Espaço de dispersão: a bienal de São Paulo e seu público. ArteUNESP, São Paulo, p. 203 - 213.

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ARTEuncsp, São Paulo, v.7 p.203-213,7997.

o ESPAçO DA DISPEnS,I,O:-A, BIENAL DE SÃO PAULO E SEU PÚBLICO

Cristina FREIRE'I

RESUMO: A relação estabelecidø entre o público e as obras contemporùneas está intimamente ligadø øo espaço da exposiçdo. A Bienal de Sdo Paulo é o local privilegiado para esta investigaçõo que foi realizøds através de entrevistas com seus visitantes, O tipo de percepção que se estabelece øl remete òs grandes ExposiçÕes Universais do século XIX, A percepção de choque se impöe ao visitante contemporôneo que percone a exposiçõo como o passønte nas ruas da metrópole.

UNITERMOS: Percepão; grude: qosiçoes; Bienal

d¿ São

Pøtlo;piblico

contemroorâneo;

afticulaçõo afte lcidade.

A maior exposição de Artes do Brasil - A Bienal de São Paulo, além de sua indiscutível inportância no cenário mundial das Artes Plásticas é uma oportunidade excelente para se notar a relação peculiar que se estabelece entre o chamado "gtande público" e as artes visuais. É importante ressaltar, antes de mais nada, que o público é elemento fundamental dentro de qualquer investigação no campo das artes, uma vez que a ele cabe consagrar ou fadar ao esquecimento um trabalho a¡tístico (Dufrenne,8, te67). No limite, sabemos que sem a existência do público não podemos conferir às produçóes criativas o estatuto de Arte. No entanto, esta relação público/obras no eontexto da Bienal, envolve inúmeras outras questóes que se complementam.*t Iniciaremos esta análise pelos viários sentidos que o termo Bienal comporta.

t I I

Além de denomina¡ a mais importante exposição de Artes Plásticas de caráter internacional ¡salizada no Brasil, a Bienal é também um prédio, um objeto arquitetônico. Tem ainda o estatuto de um evento e, mais do que isso, de um evento de massas.

Do ponto de vista do artista, expor seus trabalhos na Bienal configura-se como uma das poucas possibilidades de ser visto por um imenso público e ser conhecido, também no ci¡cuito internacional de Artes Plásticas, implicando, portanto, prestlgio.

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Museu de A¡te Contemporânea (MAC) USP 04098 São Paulo-SP. Este artigo se baseia em entrevistas realizadas junto aos visitantes da 19o Bienal de Sáo Paulo (l%Ð. A análise destas entrevistas fundamentou a dissertação de mest¡ado "Olhar Passageiro Percepção e Arte Contemporânea na Bienal de São Paulo", defendida no Instituto de Psicologia da USP 7990.

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Através das entrevistas que realizamos com seus visitantes surgiram algumas funciona- aqui como fio condutor para esta análise. Os entrevistados fizeram diversas associa@es entre a Bienal e as mais diversas feiras (de móveis, calçados etc.), que ocorrem durante o ano no pavilhão da Bienal. Essa analogia apareoeu, seja confundindo dois ou mais eventos, quando, por exemplo, uma visitante ,liz ter visitado "além dessa Bienal, a de móveis, de carros, de liwos etc.", seja fazendo 'ma relação clara e consciente dos pontos de semelhança entre eles. Trata-se de 'ma associa$o ou confusão que como veremos a seguir, não é feita ç¿5¡¡lmg¡[g. associa@es extrem¡mente significativas que

Podemos pensar

a Bienal como um bloco onde

embricam-se os signifrcados

intrínsecos ao prédio e ao evento ali realizado. Pa¡tindo da construção do edifício em questão, podemos levanta¡ algumas questões que dizem respeito à sua arquitetura, que funciona como ponto de articulação entre os meandros da produção cultural e*pre.ios na materialidade do prédio e as respostas do público que analisamos neste trabalho. O ediffcio

O pavilhão da Bienal, como hoje é conhecido e que abriga desde 1957 as exposiçóesbienais de Art'es Plásticas de São Paulo, foi originalmente idealizado para servi¡ dp abrigo a mostras de attefatos industriais. Assim é que ficou conhecido, a partir do projeto inicial, como "Pavilbão das Indústrias". Localizado no Parque do Ibirapuera, ocupa uma á¡ea de 36.000 m2.

Cu'npre lembrar que só a partir da IV Bienal (1957) é que esse espaço foi utiliz¿do como local de exposiçóes de artes. Pa¡a a I Bienal (1951) foi construído um pavilhão especial no Parque Trianon. As duas seguintes (1953 e 1955) realizaram-Je já no Ibirapuera, quando este foi entregue à população paulistana por ocasião dos festeþs do IV Centenário de funda$o da cidade. Nessa ocasião, utilizou-se para abrigar as mostras o espaço do Pavilhão das Nações, hoje Gabinete do Prefeito.

O Pavilhão das Indústrias ou, como hoje é conhecido, o Pavilhão da Bienal foi projetado juntamente com o Parque do Ibirapuera e os demais edifícios ali presentes por uma equipe de arquitetos da qual destaca-se o nome de osc¿¡ Niemeyer. euase como sinônimo da arquitetura modernista no Brasil, os projetos de Niemeyer trazem indiscutivelmente a sua marca. Formas curvas em profusão, aliadas ao uso abundante e livre do concreto e do vidro, talvez sintetizem as suas máximas. Segundo Má¡io Pedrosa (1975, 12, p.270), a introdução da arquitetura moderna no Brasil só se fez rapidnmente pela intervenção do Estado. Somente pelas encomendas vultosas de projetos é que essa introdução se deu, como pondera esse crítico: ,.Sem o Estado e o Estado ditatorial a introdução da nova arquitetura no pals teria sido feita pelos canais privados e, portanto, de modo mais esporádico e gradual. A manei¡a súbita, maciça, em grande escala, de ca¡áter suntuoso, burocrático, mon'mental com que foi

introduzida não se teria dado. E sobretudo os jovens talentos como Niemeyer e Reidy não teriam tido a oportunidade de suas vertiginosas carreiras". Nesse sentido, como ARTEuncsp, São Paulo, v.

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aponta ainda M. Pedrosa, seriam os arquitetos os protagonistas de uma segunda fase da revoluçáo modernista detonada pelos artistas plásticos.

Seguindo essa linha de argumentaçáo, Durand (1988, p. úa) afirma que foi a arquitetura a principal responsável pelo, desenvolvimento e condu$o da modernidade visual no Brasil. Nesse sentido, podemos considerar que "Brasflia seria u'n desdobramento das idéias lançadas no Parque do Ibirapuerq o ediflcio onde até hoje são realizadas as bienais que inspirou Niemeyer a conceber os ministérios que seriam construídos na nova capital" (Oliveira, lL,lg76,p.41).

Há, portanto, fundamentos para a seguinte conclusão: o Ibirapuera, assim como Pampulha' Brasflia e inúmeros outros projetos do arquiteto Niemeyer, apresenfa-se ARTEuncsp, São Paulo, v. 7, p. 203-213, 1991.

2ú Bienal concomo um d¡s 5ignos da modernidade em arquitetura no Brasil. O prédio da

metaioricamente, como uma vitrine. Nele dispõem-se, aglutinadamente, a um mlodernidade visual brasileira, o nome de um arquiteto proeminente e o poderio de ser enEstado em seu IV Centenário. Essa "vitrine", como veremos a seguir, náo deve ten¿ida apenas metaforic¿mente. Tem sua vertente concreta e diretamente observável. podemos arrisca¡ uma análise a partir do que se destac¿ nessa nova forma de construir: neú implicados, há o privilégio dado ao *o 9" além de todos os aspectos "oo""itu"i. determinados materiais, como o concreto armado e o vidro. E é especialmente, sþ oin""tiuo para a aoáliselue realizâmos a relevância do uso do vidro nessa edificação de ca¡áter -ãd".oo. Ora, se voltarmos nossa atenção pafa o passado será possfvel observar que o uso do vidro em profusão está correlacionado ¿ u'n¿ f¡ansformação da percepçáo hu--u. O uso desse material faz parte do fenômeno que poderlamos chamar de

fig*"-.",

visualização progressiva do mundo.

Lucien Féwe (1949,9, p. 14) aponta a transformaSo do homem de ar liwe do século XVI, para o contato com a natr[eza tornava imprescindível a presença de todos os sen' tidos,'no .,homem-de-estufa" contemporâneo, pa¡a quem o sentido da visão é predo-inante e hegemônico. O vidro relaciona-se, portanto' a essa "necessidade" de ãhar, característico-de nossa sociedade, e, também em contrapartida a uma wgência no mostrar, colocar à vista, o que representa, evidentemente, a sua Outra face' Da inter-relação desse ver/mostrar, objeto/vitrine, olho/vidraça, podemos formr¡lar imediatamente a seguinte questão: qual a ielação das c¿racterísticas do prédio onde foi realizada a exposição com o olhar do público estudado?

Uma primeira confirmação de que as ca¡acterísticas simbólicas e materiais do vidro

qlan; seriam uma pista sipificativa para a compreensão do problema levantado surgiu IV Bienal da sinopse a com nos deparamos do, ao p".qúi."r-oi os arquivãs da Bienal (1957), a primeira realizadano edifício, onde lê-se:

.A Mienal já instalada no Pavilhão A¡mando

de Arruda Pereira c¡om a particþação contou Ibirapuera do (pavilhão da Bienal) no Parque por tq público de vistas obras, de 3.000 oerca ùe 48 pafses, 694 ariistas e realizadas uma foram mostra esta Durante mais de 300 mil pessoas. d"s internacional concurso e o arquitetura de e:çosi$o internacional vidro'que de mil anos tltulo'4 o sob exposição escolas de arquitetura, uma apresentou uma evolu$o da história do vidro, desde os fenfcios até os dias dã ho¡e..." (F. Bienal de São Paulo, mimes, 5/d)' É sipificativo que no ano da inaugura$o do Pavilháo, onde as paredes de vidro do prédio-se tornarialm "uma grande viirine", para r¡sar as palawas de um entrevistado, ienha sido organizada uma amostra especial justanente sobre esse material - o vidro. Partindo dessa constata$o, cabe uma outra pergunta: o que significa o vidro, ou melhor, qual a sipificação hu--" desse material moderno? Scgundo W. Benjamin (1985' pernile S, p. ifZ¡, o údro tõria um ca¡âter de certo modo nefasto, uma vez que não d" progressiv-a da slmbolo qu"tqu"t u"rtígio vislvel de humanidade ou história: é o P.tqpor é rastros. deixar impossfvel "Náo tiansmissiUiti¿ã¿e ¿a e:çeriência. No vidro é AX,TEump,

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acaso que o vidro é r'm material tão duro e tão liso, no qual nada se fixa. E também um material frio e sóbrio. As coisas de vidro não têm nenh'ma aura. O vid¡o é em geral o inimigo do mistério. E também q inimigo da propriedade." Sendo o mistério o atributo oposto à característica transparência desse material, seguindo o pensamento de BaudrillaÅ (1W,2, p. 3O), para o qual a cultura seria o espaço do segredo, da sedu@o, da

troca simbólica altamente ritualizada, parece, entáo, contraditório um prédio de paredes envidraçadas e translúcidas poder abrigar uma exposição de arte, e afirmamos,

Wece contraditório, pois, pelo que pudemos perceber, a contradi$o é

apenas

aparente: o caráter mundano e público afina-se perfeitamente com o espaço estudado. Não é do lugar tradicional da Arte como a galeria ou museu que estamos falando, mas de uma curiosa e significativa simbiose entre Pavilhão das Indústrias e mega-exposições de A¡tes Plásticas. Se nas galerias e museus tradicionais, especialmente os museus brasilei¡os onde o tu¡ismo não arrasta multidóes como nos museus europeus e americanos, o espaço

remete a uma contemplação cujo termo traduz muito bem lma atitude quase religiosa, express.a no comportâmento solene e na atitude silenciosa e reverencial, esse contexto que estudamos é absolutemente profano. A quantidade de objetos nele exposta é assustadora para os. visitantes. Trata-se de uma grande quantidade de objetos que pede "m grande público - relação esta que nos remete, inevitavelmente, às grandes E:rposi@es Universais do começo do século. Seriam elas as propulsoras da grande alluência do público às mostras de arte, como e:çlica Benjamin (1989,6, p.235). Ora, se a Bienal de São Paulo toma como modelo a Bienal deYeneza, esta remete às grandes E:çosi@es Universais. Ocorridas desde meados do século XIX até inlcio do nosso século, essas e:çosições eram verdadeiros espetáculos, onde eram expostos todo o tipo de maquinários, objetos, obras de arte, funcionando também oomo uma celebração do crescente poderio das na@es. Eram exposições que primavam pelo ecletismo dos objetos elçostos e pelo imenso público que arrastavam.

Num primeiro rnomento, ocorrsrâm nos grandes centros europeus: Londres (1351), Paris (1855), Londres (1862), Paris (1867), Viena (1873). Num segundo momento, movimenta¡¡m cidades norte-americanas: Filadélfia (1876), Chicago (1893), entre outras. E delas frcaram alguns maroos que, se na época assustavam pelo senti{o de inovação que encarnavan, hoje são reproduzidos em miniaturas como inofensivos souvenirc. A Torre Eiffel é um desses mr¡rcos, construfda para aE:çosiçáo Universal de Paris (1889), assim oomo o Palácio de Cristal, que abrigou a primeira e:çosição ¡ealizada em Londres (1851). Mas, o que é significativo salientar aqui é o fato de como essas exposições realmente traziam elementos de inovação para o público da época. Nesse sentido, Hardman (1988, 10, p.51) salienta que "no campo da inovação técnica e

da transferência tecnológica do sistema de trabalho fabril, bem somo no da publicidade e eonsumo de nassa, a elçosi$o internacional do século XIX possufa muitos traços de e:rperimento de vanguarda". Basta lembra¡ que o ahrmínio, a fotografia e numerosos

outros inventos e objetos surgiram pela primeiravezpara o olha¡ do público nessas grandes exposi@es. ARTEuncsp, Sâo Paulo, v. 7,p.7Ã3-213,1Ð1.

ß É possívef pois, traçar uma analogia com o phblico que visita uma etçosição do porte da Biena[ mais de um século depois. Definições oomo - "a Bienal é um grande celeiro de possibilidades" ou "feflexo de tudo que está acontecendo, um monte de propostas que af dentro tem uma convivência que fora nem sempre se consegue" s¡ einda "cådâ Bienal se promove oomo um termômetro, e que se pode mostrar o que existe, o progresapontampara essa expectativa com relaçáo aO "novo" que tfâz a sO da teCnOlOga..." marca da mudança.

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Nesse sentido, parece-nos interessante considerar a primeira dessas grandes Brposições Universais: a E:çosição Internacional de Londres, que ocorreu em 1851. Pa¡a a realizaSo dessa exposi$o construiu-se uma enorme edificação toda em vid¡o com finas estruturas de ferro como sustentáculo. Conhecida como Palácio de Cristal foi montada em seis meses e desmontada logo após o término da ExposiSo. Projetado por Joseph Pærton, o Palácio de Cristal possuía desde seu projeto até a execução, segundo Berman (1986,7, p.233), uma característica muito singular - "seria um novo tipo de espaç¡ social, um ambiente moderno arquetípico que poderia uni¡ todos os estratos sociais opostos e fragmentados de Londres." À parte dessa intenção está a efetiva reação do público que, de uma manei¡a geral, respondeu controvertidamente a ess€ "sfmbolo da modernidade". Prossegue Berman: "a burguesia gostou da exposiçãq porém rejeitou o ediffcio e voltou a construi¡ estaçóes de trem em estilo a¡turiano e estabelecimentos bancários helenísticos. De fato, náo se construlram mais edifícios genuin"-ente modernos por cinqüenta anos" (Berman, op. cit, p,226). Porém, a acolhida foi positiva por parte de estrangeiros e pessoas comuns inglesas, tanto que foi posteriormente reconstrufdo em Sydeham Hill para servir como local de passeio elazer, até ser destruído num misterioso incêndio em 1936. Berman (op. cit) comentando a rela$o do público com tal ediflcio diz "longe de se moverem ao redor quietemente, reduzidas ao silêncio, as massas pareoem encontrar nele estfmulo e direção para suas energias, nenhum ediflcio nos tempos até aquele momento parece ter tido tal capacidade para excitar as pessoas".

O encontro com algumas edificaçóes do começo do século, observando a presençå constante do vidro nos prédios que trariam a marca da modernidade, ilumina alguns fatos e construt'oes bastante contemporâneos. Por exemplo, essa "mafca da modernidade" está implfcita também na Pi¡âmide de Vidro (1989), projeto dp arquiteto chinês Ieoh Ming Pei, que faz parle das obras realizadas para a "modernização" do Museu do Louwe, o tercei¡o mais antigo museu do mundo (1793). No entanto, acreditamos que o Palácio de Cristal (1851) tem estreitas analogias com a Pirâmide de Vidro (1989), não apenas pelo uso do mesmo material, mas também pela maneira controvertida como ambos os ediffcios for"- recebidos pelo público. O material utilizado, o vidro, é analisado em detalhes, como é possfvel perceber nesse trecho de notfcia "um vid¡o transparente e anti-reflexo foi especialmente projetado para se encaixar nos 675 losangos da estrutura de 6 mil ba¡ras de alumínio e um peso de 105 ton." (F.S.P. - 3V03l89). O arquiteto Ming Pei, responsável pelo projeto da Pirâmide, explica as razóes do uso do material: "com a claridade as pessoas têm a tendência a ÀRTEunccp, São Paulo, v. 7,p.203-213,1991.

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permaneoer mais tempo num museu, elas não podem ficar angustiadas, e devem saber exatamente onde estão a cada momento" (F.S.P., op.cit.).

É interessante cotejar esse depoimento com o medo por diversas vezes reincidente durante as entrevistas na Bienal: o medo de se perder no espaço da exposi$o, medo

que, muitas vezes, se traduz num sentimento de insegurança: "Estou acabando de chegar e procurando seguir o ci¡cuito para não me perder", outras vezes, na forma de queixa: "você não consegue ver direito, .acho que isso cansa muito, é muito grande..." Entretanto, esse perder-se assume um outro sentido quando enfocado não apenas em relaSo às dimensóes do espaço, mas ao acúmulo de objetos. A mistura obraVhomem, ou a "convivência democrática entre homens e coisas" nas palawas de um entrevistado, tem um lado assustador. É como se representasse o confronto entre duas ondas, uma humana e outra de objetos. Acompanhando o pensamento de Baudrillard (2.1977) é, tnteressante perceber que esse autor fala do poder de atra$o das massas ao vislumbra¡ ARTEuncsp, São Paulo, v. 7, p.203-213, 7991.

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outras massas, e do efeito aglutinador que isso causa. Considerando o Beaubourg e poderíamos estender tais considerações por analogi4 à Bienat escreve Baudrillard (1977, 2, p. 295): "É necessá¡io que a mrìssa de consumidores seja equivalente e homóloga à massa de produtos. E o confronto e a fusáo dessas massas que ocorrem no hipermercado como também no Beaubou¡g onde a relaSo é absolutamente diferente do lugar tradicional da cultura (museus, galerias, bibliotecas etc.)."

As paredes de vidro do espaço estudado teriam então uma possibilidade: funcionariam como espelhos, pois é vendo a massa de obras em seu interior que a massa de pessoas tenderia a afluir. Entretanto,'como aponta Baudrillard (1973, 1, p. 48), "as paredes de vidro materializam de forma extrema a ambigüidade fundamental da ambiência: a de ser um só tempo proximidade e distância, intimidade e recusa da intimidade, comunicação e náo-comunicação... Uma vitrine é encantamento e frustração, a própria estratégia da publicidade". Nesse sentido, a Bienal se revela como um espaço contraditório, onde o visitante vive uma situaçáo de conflito. Um conflito básico e bastante recorrente no interior da Bienal, é o conflito representado pela oposição ,tRTEunesp, São Paulo, v. 7, p.

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2Ll espaço/tempo. O espaço a ser percorrido é imenso e o tempo disponfvel para a visita é, conforme as respostas do prlblico, considerado como muito curto frente a imensa quantidade de obras a ser vista. Também esta oposi$o espaço/tempo é significativa e pode, por isso ser consideqada sob diferentes ângulos. )

Muitas vezes drlante as entrevistas, a Bienal foi associada à cidade de São Paulo, como se a cidade e a exposi@o tivessem uma ligação inerente e não apenas circunstancial. Ou seja, uma exposição como a Bienal só poderia ser realizada em uma metrópole como São Paulo. Este é o lugar privilegiado, não apenas por ser al que está o maior número de visitantes (em potencial), mas por questóes estrutu¡ais. Portanto, a Bienal é considerada oomo um microcosmo da cidade, funcionando o espaço da exposição como o meio urbano, tal qual um imenso arcabouço de possibilidades, principalmente do ponto de vista da sensibilidade visual. Na cidade, os muitos impactos se sucedem em uma velocidade constante. Mas, se os impactos na cidade se apresentam a um observador quase passivo frente a eles, o desejo de ver tudo do visitante empurra o espectador cadavez mais rapidamente através dos objetos "estranhos" e "loucos" agrupados na exposição.

Trata-se de fato de um gfande espaço, com uma enorme quantidade de obras e poucos locais de repouso. Apesar de existirem alguns bancos à disposi$o do visitante, este sente uma urgência e pressa quase incontrolável de prosseguir seu percurso, que é longo e deve ser conclufdo logo. O tempo é percebido sempre como curto e prestes a se "a mostra já vai acabar", "não sei se esgotar, como se nota em declaraçóes como poderei volta¡ outra vez","ainda tem muita coisa pra ver" etc. Essa pressa observada não condiz com uma "atitude cultural", na concepção de Baudrillald (1987, 3, p. 31), mas sim com a atitude de um habitante da metrópole.

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Como sabemos, uma grande cidade oferece surpresas e impactos aos seus habitantes: o desenho arquitetônico de edifícios tão diversos no mesmo espaço, o trânsito cadavez mais caótico, a informatização alcançando o espaço público nos bancos eletrônicos de cada esquina etc. Nessa medida, o espaço da cidade, como o da exposição em questão, é 'm território atraente em termos do número de possibilidades a serem exploradas analogia que se desprende de frases ditas pelos próprios visitantes:

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"A Bienal é um espelho, aquilo que você

vê no dia-a-dia".

"Cada Bienal se promove como um termômetro onde se pode mostrar o que eúste, como o progresso da tecnologia", "esse espaço é para você explorar".

Em contrapartida a essa riqueza de possibilidades oferecida pelo espaço, está a exigüidade de tempo para sua "exploraçáo". Muitas são as queixas no sentido do cansaço e falta de tempo para "ver tudo".

Mas não é só do espaço que tratâm os visitantes. Suas afirmaçóes encerrâm uma concepção de tempo, um tempo centrado no "agora", sem um sentido da continuidade, de relaçáo entre o presente com o passado e com o futuro. O tempo passa de momento ARTEuncsp, São Paulo, v. 7, p. 203-2L3, 1991.

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presente para outro momento presente, e o sentido, como bem aponta Baudrillard é o da reciclagem, sem qualquer característic¿ cumulativq tal qual o tempo da experiência (Benjamin, 1975,4, p. 38), onde o presente remete ao passado que prenr¡ncia o futuro. Assim, na erçosi$o, cada nova obra vista provoca u'na reaøo que oscila entre o impacto e a indiferençå, sendo que esses dois pólos, aparentemente antagônicos, náo se excluem nesse universo onde a proliferaSo de impactos gera a indiferença e apatia. Como vimos, o tamanho do espaço provoca no visitante o medo de se perder. Junte-se a este um outro medo, também recorrente: o da perda da memória. A quantidade de obras, os choques que se sucedem de tal maneira e intensidade são percebidos pelos visitantes como determinantes do esquecimento: "ao final da visita já terei esquecido os primeiros que vi lá no começo".

LIma outra oposição se destaca dal, a oposiçáo percepção-memória. Neste universo de oposiçóes, parece interessante considera¡ o "fenômeno" Bienal como um bloco único, como propóe Baudrilla¡d (3, 1987). Esta concep@o fornece pistas explicativas quando nos deparamos com depoimentos do tipo:

"A Bienal

é um grande impacto, um grande vômito, um grande esca¡ro de

arte, as pessoas vêm aqui para consumir arte, e vêm sabe por quê? Só porque ouvem na TV". Ou seja, o bloco aqui constituído seria a "arte contemporânea" que poderia, seguindo

o discurso da mídia, ser "engolida" numa únic¿ dose ao preço de um ingresso. Nesse sentido, esse bloco único que esse pensador sugere, e apreendido na análise que realizamos, significaria também mais profundamente, a (im)possibilidade de encontro com um novo universo sensível dentro dessas ci¡cunstâncias tão abruptas. Com um olha¡ tão efêmero e rápido quanto os reflexos que formam nas paredes de vidro da Bienal os

milha¡es de visitantes ci¡culam dispersos e atônitos por entre as obras. E a Bienal reaparece neste momento mais uma vez como uma vitrine. Vitrine deste encontro/desencontro do público com a Arte Contemporânea.

FREIRE, C. The space of dispersion: the São Paulo's Biennial and its public. ARTEunesp, Sáo Paulo, v, 7, p. 203-213, 1991,

ABSTRACT: The relation between the public snd the works of contemporøry øft is closeþ related to the spøce of the ethibition. Stio Paulo's Bienal place is a priviliged for thß studytholvnsrcalizedwithinteuiewswithißvßitott.Thelltpofpercepionthere has something to do with the Great (Jniversal Exhibitions of the i9th Century. KEYI,YORDS: Perception; big uhibitions; Biennial of São Paulo; contemporary public;

afticulation øftlcity.

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7,

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