ESPAÇO, PERCEPÇÃO E HOMOEROTISMO EM KILDER: MY DREAM OF SUMMER, DE ANTONIO DE PÁDUA DIAS DA SILVA

July 24, 2017 | Autor: Hudson Marques | Categoria: Teoria Literaria, Topoanálise
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ESPAÇO, PERCEPÇÃO E HOMOEROTISMO EM “KILDER: MY DREAM OF SUMMER”, DE ANTONIO DE PÁDUA DIAS DA SILVA Hudson Marques da Silva (UEPB/IFPE)10 INTRODUÇÃO O presente artigo objetiva analisar o conto homoerótico “Kilder: my dream of Summer”, do escritor paraibano Antonio de Pádua Dias da Silva. O conto compõe a obra Um dia me disseram que as nuvens não eram de algodão (2007), a qual reúne um conjunto de contos homoeróticos. Em uma perspectiva que tenta romper com as barreiras erigidas pelo preconceito e falso-moralismo presentes na sociedade, ou seja, visando e reafirmando as relações homoeróticas como algo natural, esta análise focará os elementos espaciais e sensoriais para a construção dessas relações, tendo em vista que tais componentes são bastante relevantes em grande parte dos contos desse autor. O cenário, a natureza, os ambientes, as fronteiras, os topônimos e as coordenadas espaciais (visão, audição, olfato, tato e paladar) são fundamentais para a construção das imagens, desejos e climas presentes na relação homoerótica, pois, além da simbologia e do clima presentes nos ambientes, a percepção das personagens ocorre, sobretudo, pelos sentidos, havendo uma atenção especial para o corpo, visto que “Pensar na sexualidade em geral e na homoafetividade em particular, remete-se logo a atenção ao corpo, pois é basicamente nele onde se marcam as práticas subjetivas da homoafetividade”. (DOMINGOS, 2009, p. 29) Desse modo, a metodologia de análise levará em consideração a topoanálise apresentada por Borges Filho (2007), que fornece um roteiro para observação dos elementos espaciais e sensoriais no texto literário, destacando como esses elementos são fundamentais para uma compreensão ampla dos efeitos de sentido construídos pelo autor.

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Mestrando em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba e Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco – Campus Belo Jardim.

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INVENTÁRIO DOS ESPAÇOS, FRONTEIRAS, COORDENADAS E TOPÔNIMOS Durante muito tempo, a crítica literária parece não ter dado a devida atenção ao estudo do espaço na literatura. Existem muitos estudos sobre o tempo, tema que oferece uma vasta bibliografia, porém, afirma Borges Filho (2007), é raro encontrar um livro que trate do espaço em uma perspectiva teórica. Por conseguinte, observar o modo como as personagens se relacionam com ou no espaço na obra literária é fundamental para uma ampla compreensão acerca de suas ações, sensações e desdobramento do enredo, uma vez que os processos de percepção da realidade ocorrem, principalmente, por meio da experiência entre gradientes sensoriais e o mundo externo, incluindo aqui sujeitos e objetos situados em um determinado espaço. A tal estudo, denomina-se topoanálise, termo utilizado por Bachelard (apud BORGES FILHO, 2007, p. 33): “A topoanálise seria então o estudo psicológico sistemático dos locais de nossa vida íntima.” Nesta seção, a topoanálise será utilizada a fim de melhor compreender a construção da relação homoerótica, tendo em vista ações, climas e desejos manifestados a partir dos ambientes, entre o narrador-personagem (inominado) e Kilder, as duas personagens do conto em questão. Primeiramente, apesar de existirem algumas discussões, principalmente no campo da geografia, sobre as distinções entre espaço e lugar, será adotada aqui a visão de Borges Filho, segundo a qual “[...] espaço e lugar são tomados como sinônimos e se definem como tamanho, forma e relação de um corpo com o outro”. (BORGES FILHO, 2007, p. 18). Essa relação engloba tanto sujeito-objeto quanto sujeito-sujeito, como observa o mesmo autor: “[...] lugar compreende nossas necessidades de [...] interação com objetos e com pessoas”. (BORGES FILHO, 2007, p. 21). Partindo desse arcabouço teórico, serão considerados no conto o cenário, a natureza, os ambientes, as fronteiras, os topônimos e as coordenadas espaciais. Cenário O termo cenário diz respeito aos “[...] espaços criados pelo homem.” (BORGES FILHO, 2007, p. 47). Portanto, no conto, o cenário é composto pelos espaços onde as personagens transitam: um quarto de hotel com sacada de frente para o mar, em seguida, um quiosque e um muro na orla, depois um ônibus, e, por fim, o corredor e o quarto do mesmo hotel. A narração-descrição é feita pelo narrador-personagem.

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O cenário é característico de quem está em viagem de férias (por estar hospedado em um hotel) em estação de verão (por estar à beira-mar em dia ensolarado). Natureza Denomina-se natureza “[...] os espaços não construídos pelo homem.” (BORGES FILHO, 2007, p. 48). O narrador descreve a natureza pelo mar calmo, o sol claro e quente e o céu azul, elementos estes que remetem à estação de verão, incluindo o título do conto, o qual faz alusão à comédia Shakespeariana Sonho de uma noite de verão. O narrador estabelece ainda uma relação metafórico-poética entre o sentimento de seu envolvimento com Kilder e elementos da natureza no seguinte trecho: “Era preciso [...] bordar no vento um grito de esperança e fazer do sol um raio de felicidade.” (p. 27). O vento representa a esperança, pelo seu impulso e força que poderiam ser catalisadores para uma nova vida. O sol, por sua vez, é a felicidade, pela luz que simboliza o divino. Além de cenário e natureza, há ainda os espaços híbridos, que, segundo Borges Filho (2007, p. 49), são “espaços que participam tanto da natureza quanto do cenário.” Nesse sentido, além do jardim citado no início do conto (p. 25), a junção do cenário do hotel com a natureza à beira-mar pode ser classificada como um espaço híbrido. Ambientes Por ambiente, entende-se a soma de um cenário ou natureza com um clima psicológico. Desse modo, cada espaço apresentado no conto representa também um ambiente, já que é criado um clima psicológico (neste caso homoerótico) para cada um deles. Apesar de, na maioria dos contos, o enredo ocorrer em apenas um espaço (monotopia), o conto em questão caracteriza-se como politópico, pois “Quando uma narrativa possui diversos espaços pelos quais as personagens se movimentam e se relacionam teremos uma politopia narrativa.” (BORGES FILHO, 2007, p. 104, negrito do autor). Os ambientes (também cenários e natureza) criados na narrativa são: o quarto de hotel, psicologicamente criado como calmo – pelo silêncio e pelo som da natureza –, em seguida, um contraste com “[...] pessoas na areia, carros buzinando, trânsito agitado.” (p. 25), os primeiros contatos pelo olhar, das personagens, na orla; o contato físico (toques) dentro de um ônibus e, finalmente, a relação sexual no quarto do hotel. Fronteiras

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Fronteira é a barreira que separa espaços ou personagens. No conto, existe uma barreira que, a priori, separa as duas personagens: a parede que separa os dois quartos: “Separado de mim por uma enorme parede.” (p. 25). Existem dois tipos de fronteira: artificial e natural. Neste caso, tem-se uma fronteira artificial, que “[...] é aquela estabelecida sem se levarem em conta os acidentes geográficos, portanto, é construída artificialmente.” (BORGES FILHO, 2007, p. 106). A fronteira natural, por sua vez, “[...] é estabelecido através de características geográficas tais como um deserto, um rio, uma montanha, etc.” (BORGES FILHO, 2007, p. 106). Entretanto, essa fronteira é rompida, o que não vem a causar uma tensão. Assim, tratase de uma fronteira distensa. Em obras em que há uma fronteira tensa durante todo o enredo, tem-se uma bitopia, o que não ocorre na narrativa analisada. Há ainda outra situação, no conto, que poderia ser tratada como uma possível fronteira. No momento em que as personagens descem do ônibus, envolvidas em um forte clima de desejo, deparam-se com uma relação de contraste: o trânsito agitado; o qual poderia romper com o ambiente vivenciado, por isso, as personagens apressam-se de volta ao hotel: “Descemos rápido, não permitimos que o trânsito carregasse nossos desejos.” (p. 27). Neste caso, o trânsito surge como algo corrente que quebra, psicologicamente, o desejo latente, caracterizando-se, pois, não como uma fronteira artificial ou natural, mas psicológica. Topônimos No processo de construção da relação personagem-espaço, é importante observar os topônimos. Segundo Borges Filho (2007, p. 161), “[...] toponímia significa o estudo dos nomes, próprios ou não, dos espaços que aparecem no texto literário.” Na ficção, os topônimos podem construir relações de semelhança (quando o espaço criado é enfatizado e está em harmonia com a personagem), contraste (quando a descrição entra em conflito com o espaço) ou indiferença (quando não estabelece nenhuma ligação com o espaço). No conto, podem-se considerar, como topônimos de semelhança: o quarto e sacada do hotel, uma vez que, nesse espaço, o narrador-personagem encontra-se em profunda harmonia: “De lá, só o horizonte perdido nos meus pensamentos.” (p. 25), o corredor do hotel: “[...] sigo os passos dele ao longo do corredor [...]” (p. 26), o ônibus: “A cada curva que o ônibus fazia, nossas cinturas se encontravam [...]” (p. 26) e o principal: a cena final do quarto, onde a tão desejada relação amoroso-sexual entre as personagens é realizada. Existem duas cenas em que há uma relação de contraste: as pessoas na praia e os carros buzinando, ao mesmo tempo em

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que as personagens encontram-se no quarto calmo do hotel com vista para o mar e o transito agitado quando as personagens descem do ônibus. Todavia, tais topônimos não permitem o corte dos ambientes harmônicos predominantes que contribuem para o desfecho da narrativa. Antíteses A narrativa apresenta várias antíteses, que, diferentemente do paradoxo, consistem em opostos que se aproximam/harmonizam/complementam. No início, tem-se o quarto calmo, com vista para o mar e para o horizonte azulado em antítese com pessoas na praia, carros buzinando e trânsito agitado. Trata-se de dois ambientes paralelos: o das outras pessoas e o das personagens. Na relação amoroso-sexual entre as personagens, surgem vários contrastes: “Kilder paciente, eu avexado. Kilder receptivo, eu perfurando. Amor e sexo pareciam uma tímida combinação [...] Violação consentida, sujeição consciente [...] O corpo pesado sobre o corpo magro.” (p. 28) Nesses trechos, pode-se identificar a personagem Kilder como alguém brando, representando o amor, enquanto o narrador-personagem, mais proativo, sendo relacionado ao sexo. No ato sexual, a ambiguidade das antíteses: “[...] oco mais cheio, do vazio mais preenchido, da lacuna não mais vaga.” (p. 29), que pode tanto se referir à penetração em si quanto ao novo significado que sua vida vazia adquire. Coordenadas Espaciais Outro aspecto a ser observado em uma topoanálise são as coordenadas espaciais. Trata-se das relações de lateralidade (direito/esquerdo), frontalidade (diante/atrás), verticalidade (alto/baixo), prospectividade (perto/longe), centralidade (centro/periferia), amplitude (vasto/restrito) e interioridade (interior/exterior). Tais coordenadas podem estabelecer efeitos de sentido importantes no texto literário. Um exemplo é quando o narrador-personagem descreve Kilder como um “[...] rapaz de estatura mediana.” (p. 26). Para tal definição, o narrador-personagem teve de considerar a lateralidade, a verticalidade e a frontalidade. No conto, foi identificada a presença repetida da lateralidade, com foco especial para o lado direito, começando pelo quarto de Kilder, que ficava do lado direito em relação ao do narrador-personagem. Em seguida, surgem outros trechos: quando estão na orla: “[...] e no quiosque do lado direito também parei.” (p. 26), no ônibus: “[...] acheguei-me ao lado direito.” (p. 26) e “[...] os olhos novamente se encontraram numa curva à direita.” (p. 27); e,

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no hotel, “Diante dos quartos, a dúvida: direita ou esquerda? Ele abre a porta do quarto dele, eu não entro. Abro a porta do meu quarto, estamos dentro.” (p. 27). Neste caso, o quarto do narrador-personagem ficava do lado direito em relação ao de Kilder, já que ambos estavam no corredor. Portanto, Borges Filho (2007, p. 57) afirma que “[...] deve-se atentar para a oposição que forma a lateralidade, ou seja, as idéias de direito e esquerdo. Assim, também cumpre verificar os traços do positivo e do negativo que estão espelhados nesse eixo.” O mesmo autor ressalta que “[...] na maioria dos povos, há uma predominância da lateralidade direita sobre a esquerda, principalmente da mão direita sobre a esquerda na prática de atividades que exigem destreza.” (BORGES FILHO, 2007, p. 59). Se isso é verdadeiro, poder-se-ia dizer que o lado direito representa o positivo, o mais forte, o seguro. A relação homoafetiva entre as personagens estava positivamente apoiada pela lateralidade direita. OS GRADIENTES SENSORIAIS O ponto principal a ser tratado neste trabalho consiste na análise do homoerotismo presente no conto a partir dos gradientes sensoriais. “Por gradientes sensoriais, entendem-se os sentidos humanos: visão, audição, olfato, tato, paladar.” (BORGES FILHO, 2007, p. 69). A percepção que os humanos e, por conseguinte, as personagens ficcionais têm do mundo é construída por meio desses gradientes. Visão De acordo com Borges Filho (2007, p. 72), “Entre os cinco sentidos tradicionais, destaca-se a visão. Pode-se até afirmar que o ser humano é um animal visual. A visão é o primeiro sentido através do qual o ser humano entra em contato com o mundo.” Por meio da visão, o narrador-personagem descreve a vista da sacada do quarto de hotel: o horizonte, com o céu e o mar azuis. “Símbolo do céu e do mar, o azul também simboliza o infinito, as alturas iluminadas, a imaterialidade, o divino.” (BORGES FILHO, 2007, p. 83). Pela visão, o narrador-personagem faz a descrição de Kilder: “A camisa salmão levemente contornando o peito. Cabelo muito aparado nos trinta e alguns anos daquele branco rapaz de estatura mediana.” (p. 26), “Os pêlos [...] claros. A boca trêmula e pequenos lábios.” (p. 27), “[...] pêlos claros na pele muito clara.” (p. 27). Observe que nesses trechos há uma ênfase à cor branca/clara. Segundo Borges Filho (2007, p. 79), “O branco pode simbolizar luz, pureza, espiritualidade, intemporalidade e o divino.” Essa ideia concorda com a descrição de Kilder realizada a partir das antíteses mostradas anteriormente. Kilder é um rapaz de trinta e

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poucos anos, magro, calmo, de cor clara; é descrito como leve. Para reforçar a ideia da leveza a partir da cor clara, o ambiente também se funde: “A luz clara do ambiente naquela pele quente.” (p. 27). Sentados no muro da orla, as personagens observavam o movimento. Neste momento, o desejo aflorava pela visão: “Ele quis me penetrar com o olhar.” (p. 26) e, como se bastasse a visão para compreender o que estava ocorrendo, o narrador-personagem exclama: “[...] o nãodito já era visível.” (p. 26). De volta ao hotel, a camareira consente a relação entre eles pelo olhar: “Uma camareira olha como que permitindo.” (p. 27). No quarto: “[...] Kilder me fita e fixa o olhar em tudo o que pensei possuir.” (p. 27), “A ausência de pêlos naquela barba raspada. O rosto afilado na composição do crânio. Um belo par de olhos a me consumir [...] O design do corpo [...]” (p. 27). Audição Segundo Borges Filho (2009, p. 176), “Os olhos captam informações do espaço de maneira mais abundante e precisa que os ouvidos.” Os sentidos pela audição são construídos não apenas pelos sons, mas também pela ausência deles. O silêncio pode ter vários significados como calma, relaxamento ou solidão. E esses significados podem representar conotações positivas ou negativas de acordo com cada indivíduo. A calmaria do quarto do hotel é representada pelo silêncio. O silêncio também significa a passividade de Kilder, que até aquele momento não se tinha dado conta de seu admirador: “Quase nenhum barulho na sacada ao lado. Ele ainda não me sacou.” (p. 25). O narrador-personagem percebe que Kilder saiu do quarto pela audição: “A porta bate levemente, é ele saindo.” (p. 26). Interessante notar que, no conto, não há diálogo entre as personagens, sendo o gradiente auditivo construído a partir de ruídos e silêncio: “Sem palavras sabíamos que era possível aquele dia.” (p. 26-27). Na relação amoroso-sexual entre as personagens, o acirramento do desejo também é mantido pela audição: “Vozes sussurradas mordiscavam a orelha e a nuca.” (p. 29). Olfato De todos os sentidos, ao olfato é dada uma atenção especial nos contos de Antonio de Pádua Dias da Silva. Ao captar os cheiros, no que se refere aos animais, “Esse sentido é primordial nos processos de alimentação e acasalemento.” (BORGES FILHO, 2007, p. 98). O cheiro é elemento fundamental na construção do desejo homoafetivo no conto em questão.

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Borges Filho (2007, p. 98) chama a atenção para o fato de que “[...] o odor pode mais facilmente que os outros sentidos evocar lembranças, carregadas emocionalmente.” Nesse âmbito, quando ainda no quarto do hotel, o narrador-personagem aponta o cheiro como um dos primeiros indícios de sua atração por Kilder: “[...] o vento me ajuda a sentir de perto o cheiro [...] de outro [...] Do lado direito, o cheiro. Forte cheiro a evolar-se.” (p. 25). Como Kilder estava se aprontando para sair, o cheiro pode estar ligado ao seu perfume. E o narrador-personagem continua: “O cheiro me provoca, me atrai [...] Fosse minha mãe conversando, diria ser cheiro de homem. Sei que é isso e mais alguma coisa. Sei, por exemplo, que o cheiro de homem não é o cheiro de Kilder, embora ele seja homem.” (p. 26). Nesse trecho, o cheiro de Kilder não é cheiro de homem, porque este termo generalizaria (qualquer homem) e Kilder é um homem especial, o que se pode constatar pela afirmação “Sei que é isso [cheiro de homem] e mais alguma coisa.” (p. 26). Essa especificidade de Kilder indica não só que ele é especial para o seu admirador, mas que se trata de um homem diferente, pois cheiro de homem alude a um estereótipo mais primitivo, viril, o que não se enquadra em Kilder, que é passivo, leve. O narrador-personagem segue o rapaz guiado pelo cheiro, como o faz a maioria dos animais: “[...] sigo os passos dele ao longo do corredor, atraído que estou pelo cheiro.” (p. 26). Nesse momento, o admirador encontra-se em uma espécie de entre-lugar que pode ser observado nos seguintes trechos: “Entre o seu cheiro e o de homem: toda uma estação no intervalo.” (p. 26) e “Nada de mofo na vida, apenas a terceira margem.” (p. 27-28). A terceira margem é um lugar que não existe (pois um rio só possui duas margens), é uma dimensão simbólica também apresentada no conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa. No ato sexual entre as personagens, “O cheiro de droga masculina, agora aquele cheiro de homem. O forte perfume no corpo [...]” (p. 28), “Entre um esfregar e outro, um cheiro na nuca.” (p. 29). Tato A partir deste gradiente, já se pode observar que há uma relação de aproximação entre os gradientes sensoriais. Entre os gradientes visão, audição, olfato, tato e paladar; a visão é o pólo mais distante, enquanto o paladar é o mais próximo na relação com o mundo externo (sujeitos, objetos e espaço). Desse modo, o tato consiste no primeiro contato físico com o outro. Borges Filho (2007, p. 93) destaca que “Ver ainda não nos garante a verdade, é preciso tocar, como bem exemplifica a atitude de Tomé no famoso episódio do Evangelho.”

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Hall (apud BORGES FILHO, 2009, p. 180) afirma que De todas as sensações, o tato é a experiência mais pessoal. Para muita gente, os momentos mais íntimos da vida estão associados às texturas cambiantes da pele. A resistência endurecida, semelhante a uma couraça, diante do toque indesejado, ou as texturas excitantes, sempre em transformação, da pele durante o ato sexual, bem como a qualidade aveludada da satisfação depois, são mensagens de um corpo para outro, com significados universais.

Sendo o tato a experiência mais pessoal, o primeiro contato por esse gradiente só ocorre quando as personagens encontram-se no ônibus: “Os dedos começaram a se tocar: mão sobre mão.” (p. 26). Em seguida, no corredor do hotel: “Lá, no andar dos quartos, uma tentativa de toque.” (p. 27). Assim como a ausência de diálogo, todo o desejo entre as personagens é construído, inicialmente, sem nenhum contato físico. Apenas na cena final, com o ato sexual, as personagens, de fato, exploram esse gradiente: “Tocou levemente a minha face, rastreou os caminhos de minha pele, fez-me vibrar em contato com aqueles dedos, com aquela mão absurda. A pele fina e branca de seus dedos. Os dedos finos e firmes [...] Os pêlos lisos [...] Beijos e beijos e tantos beijos sobre abraços [...] pele quente.” (p. 27), “Um toque no ‘colarinho’, um arrepio [...] O toque na pele do outro, o pêlo eriçado [...] Gotas de líquido quente já em marca nas cuecas.” (p. 28). Uma das qualidades táteis, dentre distinguir liso, crespo, fino, grosso; é o quente e frio. Paladar É interessante destacar que o paladar é o gradiente mais próximo na relação com o mundo exterior e, entretanto, com o qual menos se percebe o espaço, pois, como diz Borges Filho (2007), ninguém sai comendo uma casa ou outros objetos espaciais. Todavia, com o paladar, além de se poder saborear, pode-se ter um instrumento (fálico) de performance sexual. No conto, o narrador-personagem fala, metaforicamente, do “[...] gosto do outro.” (p. 25). Além de existirem os beijos: “O beijo de Kilder naquela pequena boca que se abria para minha língua.” (p. 28), “Aquela arquitetura não abandonada sendo desflorada por minha penetrante e úmida língua.” (p. 28). Portanto, nota-se nesta análise pelos gradientes sensoriais que, ao longo da narrativa, houve uma relação entre a aproximação física das personagens e os sentidos mais utilizados, começando pela visão, audição, olfato e terminando com o tato e o paladar. Desse modo, isso pode ser representado pelo seguinte esquema:

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Visão Audição Olfato Tato Paladar CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho tratou de uma análise literária do conto homoerótico “Kilder: my dream of Summer”, de Antonio de Pádua Dias da Silva, a partir dos elementos espaciais (topoanálise) e dos gradientes sensoriais (visão, audição, olfato, tato e paladar), ambos desenvolvidos por Ozíris Borges Filho (2009; 2007). As construções literárias observadas rompem com os padrões preconceituosos, buscando proporcionar a aceitação e naturalização tanto das relações homoafetivas quanto da teoria literária perante tal temática. Na construção da relação erótica (neste caso homoerótica), percebeu-se a importância do espaço como elemento que proporciona situações e climas entre as personagens. Enquanto, por um lado, a serenidade da praia e do quarto de hotel e o ônibus apertado caracterizaram ambientes favoráveis ao desejo e aproximação respectivamente entre as personagens, do outro, os transeuntes e a agitação da cidade poderiam ser fronteiras psicológicas capazes de quebrar essa construção. Além dos espaços, os gradientes sensoriais foram fundamentais para a percepção do homoerotismo desenvolvido no conto. Notou-se uma relação de estreitamento entre os gradientes sensoriais, apontando a visão e o paladar como dois pólos opostos. Analisando a percepção das personagens pelos gradientes sensoriais, foi possível observar suas sensações no processo de desenvolvimento do desejo pelo outro e como isso ocorreu na relação com ou no espaço. Por fim, este trabalho, além de apresentar a topoanálise como método que pode atentar para detalhes e sensações construídas a partir das relações homoafetivas, de certo modo, também busca divulgar autor e obra literária de temática gay contemporânea que subverte padrões preconceituosos. REFERÊNCIAS

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BORGES FILHO, Ozíris. Espaço, percepção e literatura. In: ______; BARBOSA, Sidney (Orgs.). Poéticas do espaço literário. São Carlos, SP: Claraluz, 2009. p. 167-189. ______. Espaço e literatura: introdução à topoanálise. São Paulo: Ribeirão Gráfica e Editora, 2007. DOMINGOS, J. J. Discurso, poder e subjetivação: uma discussão foucaultiana. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2009. ______. Kilder: my dream of Summer. In: ______. Um dia me disseram que as nuvens não eram de algodão: contos homoeróticos. João Pessoa: Editora Universitária, UFPB, 2007. p. 25-29.

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