Espaços Autobiográficos nos Feminismos contemporâneos: A Imaginação Criativa em Norma Telles

August 20, 2017 | Autor: Margareth Rago | Categoria: Cultural History, Michel Foucault, History of Feminism
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Espaços Autobiográficos nos Feminismos contemporâneos:
A Imaginação Criativa em Norma Telles


Margareth Rago – Unicamp


Num mundo marcado por enorme violência e pessimismo, inquieta-me a busca de outras formas de luta política, crítica cultural e criação libertária que se desenvolvem subrepticiamente, quase que marginalmente, transformando os padrões culturais, desafiando o regime de verdades instituído, abrindo espaços para deslocamentos subjetivos e coletivos. Sou movida pelo desejo de perceber as manifestações e os pequenos movimentos que explodem num nível molecular e que podem tomar importantes dimensões, desde que sejam potencializados.

Penso em particular nas várias práticas feministas produzidas nas últimas décadas, no Brasil, mas que podem passar despercebidas se não forem evidenciadas e analisadas numa perspectiva crítica adequada. Para tanto, Michel Foucault fornece importantes operadores que permitem constatar a construção de novos valores éticos e de novas práticas políticas e subjetivas, na atualidade. Muito embora os feminismos tenham tido uma relação bastante ambígua com esse filósofo, várias intelectuais feministas têm procurado construir novas pontes entre as suas reflexões e aquelas que constituem o foco de interesse dos feminismos, não apenas no Brasil.

Dentre estas, Tânia Navarro Swain, historiadora e editora da revista digital LABRYS, estudos feministas, tem insistido na importância do conceito de "dispositivo da sexualidade", ao que acrescenta o de "dispositivo amoroso", para percebermos as estratégias disciplinares e os jogos de poder que fazem parte do sistema sexo/gênero desde a Modernidade, e que são reatualizados incessantemente no presente, capturando os corpos e impondo uma "heterossexualidade normatizadora" (SWAIN, 2009, p. 390; 2006). No hemisfério norte, Margaret McLaren, em Foucault, Feminism and Embodied Subjectivity (2002); Dianna Taylor, na coletânea de artigos Feminism and The Final Foucault (2004), e Chloe Taylor, em The Culture of Confession: from Augustin to Foucault. A genealogy of the 'confessing animal' (2009) avançam em suas apropriações das problematizações foucaultianas, ao desdobrá-las em conexão com as questões feministas sobre a subjetividade, a ética e a produção da verdade.

Essas instigantes análises convergem com as preocupações que têm caracterizado os trabalhos desenvolvidos no interior do grupo de pesquisa "Gênero, Subjetividades e Cultura Material", criado no Programa de Pós-Graduação em História da UNICAMP, em 2000. Neste, desenvolvemos pesquisas que visam destacar as práticas feministas criativas e transformadoras na arte, na literatura, no cinema e na política, no Brasil e na América Latina, a partir de vários conceitos de Foucault, como os de "artes da existência", "cuidado de si", "escrita de si" e "parresia". Trata-se de um novo e instigante campo de pesquisas históricas, que se reforça com o encontro de outras produções feministas orientadas pela filosofia de Foucault e que também se nutre dos aportes de Gilles Deleuze e Felix Guattari.

É nesse campo de investigação, portanto, que o presente texto se situa, tendo como foco privilegiado de observação a narrativa autobiográfica da historiadora Norma Abreu Telles, nascida em São Paulo, em 3 de fevereiro de 1942, aquariana, que assume ter vindo ao mundo "com a cabeça na lua e gosto de arte. Viso experimentar possibilidades de interpretação da sua escrita, na chave aberta por Foucault com suas reflexões sobre a constituição da subjetividade ética na "escrita de si" dos antigos.

Segundo Foucault, os gregos se valem da "escrita de si" como uma das atividades constitutivas das "estéticas da existência", como uma das tecnologias pelas quais o indivíduo se elabora e constitui a própria subjetividade nos marcos de uma atividade que é essencialmente ética, experimentada como prática da liberdade e não como sujeição. A escrita de si é vista como cuidado de si e também como abertura para o outro, como trabalho sobre o próprio eu num contexto relacional, tendo em vista reconstituir uma ética do eu. Portanto, mostra o filósofo, a escrita de si dos antigos difere e até mesmo se opõe à confissão. Desvendando as dimensões do poder que atravessam a prática da confissão, Foucault mostra que esta caracteriza um tipo de narrativa de si e de relação com a verdade que visa purificar o eu pela revelação da mais profunda interioridade. Ao contrário, na escrita de si não se trata de um dobrar-se sobre o eu objetivado, afirmando a própria identidade, mas de um trabalho de construção subjetiva na experiência da escrita em que se abre a possibilidade do devir, de ser outro do que se é, escapando às formas biopolíticas de produção do indivíduo contemporâneo.

Pergunto, então, pelas possíveis práticas de "estetização da existência" que emergem no contexto dos feminismos contemporâneos, norteada ainda, pelas questões colocadas por Deleuze, quando procura pelos lugares onde novas formas de existir podem estar se anunciando. E assim, destaco na escrita de si de Norma, na relação que estabelece com presente e passado, nas temporalidades que sua narrativa instaura, aquilo que me parece a sua inquietação fundamental, busca incessante que a move e que produz deslocamentos em direção a outras possibilidades de subjetivação e existência, a criação de uma poética feminista. E aqui entro no seu tema recorrente: o poder criativo da imaginação.

Liberar a imaginação como potência transformadora do imaginário social e cultural parece conformar o principal núcleo de suas preocupações feministas. Questionar a hierarquia estabelecida rigidamente nos discursos falocêntricos, que ditam a verdade e instauram a ordem do mundo, desafiar as relações de poder que perpetuam posições de opressão para as mulheres constituem sua principal frente de batalha. Falar dessa professora e escritora paulistana, nascida no seio de uma família abastada, leva inevitavelmente a perguntar como as mulheres afetam o campo da escrita, ao aceitar que a imaginação tem uma enorme força desterritorializante, criativa, que permite escapar às capturas do poder e da institucionalização legitimadas pela razão instrumental.

Na mesma direção, trabalhando com a escrita feminista sobre o lar e o exílio, Caren Kaplan entende que as mulheres aprendendo a exprimir-se nos interstícios da cultura masculina, "movendo-se entre o uso da linguagem dominante (...) e versões específicas da experiência baseadas na própria marginalidade (...) possuem (...) a habilidade de ler e escrever a cultura em múltiplos níveis." Pois, concordando com bell hooks, "Vivendo como vivemos - na margem - desenvolvemos um modo particular de ver a realidade. Nós olhamos tanto de forma para dentro como de dentro para fora. Voltamos nossa atenção tanto ao centro quanto às margens."

Até algumas décadas atrás, falar a linguagem masculina era condição sine qua non para que fossemos aceitas e reconhecidas e para que pudessemos ingressar na esfera pública. A aceitação de nossas idéias, livros, artigos e obras de arte dependia do sucesso nessa prova imposta, mas não explicitada. Não se perguntava, até há pouco, se existiria uma linguagem feminina, uma especificidade do pensamento produzido pelas mulheres a partir de suas múltiplas experiências. Contudo, não tardou para que se encontrassem aquelas que marcam presença pela afirmação de sua capacidade imaginativa e subversiva, capacidade que o mundo masculino viu com temor, como um grande perigo desestabilizador. Esse medo nos leva à história da caça às bruxas nos inícios da era moderna, ou à da normatização do corpo feminino na Modernidade vitoriana, e à invisibilidade de tantas outras, de ativistas a viajantes e aventureiras, como apresenta o último número da revista Labrys, estudos feministas, onde também escrevem Norma, Tânia e Zahidê.

Norma formou-se em História pela USP, no período do maior endurecimento do regime militar; durante trinta anos, trabalhou como docente no Departamento de Antropologia e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, dedicando-se ainda à investigação histórica e à escrita. Sua tese de doutoramento intitulada Encantações. Escritoras e Imaginação Literária no Século XIX, defendida em 1987, na PUC-SP, ainda não publicada, assim como inúmeros livros e artigos dão visibilidade a um grande número de escritoras brasileiras, antes inexistentes em nosso repertório. A ex-escrava maranhense Maria Firmina dos Reis, autora de Úrsula, primeiro romance brasileiro escrito por mulher, de 1859, e do romance abolicionista A Escrava, de 1887; Maria Benedicta da Câmara Bormann, conhecida como Délia, autora de Lésbia; a poeta abolicionista Narcisa Amália; as escritoras Júlia Lopes de Almeida e Josefina Alves de Azevedo figuram entre um grande elenco de criativas e combativas escritoras do passado.

A necessidade de encontrar referências femininas fortes e independentes constitui uma inquietação muito antiga para ela, como aparece em sua cartografia subjetiva. Vem de longa data e não apenas de 1968, ano que marca o final de um casamento contraído ainda muito jovem: "fiquei cinco anos casada e aí minha vida começa", afirma em entrevista de 2006. Em sua narrativa, um fluxo inicial permite vinculá-la ao feminismo já na adolescência, desdobrando-se difusamente nos tempos de universidade. A busca de uma tradição histórica feminina/ista se evidencia em seu discurso que visa mapear ao mesmo tempo um ponto de origem de sua própria identificação com o feminismo:

"Desde a época da minha mãe, eu procurava as mulheres (feministas), eu discutia muito com ela, que tinham mulheres na época dela que tinham sido livres, mas eu não tinha exemplos. Ela era dona de casa, com muito talento, mas nunca expandiu. Na faculdade, são os anos mais pesados da ditadura, então todo o foco era outro. (...) talvez a Rosa Luxemburgo, eu tive o prazer de traduzir as cartas de amor dela... Eu me apaixonei. Eu não conhecia esse lado dela, da feminilidade, já tem aí uma discussão feminista." (Entrevista realizada em 14/02/2006)

Não satisfeita com essa leitura do passado, Norma vasculha a vida pessoal em busca de outras possibilidades de entendimento de sua abertura para o feminismo:

"Ou maternidade, ou revolução, eu escutei muito isso, talvez por isso eu tenha ficado tão em busca de alguma coisa. Eu já era mãe, mas meu marido dizia que eu tinha que optar, ou ser bonita, ou ser inteligente, que ele não tinha interesse em uma mulher inteligente. Não me casei de novo, fiquei muito ocupada comigo mesma, de procurar, de refazer, de começar a fazer porque eu fui educada de maneira tão rígida, tão fechada, que a busca fez abrir coisas novas. Eu não consigo lembrar quando eu encontrei o feminismo. Ao mesmo tempo, cresci lendo a Charlotte Brontë, ainda tenho a edição de 1902, do meu avô" (Entrevista realizada em 14/02/2006).

Traçar as origens dos sentimentos e atitudes que marcam fortemente a própria vida envolve uma difícil pesquisa interior e conduz à releitura das histórias vividas no passado, conferindo de algum modo uma relativa e provisória unidade ao próprio eu, como algo que dá sentido e singularidade à sua existência, em meio a tantas fragmentações. Assim, nas conexões que estabelece, Norma envolve-se cada vez mais com a escrita feminina, com os elementos negados e desqualificados da cultura feminina, que procura encontrar e revalorizar. Não lhe é difícil afirmar que, negada enquanto autora e escritora, as mulheres - ela, nós - tiveram de desobedecer e transgredir para conquistarem o direito à escrita. Em "Rebeldes, escritoras e abolicionistas", de 1989, ela afirma:

"Para a mulher escrever dentro de uma cultura que define a criação como dom exclusivamente masculino, e propaga o preceito segundo o qual, para a mulher, o melhor livro é a almofada e o bastidor, é necessário rebeldia e desobediência aos códigos culturais vigentes. O ato de escrever implica numa revisão do processo de socialização, assim como das representações conscientes e um enfrentamento do inconsciente, também ele, invadido pela situação objetiva de dependência do homem e que condicionaram a formação do eu" (TELLES, 1989, p. 75).

O prazer que lhe proporciona a escrita imaginativa, prazer que Norma compartilha com Virginia Woolf, impulsiona um trabalho de muitos anos, que adquire uma dimensão política por ser radicalmente crítico do pensamento binário, que funda as hierarquias de gênero. Como ela avalia em seu livro Belas e Feras:

"O elemento subversivo nas últimas décadas não tem sido a denúncia das injustiças sociais contra as mulheres, mas o rompimento do sistema de representação dominante" (TELLES, 2007, p. 15).

- as primeiras mulheres

Assim, seu trabalho arqueológico de escavação e desconstrução atinge camadas sedimentadas mais profundas. As pioneiras sempre ocupam suas pesquisas: em 1983, traduz e faz publicar as cartas de amor de Rosa Luxemburgo, destinadas ao seu companheiro e amante. Distante da militante comunista racional e objetiva, faz emergir, em sua perspectiva feminista, uma Rosa amorosa e angustiada, ansiosa por discutir a relação com Leo Jogiches, que reclama das constantes separações a que o casal é forçado e que gostaria de não ter de optar entre a maternidade e a militância. O encontro entre essas duas mulheres é profícuo e Norma," que afirma lhe "faltar terra" e senso de realidade, descobre em Rosa aquilo que os revolucionários não podem ver.

Essa busca talvez seja ainda mais radical quando voltada para a primeira mulher, "a primeira companheira bíblica de Adão", nascida antes mesmo de Eva, mas desconhecida até a publicação do livro de Roberto Sicuteri, traduzido por Norma: Lilith, a Lua Negra (1983). As opções são claras e oportunas e, desde as páginas introdutórias do texto do antropólogo junguiano, as referências de Norma se fazem visíveis, pois coincidem com as dele, especialmente quando o autor afirma:

"E´ uma fantasia, um trabalho de imaginação ardente, que o autor lhes apresenta sem, de nenhum modo, propor regras de leitura. (...) uma reflexão sobre o 'feminino', sobre o instintivo, sobre as emoções e as cisões do arquétipo da anima (...) que está bem longe da ars medica que quer encerrar novamente o imaginal naquela dimensão positivista-racional, apertada, da qual tanto se custou poder sair" (SICUTERI, 1985, p. 9).

Da literatura à arte, das escritoras às artistas, a passagem é rápida. Em 2007, Norma continua a radicalizar esse percurso, publicando Belas e Feras. Desde o começo do livro, de formato muito delicado e minúsculo, ela anuncia: "No princípio era a deusa ladeada por dois felinos." Na origem dos tempos, momento que considera caótico e aberto em possibilidades, novas figuras femininas e novas imagens do feminino ganham contorno, ampliando seu próprio arquivo. Logo aparece a pintora renascentista Lavínia Fontana, bolonhesa, com sua pintura esdrúxula da menina-fera Tongina, que Norma descreve: "A menina, de uns dez anos, tem o rosto peludo redondo, suave, lábios rosados e carnudos, olhos negros. É Bela em sua estranheza. Muito séria, figura central da pintura, parece ter sido acolhida e, compreendida pela pintora" ( 2007: 2).

É difícil não confundir, aqui, a narrativa da escritora com a de uma experiente contadora de estórias infantis, que chega sorrateiramente, travessa, deslizando por entre as palavras, espiando-nos de quando em quando, surpreendendo-nos o tempo todo. Inquieta e ágil, ela encontra mais duas "Belas artistas (...) em suas relações com as Feras dos anos trinta": a espanhola Remedios Varo e a inglesa Leonora Carrington, ambas pintoras surrealistas, nômades como Norma.

Carrington escreve "A debutante", conto em que a jovem, tímida e anti-social, troca de lugar com sua amiga hiena para ir à sua própria festa de aniversário. "Era porque queria fugir do mundo que ia diariamente ao zoológico", afirma ela. Norma utiliza o conto para questionar a noção de identidade e desfazer as tradicionais fronteiras entre natureza e cultura. Em sua leitura feminista da escritora inglesa, as personagens escolhidas, as artistas e suas personagens, unem as duas figuras opostas, a Bela e a Fera (TELLES, 2007, p.9).

Mas, para além da descoberta dessas figuras enigmáticas, mobiliza-a um encontro com forças telúricas obscurecidas, lunares, com novas dimensões do feminino e com a possibilidade de narrar e de se subjetivar diferentemente. Acompanhada de Bachelard, pensador da poética da imaginação em que se inspira fortemente, Norma reforça:

"A imaginação como dinamismo criador é a rejeição da tirania da forma fixa que parece se oferecer à percepção. As imagens dinâmicas não só formam, mas sobretudo deformam, transformam, ampliam e aprofundam a chamada realidade. E´ a imaginação, poder maior da natureza humana, que não só inventa coisas, mas, principalmente, inventa caminhos novos" (TELLES, 2007, p. 4).

Não se trata, portanto, de entender a imaginação apenas como aquilo que forma imagens, mas também como aquilo que as deforma, que permite libertar-nos das imagens primeiras e criar outras: "ação imaginante", ensina Norma-Bachelard (2001, p.1). Portanto, condição de possibilidade da emergência de uma linguagem das próprias mulheres, de um espaço todo seu, reivindicação que se aproxima da da crítica feminista de arte Griselda Pollock, quando esta pergunta pelo lugar que a mulher ocupa numa trama em que predominam as imagens e os signos masculinos, em que não há "imagens de mulher" e em que a subjetividade feminina é construída a partir de parâmetros masculinos.

As reflexões que Norma tece sobre as autoras escolhidas revelam seu próprio modo de trilhar, de construir um percurso narrativo singular, de exprimir diferentes dimensões da sua subjetividade e de inventar novos caminhos. Diz ela:

"Varrer o lixo, vasculhar o lixo, refazer coisas a partir do que foi jogado fora – a bricolagem – são ações de revisão, discriminação; de separação do joio do trigo; do que pode ser metamorfoseado, do que deve ser jogado fora. Muitas vezes o fragmento jogado no lixo por parecer mudo, pode, se mirado com atenção, suscitar perguntas, respostas, desafios" (TELLES, 2007, p. 10).

- livros-objetos

Como a pintora mexicana Remedios Varo, Norma se interessa pelo menor, pelo detalhe, pelo minúsculo, pelo artesanal. A dimensão de artista minimalista se revela em sua produção de pequenos e coloridos "livros-objetos", que expandem a forma tradicional do livro, questionando o pensamento representacional. Assim elas os apresenta em seu site:

"Livro como objeto iconográfico combina conteúdo e forma, ironia e lúdico para dizer algo que vai além da informação imediata. Emprega várias linguagens: a visual, a literária, a metafórica, a abstrata, a conceitual, a gestual, e o que mais se queira; são as alterações visuais que contam múltiplas histórias, perspectivas, pontos de vista. As formas são inúmeras, os suportes também. Aqui são apresentados alguns."

Sobrepondo a narrativa plástica à literária, seus livros-objetos – Abstracts; Monica's rolfing; Guto's decades; Homage, ô mage, carrington; BlueX, azuis, multifiori, multiformas; blue-stockings, blue devils, multittuti's blue; Santa Felicidade e a guirlanda das letras; Aracné; Agenda: arte do tempo, vestígios dos dias, milênios, um instante - são trabalhos que enchem os olhos, ao combinar recortes, desenhos, emoções, poesias, imagens fragmentadas e pequenos detalhes finamente construídos. Alguns são mais narrativos do que imagéticos, como o que Norma intitula Inscrições.

Nesse pequeno livro de 2004, em que pergunta pelo lugar da escrita e da obra literária na Modernidade, reaparece a figura da contadora de estórias, quando Norma evoca um conto de Isaak Dinesen, pseudônimo da dinamarquesa Karen Blixen. E aqui fica ainda mais claro que, crítica cultural, ela escreve para dar vida, para fazer existir, para "multiplicar os sinais da existência", na expressão de Foucault, ao conferir uma função totalmente positiva à crítica. Assim, diz ela,

"o imaginário não corre o risco de ser trancado numa análise racionalista imóvel ou instrumental que asfixiaria sua pregnância numa lógica mecanicista e linear do social" (TELLES, 2004, p.14).

"A busca das ressonâncias culturais implica também um trabalho de desvelamento de tudo o que foi deixado de lado pelo pensamento ocidental oficial e acadêmico – da literatura escrita por mulheres, que demonstra uma articulação de mundo diferente daquela escrita pelos homens, ao conhecimento da tradição e das sabedorias de tantos e tantos grupos que compõe, em diversas relações, essa sociedade" (TELLES, 2004, p. 15).

- narrar o passado com imaginação

A crítica aos saberes dominantes, oficiais e rígidos é antiga. Desde cedo, Norma busca outros passados e novos modos de narrar, de contar histórias e de produzir conhecimento histórico, fora do discurso objetivo, seco e distante, importante para uma afirmação das mulheres e da cultura feminina no presente. Essa tarefa a leva a abrir-se para a antropologia, a psicologia, além da literatura. James Hillman, psicólogo jungiano oferece-lhe novas perspectivas, ao lado de Bachelard, que observa: "A imaginação inventa mais que coisas e dramas, inventa o caminho novo, o novo espírito; abre os olhos para tipos novos de visão.". Depois de traduzir carinhosamente O mito da análise, a historiadora republica, pela terceira vez, sua Cartografia Brasílis ou: esta história está mal contada, cuja primeira edição data de 1984.

Mário Sérgio Cortella prefacia o livro e sugestivamente invoca a personagem Mafalda para referir-se a Norma. Este se constrói sob o signo da suspeita: suspeita das narrativas etnocêntricas, hierarquizadoras, excludentes, que, para além de forjarem realidades imaginárias, visam moldar comportamentos sociais e legitimar o presente. A historiadora feminista desacredita da história oficial; desconstrói vários mitos que configuram a "identidade nacional"; denuncia os artifícios de produção do mito da "Nação". Desvenda outras dimensões de nossa história e das subjetividades que se constituem no país. Visualiza, enfim, passados perdidos que urge reencontrar.

A preocupação em encontrar novos modos de narrar o passado é reforçada frequentemente em seu depoimento oral. Diz ela:

"Virgínia Woolf trabalhou a História a vida inteira, mas ainda não demos atenção a isso (...) o projeto de vida da Virgínia Woolf foi reescrever a História com outra periodização. No Orlando, é mais fácil de você perceber isso, mas você vê isso no Passeio ao Farol, você tem que prestar atenção. Nisso que a Virgínia Woolf ensinou, a gente não levou a sério, achou que era só ficção, mas ela tinha esse projeto, uma nova temporalidade. E eu lembrei que a Jane Austen começou escrevendo uma história da Inglaterra, que é uma coisa da juvenilha dela, eu sou muito apaixonada por essas escritoras inglesas. E ela também escreveu uma história da Inglaterra, selecionando alguns fatos" (Entrevista realizada em 14/02/2006).

Novamente Norma continua na companhia de Woolf, com quem se instala sob "um teto todo seu":

"É impressionante como ela faz não só uma história da literatura, mas uma História diferente, é isso que ela propõe. (...) veja que absurdo a História da mulher nas artes, a importância da transmissão, porque a gente não tinha modelos e é importante ter modelos. Eu queria mulheres que eu admirasse na infância… teria economizado dez, quinze anos..." (Entrevista realizada em 14/02/2006).

- Retornando à primeira mulher

De escritoras a pintoras, de abolicionistas à viajante parisiense mal-comportada Alexandra David-Neel (1868-1969), que Norma apresenta em seu recente texto publicado na revista digital Labrys, estudos feministas, n.19, chegamos mais uma vez a uma primeira mulher – agora a primeira ocidental a entrar em Lassa, cidade proibida para estrangeiros, no Tibete.

Corajosa, vibrante, desbravadora, o encontro tem sua razão de ser. Acompanhando uma vida cheia de aventuras, descobertas, viagens, também interiores, pois acompanhada pelas Máximas de Epiteto, estóico que Foucault ou Borman-Delia tanto admiram, a escrita de Norma intensifica-se e agiliza-se, dando-se conta de que o "vivido é incomensurável", como afirma ao final.

Na pressa em que aqui estamos, nesse esforço de enxergá-la mais acuradamente, encerro devolvendo-lhe e dando a nós um trecho em que ela poeticamente se apresenta em seu site, com toda a força de sua imaginação, ponto alto da realização de seu próprio projeto de (auto)transformação:

"Viagens, jornadas pelo mundo, jornadas pelo conhecer. Ler, ler sempre, paixão da alma como também é uma paixão a aventura de traçar, na página em branco, as letras e sinais para formar um ensaio ou uma narrativa. Uma aventura cheia de obstáculos, meias voltas, retornos, trabalho duro, esforço, inquietações, dúvidas e grandes prazeres. Hoje aposentada da universidade, se dedica a pesquisa, busca o silêncio das leituras e escrituras, horas a mais para esses encantamentos."
Acesso em: www.normatelles.com.br

BIBLIOGRAFIA

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______O ar e os Sonhos. Ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins
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Entrevistas. São Paulo: Graal, 2006.
KNIBIEHLER, I.; FOUQUET, C. La Femme et les Médécins.. Paris:Hachette,1983.
LUXEMBURGO, Rosa. Camarada e Amante. Cartas de Rosa Luxemburgo a Leo
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RODHEN, Fabiola. "A construção da diferença sexual na Medicina", Cadernos de
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SICUTERI, Roberto. Lilith, a lua negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
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TELLES, Norma. Belas e Feras. São Paulo: NatEditorial, 2007
______. Inscrições. São Paulo: NatEditorial, 2004.
______. Cartografia brasílis ou: esta história está mal contada. 3ª.ed. São Paulo:
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______. Encantações Escritoras e Imaginação Literária no Século XIX. Tese de
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WOOF, Virginia. Um teto todo seu. 2ªed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.


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1. A "maquinaria da confissão" supõe um indivíduo culpado, pecador, que deve desconfiar de si mesmo e identificar os erros e desvios de caráter, sobretudo em seu comportamento sexual, tendo em vista a correção, isto é, a adequação às normas instituídas e ao regime de verdade predominante. Além do mais, essa decodificação subjetiva que tem como objetivo a purificação da alma deve efetuar-se diante do olhar de um outro superior, detentor das normas e da verdade, capaz de auxiliá-lo na busca da salvação. A armadilha do poder envolvida nesse movimento é objeto da preocupação de Foucault, que, na entrevista conhecida como "Não ao Sexo Rei", evidencia seus perniciosos efeitos: "A confissão, o exame de consciência, toda uma insistência sobre os segredos e a importância da carne não foram somente um meio de proibir o sexo ou de afastá lo o mais possível da consciência; foi uma forma de colocar a sexualidade no centro da existência e de ligar a salvação ao domínio de seus movimentos obscuros. O sexo foi aquilo que, nas sociedades cristãs, era preciso examinar, vigiar, confessar, transformar em discurso." (FOUCAULT, 1978, p. 127)

Deleuze pergunta:"(...) como produzimos uma existência artista, quais são os nossos processos de subjetivação irredutíveis aos nossos códigos morais? Onde e como estão sendo produzidas novas subjetividades? O que podemos encontrar nas comunidades contemporâneas?" In: Pourparlers. Paris: Editions de Minuit, 1990, p.115, Negociações.
CAPLAN, Caren. "Deterritorializations: The Rewriting of Home and Exile in Western Feminist Discourse", Cultural Critique, n. 6, Spring, 1987, p. 187-198
HOOKS, Bell, apud CAPLAN, op.cit, p.187.
TELLES, Norma."Rebeldes, escritoras e abolicionistas". Revista de História,USP, n.120, jan-julho de 1989, p. 73-84.

ROSA, Maria Laura. "Artes. Las/os invisibles a debate" In: ELIZALDE,S.; FELITTI, K.; QUEIROLO,G.; (ORGS) Género y sexualidades en las tramas del saber. Buenos Aires: Ediciones del Zorzal, 2009. ISBN 978-957-599-122-4; pp. 97-131, p.106.
ISAK DINENSEN, pseudônimo de Karen Blixen, 1885-1962, escritora dinamarquesa, autora de A fazenda africana (1937), que se torna o filme Out of África (Pollack, Streep) e do conto "A festa de Babette", também filmado, entre outros.
BACHELARD, L'eau et les rêves. Paris:Corti:1979,p.23-24; TELLES, 2005,P. 15, na tese p. 13.



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