma Europa de invernos rigorosos. O espaço-corpo devia ser disciplinado de acordo com a maneira adequada de se assoar o nariz, em todos os lugares ou sozinho, e principalmente à mesa. Na sociedade medieval, afirma o autor, as pessoas geralmente assoavam o nariz com as mãos, e comiam com essas mesmas mãos. Por isso começavam as regras sobre a limpeza do nariz unicamente à mesa, e só por consideração aos demais. Apesar de que de início as pessoas nem sentiam nojo com relação a esse “mau” hábito. Um dos exemplos de regras dos livros, do século XV: “Não assoe o nariz com a mesma mão que usa para segurar a carne” (ELIAS, 1994 p.148). Os exemplos mostram a forma lenta com que os instrumentos aparentemente mais simples da civilização se desenvolveram. Assim como as condições sociais necessárias para utilizá-los. O uso do lenço (assim como o do garfo) se difundiu por causa do seu valor de prestígio, as mulheres deixavam seus lenços presos à cintura, junto com as chaves, era um artigo de luxo muito caro. “Em geral se considerava sinal de riqueza não assoar o nariz na mão nem na manga, mas no lenço” (ELIAS, 1994 p.152). Entretanto, no início seu uso não era comum, nem pela “alta classe”, por isso um exemplo do século XVI diz que se a pessoa assoar o nariz com os dedos, é preciso pisar em cima da meleca que caiu no chão. É possível observar o valor de prestígio social neste exemplo do século XVI, em que o uso do lenço é necessário se “pessoas de posição social mais alta estão presentes” (ELIAS, 1994 p.152): Assoar o nariz no chapéu ou na roupa é grosseiro, e fazê-lo com o braço ou cotovelo é coisa de mercador. Tampouco é muito mais educado usar a mão, se imediatamente limpa a meleca na roupa. O correto é limpar as narinas com um lenço e fazer isto enquanto se vira, se pessoas mais respeitáveis estiverem presentes (ELIAS, 1994 p.149).

O lenço também não poderia ser substituído por babador, guardanapo ou outro pedaço de pano qualquer. Os serviçais poderiam usar as bandagens dos pés para assoar, era o correto.

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Já no século XVIII, conforme Norbert Elias (1994), o uso do lenço tornou-se mais comum, e as pessoas já consideravam o uso das mãos para assoar uma má educação, vulgar. A “meleca” (e as demais secreções corporais) passava a ser sinônimo de algo nojento, e devia ser ignorado, evitado, e nem mesmo olhado, ou seja, se manter o mínimo contato possível com “aquilo”, como se percebe neste trecho: “Evite bocejar, assoar o nariz, e escarrar. Se for obrigado a proceder assim em lugares mantidos limpos, use o lenço, ao mesmo tempo virando o rosto e ocultando-se com a mão esquerda, e não olhe para o lenço depois” (ELIAS, 1994 p.150). A imposição dessa norma aos pobres pode ser destacada neste trecho do século XVIII: “É bem sabido como é feio ver tal sujeira nas roupas, que devem estar sempre limpas, por mais pobre que seja a pessoa”. (ELIAS, 1994 p.150) No século XVIII, o aviso médico começa a substituir a questão do prestígio social. Assim, os hábitos são condenados cada vez mais e com mais rigor, com as justificativas da higiene. Isso gera uma forma de autocontrole na pessoa, “fazendo com que o mesmo pareça à mente do indivíduo resultar de seu livre arbítrio e ser de interesse de sua própria saúde ou dignidade humana” (ELIAS, 1994 p.153). O trecho seguinte mostra essa substituição de argumento, em que a advertência sobre o respeito aos superiores perde espaço e emerge a questão dos danos à saúde: Todos os movimentos voluntários com o nariz, sejam feitos pela mão ou por outra maneira, são indelicados e infantis. Colocar os dedos dentro do nariz é uma impropriedade revoltante e tocando-o com muita freqüência incômodos podem resultar, que são sentidos durante muito tempo. Crianças cometem muito esse lapso. Os pais devem corrigi-las rigorosamente (ELIAS, 1994 p.151).

No trecho citado, a menção aos pais apresenta que, o seio da família, o espaço-casa, deve ser o responsável pela disciplina das crianças. CONSIDERAÇÕES FINAIS O controle das funções corporais é o controle sobre o espaço-corpo. A invenção do espaço-casa é também parte do controle e autocontrole que gera o processo civilizador, que ordena, que enquadra, que constrói o espaço redimensionado. Ao fazer estas considerações sobre “O Processo Civilizador” de Norbert Elias, não queremos dizer que as funções de urinar, defecar, peidar, tossir, assoar, comer com talheres, sejam socialmente produzidas; mas, entendemos que tais ações são formas de controle, de aceitação ou rejeição, de permissividade 9

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ou proibição, se públicas ou privadas, se abertas ou secretas. A normatização, o regramento e a proliferação de etiqueta, encontram uma naturalização na forma de gerir os espaços casa e corpo. Ao definir espaços privados para as funções biológicas, vemos um transporte destas funções para as relações sociais. Deste modo, termos que se referem a funções biológicas passam a descrever coisas e pessoas vis, desprezíveis. Termos relacionados ao corpo humano passaram, culturalmente, a definir pejorativamente coisas, pessoas e relações: “aquilo é uma merda”; “vai tomar no cu”; “seu escroto”; “seu titica de galinha”, etc. Merda, ânus, escroto, independente de suas funções, são também, material e imaterialmente espaço. Detectamos então mudanças que se fizeram de modo acentuado em uma época. Porém, estas mudanças tenderam a continuar e chegaram até os dias atuais, sofrendo, claro, o redimensionamento, a reinvenção espacial. À medida que o processo civilizador vai sendo redimensionado, reinventando novas regras, algumas sendo enrijecidas, outras sendo afrouxadas, mas sempre possuem um caráter afirmativo do espaço-casa e do espaço-corpo. Assim a maneira de se comportar a mesa, o jeito de se comer, o uso de faca, garfo, colher, prato individual, guardanapo, uma vez introduzidas como processo civilizador “permanecem imutáveis” na sua essência, mas são reinventadas com o surgimento de novas tecnologias. Evidente também, como mostra Elias, outro fator que levou a aceitação dos processos civilizatórios, foi o papel desempenhado pela família, como instituição com a função de “instilar controle de impulsos”, onde cada membro, tanto os adultos como as crianças, estão integrados e são afetados pelo controle e autocontrole de impulsos e emoções. Dentro do próprio espaço-casa, privado, se estabelecem outras relações quanto ao que é externo ou interno dentro do privado. Assim o aliviar-se, no sentido das funções biológicas, dentro do espaço-casa está destinado a um lugar privado, dentro do privado, ou como é conhecido hoje o banheiro. As relações sexuais, ou a própria conversa intima sobre sexo, passam a ter um lugar específico, o quarto. Este quarto de casal passa a ser espaço social, compartilhado pelo marido e pela esposa. Passa a ser “sagrado” em sua condição de penetrabilidade ou impenetrabilidade. “O Processo Civilizador” de Norbert Elias nos ajudou então a perceber a existência do espaço-corpo e do espaço-casa, como parte do processo civilizador, que se baseia no principio 10

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do controle e do autocontrole. O espaço é então em si mesmo produto e produtor, invento e inventor, o construído e o construtor; e em cada geração pode-se facilmente perceber o seu redimensionamento que afeta a nossa vida diária. REFERÊNCIAS ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Tradução: Ruy Jungmann; Revisão e apresentação: Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed. 1994. ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Geografando nos varadouros do Mundo. Brasília. Ibama, 2003. NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. Lisboa. Circulo de Leitores. 1996. SANTOS, Douglas. A Reinvenção do Espaço. São Paulo. Edunesp. 2002. SANTOS, Milton. Pensando o Espaço do Homem. São Paulo. Edusp. 2004. SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. São Paulo. Edusp. 2002.

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