ESPAÇO NACIONAL: DA ESCRAVIDÃO AOS DIAS DE HOJE

June 6, 2017 | Autor: G. Pimentel | Categoria: Racismo y discriminación, Urbanização brasileira, Libertação dos escravos
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O ESPAÇO NACIONAL COM O FIM DA ESCRAVIDÃO AOS DIAS DE HOJE

Gilberto Freyre além de tantos méritos expôs visão poético-pictórica de um processo de ocupação de território que foi construindo um espaço denominado Brasil. Acertadamente aponta a ação humana produzindo o espaço, e transformando a ilusão de “meio natural”, já que percebe não haver tal “espaço natural” sofrendo, sabidamente, interferência de transeuntes e usuários. No caso humano, a interferência é profunda, constante, intencional e irreversível. O espaço é uma imagem construída pela cultura (Santos, 2004, p.29), e mesmo que esse processo seja dialético, a ideia da não existência de um “espaço bruto” é fascinante e poético em toda sua potencial violência e ignorância, mas também na fantasmagoria dos passos, trilhas e deslocamentos. É o fascínio da história animal em movimento, humana ou não. A questão políticocultural entra com os requintes de um observador encantado, porém arguto.

Espaços de poder de dentro de terras brutas, de uma África esturricada e arisca, vende gente de arrasto rumo às florestas medonhas e agressivas, em traslados de corpos postos a ferros, dobrados pelas armas e jogos comerciais em portos ancestrais. Escambo vil que interessou também seus irmãos de cor e continente. As vendas seguiram pelo pendor do possuir. Negociar corpos já era norma cultural na África e

Europa - documentos arqueológicos comprovam. O mesmo não se viu entre índios locais, cuja frugalidade e instabilidade geográfica dificultavam o “luxo” da manutenção de cativos de guerra, optando-se, na maioria dos casos, por comê-los ou matá-los. Pelas mãos do sociólogo-poeta somos levados pelos entornos das casas-grandes onde risadas infantis de folguedos inocentes e cruéis entre os filhos do senhor e os moleques da senzala ressoam na história. Espaços de cantigas e sussurros, em alas revestidas de silêncio e subserviência, guardam sob poeiras do tempo lamúrias penosas, indiferença e violência normatizada.

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Foto anônima

Por outro lado, segundo Gilberto Freyre, tivemos sorte por nossa colonização ter sido feita por nação tão pouco europeizada, tão pouco associada às mentalidades correntes do capitalismo nascente, panaceia sob investidura cristã. Tivéssemos sido, e teríamos perdido a capacidade de usufruir prazeres, sob o jugo de algum dever demoníaco: ou de um deus feroz ou por ordens de uma acumulação apequenada. Para o autor, Portugal já era favorecido por sua diversidade cultural que, desde sempre, impregnou as colônias com algo mais além da ganância. Para ele Portugal era semi-ocidental, já pela composição de sua etnia, como mouros, israelitas e o que chamou, maometanos (Freyre, 2002, p. 1086). E com as novas colônias (Goa e Macau), muito mais influências orientais sofreria o Brasil, como também sua metrópole. E afinal, se nos espaços precisamos nos orientar para fixarmos rumos certos, podemos dizer que o Oriente existe também para permitir ao Ocidente “orientar-se”, cartografar-se, delimitando, comparando, nomeando e controlando a

si mesmo, de olhos sempre no diverso, seu verso, o Oriente.

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Segundo Freyre sobrevivemos folgados, sonhando em repor a canga no irmão ao lado, enquanto empurrávamos a rede de balanço com o cajado. A ideia de exploração persistiu sobre a da colonização, liberando à adaptação dos grupos, etnias e culturas que se amalgamaram pelas matas e infinitas praias, produzindo novas formas de se viver, hereticamente cristãs, não puras, nem europeias puras. Ignorância, ganância, mas também abandono e indiferença construíram formas muito diversas de se espalhar pelo território que deixaram frouxo o projeto de ocupação que não se submeteu fortemente a nenhuma lei. Sorte e desgraça. Mais de quinhentos anos depois, arcamos com a falência de um sistema que desprezou seus formadores, não habitantes, mas carga e tração, usando a força para a ascensão social espúria. Não se consegue superar o trauma do distanciamento dos poderes administrativos dos interesses do povo que se espalhou, sem rumo, desde então. No susto dos novos tempos, a escravidão soma outro traço de horror incluído ao vai-e-vem da moderna urbis. Nos movimentos liberais, afinados com a França, o direito à propriedade privada reivindicada pela burguesia contra a nobreza feudal, é usado no Brasil para a manutenção da “propriedade sobre os escravos”, numa flagrante manipulação de conceitos (Da Costa, 1971, p. 93). Apesar da violência, uma rica cultura oral se instalará em plena era de um capitalismo nascente, onde um saber familiar e confiável é construído à partir das muitas matrizes culturais que se amalgamaram

lentamente pelos espaços semi-abandonados.

Cantigas, dizeres, benzeduras e ungüentos misturam antigos

conhecimentos advindos de outras raízes com os frutos da terra adaptados. Para Benjamin, esses conhecimentos, suas histórias e tradições, são riquezas transmitidas pelo artesão sedentário, ou pelo comerciante ou marinheiro viajantes. De muito longe, ou de muito antigo, sabedorias são transmitidas num tempo que só pode ser respeitado se um espaço é mantido. Tempo e lugar constroem um ritmo possível de se contar, aconselhar, vivenciar experiências e saberes (Benjamin, 1975, p.65) 1. São os fios do tempo que aproximam a história de nossas memórias. A interrupção desse narrar se relaciona ao ritmo imposto sobre os dias, no empobrecimento resultado da busca por riqueza de capital, ao custo da pobreza simbólica.

Debret

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A partir do século XIX, a sociedade patriarcal e escravocrata sente a imposição de uma “civilização” europeia que virá acelerar a transformação dos espaços sociais e o abandono de antigos hábitos, rumo a formação de novas bases ideológicas do Estado-nação. O formato dessa organização político-social se apoia na razão, na mercadoria e na lógica do lucro. A escravidão não pode ser mais acintosa, nem tão cruel, pois o que deve circular agora, não é mais a indolência do senhor de escravos, balançando em sua rede, mas novos desejos despertados pelos fetiches, pela excitação das ruas, pelo consumo, pela modernidade. E o novo tempo modifica o espaço. O mundo rural deixa de ser parâmetro de soberania, não mais a terra como pendão ou distinção, mas a contínua sucessão de vistas, de estímulos, de agilidade no saber, bem como novas formas de

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Walter Benjamin enaltece a figura do narrador, aquele que transmite suas experiências às gerações subseqüentes. Ele escreve: “Um conselho, fiado no tecido da existência vivida, é sabedoria”, mas apenas o compasso de uma vida com vagar permite que essa riqueza seja transmitida.

acumulação. As grandes senzalas são deixadas em ruínas, bem como as texturas das estradas, com novos signos já reconhecíveis. Nas andanças, buscas de pertencimento nem que seja em aglomerados caóticos, pelas obras que vão surgindo, numa paisagem que se torna mais ameaçadora que a escura selva. Custou ao negro outro século para que pudesse usufruir de uma legislação com peso equivalente a dos antigos senhores. E mesmo quando se fez lei2 foi, por muito tempo ignorada por juízes, advogados, promotores e sociedade civil. Aliás, quando a lei finalmente foi assumida, não se reconheceu o aviltamento das ações político-sociais do passado em sua indiferença criminosa sobre a formação de seu novo corpo social. Tivessem reconhecido as falhas na sustentação do novo cidadão, e ter-se-ia evitado os corpos amontoados em favelas e outras formas destrutivas de ocupação de espaço urbano, já que qualquer ocupação de espaço rural se fez proibitivo. A terra, fonte de poder e privilégio, manteve-se em interdito.

Foto anônima – Sec. XIX

Gunter - Bico de pena – Mocambos

Freyre percebe também que, após a abolição da escravatura, não houve uma dispersão dos exescravos rumo a novas fronteiras agrícolas pelo interior do território, mas um processo caótico e dolorido, onde o indivíduo, recém libertado, foi conduzido a uma diáspora confusa, abandonado a uma liberdade indigente. A libertação foi tão desastrosa e cruel que Freyre, romanticamente, afirma que, pelo menos nas senzalas, os antagonismos eram mantidos (à que preço?) em equilíbrio (Freyre, 2002, p.857). Agarrar-se ao conhecido era menos aterrador, e muitos ex-escravos escolheram permanecer nas fazendas onde se sentiam mais protegidos. Esse sentido de “proteção” tem em Machado de Assis (mulato privilegiado), uma leitura irônica:

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A chamada Lei Áurea de 13 de maio de 1888.

Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. (Machado de Assis, 2000, 19).

Depois de tanto navio de produção única, tanto navio de corpos roubados, séculos de monocultura tola e suicida, eis que negros são deixados para trás por um novo jogo desconfiado, mas veloz, do salário imigrante. Abandonados, sem proteção legal, sem formação profissional, sem estrutura territorial para abarcá-los ou estrutura produtiva para aproveitá-los, seus braços inutilizados são lançados pelas estradas. Estradas arrivistas por um fluxo mercantil dispersaram destinos postos em abandono vil sob a pecha de menor, na ingratidão sobre uma negritude constituinte do espaço nacional. Riscando o chão e mudando com o solado a paisagem de solo duro, quente e disputado pelos poderosos, enfatizou-se as marcas que a cultura imprimiu na paisagem. “Quanto mais atributos e domínios de intervenção do poder público foram desenvolvidos, mais o efeito cultural das fronteiras foi acentuado” (Claval, 2001, p.174). Perambulando estradas por trocados, servicinhos escusos que imigrantes brancos rejeitavam, a palavra “cidadania” não tinha sentido, até porque, mal havia cidades. Apartados do humanismo iluminista ou mesmo da compaixão cristã, mergulharam no limbo dos direitos legais e mesmo do direito consuetudinário. Para Freyre o passado se revestia de sonho, dor e melancolia, mas o sonho do futuro é perigosamente ingênuo e evolucionista, quando não linear, enquanto o passado, ainda que edulcorado, se alicerça sobre a memória confrontada com os dados afixados do período que lhe checa a verossimilhança.

Percy Lau - Mocambos

Quilombo de Palmares

Soltos nas estradas, o êxodo rural se deu com ex-escravos palmilhando possibilidades em novos ofícios desprezados por imigrantes e velhos colonizadores. O caboclo, figura que reuniu heranças culturais de tantas latitudes, inventa as habitações mais afeitas ao clima da terra: muita palha, muito vão, amplidão agreste de mato indócil e técnicas pouco desenvolvidas (Freitas, 1987, p.28) 3. As roças pobres refletiram sempre as lições indígenas, com a diferença que as áreas de caça foram cercadas e privatizadas. Por outro lado foram afastados do litoral todos os antigos agregados e a diáspora, mais que redentora, foi punitiva. Aos índios reservas, aos caboclos e cafusos abandono. Mudam os tratos, reduzem-se os espaços, surge um nomadismo forçado. A Lei de Terras de 1850 impedia que terras devolutas fossem ocupadas. Elas tinham de ser compradas, e a altos preços. Ficou extinto o usucapião, a grilagem e outras ocupações, garantindo a distribuição das terras para a oligarquia tradicional. Não apenas negros e caboclos foram excluídos, mas também o imigrante europeu, garantindo sua disponibilidade como mão-de-obra em substituição à tração escrava. Freyre alega uma semelhança entre duas estruturas fundiárias: a nacional e a européia feudal (Freyre, 2002, p. 1022), porém, o isolamento comum às duas não pode ser confundido com as unidades feudais auto-suficientes dos séculos V ao XV. Enquanto aquelas se organizavam independentemente de um interesse econômico centralizado, a estrutura fragmentária implantada no Brasil, foi fruto de uma organização centralizada, capitalista, intencionalmente ligada à acumulação de riquezas de uma Europa moderna, onde há a imposição da produção do lucro junto a um mercado externo, associado ao capital internacional, desde sua origem. Por outro lado, nas cidades os espaços foram ocupados por entulhos humanos, e setores são criados para delimitar e isolar comportamentos escandalosos. As ruas se encheram de seios nus de índias, mucamas e prostitutas. Embora os traçados das cidades tenham seguido projetos oficiais de Portugal, apenas os centros das cidades respeitavam as ordens da matriz 4. No alastramento de seus caminhos rumavam aos

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A rusticidade com que foi sempre tratado o solo delicado e raso como a grande maioria das áreas florestais do país com o desconhecimento de adubos, mesmo os orgânicos, salvo o rodízio de descanso, nenhuma outra técnica mais eficaz foi aplicada para a sobrevivência, seja de índios, cafusos, quilombolas, etc., associando nomadismo à agricultura itinerante. Segundo Freitas, o excesso de lavagem dos solos nas regiões equatoriais e tropicais devido às chuvas esteriliza o solo, e nas queimadas o enriquecimento do solo se dá à custa de seu esgotamento precoce. Ao contrário dos tabuleiros barrocos das cidades espanholas, o projeto colonial português partia da localização nobre da Catedral, que deveria ficar no centro do povoado, no alto de um vasto retângulo, quando houvesse mar, sempre de frente para as águas, ladeada pelo Palácio do governo, a Cadeia Pública, a Câmara Municipal e algumas casas afidalgadas, completando a forma de U de todas as praças. Dessa praça central caminhos iam se rasgando perseguindo as bicas encontradas por caminhos marcados pelos cascos de burros, jegues e cavalos, demarcando as futuras ruas, sinuosas e estreitas.

remansos para os cavalos e áreas de trocas distantes das igrejas, já que mercados, barulhentos e gananciosos, contra os Evangelhos, se deslocaram pudicamente para ruas distantes e tortuosas como medinas. A rua se tornou a inimiga, pois que palco do espetáculo de um contra-poder de sujeira e penúria.

Centro do RJ início séc. XX

Cabeças de Porco em SP

A ocupação também, insistindo em nossa frouxidão estrutural, escapou aos controles totais. O território é de se perder entre as matas e o imenso litoral recortado e isolado. Sobre o fragmento se faz novas formas de conhecimentos, abertas sobre as frestas do interdito. Canoas diversas, quase infinitas, desenham formas variadas de avançar sobre as ondas em busca de alimento. Serão mais de duzentas formas de construção de canoas, demonstrando o isolamento e a criatividade para dar soluções a um sobreviver e circular no mundo5. Assim sobrou o perder-se, trombando e criando jeitos de vivência, sobrepondo controles até então estranhos aos europeus. O país tornou-se polifônico, como diria um músico ou Bakhtin, somando e embaralhando referências e soluções. A globalização iniciada desde sempre com cada conquista e dominação entre povos, se acelera no século XV com a incorporação de novos territórios, estreitando os vínculos culturais com o dos mercados, ativando uma homogeneização sob a hegemônica europeia 6. Essa aproximação se deu pela necessidade

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Segundo a afirmação do diretor geral do Iphan, Dalmo Vieira, pesquisador e professor de patrimônio nacional “nenhum outro país possui tal diversidade de embarcações ao longo de suas costas”. Segundo Freyre, muito antes da europeização da nova colônia brasileira, já vivia por séculos sob influências diversas como a indígena, a africana, mas também, e em grande medida, o extremo oriente, de cujas colônias Portugal trazia mercadorias e costumes para a Europa. Assim, desde os espaços públicos, privados, como hábitos, gostos e vestimentas, prevaleceram outras formas culturais não europeus, até o século XIX. Essa ideia será defendida num dos capítulos de Sobrados e Mucambos, “O Oriente e o Ocidente” (Freyre, 2002, p. 1089).

imperativa do capitalismo emergente na circulação de mercadorias recebendo a denominação técnica de Capitalismo Mercantil. Na narrativa de Freyre a globalização é um ganho cultural para as culturas envolvidas. Avant la lettre confronta inclinações eugenistas de seu tempo, aprovando uma certa inclinação anarquizante onde tecnologias, arquitetura e até o sexo, misturam-se em caldeirão tropical. Nos séculos XVIII e XIX a urbanização do patriarcalismo introduziu um maior individualismo, lasseando formas de controle sobre filhos, mulheres e escravos, agora mais soltos da rotina doméstica. E a rua “outrora só de negros, mascates e moleques, se aristocratizaria” (Freyre, 2002, p. 740). Mas este processo não se sustenta por muito tempo pois, sob a pressão de mercado a memória se esgarça e se esvai, pisoteada pela velocidade do fluxo que corta as cidades, impondo transformações na circulação, nas fachadas, na modernidade. As criações de pedra e cal, de mármore, de bronze com que as famílias patriarcais ou tutelares pretenderam firmar seu domínio não só no espaço como no tempo – começou a ser quebrado à vista de toda a gente (Freyre, 2002, p. 749).

Percorremos ruas com os rastros de tempos sobrepostos, limitantes ao convívio, isolados ao mundo privado, privilegiado ou indigente em confinamento. Memórias sobrepostas de lutas presentes, espaços que se acusam, como balaustradas carcomidas sobre cornijas anacrônicas, cujos sobrados senhoriais são transformados em cabeças-de-porco. Casarios inteiros ecoando fantasmas da senzala como do sobrado senhorial em palimpsestos de descaso sistemático da administração pública sem projeto, insistindo em ações predadoras, atraindo o caos, a desconfiança e a violência. O que domina condena ao deboche clássico de Getúlio Vargas chamado pai-dos-pobres, mas sabido mãe-dos-ricos: “Aos amigos tudo, aos inimigos os rigores da lei”, foi um ditado que ficou. De qualquer modo o ritmo das urbis começou a se impor, inundadas por “carruagens velozes em vez de palanquins lentos”. Com a vertigem do novo, também chegaram os “cortiços, preferidos aos mucambos pelo proletariado de estilos de vida mais europeu”. Espremidos entre paredes, os europeus não ousaram se espraiar nas sombras das matas, ou dos coqueiros das praias. A cidade se verticalizou, subindo morros, escapando aos impostos e a infraestrutura sanitária precária, distante e luxuosa, confirmava hábitos insalubres e horripilantes de se ver corpos humanos e de animais, além de outros despejos ondulando pelas

praias e riachos.(Freyre, 2002, p. 881). No início da industrialização, ainda uma constelação de fazeres étnicos, campos de memória permeáveis de vestígios, lembranças e desejos se misturam às mulheres aprisionadas, aos meninos espancados e os trabalhadores sem direitos, numa paisagem de azulejos com chafariz, e tantos doces de origens borradas, onde as evidências do Oriente ficam “dissolvidas nas predominâncias do Ocidente sobre a Ibéria” (Freyre, 2002, p. 1086), e onde o exótico começa a se homogeneizar.

Alagados no Recife

Quilombolas atuais

A ilusão de permanência e eternidade, das velhas paisagens, sucumbem aos horizontes urbanos, inquietos e cambiantes. A cidade é tão impressionante por trazer em sua paisagem o contraditório entre o eterno e o descartável. Construída sobre pedras e tijolos, a cidade se reconstrói freneticamente, produzindo o deslumbramento frente “o eterno do transitório” como Baudelaire denominou a modernidade (Baudelaire, 1996, p. 10). A cidade se constrói como uma casa de espelhos. Espaço real ou ilusório, se converte em teatro, onde as distinções do jogo social surgem como jogo cênico. Relações que se percebem e, onde tudo é objeto de percepção. Os símbolos de tempos passados, confusos em citações de linguagens distantes, misturam vozes passadas e alhures entoando cantos que se cristalizaram num ritmo de ser e de olhar, não planejado. Foram sendo embaralhados difundindo uma mescla que se deu na pele, na cultura, na forma do espaço se impor e se construir, ainda que não de forma política oficial, mas como ação política real. As ruas são ocupadas por novos rituais que Alcântara Machado enxerga as novidades modernas pelo pitoresco:

Domingo carnavalesco. Serpentinas nos fios da Light. Negras de confete na carapinha bisnagando carpinteiros portugueses no olho. O único alegre era o gordo vestido de mulher. Pernas dependuradas da capota dos automóveis de escapamento aberto. Italianinhas de braço dado com a irmã casada atrás. O sorriso agradecido das meninas feias bisnagadas. Fileira de bondes vazios. Isso é que é alegria? Carnaval paulista (Machado, 1978, p. 83).

Parece só existir um modo de ser receptivo em relação às transformações: inserir a desorientação no interior dos próprios horizontes, abandonando-se à perda, usufruindo a própria perdição e remapeando continuamente o nexo psiquê-território. Como lembra Canevacci que pensa o espaço urbano pelos signos e sinais, para manter afinidade com o narrador benjaminiano deve-se tornar familiar o que é estrangeiro e estranho o que é familiar (Canevacci, 2004, p. 105). Freyre percebe a justaposição de costumes, dando provas do jogo de poder que se instaura pela ampliação dos mercados. É preciso que os padrões sejam seguidos para facilitar a aceitação das mercadorias, nem que para isso surjam justificativas teológicas, higiênicas, estéticas, ou mesmo pressões competitivas entre campo e cidade, entre matriz e subalternos colonizados. Nas maiores cidades brasileiras, no início de sua industrialização, os espaços simbólicos são reformados por vergonha de seus rastros passados.Tentaram apagar vestígios rurais, escravocratas, ou periféricos de todo jeito. Ganhou-se os excessos de estilos híbridos como o chamado “eclético” que misturava França, Oriente Médio e pitadas de inventividade local (Reis Fº, 2006, p.182). Mas a pobreza insidiosa se esgueira pelos espaços esquecidos ou pouco vigiados e ali se instala, perigosamente, acusando os disparates de uma urbanização feita pelos desígnios do capital internacional, onde cortiços, cabeças-deporco, favelas e mucambos, na lama ou no seco, no morro ou nos centros das cidades, deterioram o que não chegou a se fazer novo, confirmando a melancólica percepção de Lévi-Strauss7. Nas áreas onde Estado e classes governantes abandonam ou ignoram, espaços ganham novas funções. Favelas substituindo senzalas, camburões substituindo feitores, fundamentais para a manutenção do ritmo apropriado à produção e

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Em Tristes Trópicos o antropólogo constatou que as cidades do continente americano sofriam da ânsia pela modernidade, tendo surgido sob as regas do capitalismo mercantil, num ritmo não apenas frenético, mas, destruidor: “... las ciudades del Nuevo Mundo pasan diretamene de la lozania a la decrepitud, pero nunca son antigua (...) Para las ciudades europeas, el paso de los siglos constituye uma promoción; para las americanas, el de los anõs es uma decadencia. No solo están recientemente constuídas, sino que lo están para renovarse com la misma rapidez com que fueron edificadas, es decir, mal”. (Lévi-Strauss, 1996, p.97 e 106).

acumulação de bens e riquezas, e onde imigrantes e migrantes ilegais escamoteiam a exploração desvairada sob o Contrato Social.

Cortiços sobre antigos casarões urbanos

Fachadas coloniais restauradas

Mário de Andrade sai arquivando, catalogando, transformando em etiqueta, em turismo, em categorias nacionais. Tomba cidades, ruas e monumentos desde 1937, mas ficamos entre o folk-lore, o esquecimento e a violência dos bolsões de abandono onde os assassinatos reincidentes das cidades que se curvam às grandes vias, à grande lei da circulação. Tardiamente acabamos pelas leis de Haussmann 8 que inaugura a paisagem dolorosa e feroz da “destruição para o novo”. Essa escolha virá abraçada pela busca de Identidade Nacional do Estado Novo. Embora o patrimônio histórico congele, tombe, enquadre, perfume, a memória oficial tenta revitalizar e revalorizar às vezes, o que já morreu, faliu, mudou, aboliu, fugiu, tentando retomar com a nobre chancela da “cultura oficial”, reconhecendo suas ladeiras, esquinas, prostíbulos, bebedouros, mictórios. São a culpa, o sonho, a fantasia, a busca por madeleines proustiana e, claro, novas fronteiras de novos investimentos onde, setores recuperem valor de mercado. Nas intervenções cuja intenção é o “restauro”, há que se ter em mente os limites do resgate das eras. Arquiteturas e vias podem ser reconstituídas, passarem por novas feições plásticas e cênicas, porém, já se calaram e não nos contam mais dos vagares dos séculos passados. Paraty vem de manso falar dos ataques piratas, suando entre ondas e pedras as batalhas sofridas em suas velhas ruas tortuosas, e Cunha esburacada

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Prefeito fáustico de Paris do início do século XIX, responsável por sua remodeção, adapatando-a à modernidade industrial, varrendo seu passado feudal quando era conhecida como Lutécia, e promovendo sua nova designação de “Cidade Luz”. Essa imensa reforma custará anos de obras, o fim de um milenar modus vivendi e a vitimização de milhares de habitantes que atravessam uma transformação tão conturbada e profunda. Essa modernização, dolorosa e fascinante, será tema de toda a vida e obra do grande Baudelaire, analisado por Walter Benjamin e por Marshall Berman.

de balas, heróica em batalhas de emboscada na Revolução de 1932. Outras ainda surgem, entre histórias inventadas e reais como a doce Blumenau, que se recriou numa ideia menos memorialista do que turística, oferecendo descontos de IPTU para os reformadores em pseudo-enchaimel 9. As revitalizações serão buscas dos valores espirituais de um período, por sobre as dores perdidas dos conflitos expostos em espaços reinventados.

Ocupação movimento sem-teto na Av.Ipiranga – SP

Antigas cantigas, lamentos de escravos, jogos infantis e fachadas de novos lares, passam a monologar perdidas por velhas cidades. Sem ecos trazidos pela memória, os novos espaços levam os corpos citadinos aos afazeres industriais, embotados nos ritmos produtivos, menosprezando e esquecendo dores, cantos, folguedos, fazeres e visões familiares. Desde as referências escritas, poemas, ficções, teatros, teorias, Freyre, Oswald e tantos outros, inclusive o cancioneiro popular 10, afirmavam ideia de uma tristeza inerente, nativa, atávica. Mas uma ideia de alegria associada a formação do povo brasileiro vai se instalando após a ditadura, combatendo os slogans dos opositores, subversivos ou não, que apontavam o nível de infelicidade a que a população era submetida, censurada e esquecida. Um novo mito estava sendo inventado, contrapondo as críticas expostas pelos muros, folhetos e outras formas perseguidas de expressão. A alegria assumirá novos contornos de verdade após a Copa de 70, quando a oficialidade, apoiada em publicidade pesada, passam a “vender” a ideia de um povo alegre e festivo (Autran, 1979, p.95)11.

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Blumenau resolveu assumir visualmente seu passado alemão depois de ter sofrido uma enchente trágica que quase destruiu a cidade em 1983. Mas sua recuperação, como a Oktober Fest foi uma estratégia para se reinventar financeiramente, não por tradição. Ela virou uma cenário, mas se reergueu. 10 Os cantores famosos de um período anterior à ditadura cantavam serestas, boleros, samba-canções e estavam associados à melancolia e sentimentalismo. Embora a contracultura tenha provocado uma mudança nos parâmetros estéticos em geral, no Brasil, a ditadura apoiou a “alegria” ideológica. 11 “O Mnistro Ney Braga, em janeiro de 1975 disse que havia um grande interesses do governo em conquistar a simpatia popular, o que só pode ser feito através de artistas ou jogadores de futebol”.

Moda, show business em geral, música em especial, a indústria cultural como um todo, irá assumir (alegremente?) a nova ideia, vendendo-a por sobre todas as formas passadas de injustiça e insatisfação. O Brasil passará a ser conhecido como um povo feliz e alegre, reafirmado pela publicidade, pelo turismo e outros órgãos oficiais, incluindo o Ministério da Educação, onde essa ideia será incessantemente difundida. Sob a Política Pública da Alegria serão privilegiados equipamentos associados ao Carnaval em detrimento de cadeias, transporte e escolas públicas, reduzidos a um número mínimo, desajustados em relação à demanda social. As leituras de novos espaços, quando não estão associados ao jogo violento da reafirmação de status (sinais de riqueza ostensivo), ou ao jogo violento das gangues de excluídos (e toda a imagem de miséria associada a elas, mesmo em suas manifestações “artísticas”, como as pichações que se alastram pelas grandes cidades), tentam garantir o cenário fictício da felicidade.

Arquitetura e urbanismo se apoiam, desde os anos setenta do século XX, na manutenção de um palco esquizofrênico entre as citações pós-modernas de uma história que nos é estranha, aos cacos permanentes de um nacionalidade que se construiu caótica e abandonada de qualquer projeto de inclusão de cidadania, nem que fosse por um funcionalismo prevenindo conflitos tão contraproducentes ao fluxo da circulação do capital. Assim, sobre uma estratificação criminosa constuiu-se um alegre refrão de felicidade, ao invés de investimentos por melhores condições sociais, deixando que o abandono e a impunidade aos responsáveis por tal dolo prescrevesse. Mas como dizia Jorge Luis Borges parafraseando Carlyle, não importa a verdade, basta que acreditemos e a História será oficial. Gláucia Costa de Castro Pimentel

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