Espaços de morte fragmentos de identidade

June 9, 2017 | Autor: Eduardo Duarte | Categoria: Death Studies, Cemeteries, Morte, Cemitérios, Luto e morte
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Espaços de morte fragmentos de identidade A contribuição da cultura na produção espacial

Ensaio Teórico Autor: Eduardo Duarte Ruas Orientadora: Sylvia Ficher

Sumário Sumário ............................................................................................................................................................1 Prelúdio ...........................................................................................................................................................3 Introdução ......................................................................................................................................................5 Mitologia Inuíte ............................................................................................................................................. 7 Vodu ............................................................................................................................................................. 10 Zoroastrismo................................................................................................................................................ 12 Budismo ........................................................................................................................................................ 14 Islã .................................................................................................................................................................. 16 Xintoísmo...................................................................................................................................................... 18 Protestantismo .......................................................................................................................................... 20 Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias ................................................................................................. 22 A morte na História ................................................................................................................................... 24 A morte no espaço .................................................................................................................................... 32 Monte das Oliveiras ................................................................................................................................... 33 Manikarnika Ghat ....................................................................................................................................... 37 Père-Lachaise ............................................................................................................................................. 40 Análise espacial .......................................................................................................................................... 44 As últimas palavras .................................................................................................................................... 46 Bibliografia .................................................................................................................................................. 48

Prelúdio

Na memória conservo a imagem enquadrada pela janela do carro. Um longo muro branco caiado, coroado por telhas laranjas manchadas de musgo, era enorme, amplificado pela magnifica visão infantil, ia serpenteando a rua, quase engolindo os aventureiros pedestres. A muralha implacável deixava escapar algumas cruzes brancas, lá no alto, jogando com as nuvens, mas uma imagem reina absoluta entre o céu e o muro: um anjo serenamente olhando para baixo, com suas poderosas asas abertas, nas mãos grinaldas de flores miúdas. Não lembro de ter perguntado à minha mãe, calado que era, o que o muro protegia. Caso tenha perguntado, não duvido da resposta simples e objetiva que damos às crianças: um cemitério, filho. Cemitério é para onde vão os mortos, onde enterramos quem já morreu. Perfeito, cemitérios são os lugares onde moram os mortos. Cresci. Visitei cemitérios, são todos tão diferentes! Fui para países distantes. As diferenças se acentuaram. Cemitérios parecem casas, cada um tem o seu jeito, sua organização. E a definição já não cabia em mim. O que são cemitérios? Por que o anjo carrega flores? Mortos gostam de flores? E aquele murão? As casas não tinham muros tão grandes, por que o cemitério tem? Chegou o momento de me dedicar a um tema e escrever um ensaio. Decidi responder perguntas infantis. Ou pelo menos tentar. Vou estudar cemitérios. Mas que tema mórbido, Eduardo! Não te parece triste? Não, não é triste, a morte é intrínseca à vida, é o que dá significado à existência humana, a morte é um pedaço do viver, não se vive sem morrer e não se morre sem viver. A morte anda sumida do nosso mundo! Na verdade, não. Ela está aqui, nunca deixou de estar. A morte é a única que não morre. Seria um suicídio terrível. Não está sumida, ela está disfarçada. Aquela presença discreta vigiando a vida alheia. Não entendo muito bem o espanto quando alguém morre. Para morrer só precisamos estar vivos! Morreu de que? E esperamos uma descrição quase que cirúrgica da causa mortis. Já estava na hora, estava velhinho. Só os velhos morrem? Foi uma pena! Pessoa tão jovem! Existe veto de morte? Só posso morrer se eu for velho? Sabemos que todo mundo vai morrer, mas não esperamos que alguém morra. Nada contra a morte, desde que não seja na minha família! Pois bem, parece que não estamos muito bem com a morte. Vamos nos reconciliar, tão solitária, ela tem tanto a dizer!

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Figura 1 - Cemitério de Paracatu

Introdução Castigo. Transição. Elevação. Superação. Evolução. Um sem fim de interpretações possíveis para o fenômeno da morte. Tão desconhecida e implacável, sua imagem nos assombra, e, recolhidos à nossa finitude, rogamos por piedade, agora e na hora de nossa morte. As tradições fúnebres carregam consigo simbolismos, crenças, medos, interpretações e certezas das religiões às quais pertencem, são inseparáveis da cultura. Todos em algum momento devem perceber a morte como parte da vida. A perda de um parente ou um conhecido revela o caráter transitório e finito da vida cotidiana e ameaça concepções tanto de um indivíduo duradouro quanto de uma identidade coletiva semelhantemente duradoura (Berger, Luckmann ,1979, 118-122. Apud Arora, 2014).

A morte é um evento altamente pessoal, mas de acordo com Kastenbaum (2006), a morte pode ser pensada ou classificados em três formas: 

Morte como evento – Quando acontece inesperadamente, é surpreendente, em geral, acontece de forma particular. A morte como rompimento da vida. Neste contexto lugar e causa de morte são importantes elementos a serem lembrados.



Morte como condição – A morte esperada, o organismo é incapaz de manter as atividades vitais, o corpo já está bastante debilitado, assim a morte adquire um carácter de término natural, de condição humana muitas vezes ligados ao contexto médico/hospitalar. A morte aqui representa o conforto, o fim da agonia e do sofrimento.



Morte como estado de existência e inexistência - Aqui, a preocupação não é nem com o evento do fim da vida nem com a condição do corpo naquele momento, mas o foco é sobre a forma de existência que prevalecerá quando uma vida chegar ao fim. O contexto da religião fornecendo explicações sobre a vida após a morte é bastante simbólico neste contexto.

Mesmo que nossas vidas estejam afastadas da certeza de que todos irão morrer, as cidades estão repletas de monumentos funerários e os cemitérios vêm se convertendo em um forte atrativo turístico. Nesta gama de monumentos podemos citar: a Necrópole de Gizé (que inclui as três pirâmides, a Grande Esfinge, uma vila operária e diversos cemitérios), construída em 2560 a.C.1; o Mausoléu de Qin Shi Huang Di construído em 210 a.C.2 (com o seu intrigante exército de guerreiros de terracota); a elegante Abadia de Westminster construída no século 113 (que guarda os corpos de personagens célebres daquele reino); o Taj Mahal construído por Shah Jahan em 16484 (em memória de sua esposa preferida Mumtaz Mahal); o Hotel des Invalides em Paris construído em 17085 (que desde de 1861 guarda os restos mortais de Napoleão Bonaparte); o Obelisco do Ibirapuera (que começou a ser construído em 1947 para guardar os restos mortais de 713 combatentes da Revolução Segundo https://en.wikipedia.org/wiki/Great_Pyramid_of_Giza. Acesso em 14 de set. 2015. Segundo http://whc.unesco.org/en/list/441. Acesso em 14 set. 2015. 3 Segundo http://whc.unesco.org/en/list/426. Acesso em 14 set. 2015. 4 Segundo http://whc.unesco.org/en/list/252. Acesso em 14 set. 2015. 5 Segundo http://www.aviewoncities.com/paris/invalides.htm. Acesso em 14 set. 2015. 1

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Constitucionalista6) o Monumento aos Pracinhas no Rio de Janeiro inaugurado em 19607 (homenageando a coragem dos soldados brasileiros mortos na II Guerra Mundial); o Memorial JK inaugurado em 19818 na capital do Brasil (que celebra a vida do presidente que transformou o sonho em realidade). Portanto, nas cidades, os cemitérios também exercem a função de depósito de memória com importância histórica ao guardarem fragmentos de suas sociedades. Do imaginário popular vem a ideia de cemitério como espaço sombrio, misterioso, silencioso, como o lugar de domínio da morte, a porta de acesso ao desconhecido. E também o lugar onde estão depositadas as memórias de família, um espaço arrebatador, como se ao entrar em um cemitério um turbilhão de lembranças viesse de encontro ao nosso corpo. Considerando que os espaços destinados aos mortos em uma sociedade são reflexos especulares do mundo dos vivos, os cemitérios podem ser entendidos como espaço de reprodução simbólica dos valores sociais e como laboratório privilegiado para análises culturais. (LIMA, 1994, p. 87). Instigado pela dimensão cultural destes espaços, trilho caminhos que me levam a considerações da interdisciplinaridade da produção espacial e seus sentidos. Em outras palavras, como outros aspectos culturais regem a produção dos espaços de morte e a tradução de símbolos em espaços. O trabalho está organizado em três livretos: Prelúdio, A morte na História, A morte no Espaço e As últimas palavras. São fragmentos de um estudo sobre a morte, tentativas de se entender melhor o fenômeno tão desconhecido, poéticas sobre a finitude. A pesquisa começa com o estudo de diferentes visões sobre a morte, são apresentadas oito religiões, tanto orientais como ocidentais, e suas respectivas visões sobre a morte no livreto intitulado Prelúdio. É o primeiro passo para entender como a morte pode adquirir sentidos tão diversos e muitas vezes opostos. Em seguida apresento uma perspectiva histórica da morte em A morte na História. A cronologia se inicia em 3.500 a.C. e chega aos dias de hoje. A morte na História é o segundo passo na interpretação da morte mostrando como a morte mudou durante o decorrer da história e como muitas vezes o mesmo povo reinterpretou a morte e a finitude humana. O terceiro passo é dado analisando espaços de morte como manifestação singular, são estudados exemplares pertencentes ao judaísmo (Monte das Oliveiras, Jerusalém, configuração atual do séc. XVI, fundação séc. I a.C.9), catolicismo (Père Lachaise, Paris, 180410), hinduísmo (Manikarnikha Ghat, Varanasi, séc. V11), observando as particularidades dos diferentes ritos fúnebres e sua materialização nos espaços de morte. Trata-se de entender o que há de essencial e característico e, deste modo, contribuir para a compreensão da produção espacial para cada caso particular. E finalmente chego a minha análise, bastante pessoal, dos significados da morte e de como este percurso histórico e cultural influenciou a visão da morte que temos hoje. Disponível em http://viajeaqui.abril.com.br/materias/top-10-os-10-maiores-mausoleus-emonumentos-funerarios-do-mundo. Acesso em 6 set. 2015. 7 Segundo http://www.museusdorio.com.br/joomla/index.php?option=com_k2&view=item&id=54:monumentonacional-aos-mortos-da-segunda-guerra-mundial&Itemid=210. Acesso em 14 set. 2015. 8 Segundo https://pt.wikipedia.org/wiki/Memorial_JK. Acesso em 14 de set. 2015. 9 Segundo http://www.trekker.co.il/english/mount_of_olives/. Acesso em 07 de Set de 2015. 10 Segundo https://en.wikipedia.org/wiki/P%C3%A8re_Lachaise_Cemetery Acesso em 7 de set. 2015. 11 Segundo https://en.wikiversity.org/wiki/The_Varanasi_Heritage_Dossier/Manikarnika_Ghat Acesso em 7 set. 2015. 6

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Mitologia Inuíte O grande perigo de nossa existência repousa no fato de que nossa dieta consiste inteiramente de almas Ditado Inuíte

Nos longínquos territórios polares, vivem os povos adeptos da Mitologia Inuíte. Distribuídos em uma vasta área que se estende pelo Ártico por quase 6000 quilômetros, desde as ilhas do Alasca no extremo oeste à costa leste da Groenlândia, este povo12 tem crenças e costumes intimamente relacionadas a preceitos religiosos ancestrais. As religiões Inuíte têm princípios animistas e xamânicos, possuem pequenas diferenças entre os muitos vilarejos e aldeias, mas todas partem dos mesmos princípios: acreditam que todos os seres possuem alma, desde pedras, árvores, e arbustos a pessoas, animais e clima. Existiriam dois tipos de alma: a primeira alma seria a responsável pela vida, materializada pela respiração. Se ela for perdida, o indivíduo morre. Esta alma é responsável pela experiência sensorial e psicológica, sabedoria e força, pode ser interpretada como a mente, a consciência, e ela é que distingue os mortos dos vivos. A segunda alma seria a alma livre, capaz de abandonar o corpo durante o sono, estado de transe ou durante alucinações. É a alma que experimenta visões e experiências fora do corpo, a base da vida inconsciente, responsável pela vida após a morte e a que tem possibilidade de ser reencarnada. Nenhum outro povo ou civilização vive em ambiente mais inóspito que os Inuíte. Os longos invernos que trazem temperaturas muito abaixo das suportáveis acabaram por aproximar a morte da vida. A passagem do vento gelado é capaz de levar consigo todas as almas de uma vila, deixando apenas construções e corpos vazios para trás. Quando a força natural não mata a todos, ela concentra seus esforços nas crianças, no auge do inverno a prática do infanticídio se torna comum para reduzir o número de pessoas a serem alimentadas e enfraquecer a onda mortal. Liderados pelos guias espirituais, os Xamãs, os povos Inuíte herdam suas crenças e costumes de seus ancestrais baseando-se no respeito e no temor às forças da natureza e à alma de todos os seres. Se entendermos as tradições inuítes, entenderemos a relação deste povo com a morte. Aua, um xamã, explica: Todos costumes vêm da vida e para a vida se voltam; não tentamos explicar nada, nós não acreditamos em nada... Tememos o espírito do tempo da Terra, e devemos lutar contra ele para arrancar nossa comida da terra e do mar. Tememos Sila, o morador do Vento. De nossas cabanas, tememos a morte e a fome. Tememos Sedna, a Mãe Mar, que domina os monstros marinhos. Tememos a doença que nos rodeia; não a morte, mas o sofrimento. Tememos espíritos malignos da vida: do ar, do mar e da terra, que podem ajudar os xamãs perversos a prejudicar seus semelhantes. Nós tememos as almas dos seres humanos mortos e dos animais que matamos. Por isso é que os nossos pais herdaram de seus pais todas as velhas regras de vida que são baseadas na experiência e na sabedoria de gerações. Não sei como, não podemos dizer o porquê, mas nós mantemos essas regras, a fim de que vivamos sem perturbações. E tão ignorantes que somos que apesar de todos os nossos xamãs, tememos o desconhecido. Tememos o que vemos à nossa volta, e tememos também as coisas invisíveis, tudo o que temos ouvido nas histórias e mitos dos nossos avós.

Este grande temor às almas livres desencarnadas molda a maior parte dos rituais deste povo, buscando proteger os vivos dos espíritos traiçoeiros, principalmente os rituais funerários que não estão restritos aos homens: existem rituais funerários específicos para os animais caçados e também para as plantas colhidas, demonstrando uma profunda compreensão do equilíbrio da natureza. Os rituais são importantes porque preparam a alma livre para a vida após a morte. O cuidado com a Foram anteriormente chamados de Esquimós, nome dado pelos índios Algonquin, que significa “comedores de carne crua”, mas este é um nome considerado pejorativo pelos Inuíte. O nome Inuíte significa “pessoas reais” na língua do próprio povo. 12

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alma do morto é de extrema importância para o Inuíte. Um padre Cristão em expedição evangelizadora ao ártico, acompanhou uma cerimônia fúnebre e a descreveu da seguinte forma: Krilugok ajudou Nerlak a descarregar seu trenó, colocaram o corpo de Igutk em uma elevação com uma vista perfeita do vale. Igutk estava ali de frente para o sol, a fonte de toda a vida. Oviluk se inclinou para frente e soprou em torno do rosto de Igutk, tocando simultaneamente suas narinas e boca enquanto murmurava os versos que trariam sua alma à tona, ‘Vem, oh vem! Para viajar pelas montanhas até que o seu nome seja dado a um recém-nascido... vá até o vale e siga a viagem do caribu até que o seu nome seja da competência do recém-nascido. ’ Simbolicamente, ela colocou o bico de um falcão na boca de seu falecido marido para dar a sua alma a liberdade de um pássaro a voar pelas as montanhas ou terras baixas. Cercando o corpo congelado de Igutk, os dois homens construíram um anel de pedra para protege-lo contra os espíritos malignos, sempre à espreita na terra estéril. E Krilugok proferiu as palavras mágicas ‘Espíritos malignos do Ar e da Terra, virem-se e voltem para a escuridão. ’ (Seidelman, 204)

A descrição feita pelo padre revela coisas importantes a respeito das práticas funerárias Inuíte. A primeira delas é que o ritual é íntimo, familiar, estavam presentes Nerlak e Oviluk, filho e mulher de Igutk, e o xamã Krilugok. O segundo fato que merece ser destacado é que não existem lugares específicos para se enterrar os mortos, o xamã dotado de seus poderes especiais, escolhe um lugar que seja bonito e que ofereça algum tipo de deleite para a alma livre, neste caso a vista do vale e a abundante presença da luz solar. A inexistência de locais específicos de enterro pode ser explicada pela primazia dada ao espírito em detrimento do corpo, ou seja, o que importa é a alma da pessoa e não seu corpo, sendo, portanto, desnecessário um memorial para o corpo que será decomposto; e também pela questão de que os Inuítes são nômades, eles não têm necessidade de fixar os locais de enterro porque provavelmente não voltarão ali. Finalmente a crença na reencarnação. As almas livres ao deixarem o corpo, vão para o mundo dos mortos, a terra acima das estrelas dominada pelo Homem Lua, nesta terra as almas serão reformadas pela Mãe Mar e reencarnarão. A crença na reencarnação é tão forte que quando uma criança nasce, o seu corpo deve ser primorosamente investigado pelos anciãos em busca de sinais ou marcas que lembrem algum antepassado.

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Figura 2 - Sepultamento Inuíte

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Vodu Ninguém morre sem ser enfeitiçado. Sabedoria Vodu

Antes de me lançar aos estudos fúnebres desta religião, é importante limitar o objeto de estudo. Tento ao máximo evitar generalizações, mas é quase impossível, pois o vodu é uma religião extremamente plural. O termo vodu refere-se aos ramos de uma tradição religiosa teísta-animista com profunda ligação ancestral, surge no Ewe-Fon (povos tradicionais africanos) do Benin e se difunde no novo mundo pela polinização da cultura africana pela escravidão no continente. Haiti, Cuba, Estados Unidos e Jamaica são profundamente influenciados por esta cultura, tendo nascido em cada um destes países ramificações da religião matriz, muitas vezes fruto do sincretismo. No Brasil o Candomblé carrega em suas tradições algumas heranças dos povos praticantes do vodu que aqui viveram. Aqui trato em especial do vodu tradicional africano, principalmente de alguns povos de Uganda que mantém vivos grande parte dos rituais tradicionais. Os rituais fúnebres assim como os demais rituais religiosos africanos, são de grande importância para os povos que seguem o vodu e estão profundamente integradas à vida social. Todo o conceito de religião se baseia na ideia de morte e de culto aos espíritos, desta forma, rituais, tradições, regras e temores são indissociáveis da morte. A morte é entendida como uma ruptura inevitável. Enquanto o casamento converte o homem em um ser criador e reprodutor ligando-o ao passado e ao futuro, a morte é entendida como a ligação entre o mundo terreno e o mundo espiritual. O que quer dizer que a morte não é o fim da existência, e sim a partida do espírito para o outro mundo, a única mudança importante é que o corpo se decompõe e a alma se eleva a uma nova forma de existência. O mundo terreno e o mundo espiritual são conectados, desta forma os espíritos dos antepassados podem transitar livremente entre os dois mundos exercendo um importante papel de proteção ou de ataque aos clãs familiares. Existe a crença de que os espíritos dos antepassados podem voltar para atormentar os vivos e se vingar de alguma desavença ocorrida em vida. A morte rompe o ritmo da vida, mas esta não chega ao fim. O indivíduo que desaparece, não está realmente morto, é possível se comunicar com ele, convidá-lo a voltar ao mundo dos vivos, atraí-lo ao círculo familiar, e ele pode inclusive reencarnar em corpos mortos na forma de um zumbi. Quando alguém morre imediatamente começam os preparativos para o ritual fúnebre. Espera-se a presença de todos os parentes do morto na cerimônia, caso alguém falte, significa que esta pessoa encomendou a algum espirito a morte que acaba de acontecer. Um grupo de assistentes fica responsável por preparar o corpo, e purifica-lo com ervas ao som do choro e de mantras de liberação. Ao mesmo tempo se cava a tumba, a localização varia de acordo com o grau de influência do morto dentro do clã. Se o defunto é um homem chefe de família, ele será enterrado dentro de sua casa ou em frente a porta de entrada, os outros homens do clã são enterrados em frente a fachada principal, mulheres e crianças ocupam o entorno imediato à casa. Na tumba são dispostos os objetos pessoais do defunto para que fiquem à disposição do espírito durante a eternidade. O corpo é disposto de lado, com os olhos voltados para a direita e com os pés para a colina mais próxima, fecha-se a tumba, sacrifica-se uma vaca ou uma cabra, a carne será servida aos familiares e o sangue benzerá a terra que pertencia ao morto. A cerimônia dura quatro dias se o defunto for homem e três se for mulher, neste período uma fogueira é mantida acesa e nenhum animal pode copular, os assistentes responsáveis pela preparação do defunto e da tumba devem lavar-se cuidadosamente e raspar todos os pelos do corpo.

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O ritual revela a importância que os laços familiares têm nas sociedades vodu. Os corpos dos antepassados são mantidos no convívio familiar para que o espirito do morto tenha uma ligação mais forte com a família e nunca deixe de protege-los e guarda-los dos maus espíritos. Este profundo sentimento de ligação eterna entre mortos e vivos já foi motivo de guerras entre Buganda e Bunyoro (dois reinos tradicionais de Uganda) pela divisão de terras do Acordo de 1900 que não levou em consideração a localização dos cemitérios tradicionais das etnias destes reinos, dividindo os vivos e mortos.

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Figura 3 - Altar Vodu

Zoroastrismo Todo aquela cujas boas obras excedem em três gramas a seus pecados irá para o céu; todo aquele cujo pecado seja maior, irá para o inferno. No entanto, aquele em que ambos sejam iguais, permanecerá no ‘Hamistikan’ até obter um corpo futuro ou a ressurreição. Zoroastro, século VI a.C.

No frutífero Império Aquemênida surge o Zoroastrismo, religião fundada pelo profeta Zoroastro. É a primeira religião documentada monoteísta. Ahura Mazda é o único deus supremo sábio e criador, fonte do bem, da ordem e da verdade. Acompanhado pelos Ameshis Penta (divindades secundárias) Ahura Mazda está constante batalha com o seu arqui-inimigo Arimã, a representação do mal e da escuridão. A religião se baseia no dualismo, na batalha entre o bem e o mal. Cada indivíduo é livre para escolher o caminho que deseja seguir e três dias após a sua morte, um conselho formado por três Ameshis Penta decidiriam se o espírito merece o paraíso ou o inferno para aguardar o dia em que Ahura Mazda voltará ao mundo e julgará se as almas merecem passar a eternidade no reino do bem ou no reino do mal. Os seguidores do zoroastrismo são incitados a praticar boas ações, manter bons pensamentos e dizer boas palavras. A morte é entendida como momento de liberação do espírito puro do corpo impuro. Desta forma o ritual funerário se desenvolve a partir do desprezo ao corpo impuro e da liberação da alma. O corpo do recém falecido é lavado em um líquido chamado gomez, uma mistura de urina de touro e água. As roupas que tocavam o corpo no momento da morte e o espaço onde ocorreu o falecimento são purificados. O corpo então é coberto por um tecido branco e a partir daí é permitida a visita ao defunto, porém, é proibido tocá-lo. Durante as horas em que está aberta a visitação ao corpo, um cão deve ser levado à sala por duas vezes em um ritual chamado Sagdid, com o intuito de manter afastadas as forças negativas. Depois de encerrado o período de visitas ao defunto é expressamente proibido a presença de não-zoroastristas nas seguintes etapas do ritual. Depois que a família prepara o corpo, ele fica sob a responsabilidade de um grupo de sacerdotes autorizados a manipular e a tocar o defunto. Os sacerdotes depois de se lavarem e vestirem roupas limpas, envolvem o corpo no pano branco que o cobre, como uma espécie de mortalha e em seguida o corpo é colocado sobre uma laje de pedra. São desenhados círculos em volta do corpo como uma barreira espiritual e como aviso, para que os visitantes mantenham distância. É importante que o corpo sempre esteja na presença de fogo e essências perfumadas para expulsar a corrupção e as doenças. No dia seguinte ao falecimento o corpo é enviado à Torre do Silêncio. O transporte deve ser feito durante o dia e o corpo deve ser carregado obrigatoriamente por um número par de sacerdotes. Cada pessoa do cortejo fúnebre deve ter em mãos um pedaço de pano branco chamado de Paiwand, um amuleto que afasta os espíritos maus. Um par de sacerdotes faz as orações finais e os presentes se curvam ao corpo em sinal de respeito, antes de partir cada um deve lavar as mãos com gomez e água e ao chegar em casa tomar um banho purificador. Na Torre do Silêncio permanecem somente os sacerdotes que terminarão o ritual. A mortalha é removida e destruída, neste processo os sacerdotes usam algumas ferramentas para evitar o contato com o corpo impuro. O cadáver é finalmente deixado na plataforma aberta da torre para que seu corpo seja comido por aves de rapina e deteriorado pelo sol. A decomposição do corpo é rápida, evitando que a impureza do corpo possa contaminar a terra, o ar ou a alma de algum vivo. Quando só restarem os ossos, eles são levados para um poço e deixados ali pela eternidade. A cremação e o

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sepultamento em terra não são permitidos porque o corpo em contato com o fogo e com a terra profanaria a santidade e a pureza destes elementos. O período de luto dura três dias, que seria o tempo que a alma leva para deixar o corpo e partir para a ponte do julgamento. Durante este período de luto família e amigos direcionam suas orações diárias à alma do defunto, evitam comer carne e nenhum alimento pode ser cozido na casa onde ocorreu o falecimento. O fogo usado no ritual fúnebre deve continuar aceso pelos três dias queimando essências aromáticas. O cômodo onde ocorreu a morte fica interditado por dez dias se a morte ocorreu no inverno ou por trinta dias se ocorreu no verão. As Torres do Silêncio, geralmente construídas afastadas das cidades, com uma imagem austera, rígida é a representação da ideia de impureza do corpo morto, quase como um depósito de dejetos. O lugar de domínio do mal e da escuridão.

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Figura 4 - Torre do Silêncio

Budismo Tudo que nos separa da próxima vida é um sopro Sabedoria Budista.

O Budismo tem origens no século VI a.C. com o nascimento de Sidarta Gautama, rebatizado de Buda após atingir o Nirvana. A religião se expandiu pelas terras orientais e evoluiu à medida que se deparava diferentes culturas, são encontrados no budismo hoje traços das culturas Helênicas, Centro-asiáticas e até do extremo oriente. Fruto destes encontros culturais são os diversos cismas formadores das tradições Theravada, Mahayana e Vajrayana. O budismo é uma religião não teísta baseada nos ensinamentos de Buda. As diferenças entre as tradições budistas desaparecem nas bases dos ensinamentos, o Buda, o Dharma e a Sangha são as Três joias budistas que representam o mestre, os ensinamentos e a comunidade. Os povos budistas acreditam no carma e na reencarnação. Carma seria o acúmulo de energias positivas ou negativas de acordo com as ações e pensamentos do ínvido. A morte para o Budismo deveria ser apreciada, assim como a vida. A morte é entendida como um período de descanso, como dormir, o momento em que a energia vital se recarrega e se prepara para um novo ciclo de vida e morte. Por isso, não há motivo para o temor ou para interpretar a morte como um castigo, banindo-a de nossas mentes. O processo de morte é muito importante para o moribundo, pois o estado de espírito em que ele se encontra tem grande influência sobre a próxima reencarnação. A morte não é entendida como a morte física, mas sim a morte psicológica ou consciente, um longo processo que pode durar até três dias depois da morte física. O ritual fúnebre começa antes da morte, parentes, amigos e monges concentram esforços para confortar a mente do moribundo e projetar sua consciência para uma reencarnação positiva. Não há choro, lamentação ou sofrimento, para não alterar o estado de espírito do moribundo. Os budistas acreditam que a alma pode receber influencias do corpo até 21 dias depois da morte consciente, desta forma quanto mais longa for a cerimônia fúnebre mais a consciência do morto é impelida a uma reencarnação positiva. A primeira etapa do ritual fúnebre parte da própria pessoa que irá morrer, é a meditação fúnebre de nove ciclos. Nesta meditação a pessoa é incentivada a desenvolver pensamentos a partir de três afirmações: “A morte é certa”, “A hora da morte não é certa” e “A única ferramenta que temos para nos apoiar na morte é o desenvolvimento mental e espiritual”. Desta forma a pessoa aceita a morte como processo natural da vida inconstante e se desliga dos vínculos materiais e emocionais para contemplar a sua morte. Quando a morte se torna iminente convocam-se monges para rezarem e repetirem mantras para o moribundo com o intuito de aliviar a ansiedade e manter a boa energia antes, durante e depois da morte. Até mesmo as lindas carruagens reais se desgastam; e, de fato, esse corpo também se desgasta. Mas a lição da bondade não envelhece; e então a Bondade informa isso aos bons Cântico Budista

Após a morte física e consciente, segue-se o período de orações e visitas que duram no mínimo quatro dias, o tempo necessário para o espírito desligar-se do corpo e passar para o estado intermediário de onde aguardará a próxima reencarnação. Pode acontecer que esta parte do ritual fúnebre se estenda por semanas, baseado na ideia de que nos primeiros dias após a reencarnação o espírito está mais ligado à vida

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anterior que à vida atual, desta forma a família não poupa esforços para enviar energias positivas e bons pensamentos ao morto. Quando se entende que é chegada a hora, o corpo é cremado em uma cerimônia pública e as cinzas entregues às famílias que podem depositá-las em um templo budista ou serem entregues a natureza. A cremação não é obrigatória, mas é desejada, para que o espírito se veja livre da ligação com a vida anterior. As orações e bons pensamentos direcionados ao morto seguem por 49 dias após a morte que é o período máximo que o espírito pode permanecer no estado intermediário até que encontre um novo corpo para reencarnar. No budismo a preocupação com o estado de consciência do defunto é muito maior do que a preocupação com o corpo, por isso as orações, os pensamentos e a preparação são direcionadas ao estado mental. O corpo como simples meio de transmissão das vontades da alma não tem tanta importância, pode ser cremado, pode ser enterrado, tanto faz, desde que o morto esteja em um estado mental confortável e carregue consigo mais carmas positivos que negativos.

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Figura 5 - Memorial Budista

Islã Foi Alá quem te criou, quem te sustentou, e é ele quem te fará morrer. Surah 30:40.

Banhada pelo mar vermelho, a inóspita Península Arábica foi cenário do surgimento do Islã no século VII d.C quando Jibil revelou ao profeta Maomé (Muhammad) os ensinamentos de Alá. É a segunda maior religião em número de adeptos no mundo, defende a existência de um único deus e está dividida em duas grandes vertentes principais: xiitas e sunitas. Nos anos seguintes à morte do profeta Maomé os quatro califas “bem guiados” foram responsáveis pela expansão e difusão do Islã que rapidamente cruzou os agitados mares que isolavam a Península Arábica chegando à Síria, à Jerusalém, ao Império Persa, ao Egito e até à China. O povo islâmico baseia sua vida religiosa nos cinco pilares do islã: fé, oração, esmola, peregrinação e jejum. O período do ano mais importante para este povo é o Ramadan, época em que durante um mês os islâmicos jejuam do alvorecer ao pôr-do-sol para experimentarem o sacrifício físico e se aproximarem de Alá. A fé na vida após a morte é a crença básica da doutrina islâmica, rejeitá-la tira o sentido das outras crenças, pois, representa a desconfiança no poder de Alá. Existe uma relação direta entre a vida na Terra e a vida seguinte. No dia do Juízo Final, quando Alá descerá dos céus e julgará a todas as criaturas do mundo, os mortos reencarnarão em seu corpo físico rejuvenescido e saudável, para receber o veredito final. No Islamismo acredita-se que a morte é um estado de dormência, de repouso até o dia do Juízo Final e que as almas dos mortos estão em um estágio intermediário, onde sua fé e sua religião são testadas constantemente por anjos enviados por Alá. A religião Islâmica descreve com detalhes a vida após a morte e os rituais fúnebres que devem ser seguidos à risca caso o morto tenha desejo de passar a eternidade no Paraíso em detrimento ao Inferno. Quando a morte dá os primeiros sinais de que é chegada a hora do espírito abandonar este corpo a família do moribundo começa uma vigília de orações. É de extrema importância que as últimas palavras proferidas antes da morte sejam “Inna lillahi wa inna ilayhi raji'u” (Não há deus além de Alá) o que reforça a fé do espírito, representando o merecimento do paraíso, o moribundo deve ser deitado com o seu lado direito voltado para a Qibla (espécie de altar para onde se voltam os islâmicos ao fazer as orações), esta é a mesma posição que o corpo deve estar disposto na sepultura. Recita-se a Surah Yaasin, oração fúnebre, para tornar a morte fácil e evitar a agonia do moribundo. Caso o corpo permaneça de olhos abertos depois da morte é importante fechá-los em sinal de respeito ao cadáver. O corpo deve ser despido e lavado no mínimo três vezes por um familiar do mesmo sexo do falecido, que também deve tampar os orifícios do corpo com algodão, em seguida coberto por um sudário branco aromatizado com cânfora. Se o defunto for um homem, o corpo será coberto por três camadas de pano, caso seja uma mulher, o corpo recebe cinco camadas de pano. Em seguida são realizadas as orações fúnebres, mas elas só podem acontecer se o falecido estiver com todas as dívidas quitadas e se todos os rituais anteriores foram cumpridos, caso contrário as orações não serão realizadas por sacerdotes. Após as orações o corpo pode ser colocado no caixão e enterrado. É preferível que o corpo seja enterrado no mesmo dia da morte para evitar que a decomposição se inicie sem que o defunto esteja sepultado. Choro e lamentações são permitidos por três dias, entretanto não se pode questionar a morte, já que o momento da morte é escolhido por Alá. As viúvas têm autorização, e obrigação, de guardar luto pela morte do marido por quatro meses e dez dias, período em que as mulheres são proibidas de usar cores vivas, maquiagens, adereços e perfumes. As

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visitas às tumbas são louváveis, desde que seja um momento de reflexão sobre a própria morte no futuro e não como idolatria ao morto que ali jaz. Desta forma existem algumas regras de comportamento nos cemitérios islâmicos: é proibido dar voltas nos túmulos, se inclinar em sinal de respeito ao defunto, se prostrar, beijar os túmulos ou jazigos, fazer pedidos ao defunto, ornamentar as tumbas, depositar comidas ou bebidas, realizar festas de memória ao morto e fazer inovações nos túmulos. As riquezas do defunto não devem ser demonstradas nos túmulos, por isso os cemitérios islâmicos são muito uniformes e decorações são inexistentes. Como a morte é tratada de maneira muito natural pela comunidade islâmica, os cemitérios não têm muros e muitas vezes se integram à malha urbana de maneira bastante sublime, ligando a morte e a vida.

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Figura 6 - Cemitério Islâmico em Paris

Xintoísmo No Templo de Nikisawa Eu ofereço o vinho sagrado E rezo, mas Você, meu Senhor Agora governa o mais alto dos céus. Manʹyōshū

A espiritualidade tradicional japonesa é chamada de Xintoísmo, não representa exatamente uma religião, por não possuir regras e textos que expliquem a doutrina, mas é uma compilação de práticas espirituais anciãs dos povos pré-históricos do Japão. As tradições transmitidas oralmente convivem pacificamente com as práticas Budistas, sendo difícil definir o alcance da espiritualidade Xintoísta, já que grande parte da população japonesa pratica ao mesmo tempo o Budismo e o Xintoísmo. As origens desta espiritualidade são um pouco difusas, a história registra as práticas pela primeira vez somente no século VIII d.C, mas algumas evidências arqueológicas sugerem que o xintoísmo vem de períodos significativamente mais antigos. Prega-se a existência de muitos deuses que representariam as forças da natureza, tem conceitos animistas e politeístas. Amaterasu Omikami, o Deus Sol, é o principal kami13 desta espiritualidade, o início da genealogia sagrada da Família Imperial japonesa. A alma dos homens é chamada de ujigami e a vida ocorre com a interação entre o ujigami e os kami. Os xintoístas acreditam que o corpo morto é impuro, por esta razão, teoricamente, inexistem cemitérios xintoístas, mas a passagem dos anos transformou um pouco a prática tradicional e hoje já é possível encontrar alguns cemitérios xintoístas afastados das cidades. O ritual fúnebre, chamado de shinsōsai é complexo e longo, sendo descritas vinte etapas e cerimônias a serem seguidas. Basicamente, o corpo é limpo e disposto em um futon branco como se fosse descansar pela eternidade, em seguida é colocado no caixão e executam-se diversas cerimonias de purificação do local de onde ocorreu a morte, do corpo e do local onde será erigido o memorial familiar. Segue-se com o ritual de saída da alma, a despedida do corpo de sua casa. Acontece a cremação, ou atualmente, também é permitido o sepultamento. No caso da cremação, as famílias devem possuir em casa um pequeno templo que guardará as memórias de seus antepassados, caso o corpo seja enterrado as visitas ao túmulo são obrigatórias a cada dez dias. É importante que no dia da cerimônia fúnebre a casa onde vivia o morto seja limpa com sal, afim de afastar as impurezas trazidas pelo corpo morto ao local e os maus espíritos. A família ainda deve seguir uma série de rituais por 49 dias após a morte do parente, colocando um lugar à mesa para o morto, oferecendo-lhe bebida e comida, ofertando flores, presentes e quantias em dinheiro para a memória do defunto. A alma passará a habitar o mundo espiritual tendo a possibilidade de ser iluminada e transformar-se em uma divindade. Este ritual fúnebre, complexo e longo é tradicionalmente seguido pela família imperial. Os civis, também seguem estas tradições complexas, porém muito ligados também às tradições funerárias budistas, criando um ritual sincrético. É o termo usado para definir as divindades, porém não corresponde exatamente ao que nas religiões ocidentais é definido como Deus. Kami designa os espíritos invisíveis, seres superiores e divinos. A ideia de deuses também existe na espiritualidade xintoísta, porém trazem a ideia de transcendência, de um ser que habita um mundo superior. Desta forma os kami são ligados às forças da natureza, aos fenômenos meteorológicos, à energia humana, à fecundidade e ao poder criativo, por exemplo. 13

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Figura 7 - Memorial Xinto

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Protestantismo Sola Fide. Doutrina Protestante14

Em 1517 Martinho Lutero inicia uma grande reforma religiosa, inconformado com algumas práticas adotadas pela Igreja Católica. O padre alemão atacava a venda de indulgências, o comércio de relíquias e os desvios de conduta dos padres, propondo assim uma nova Igreja que tem como princípio básico a autonomia dos fiéis, ou seja, cada um é livre para interpretar e assumir os textos bíblicos de acordo com a sua subjetividade. A maior flexibilidade religiosa proposta no movimento protestante cria o cenário perfeito para o surgimento de diversas correntes religiosas cristãs. Dentre as diversas correntes que surgiram como a igreja Luterana, Presbiteriana, Anglicana e Batista escolho a última para estudar os rituais fúnebres, porque esta é a igreja de maior alcance nos Estados Unidos, país em que as Igrejas Evangélicas representam a maioria dos fiéis. Os rituais fúnebres começam com o velório. Quando algum evangélico morre seu corpo é colocado em um caixão, abre-se um tempo para visitas de familiares e amigos. O velório pode estender-se por dias ou durar apenas algumas horas. Iniciase o período de condolências, onde um sacerdote, um ministro ou um parente realiza alguma leitura bíblica ao som de hinos religiosos, nesta etapa os familiares e amigos relembram a vida do defunto, é um momento muito pessoal, ligado aos desejos do defunto ou da família. Segue-se com um cortejo fúnebre até o local da sepultura, são proferidas às últimas palavras, o caixão é colocado na cova, os presentes ofertam flores ao morto e fecha-se a cova. Os evangélicos podem ser cremados, a cerimônia é um pouco mais rápida e intima. Os familiares mais próximos vão ao crematório e realizam ali um pequeno velório, algumas palavras são ditas e o corpo é cremado. A família pode realizar uma cerimônia de recepção de amigos e parentes mais distantes no momento em que recebem as cinzas, seria o equivalente ao velório. Não há período de luto estabelecido como em outras religiões, mas é comum que os parentes visitem os túmulos em datas comemorativas. É comum que casais sejam enterrados juntos, filhos e filhas nas proximidades, mantendo o núcleo familiar inclusive depois da morte. A crença de que Deus é o único capaz de intervir no destino das almas é definidora da forma dos cemitérios evangélicos, inexistem decorações ou jazigos monumentais, são espaços muito discretos, já que não há nada mais que possa ser feito por um homem para mudar a decisão de Deus sobre o destino da alma. Não existe a ideia de Purgatório comum na Igreja Católica, para os protestantes a alma segue diretamente para o céu ou para o inferno de acordo com as ações da pessoa durante sua vida.

Do Latim: Fé somente. Doutrina pregada pelo movimento protestante, representando a Justiça pela Fé, somente a fé é capaz de salvar o homem. 14

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Figura 8 - Cemitério Protestante em Albany

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Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias What have we to console us in relation to the dead? We have reason to have the greatest hope and consolation for our dead of any people on the earth Joseph Smith Jr. 1844

A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, nome oficial da doutrina mórmon, surgiu no séclo XIX nos Estados Unidos, é um movimento religioso restauracionista fundado por Joseph Smith Junior ao receber as instruções do “Pai Celestial e Seu Filho, Jesus Cristo”. Os Santos dos Últimos Dias mantêm um grande programa missionário de proselitismo que envia jovens entre 18 e 26 anos para todas as partes do mundo, por isso, é a igreja cristã que mais cresce atualmente. Os fiéis devem jurar pureza sexual, jejum, atenção à saúde e respeito ao dia sagrado, neste caso o domingo. Os rituais de laço com Deus mais importantes para os mórmons são o batismo, a confirmação, o sacramento, a investidura e o casamento celestial, todos eles eternos. A crença mórmon prega que existem três etapas pelas quais todo ser humano passa, A primeira delas seria a etapa de preparação da alma que acontece antes do nascimento. A segunda etapa é a vida mortal que estaríamos agora e finalmente vida eterna que acontece depois da morte. Acredita-se que o destino das pessoas boas é o céu, somente os realmente diabólicos irão para o inferno. Porém, existem diferentes níveis de céu, nem todos viverão a eternidade na presença de Deus. Os funerais da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias são realizados em capelas e, por isso, são solenes e respeitosos, mas não há o predomínio da tristeza e da lamentação. O corpo deve ser enterrado em vestes brancas, vestidos ou saias e camisas para as mulheres e calça, camisa e gravata para os homens. Em uma cerimônia mais íntima, a família se reúne para fechar o caixão e se despedir do defunto, então o caixão é levado para a capela mórmon onde acontecerá a cerimonia com parentes mais distantes, amigos e companheiros de congregação. Dá-se início ao funeral com um hino e uma oração, presididos por um sacerdote, e em seguida os presentes podem fazer diversos discursos que lembrem a vida do falecido, de maneira muito descontraída e alegre. O momento é triste pelo pesar do afastamento temporário da pessoa que morreu, porém não há lamentações e choro excessivo, já que a ideia do reencontro com o defunto conforta os enlutados. O sacerdote acompanha o cortejo até o local da sepultura, onde ele deve dedicar a tumba ao morto e fazer a última oração antes do enterro. A cremação não é proibida, mas também não é encorajada, prefere-se o sepultamento. Após o sepultamento uma pequena reunião com a família é organizada onde é servida comida (especificamente presunto, batatas fúnebres, salada Jell-O, e bolo) e a família deve ser confortada pela comunidade. Não há período de luto determinado e nenhum ritual, ou regra de comportamento após o fim destas cerimonias. Por ser uma religião relativamente nova e pequena, os mórmons ainda não possuem cemitérios próprios. As tumbas, em geral, são simples e sem ornamentação excessiva, é comum encontrar fotos da família junto com o defunto. A morte não é vista como algo negativo ou doloroso, os vivos se confortam com a ideia do reencontro com o morto na vida seguinte, onde os laços criados na vida mortal continuam (casamentos, parentescos, amizades).

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Figura 9 - Cerimônia fúnebre Mórmon

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A morte na História

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No fundo de seus sepulcros, os mortos formam assim as raízes que, dando ao grupo humano seu ponto de ancoragem no solo, lhe asseguram a estabilidade no espaço e a continuidade no tempo. Quando um conquistador pretende destruir ou reduzir à servidão uma nação inimiga, é preciso, de início, extirpar suas raízes: as tumbas, violadas, são abertas, os ossos pulverizados são dispersos ao vento. Com suas amarras rompidas, as comunidades flutuam: semelhantes a um cadáver privado de sepultura, lançado às feras, cujo espectro é condenado a vagabundear sem fim; privados de poder penetrar no reino dos mortos, eles são abandonados à errância, à marginalidade, ao caos. Na ótica mesopotâmia, uma sociedade cortada de seus mortos não tem mais lugar no tabuleiro de xadrez da extensão terrestre. Com suas raízes, ela perde sua estabilidade, sua consistência, sua coesão Vernant, J-P. Trois Idéologies de la Mort . In: L’Individu, La Mort, L’Amour. Soi-Même et L’Autre en Grêce Ancienne . Paris: Gallimard, 1982, p. 108.

Faz muito tempo que a morte é considerada um aspecto fascinante da vida. As relações entre a vida e a morte podem explicar algumas atitudes sociais e políticas, podem fundamentar doutrinas filosóficas e religiosas, podem ocasionar guerras assim como aproximar diferentes povos. Possuímos uma herança cultural sobre a morte que é a base do pensamento contemporâneo (COMBINATO e QUEIROZ, 2006). Enquanto fenômeno social, a morte é impregnada de simbolismos, valores e significados dependentes do contexto histórico em que se manifesta (KASTENBAUM e AISENBERG, 1983). Desta forma, torna-se imperativo analisar a morte a partir da perspectiva histórica para então chegarmos a um entendimento mais profundo do que significa morrer hoje em dia. A maior parte do conhecimento que temos sobre civilizações ancestrais foram os mortos que nos contaram, seja pela análise dos corpos encontrados ou pelos grandes monumentos construídos para celebrar a morte e a lembrança dos mortos. A viagem histórica começa a cerca de 5500 anos, na possível fundação do Complexo de Ness de Brodgar na Escócia. A grande estrutura neolítica faz parte de um imenso sitio arqueológico que envolve importantes construções como Stonehenge e Newgarange. Os povos neolíticos construíam três tipos diferentes de tumbas: circulares (Ness de Brodgar), lineares (Newgrange) e as tumbas pórticos (Stonehenge) (POWELL, 2014). A separação histórica destes tipos tumulares não é exata, sugere-se, em geral, que os túmulos pórticos e circulares foram os primeiros a serem construídos, evoluindo, em seguida, para túmulos lineares, representando mudanças sociais importantes em uma sociedade que inicialmente era igualitária e passou a ter uma estrutura hierárquica estratificada (POWELL, 2014). A implantação destes monumentos também indica tipos diferentes de relações entre vida e morte: enquanto os túmulos pórticos e circulares se confundem com os espaços de habitação, os túmulos lineares estão dispostos em locais exclusivamente tumulares. Ou seja, antes a sociedade era formada por vivos e mortos, os dois mundos conviviam, e depois a morte isola personagens importantes e cria locais diferenciados para os mortos nos túmulos lineares ainda existe a ideia de fronteira, são criados espaços interiores e exteriores claramente separados entre si por espessas paredes de pedra. Nessa época os egípcios já mumificavam os mortos. A prática tem profunda relação com a crença de que todos viverão na eternidade após a morte, por isso a necessidade de conservar e proteger o corpo. As primeiras tumbas egípcias eram simples covas cavadas no solo e protegidas por pedras, para evitar que a imprevisível movimentação das areias do deserto revelasse os corpos e os deixassem desprotegidos. Das tumbas simples no solo, os faraós evoluíram para construções acima do solo, e assim nasceram as mastabas. Em 2.630 a.C. o Faraó Djóser constrói a primeira pirâmide em degraus do Egito, uma evolução das mastabas. Mais tarde surgiram as famosas pirâmides, monumentos tumulares dos faraós. Os pobres e escravos continuaram sendo enterrados no solo e protegidos por lajes de pedra. As pirâmides egípcias inspiraram as rainhas do Reino Cuxe, atual Sudão, a construir templos funerários piramidais. Um complexo com cerca de 255 pirâmides, chamadas de Pirâmides Núbias, recebe os corpos de reis e rainhas cuxes, dentro das pirâmides são encontrados grandiosos sarcófagos de granito, o sarcófago da Rainha Aspelta pesa cerca de 15,5 toneladas. No Vale do Rio Indo, hoje Paquistão, surgem grandes civilizações da Idade do Bronze, talvez as maiores da sua época. Uma delas, a civilização Harappa, inicialmente enterrava os mortos em locais afastados da cidade, o corpo era disposto deitado com a barriga para baixo e os olhos mirando o norte, ao lado do corpo vasos cerâmicos guardavam objetos, esculturas e às vezes animais (POSSEHL, 2002, p. 171), mais tarde, essa civilização aderiu à cremação: as cinzas eram colocadas em potes

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cerâmicos e enterradas da mesma forma que se fazia com os corpos. Ainda no Vale do Rio Indo uma outra civilização chamada de Mohenjo-Daro, que em sua língua, idioma Sindi, quer dizer “Monte dos Mortos”, guarda um grande mistério: os cemitérios encontrados fora das cidades possuem três tipos de tumbas: as mais antigas com corpos dispostos seguindo a mesma tradição do Povo Harappeano, com a diferença que as tumbas eram lacradas com lama, e outros dois tipos de sepultamentos sem corpos, apenas objetos organizados dentro de vasos cerâmicos (ALCHIN, 2003, p. 217). Ainda não se sabe qual fim era dado aos corpos dessas sepulturas, mas elas revelam uma profunda relação de memória entre vivos e mortos. Na Mesopotâmia o Povo Sumério escrevia em 2150 a.C. a Epopeia de Gilgamesh que narra as principais crenças de vida após a morte. Este povo tinha uma visão muito negativa da morte: todas as almas seguiam para um estágio de limbo, onde se alimentavam de pó e lodo, era um mundo subterrâneo dominado por deuses traiçoeiros. Não importava se o morto era um rei ou um escravo, todos tinham o mesmo destino. Os corpos eram enterrados para facilitar o caminho da alma para o mundo subterrâneo, e junto com eles, colocavam alguns objetos pessoais do morto, pois eles davam bastante valor à memória da vida na terra e à individualidade. Desta forma, os sumérios passaram a inumar os corpos em monumentos de acordo com a posição social que o cadáver ocupava em vida. Os reis eram enterrados em grandes estruturas, acompanhavam o chefe de estado todo o septo real que em uma cerimônia fúnebre bebiam um elixir sagrado que os fazia adormecer, então todos eram cobertos pela terra. Os homens comuns eram enterrados junto com as suas roupas, objetos e até mesmo a sua comida preferida (GIACÓIA, 2005) em cemitérios claramente demarcados nas fronteiras das cidades evidenciando o limite entre o domínio dos vivos e o domínio dos mortos. Outra importante civilização antiga dava bastante importância à memória dos mortos. Os gregos, talvez influenciados pelos egípcios (MARK, 2009), constroem pequenos monumentos com inscrições para lembrar os grandes feitos em vida da pessoa que está ali sepultada. Um destes monumentos funerários é o Tolo, palavra usada para denominar templos de planta circular. Tolos são sepulturas coletivas construídas em xisto, possuem a sala principal, onde ficam os corpos, precedida por um longo corredor. Em geral, esses monumentos eram construídos na superfície e depois do sepultamento todo o monumento era coberto com terra. Desde sua fundação em 753 a.C. a cidade de Roma enterrava seus mortos no vale entre o Monte Capitolino e o Monte Palatino (BECKER, 2015)15. Mais tarde essa região foi apontada como a ideal para a implantação do Foro Romano, o agitado centro urbano, deste modo a necrópole foi transferida para o Monte Esquilino. Em 450 a.C., a Lei das XII Tábuas (Lex Duodecim Tabularum ou simplesmente Duodecim Tabulae) proíbe que sepultamentos e cremações sejam realizados no interior dos muros das cidades, Assim para os pobres e cidadãos comuns passaram a ocupar sepulturas às margens das vias de saída das cidades, como a Ruas das Tumbas em Pompeia, ou a Via Ápia, em Roma.16 Para os romanos era importante criar inscrições em pedra que perpetuassem o nome dos mortos. Os imperadores e cidadãos de importância política e/ou financeira poderiam ser sepultados em monumentos no interior das cidades como o mausoléu de Augustus e de Adriano.17

Disponível em https://www.khanacademy.org/humanities/ancient-art-civilizations/roman/beginnersguide-rome/a/forum-romanum-the-roman-forum Acesso em 6 nov. 2015. 16 Segundo https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_das_Doze_T%C3%A1buas Acesso em 6 nov. 2015. 17 Disponível em http://www.forumromanum.org/life/johnston_14.html Acesso em 6 nov. 2015. http://dlib.etc.ucla.edu/projects/Forum/resources/Richardson/Forum_Romanum Acesso em 6 nov. 2015. 15

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Em 259 a.C. nasce o homem que unificará a China e ordenará a construção de um dos mais misteriosos monumentos funerários que temos notícia. Qin Shi Huang (pronuncia-se “chin chú ruang”) está sepultado sob uma montanha cercado por um exército de soldados esculpidos em terracota. O mausoléu representa a ideia chinesa, muito parecida à dos egípcios, de vida após a morte e da necessidade de o defunto ser acompanhado por objetos que possam protegê-lo no caminho rumo ao desconhecido. As escavações ainda não foram concluídas, já foram descobertos cerca de 2.000 soldados, cada um com rosto e vestimentas particulares, mas acredita-se que o conjunto escultórico conte com 8.000 esculturas. Algumas inscrições encontradas sugerem a existência de todo um reino enterrado e esculpido em terracota, desde salas de concubinas, grandes palácios e rios de mercúrio que, segundo a crença chinesa, garantem a imortalidade.18 O cristianismo surge pelas mãos de um profeta judeu, cercado pela religião politeísta romana. Desta maneira, os primeiros rituais funerários cristãos traziam muito dos costumes destas outras religiões. O texto central do judaísmo, Tanakh, diz: “Assim Moisés, servo do Senhor, morreu ali na terra de Moabe, conforme o dito do Senhor, que o sepultou no vale, na terra de Moabe, defronte de Bete-Peor; e ninguém soube até hoje o lugar da sua sepultura” (Deuteronômio 34 1-6), esta passagem é a que define a maneira de sepultamento defendida pelos judeus e herdada pelos cristãos. A grande diferença apresentada pelos cristãos é que os cadáveres não são tratados como impuros, pois a purificação do batismo é eterna, razão pela qual, tocam o corpo sem temor de poluição. A morte até então é considerada um bem para os cristãos, os rituais funerários são alegres e acontecem para todos, ricos e pobres, oferecendo dignidade a toda a comunidade. Em 387 d.C. Aurélio Ambrósio, arcebispo de Mediolano publica o texto Sobre o bem da Morte, texto que trata a morte desde um ponto de vista bastante otimista e positivo.19 A perseguição romana aos cristãos, que arrastou à tortura e martírio diversos personagens da religião, lentamente levou à veneração desses restos mortais, e eventualmente o corpo de algum santo era sepultado em templos dentro dos muros da cidade. Com a santificação desses locais alguns fieis desejavam ser sepultados próximos às relíquias santas e assim, aos poucos as proibições de enterro nas cidades foram sendo esquecidas. 20 Ao contrário das crenças apresentadas até agora que veem necessidade na perpetuação da memória individual dos mortos, pela criação de monumentos de lembrança e de estoque do cadáver, as crenças hinduístas pregam a não preservação da individualidade. O corpo é incinerado e as cinzas lançadas em um rio ou levadas pelo sopro do vento; como não há identidade após a morte, não há inserção social ou apego à vida mundana (GIACÓIA, 2005). Os locais de cremação são grandes estruturas públicas chamadas ghats integradas à malha urbana, em geral nas margens de um percurso d’água. No século V d.C. é fundado o primeiro ghat da cidade sagrada de Varanasi, Índia, o Manikarnika Ghat popularmente conhecido como ''grande campo de cremação''. É um dos principais ghats presentes no longo trecho do rio sagrado do Ganges. Nesta construção estão os dois principais espaços de cremação de Varanasi, e o tanque sagrado ao lado do qual o Senhor Vishnu realizou suas austeridades cosmogônicas. https://www.khanacademy.org/humanities/ancient-art-civilizations/roman/beginners-guiderome/a/forum-romanum-the-roman-forum. Acesso em 6 nov. 2015. 18 Disponível em http://www.livescience.com/22454-ancient-chinese-tomb-terracotta-warriors.html Acesso em 6 nov. 2015 19 Disponível em http://academico.arautos.org/2014/02/santo-ambrosio/ Acesso em 6 de nov. 2015. 20 Segundo http://www.deathreference.com/Ce-Da/Christian-Death-Rites-History-of.html Acesso em 6 nov. 2015.

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Na passagem do século III para o século IV, São João Crisóstemo (349-407) repudia o crescente número de enterros nas igrejas urbanas: Cuide de nunca erguer um túmulo dentro da cidade. Se alguém deixasse um cadáver no lugar em que dormes e comes o que não farias? E, entretanto, deixa os cadáveres não onde dormes e comes, mas nos membros do Cristo. (São João Crsóstomo, opera... Paris, ED. Montfaucon, 1718-1738, vol VIII, homila 74. Apud ARIÈS, 2012)

Retomando as antigas regras de sepultamento extramuros, assim os corpos dos cristãos passaram a ser enterrados nas igrejas dos Mártires, afastados das cidades e protegidos pela santidade, os monges são os responsáveis pela manutenção dos cemitérios e execução dos enterros. Estes são chamados de enterros ad sanctus. Em 540 morre São Gastão, Bispo Vedastus. O seu sepultamento é preparado em um mosteiro próximo à vila em que vivia, Vaast d’Arras. Quando tudo estava pronto para a cerimônia fúnebre o corpo se tornou pesado como rocha, impossibilitando o transporte até o jazigo. Foi decido, por fim, enterrar o corpo na Catedral da vila, então, o defunto tornou-se leve como pena. O ocorrido foi interpretado como a manifestação da vontade Divina que os corpos dos fiéis fossem enterrados nas cidades, ad sanctus. Assim, os corpos dos defuntos cristãos voltaram a dividir definitivamente os espaços urbanos com os vivos. Na América, antes da chegada europeia e a consequente difusão do cristianismo, os Maias acreditavam que as almas só teriam um destino: o Xibalba. Essa crença é muito parecida com a defendida pelos Sumérios. O Xibalba seria um submundo governado por Cizin, o deus da morte. Os corpos dos cidadãos comuns eram enterrados, em geral envoltos por uma mortalha, com uma espiga de milho e um amuleto na boca; o local era o piso da casa onde o morto vivia com a sua família que, após o sepultamento, era abandonada pelos sobreviventes. Ainda na A mérica précolombiana os Astecas acreditam em um paraíso e um inferno, sendo o segundo o principal destino das almas e o primeiro o destino certo de fetos, crianças, vítimas de sacrifícios e suicidas. Nas duas civilizações, reis eram considerados deuses e após a morte o corpo era depositado em grandes monumentos acompanhados de alimentos, roupas e tesouros para ajudar os mortos no caminho para a vida após a morte, assim como faziam os egípcios.21 Os rituais fúnebres cristãos começam a se desenvolver e a se tornar bastante complexos. O clero se ocupa em criar cânticos, orações e cerimônias específicas para a morte com o intuito de salvar a alma, garantindo a ressurreição no Paraíso. Entre os séculos V e VI esta evolução dos rituais fúnebres cristãos é amplamente documentada. Outro fator importante neste período é o surgimento de diversos reinos e, consequentemente, o surgimento de variações religiosas; dessa forma, o clero de cada reino cria regras específicas para os seus rituais fúnebres.22 Até o século 12 a morte é entendida como natural. O moribundo pressentia a proximidade da morte e tomava as providencias necessárias para a transmissão de seus desejos e absolvição dos pecados. Morria-se cercado por familiares, empregados (no caso dos ricos e poderosos), amigos, padres e por toda pessoa que tivesse interesse em participar da cerimônia. Era importante morrer deitado com a cabeça voltada para o norte e na presença de um padre, que garantiria as orações e unguentos a fim de facilitar a entrada da alma no céu. A partir de meados do século Disponível em http://www.deathreference.com/Ke-Ma/Maya-Religion.html Avesso em 7 nov. 2015. Segundo http://www.deathreference.com/Ce-Da/Christian-Death-Rites-History-of.html Acesso em 7 nov. 2015. 21

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XII acontece uma grande mudança na ideia da morte, que passa a ser entendida

como uma ruptura da vida. Surgem os primeiros rituais de luto familiar, mas ainda não existe o drama e a tristeza tão presentes hoje. A morte permanece domesticada (ARIÈS, 2012). Os cemitérios e campos santos que ficavam nos arredores das cidades, fora da vida urbana, começam a ser assimilados pelo crescimento das cidades. As igrejas estão repletas de ossadas e corpos em decomposição, os ricos e importantes ocupam os espaços internos ou muros das igrejas e os pobres estão amontoados nos ossuários. Em 1130 é fundado o Cemitério dos Inocentes em Paris. Como era normal até então o cemitério está ao lado de uma igreja. Ocupando todo um quarteirão, representando a volta dos cemitérios para o centro das cidades. O cemitério aparece no plano de Paris desenhado por Turgot entre 1734 e 1736. Porém, já em 1657 é publicado o primeiro texto que condena a coexistência entre mortos e vivos na malha urbana, de autoria de Berthold23 foi publicado em La ville de Paris en vers burlesques. Em 1500 chegam ao litoral brasileiro as caravelas portuguesas lideradas por Pedro Álvares Cabral. Os povos indígenas locais possuem rituais funerários complexos e muito particulares de sua cultura, alguns deles condenados pelos europeus deixando de ser praticados. Os índios do Alto Xingu anualmente festejam os mortos em uma cerimônia chamada Kuarup, ritual de celebração da memória do primeiro guerreiro que caminhou pela terra, Mavutsinin. Nas aldeias Bororo, os rituais fúnebres são os mais importantes e solenes de sua cultura. Para esses índios, quando uma pessoa morre, o mundo fica incompleto, existindo a necessidade de iniciação dos jovens índios para preencher a ausência do morto. Desta forma os rituais fúnebres são seguidos de rituais de iniciação. No sul do Brasil os índios Kaingang festejam por três dias e três noites a morte e os antepassados. Existem também tribos que praticavam o canibalismo, como os Wari de Rondônia. No ritual fúnebre, a aldeia come a carne dos mortos e queima os cabelos e órgãos internos, com o objetivo de destruir qualquer ligação que o espírito tenha com o mundo dos vivos para evitar que ele volte. Além da antropofagia, os índios Wari mudam o aspecto dos ambientes frequentados pelo morto para que seu espírito não se lembre dos lugares em que passou. Os Matis da Amazônia enterram seus mortos em posição fetal junto com os seus pertences e sua rede; a sepultura é no chão da oca em que vivia o falecido, a qual, alguns dias depois da inumação é abandonada e queimada.24 Em 1517 tem início a Reforma Protestante por Martinho Lutero, resultando na divisão da crença cristã entre católicos romanos e reformados. O renascimento cultural, a criação da imprensa e o hermetismo junto com a reforma protestante são a síntese da chamada Revolução científica que se estendeu do século XVI ao século XVIII. Esses eventos influenciarão profundamente as interpretações da morte no Ocidente. Os iluministas de meados do século XVII passaram a condenar o tratamento dado pela Igreja aos mortos. Esta atitude pode ser interpretada como uma resposta natural à nova forma afetiva de tratar os mortos. Até então, os corpos eram quase que cedidos à Igreja, que os enterrava como lhe fosse conveniente, inexistindo até inscrições indicativas de quem estava enterrado ali. Outra importante mudança do período foi que as relações familiares deixaram de ser políticas e passaram a ser baseadas no afeto. O luto da Alta Idade Média é retomado e intensificado. Passa-se a Reconhecido escritor parisiense sem identidade. Sabe-se que Berthold é um pseudônimo, mas a verdadeira identidade do poeta nunca foi descoberta. Segundo http://www.textesrares.com/paris_pages.php?texte=paris016_A.inc&menu=La%20 Ville%20de%20Paris%20en%20vers%20burlesques%20de%20Berthod Acesso em 17 set. 2015. 24 Segundo http://www.iande.art.br/boletim007.htm Acesso em 8 nov. 2015. 23

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temer e a valorizar a morte do outro. As igrejas já não suportam mais receber os cadáveres e cuidar da destinação dos restos mortais (ARIÈS, 2012). Os ossuários estão em constante deslocamento por superlotação. Para amenizar o problema, a Igreja Católica começa a decorar templos e igrejas com as ossadas disponíveis, a Igreja dos Capuchinhos e a Igreja Da Oração e Da Morte em Roma, são exemplos de construções ornamentadas com ossadas. A nova perspectiva de afeto para com os mortos também cria a necessidade de monumentos funerários, locais de visita próximos à cidade para conforto dos familiares e amigos, tornando obsoleta a solução de abandono dos corpos às igrejas. Assim, os cemitérios são a resposta encontrada para o problema e passam a ser a principal solução adotada no Ocidente para depositar os mortos. Acompanhando a corrente higiênica de desprezo do corpo morto e de limpeza urbana, o governador de Paris desativa o Cemitério dos Inocentes e cria nos limites da cidade quatro novos cemitérios: Montparnasse, Passy, Montmartre e o famoso Père Lachaise. As ossadas de personagens importantes que estavam no Cemitério dos Inocentes foram transferidas para os novos cemitérios e os demais restos mortais foram enviados para as catacumbas de Paris. Em 1876 acontece nos Estados Unidos a primeira cremação científica moderna (PRESTON, 2010), tornando acessível para a sociedade uma alternativa aos sepultamentos. A cremação é condenada por algumas religiões como o Judaísmo, mas é aceita em muitas religiões protestantes, sem contar as religiões que incentivam a cremação como o Hinduísmo e o Budismo. No início do século XIX os cemitérios já estavam reintegrados à malha urbana e surge novamente o projeto de sua desativação e consequente transferência para as bordas urbanas (ARIÈS, 2012, p. 87). Porém, desta vez a ideia não foi aceita pela população que passa a frequentar os cemitérios e a venerar os mortos; os túmulos se tornam testemunhos da história nacional. A recusa popular da desativação dos cemitérios urbanos representa essa nova ideia de afeto para com os mortos e a necessidade de preservação histórica dos cemitérios. Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais. É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar a incandescência a verdade de todos os lugares de memória. (NORA, 1984, p. 13)

Começa a se desenvolver a ideia de culto aos heróis nacionais, e de morte heroica e santificadora. Os cemitérios passam a ser pensados para receber visitantes e informar a história e posição social dos mortos (ARIÈS, 2014). A partir de 1914, com a Primeira Guerra Mundial e a morte de muitos militares e civis, o sentimento de culto aos heróis nacionais é intensificado e começam a proliferar na Europa os memoriais que são espaços dedicados à memória, em sua maioria, de pessoas mortas em desastres, guerras e acidentes, cujos corpos não puderam ser localizados ou identificados, são memoriais sem corpos. Esta pratica moderna de criar memoriais para combatentes anônimos nasceu no Reino Unido quando no fim da Primeira Guerra Mundial um soldado anônimo foi sepultado na Abadia de Westminster em 1920 em honra a todo exército Britânico que lutou na Guerra. Outro importante sepultamento de soldado

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desconhecido está sob o Arco do Triunfo, em Paris, construído em 1921 em memória aos soldados nunca encontrados ou que não possuíam identificação.25 Os relacionamentos familiares afetivos, que levaram ao temor da morte dos entes queridos, evoluíram para a ideia negativa da morte. A partir do século XX, tenta-se ao máximo adiar a morte, ainda que a vida perpetue o sofrimento ou a dor. Philippe Ariés (2012) identifica uma inversão de valores entre a morte e o sexo: antes o sexo era considerado tabu e a morte completamente natural, agora o que era permitido é proibido e o que era proibido passa a ser permitido. Esta tentativa de prolongar a vida e interditar a morte desloca o morrer para o hospital. A morte se torna higiênica e impessoal, a família não assiste ao ato de morrer e os preparos fúnebres ficam, em geral, a cargo de equipes especializadas. A morte adquire um caráter negativo por estar ligada ao sofrimento e à infelicidade, sentimentos que na vida contemporânea devem ser combatidos de todas as maneiras. Há uma ditadura da felicidade. Outros autores concordam com Ariés no sentido em que a morte a partir do século XX adquire uma perspectiva negativa, porém apresentam outro motivo para tal. Segundo Kovács (1996) a partir da Revolução Industrial o corpo se torna um instrumento de trabalho e força de produção, a morte então seria a interrupção da produção do corpo, representando o fracasso do homem. Dessa forma a doença e a velhice são consideradas pequenas mortes que temos que passar durante a vida antes da morte definitiva. Essa visão em perspectiva da morte mostra como as interpretações deste fenômeno são extremamente cambiantes, tanto geográfica quanto temporalmente. Cada povo possui sua própria interpretação da morte que molda os rituais fúnebres, a localização dos cemitérios, as formas tumulares e a inserção social do morto. Para tornar essa leitura histórica da morte mais agradável, veloz e visual apresento uma linha do tempo, onde estão pontuados alguns eventos importantes que mudaram as formas de entender a morte e o culto religioso dos mortos, assim como a construção de importantes templos funerários. A linha do tempo foi estabelecida a partir da cronologia apresentada na Ancient History Encyclopedia (http://www.ancient.eu/), além de dados coletados em fontes diversas. Algumas informações são discrepantes entre as diferentes fontes e outras são imprecisas, como, por exemplo, a data de fundação de Newgrange ou o período de vida do Profeta Zoroastro. O objetivo da linha do tempo é mostrar a cronologia da ideia de morte que chega até nós, razão pela qual, o foco é dado para construções ocidentais. Nem todas as civilizações que foram estudadas puderam ser contempladas, como, por exemplo a cultura celta, os vikings e bárbaros.

Segundo https://pt.wikipedia.org/wiki/T%C3%BAmulo_do_soldado_desconhecido Acesso em 21 nov. 2015. 25

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3228 a.C. - 3102 a.C. Período de vida de Krishna

1592 a.C. - 1472 a.C. Período de vida de Moisés

1324 a.C. - 1118 a.C. Período de vida de Lao Tsé segundo o biógrafo Wu Jyh Cherng

753 a.C. - 673 a.C. Período de vida de Numa Pompílio

630 a.C. - 553 a.C. Período de vida de Zoroatro segundo consenso erudito moderno

490 a.C. - 410 a.C. Período de vida de Sidarta Gautama segundo consenso erudito moderno

570 - 632 Período de vida do Profeta Maomé

1000 - 1059 Período de vida do Miguel I de Costantinopla

1483 - 1546 Período de vida do Martinho Lutero

1804 - 1869 Período de vida de Allan Kardec

400 d.C

figura 1 - Anel de Brodgar com mais de 90 metros de diâmetro

3500 a.C Possível data de fundação do complexo de Ness de Brodgar¹. Estruturas neolíticas encontradas em 2002 em Orkney na Escócia. Segundo o arqueólogo Mark Edmonds o lugar era usado em rituais de celebração da morte e como cemitério. Primeira evidência escrita de existência de religião na Suméria.

Primeiras evidências de práticas funerárias sofisticadas da Civilização Harappan, localizado onde hoje está a Índia. Os sítios arqueológicos mais importantes são: Harappa Kalibangan, Rakhigarhi, Lothal, Rojdi e Ropar.³

Construído Newgrange na Irlanda. A construção pertence ao Conjunto Arqueológico do Vale do Boyne, um dos mais famosos sítios pré-históricos do mundo. Acredita-se que a principal função do edifício era funerária, foram encontrados no local cinzas de 5 corpos. A construção tem uma íntima relação com o Sol: no dia do Solstício de inverno, um feixe de luz solar alcança as câmaras mais profundas do edifício.²

3300 a.C

figura 2 - Newgrange, Vale do Boyne, Irlanda

O Primeiro Cemitério Cristão de Paris era vizinho do chamado Bairro da Margem Norte, perto de onde o Rio Senna encontrava as muralhas da cidade.

3100 a.C

Primeiras mastabas construídas no Egito. As mastabas são consideradas as mães das pirâmides, são os primeiros monumentos funerários desta civilização.4 Início da construção de Stonehenge. Evidências indicam que o monumento tem profunda ligação com tradições funerárias, existe um grande número de ossadas enterradas no sítio arqueológico.5

figura 3 - Mastaba nos arredores de Giza

Restos arqueológicos indicam que os Maias enterram seus mortos em sepulturas individuais sob suas casas.

2800 a.C A civilização Harappan adere à cremação em detrimento ao enterro.

Construída a tumba de Maeshowe em Orkney, Escócia. A tumba tem um grande corredor antes de se chegar à sepultura, por isso foi apelidada de Passagem de Maeshowe.6 Ainda em Orkney, a Tumba das Águias ou Câmara de Isbister guarda um grande mistério: estão sepultados ali 338 corpos humanos e 725 pássaros, ainda não se sabe o motivo.7 Segunda fase de construção de Stonehenge, são desta data a maior parte das evidências do uso deste local como cemitério, também são encontrados vestígios da pratica de cremação.

3000 a.C

Primeira Pirâmide é construída em Sacara, Egito. Projetada pelo arquiteto Imhotep para ser o túmulo do Faraó Djóser

2630 a.C

figura 4 - Pirâmide de Djóser, Sacara, Egito

No Egito começam a se construir as pirâmides de Giza. A primeira delas e a maior, a Grande Pirâmide, foi construída por órdem do Faraó Quéops para ser o seu monumento funerário. Na construção aparecem as primeiras inscrições que mencionam Osiris como o Deus da Morte. Próximo à Grande Pirâmide, o Faraó Quéfren constroi a Pirâmide de Quéfren, a segunda mais alta do Egito, 20 anos mais tarde ergue a Grande Esfinge de Giza. Em 2490 a.C constrói-se a Pirâmide de Miquerinos.

2150 a.C

Na Suméria é escrita a Epopeia de Gilgamesh em tábuas de argila com escrita cuneiforme, aparece aqui o primeiro relato literário do confronto do homem com a morte. 8

figura 7 - Vista aérea do sítio arquológico de Stonehenge

Conclusão de Stonehenge. Desta data não existem muitos vestígios de sepultamentos no local. Primeiro conjunto de sepulturas em Tebas.

2000 a.C

figura 9 - Corte esquemático do Tolo de Atreu

1500 a.C

figura 5 - Tumbas Reais de Ur

Primeiros Tolo encontrados em Micenas. Tolos são um tipo de tumbas abobadadas desenvolvidas pelos gregos para sepultarem os mortos mais importantes. O mais conhecido e bem conservado Tolo é o Tesouro de Atreu ou Tumba de Agamenão que data de 1250 a.C.10

890 a.C 1100 a.C

Os gregos passam a adotar tumbas individuais no lugar de grandes estruturas coletivas. Em 950 a.C Salomão constrói o primeiro templo de Jerusalém.

Escrito o Livro de Sair para a Luz (Tradução literal do Egípcio Antigo), mais conhecido como Livro Egípcio dos Mortos. É um conjunto de orações, feitiços, fórmulas mágicas e litanias com o objetivo de guiar os mortos ao caminho do Paraíso, transpondo os desafios propostos por Osíris.9

1550 a.C

700 a.C

Construção da primeira tumba encontrada no Reino de Cuxe, onde hoje está o Sudão, não existem muitos dados das civilizações que viviam alí, sabe-se que seguiam um regime matriarcal, alguns historiadores associam este reino à lenda da Rainha de Sabá.11

Estudiosos indianos codificam e reinterpretam as crenças do povo ariano, a partir daí criam os textos que fundamentam o hinduísmo.

Templo do Grande Jaguar é construído na Guatemala pela civilização Maia para servir de tumba para o Rei Jasaw Chan K'awiil

O Bispo Vedastus, conhecido como São Gatão morre em Arras, França. O seu sepultamento é preparado em um mosteiro próximo à vila em que vivia, Vaast d’Arras. Quando tudo estava pronto para a cerimônia fúnebre o corpo se tornou pesado como rocha, impossibilitando o transporte até o jazigo. Foi decido, por fim, enterrar o corpo na Catedral da vila, então, o defunto tornou-se leve como pena. O ocorrido foi interpretado como a manifestação da vontade Divina que os corpos dos fiéis fossem enterrados nas cidades, ad sanctus. Assim, os corpos defuntos voltaram a dividir os espaços urbanos com os vivos.

Cuide de nunca erguer um túmulo dentro da cidade. Se alguém deixasse um cadáver no lugar em que dormes e comes o que não farias? E, entretanto, deixa os cadáveres não onde dormes e comes, mas nos membros do cristo.

2600 a.C

Construídas as Sepulturas Reais dos Sumérios de Ur. A datação não é exata, usualmente os arqueólogos indicam o período entre 2600 e 2000 a.C como prováveis anos de construção do complexo funerário.

540 d.C

figura 12 - Sítio arqueológico do Templo do Grande Jaguar, Guatemala

São João Crisóstemo (349-407 d.C.)

100 d.C

540 a.C

350 a.C

Atenas proíbe novos sepultamentos em Delos e remove os corpos que já estavam ali sepultados, o objetivo é purificar a Ilha Sagrada.

Mausoléu de Halicanasso, tumba do Rei Mausolo em Aquemênida, atual Turquia.14

Em Roma a Lei das XII tábuas proíbe as cremações e o sepultamento dentro das cidades: Hominem mortum in urbe ne sepelito neve 13 urito. Com a proibição, os cemitérios são transferidos para a beira de estradas nos arredores das cidades. Desta época tem-se as ruínas dos cemitérios da Via Ápia em Roma e Alys Camps em Arles.

O local de onde será construído o Foro Romano recebe os primeiros corpos.

753 a.C

figura 10 - Sítio arqueológico do Reino de Cuxe, Sudão

Os textos budistas chamados de “Essência da Sabedoria” começam a ser escritos no Sul da Índia, estes textos são base dos ensinamentos budistas.

28 a.C

Mausoléu de Augustus, em Roma.

Início da construção do mausoléu de Qin Shi Huang Di, cercado por mais de 7 mil esculturas de soldados, cavalos e carros de combate representando o exército do imperador que zelaria por sua segurança na vida 15 após a morte.

0 a 33 d.C período de vida de Jesus de Nazaré

0

224 d.C

Zoroastrismo é adotado como religião oficial do Império Sassânida.

Mausoléu de Adriano em Roma, também conhecido como Castelo de Santo Ângelo. 16

139 d.C

Assim os corpos dos cristãos passaram a ser enterrados nas igrejas dos Mártires, afastados das cidades e protegidos pela santidade, os monges são os responsáveis pela manutenção dos cemitérios e execução dos enterros. Estes são chamados de enterros ad sanctus.

O Edito de Milão promulgada por Constantino I.

313 d.C

Construção do Manikarnika Ghat, em Varanasi, sabe-se que a construção ocorreu no século V pelo estilo arquitetônico adotado, mas não se sabe precisar o ano.

figura 16 - Catedral de Arras onde está enterrado o bispo de Saint Vaast

1000 d.C As tradições orais que compõem a religião Xintoísta são escritas e agrupadas em uma publicação chamada Kojiki.

figura 19 - Mapa de Paris desenhado por Turgot entre 1734 e 1736, recorte mostrando o Cemitério dos Inocentes

1130 d.C

Fundação do Cemitério dos Inocentes em Paris.

figura 26 - Cemitério de Finisterra, Espanha.

Publicado o primeiro texto condenando a coexistência urbana de mortos e vivos. O texto é de autoria de Berthold e foi publicado em La ville de Paris en vers burlesques.

Finalização da construção do Taj Mahal em Angra, Índia.

1122 d.C

682 d.C

figura 25 - ITúmulo de Le Corbusier e Yvonne Le Corbusier

1657 d.C

Início da construção do Complexo de Angkor Wat, templo Hindu.

Fim da Construção do Templo das Inscrições em Palenque, o túmulo de Pakal, O Grande.

figura 23 - Igreja projetada por Otto Wagner, Viena, Áustria

figura 22 - Cemitério da Consolação, São Paulo, Brasil

1648 d.C

1955 d.C 1858 d.C Inaugurado o Cemitério da Consolação em São Paulo.

O Cemitério dos Inocentes é desativado e destruído em Paris.

1786 d.C

500 d.C

Fundação do Cemitério Père-Lachaise em Paris. Criam-se 4 novos cemitérios: O Cemitério de Montparnasse, O Cemitério de Passy, o Cemitério de Montmartre e o famoso Cemitério Père Lachaise.

Primeira cremação moderna e científica nos E.U.A.

Otto Wagner intervém no cemitério Central de Viena com o projeto de uma igreja e de uma grande praça memorial.

1863 d.C

1804 d.C

246 a.C

Le Corbusier desenha a tumba que irá receber as cinzas de sua mulher e futuramente as suas próprias.

1876 d.C

Inauguração do Cemitério do Bosque (Skogskyrkogården) em Estocolmo, projeto dos arquitetos Gunnar Asplund e Sigurd Lewerentz.

1977 d.C

1959 d.C

1920 d.C

O Memorial aos Judeus Mortos da Europa projetado por Peter Eisenman.

César Portela desenha o Cemitério de Finisterra na Corunha, Espanha.

Cemitério Brion projetado por Carlo Scarpa em San Vito D'Altivole

Inaugurado o Cemitério Campo da Esperança em Brasília, projetado por Lúcio Costa.

2004 d.C

1998 d.C

Ampliação do Cemitério de San Cataldo de Aldo Rossi. Construção do Memorial Necrópole Ecumênica de Santos, o maior cemitério vesrtical do mundo.

Museu Judaico de Berlim, Daniel Libeskind.

2001 d.C

figura 28 - Memorial aos Judeus Mortos na Europa

Memorial do 11 de Setembro projeto de Michael Arad, Peter Walker & Partners, Davis Brody Bond, Snøhetta

2006 d.C

Steilneset Memorial projeto de Peter Zumthor e Louise Bourgeois.

2011 d.C

1984 d.C

450 a.C figura 27 - Museu e Memorial do 11 de Setembro

figura 14 - Pintura do século 18 do artista italiano Giuseppe Zocchi mostranto o Castelo de Santo Ângelo à direita.

2550 a.C

figura 11 - Sítio arqueológico do Foro Romano

figura 6 - As Pirâmides da Necrópole de Giza

figura 8 - Passagem do Livro Egípcio dos Mortos representando a pesagem do coração do defunto

figura 13 - Estátuas dos guerreiros que guardam o mausoléu de Qin Shi Huang Di

figura 15 - Manikarnika Ghat em Varanasi, Índia

figura 17 - Templo das Inscrições em Palenque, México

figura 18 - Templo de Angkor Wat, Camboja

figura 20 - Taj Mahal, Angra, Índia

figura 21 - Um enterro no Père Lachaise, gravura de Pierre Courvoisier de 1837

figura 24 - Skogskyrkog, Cemitério do Bosque

figura 25 - Desenho de Aldo Rossi para o Cemitério de San Cataldo

figura 29 - Steilneseset Memorial

A morte no espaço Diferentes culturas e diferentes religiões empregam uma variedade de rituais. Os rituais funerários do Hinduísmo não serão os mesmos dos rituais islâmicos que por sua vez serão diferentes dos rituais cristãos, e assim com todas as religiões. As pessoas empregam rituais para demonstrar o lugar ao qual elas pertencem, quais são as suas crenças e em qual sociedade ela se reconhece. Além desta representação cultural os rituais são também ações performáticas (AUSTIN, 1976, p. 42) ou seja, ações que provocam mudanças ontológicas. Aldo Rossi define que “A cidade em si é a memória coletiva de seu povo e como memória que está associada a objetos e lugares. ” (ROSSI, 1982, p. 130). Desta forma o lugar da morte na cidade, e como ele se insere no contexto urbano podem ser debatidos sob a ótica social da morte. O pano de fundo para um ritual é arquitetura, isso começa com o estudo cuidadoso do caráter dos espaços de apoio de um ritual, seja ele um espaço único ou uma sequência de espaços que prestem assistência a uma resposta emocional da perda. Gregory Scott Hirschmann, Repleto de Ausências (2006)

Talvez por conta do impacto abrangente da morte, muitos estudiosos têm argumentado que as crenças e ritos que a circunscrevem são carregados de visões sociais e entendimentos particulares, em toda extensão do globo e durante o caminho da história. Os rituais, crenças e mitos unem os participantes tanto uns com os outros em rituais coletivos, como também antepassados e gerações futuras (MYERHOFF, 1984, p. 306). Os rituais são a ponte entre passado, presente e futuro e, muitas vezes, tentam amenizar o caráter ameaçador que a morte pode representar. O curso ritualístico dá uma visão de arquitetura, de como os mortos são tratados em um espaço. Entender como a morte se insere na cidade é entender a inserção dela na sociedade, desta forma, os locais da morte são reflexos especulares das sociedades às quais pertencem.

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Monte das Oliveiras

Figura 10 - Judeus visitam Cemitério do Monte das Oliveiras

O Monte das Oliveiras separa o deserto da Judéia da cidade de Jerusalém. Diversos acontecimentos importantes para as comunidades judaicas, cristãs e islâmicas teriam relação com o monte; a história conta que o óleo da unção dos reis e sacerdotes foi preparado a partir das azeitonas que cresciam por ali. Mesmo antes de se tornar um cemitério judaico, o Monte das Oliveiras funcionava como um lugar de oração, antes da construção do primeiro Templo de Jerusalém no reinado de Salomão. Acredita-se também que o rei Davi frequentava o local para meditar e fazer suas orações. Após a destruição do Templo de Jerusalém, o Monte das Oliveiras se tornou ponto de peregrinação e local de comunhão e oração, com vistas para as ruínas do templo. A crença judaica prega que a presença divina habitou o Monte das Oliveiras por três anos após deixar o Templo de Jerusalém. Zacarias e Ezequiel profetizaram que o retorno da divindade ao templo ocorreria a partir do Monte das Oliveiras. Também se acredita que o ramo de oliveira levado pela pomba a Noé no final do dilúvio veio deste monte (KIMELMAN, 1972, p. 314-316).

Figura 11 - Localização do Monte das Oliveiras

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O cemitério instalado no Monte das Oliveiras é o mais importante cemitério judaico no mundo, guardando os restos mortais de importantes personagens da história do judaísmo como rabinos, líderes dinásticos, profetas, reis e celebridades; ao lado dos nomes importantes estão sepultadas também pessoas comuns da comunidade judaica entre eles sefarditas, fariseus, persas, iemenitas, iranianos, afegãos, babilônios, galegos, georgianos, ashkenazis e hassidins. A tradição judaica relata que o início do processo de ressurreição terá lugar no Monte das Oliveiras. Os que são sepultados neste cemitério serão os primeiros a ressuscitar e poderão assistir o retorno de Deus ao Templo. É comum que as comunidades judaicas enviem a terra sagrada do cemitério para os judeus que vivem na diáspora, para que este solo seja dispersado sobre os túmulos e os mortos que foram forçados a afastar-se da terra sagrada podem ter a chance de ressuscitar e testemunhar o retorno de Deus (SOARES, 2006, p.17). Existem doze locais de sepultamento separados entre si, cada um representando uma etnia. Os quatro locais principais são: a antiga zona sefardita, usada exclusivamente para enterrar os judeus que viviam em Jerusalém; a área da Sociedade Funerária Geral, fundada pelos fariseus; a zona do judaísmo hassídico; e a área comum, onde qualquer judeu pode ser enterrado, independente da etnia a qual pertence. Os enterros judaicos no Monte das Oliveiras começaram quando Jerusalém foi transformada em capital do povo judeu, durante o reinado de David, por volta de 1.000 a.C. Fontes históricas sugerem que algumas tumbas foram construídas ali antes deste período, entre os séculos VIII e VI a.C. (SHRAGAI, 2009, p. 6), mas os diversos conflitos e guerras que cercam a região destruíram estes sepultamentos e não se pode precisar se realmente os sepultamentos mais antigos existiram ou se o espaço era um cemitério, ou se apenas existiam algumas tumbas.

Figura 12 - Mapa do Cemitério Monte das Oliveiras

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As regras judaicas pregam que os corpos sejam sepultados o mais rápido possível, preferencialmente no mesmo dia da morte enquanto ainda houver luz natural. O sepultamento representa o repouso da alma. Adiar o sepultamento de um judeu representa um grande desrespeito ao morto e uma interferência nos planos divinos. Só existem algumas ocasiões em que é permitido postergar a inumação, uma dela é quando a família deseja que o corpo seja sepultado em Israel (BORGER, 1999, p.17), demonstrando a grande importância do Monte das Oliveiras para a comunidade judaica. Para os judeus o sepultamento é a única opção possível de tratamento dos corpos mortos, reflexo da crença na ressurreição dos mortos. Acredita-se também que a separação da alma e do corpo é um processo bastante doloroso e ocorre com o início da decomposição, por isso, acredita-se que os corpos devem se decompor lentamente em benefício a alma. A preparação do corpo para o ritual de inumação é feita por uma Sociedade Funerária chamada Chevra Kadisha, responsáveis pela limpeza e adequação das vestimentas. Após a preparação inicial, fica proibida a exposição do corpo. Todos os enterros judaicos são idênticos, é expressamente proibida a ostentação de adereços, flores, velas ou caixões suntuosos. É proibido também que o morto seja enterrado com joias, maquiagens e adereços. Todos os túmulos são iguais e, em geral, apresentam apenas as iniciais do morto e a estrela de Davi. Em cada visita que se faz ao tumulo, deixa-se uma pedra pequena em cima do túmulo para indicar que o morto é lembrado e reverenciado. Na saída dos cemitérios judaicos sempre há um lavatório, onde os visitantes devem lavar as mãos ao sair. Na religião judaica o luto excessivo é condenado, o processo de luto não deve alterar a rotina diária, é preciso seguir a vida e conformar-se com a morte.

Figura 13 - Vista do Cemitério para a Cidade Antiga de Jerusalém

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Dois fatos interessantes acerca da organização dos cemitérios judaicos merecem ser destacados. A primeira delas diz respeito à organização dos túmulos no espaço: não é permitido que uma mulher seja enterrada ao lado de um homem que não seja seu marido, e prefere-se que os integrantes da família sejam enterrados uns próximos aos outros, formando quase que uma árvore genealógica da família. O segundo fato a ser destacado é o local de sepultamento dos suicidas. A pratica é proibida na religião, e acredita-se que estes mortos não ressuscitarão na Era Messiânica, por isso eles são enterrados afastados dos outros mortos, junto aos muros. Antigamente os suicidas eram enterrados do lado de fora do cemitério, mas para dar uma última oportunidade de redenção para o morto, ele era enterrado junto ao muro com uma pá, para que quando os mortos começassem a se levantar ele pudesse cavar a terra e entrar no cemitério e ressuscitar junto com os outros.

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Figura 14 - Judeus visitando o cemitério

Manikarnika Ghat

37 Figura 15 - Manikarnika Ghat em Varanasi

Os hindus veem a morte como parte integrante da vida, encara-se a morte de maneira bastante natural, assim como outros aspectos da vida como adormecer e acordar, desta forma, a morte não constitui um aspecto de maior importância na filosofia hinduísta. Os hindus acreditam que Atma (a alma) não nasce e nem morre, a morte então, seria a libertação da alma do corpo, a separação temporária até a próxima reencarnação. Brahma é a deidade responsável pela reencarnação; almas boas e dedicadas quando desencarnam conseguem integrar-se à alma de Brahma e terminam o ciclo terreno, alcançando a salvação (moshka); já as almas que não conseguem juntar-se ao deus voltam a Terra para continuar o ciclo. Shiva é o deus destruidor, se diverte queimando e destruindo o céu e a terra, descrito como a alma perversa suprema ao mesmo tempo em que é bondoso e caridoso, Shiva representa a dualidade, os opostos coexistindo e se complementando. Os templos crematórios indianos são dedicados a Shiva e ele é o único deus que pode ser representado nestes espaços. Os antigos Vedas (textos sagrados hindus) revelam a crença na imortalidade da alma: “A alma de um homem é indestrutível, ela não pode ser perfurada por uma espada ou queimada pelo fogo, o ar não pode secá-la e a água é incapaz de umedecê-la”. Porém a alma carrega consigo marcas da vida na terra, o karma, a soma das ações individuais na existência atual e anteriores, fator decisivo nas reencarnações futuras. Desta forma a vida atual está ligada às vidas passadas e o homem entende que faz parte da complexidade da natureza, a alma que habita o corpo pode ter sido em existências anteriores uma árvore, um peixe, um cachorro, ou um grilo.

Yama, o Senhor da Morte no hinduísmo, é descrito como o primeiro homem a morrer, iluminando o caminho da morte, desde então todos os seres passaram a morrer. Os Vedas o classificam como o Senhor do Sul, a região da morte, por isso, quando um hinduísta morre ele é deitado com a cabeça voltada para o sul. Yama é o deus que registra nas almas os karmas e determina a partir deles as circunstâncias da próxima reencarnação. Os hindus fazem ofertas diárias de água para este deus para que ele mantenha o ritmo dos ciclos de renascimentos (ARORA, 2014, p.7). Na crença hinduísta cada momento da vida é uma pequena morte e a morte física traz consigo a certeza de um novo nascimento (AUSTIN, 1976, p. 55). Assim o rito funerário (Antyeshti) é um rito de passagem de uma vida para outra. Gian Giuseppe Filipi (1996) destaca “O ser que abandona uma existência particular é obrigado a se transferir para um domínio diferente em que ele terá que desdobrar as diversas potencialidades desta nova condição de vida, características que terão de ser desenvolvidas da sua existência anterior”, ou seja acredita-se que a alma está em constante aprendizado e evolução, levando para reencarnações futuras as lições do passado. Varanasi é considerado um lugar sagrado para os hindus. Acredita-se que o lugar tem personalidade, que tem um espírito guardado ali, que possui uma energia poderosa. A cidade recebe milhares de peregrinos que viajam em busca do poder espiritual do lugar. Varanasi é um ambiente santo holístico, onde o céu e a terra se reúnem transformando o habitat humano e o habitat celeste únicos. A cidade está dividida em zonas, que tem relações diferentes com as histórias sagradas hinduístas. O Manikarnika Ghat está na região de Kashi, o ponto de origem do microcosmos, Kashi não pertence nem ao tempo e nem ao espaço ao mesmo tempo em que tudo está contido ali, de onde nasce toda a existência e para onde tudo vai depois da morte.

A cultura hindu estabelece uma estreita relação com o Rio Ganges. Quase todos os rituais hinduístas exigem a presença da água como o batismo, lembrança aos antepassados, ofertas aos deuses, purificações e funerais. Desta forma os ghats como principais formas de acesso ao rio se tornam peças fundamentais na vida urbana. O Manikarnika é um dos ghats mais ativos da Índia, estima-se que duas centenas de pessoas são cremadas diariamente no local (ARORA, 2014, p. 24). Os Ghats indianos não são apenas locais de adoração, são também locais de encontros públicos, assim como as mesquitas são os locais de confraternização diária para os islâmicos. Em Varanasi o mais importante Ghat é o Manikarnika, um dos mais antigos de Varanasi. A tradição hinduísta conta que depois que Mata Sati se sacrificou queimando o seu próprio corpo em defesa do Senhor Shiva, ele em um gesto solene levou o corpo em chamas para ser sepultado no Himalaia. No meio do caminho o corpo de Mata Sati começou a cair sobre a Terra. O Senhor Shiva então santifico o

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local onde o corpo tocou o chão, o local onde hoje está construído o Manikarnika, que na língua local significa adorno de orelha (segundo a lenda o edifício era a joia que adornava o corpo de Mata Sati). Uma segunda versão mitológica diz que uma vez o Senhor Shiva resolveu destruir o planeta, mas Vishnu o convenceu a não destruir Kashi, a cidade sagrada. Shiva então visita a cidade com sua mulher Parvati, e Vishnu como forma de agradecimento cavou um tanque às margens do Rio Ganges para que o casal se refrescasse. Durante o banho Shiva perdeu a joia que adornava suas orelhas e as abandonou ali, onde hoje está o Manikarnika. Além da santificação por Shiva, acredita-se que ao lado do tanque principal do templo o Senhor Vishnu tenha realizado as Austeridades Cosmogônicas, desta forma a construção não estaria só no centro da cidade, mas no centro do planeta, no núcleo de criação do universo. A construção é mencionada em uma inscrição Gupta do século V d.C., porém não se sabe precisar a data da construção. Os edifícios passaram por uma reforma em 1302 e em seguida, por duas restaurações, a primeira em 1735 e a segunda em 1872. Em 1795 a rainha Ahilyabai construiu o templo Tarakeshvara, dedicado à Shiva.

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Figura 16 - Planta Manikarnika Ghat

Père-Lachaise

40 Figura 17 - Portões do Père-Lachaise

O Cemitério Père-Lachaise em Paris foi classificado por Balzac como: Uma comédia infame! Ainda é Paris, com suas ruas, seus símbolos, suas industrias, seus hotéis; mas visto pela lente do telescópio, uma microscópica Paris reduzida a pequenas sombras, larvas inoperantes, uma raça humana que não tem nada além de sua vaidade. ” Balzac, 1846, Le Cousin Pons

Alguns anos mais tarde o escritor foi sepultado no Père-Lachaise. Oficialmente chamado de Cemitério Oriental o Père-Lachaise faz parte de uma ação governamental parisiense de limpeza urbana, expulsando os mortos de dentro das muralhas da cidade. O nome popular, é uma homenagem a François d’Aix de la Chaise (1624 – 1709), importante figura política e religiosa da França que morava no local onde hoje está o cemitério. O cemitério foi inaugurado a 21 de maio de 1804, com o enterro de Adelaide Paillard de Villeneuve. A sua criação é consequência da aplicação tardia da lei promulgada em 1765 que proibia que sepultamentos fossem feitos no interior das muralhas da cidade. O Cemitério dos Inocentes, antes principal cemitério de Paris, foi fechado em dezembro de 1780 e a partir daí a cidade entrou em uma crise funerária com os espaços destinados aos sepultamentos cada vez mais escassos, a situação se complica quando Napoleão Bonaparte decreta que “todo cidadão tem o direito de ser enterrado, independentemente de raça ou religião” implicando que as valas comuns onde os corpos dos pobres e miseráveis eram abandonados, não poderiam mais

funcionar, aumentando a demanda por espaços de sepultamento. Em 12 de julho de 1804 um decreto imperial, finalmente, fixa de maneira definitiva as regras de sepultamento na capital francesa, demarcando o local de construção de quatro novos cemitérios, a saber, o Cemitério de Passy (1820) a oeste, o Cemitério de Montparnasse (1824) ao sul, o Cemitério de Montmarte (1825) ao norte, e o Cemitério Oriental a leste.

Figura 18 - Entorno do Père-Lachaise

O projeto foi encomendado ao arquiteto Alexandre-Théodore Brongniart em 1803 e decide criar um desenho inspirado nos jardins ingleses com caminhos acidentados, vegetação abundante e uma atmosfera bucólica. O culto da lembrança imediatamente estendeu-se do indivíduo à sociedade, seguindo um mesmo movimento de sensibilidade. Os autores de projetos de cemitérios do século XVIII desejam que estes sejam ao mesmo tempo parques organizados para a visita familiar e museus de homens ilustres, como a catedral de Saint-Paul, em Londres. Os túmulos dos heróis e grandes homens seriam venerados pelo Estado em tal local [...] uma nova representação de sociedade nasce neste fim de século XVIII tendo se desenvolvido no século XIX e encontrado sua expressão no positivismo de Augusto Comte, forma erudita do nacionalismo. (ARIÈS, 2012, p. 87)

Além da justificativa encontrada pelo Historiador Ariès para a criação de cemitérios parque, esta tendência pode ser entendida como o início da ocupação dos espaços públicos europeus. Ainda no começo do século com o engrossamento das ideias cientificistas que passaram a defender os banhos de sol e a importância da vida ao ar livre, os europeus começam a frequentar mais as ruas e interagir com o espaço urbano. No início da década de 1790 William Murdoch utilizou pela primeira vez a combustão a gás para fins de iluminação, mais tarde esta solução foi adotada por algumas cidades como forma de iluminação pública, em 1817, Paris recebe pela primeira vez um sistema de iluminação pública a gás, na Passage des Panoramas. A partir daí a iluminação pública se desenvolveu e os parisienses passaram a aproveitar muito mais a vida urbana. No mesmo ano de fundação do cemitério, Napoleão Bonaparte se proclamou imperador e governou por 10 anos, durante o governo, o imperador ordenou a construção de grandes monumentos como o Arco do Triunfo e a reforma de diversos palácios, portanto a construção do Cemitério Oriental se insere em um momento de mudança da cidade de Paris que culminaria nas reformas urbanas de Haussman entre 1852 e 1870.

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Figura 19 - Planta de fundação do cemitério

Logo após a inauguração do cemitério, Napoleão Bonaparte promulga o 23º decreto de Prairial (RODRIGUES, 2011, p. 148) obrigando a criação de um cemitério atribuído a cada culto religioso ou a destinação de áreas diferenciadas os cemitérios para as diferentes religiões. Os primeiros judeus são enterrados em um local diferenciado no cemitério em 1809, separados por um muro do restante do cemitério. Os muçulmanos tiveram um local especial no cemitério somente em 1853, separados por uma cerca de madeira e com uma pequena mesquita. Porém já em 1881 outro decreto anula o anterior, proibindo a separação religiosa nos cemitérios, então os muros e cercas são derrubados. Inicialmente o cemitério não contava com alternativas às inumações, somente em 1889 é construído o crematório e em 1896 o columbário, ambos projetados por JeanCamile Formigé. O cemitério passou por cinco expansões nos anos 1824, 1829, 1832, 1842 e a última em 1850. As expansões foram necessárias por conta da popularização do Cemitério Oriental, principalmente depois da transferência dos restos mortais de Heloísa de Argenteui, Pierre Abélard e Moliére. Ainda que os rituais e cultos de diversas religiões fossem permitidos nos PèreLachaise, ele é um cemitério essencialmente cristão. Os cristãos acreditam que as pessoas de fé que mantiveram uma vida dedicada à Igreja e praticaram o bem ressuscitarão no Reino de Deus no dia do juízo final. Para a igreja cristã, lidar com funeral significa confrontar-se com a real condição humana, com a finitude, com a dor que a morte provoca nas pessoas, com as perguntas existenciais que se levantam a respeito do sentido da vida. Ao mesmo tempo, significa anunciar a esperança cristã diante da morte. Ao encomendar as pessoas falecidas a Deus, a comunidade cristã assume a tarefa de amparar e consolar os vivos.

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Inicialmente os sepultamentos cristãos não se diferenciavam das religiões dominantes na época do surgimento do Cristianismo. Erli Mansk descreve os primeiros sepultamentos da seguinte forma: Os mortos eram levados em esquifes, em cortejos, como o filho da viúva de Naim (Lc 7.12 e 2Sm 3.31; 2Rs 13.21); os cortejos eram acompanhados por crianças (Gn 25.9,39), parentes (Jz 16.31), amigos (1Rs 13.29s.) e escravos (2Rs 23.30). Ao que tudo indica, os sepultamentos ocorriam no próprio dia do óbito. Pessoas choravam a perda de alguém assim como aparece no falecimento da filha de Jairo (Mc 5.38). A dor se expressava através de gestos como, por exemplo, pôr as mãos sobre a cabeça (2Sm 13.19; Jr 2.37), rasgar as vestes (Gn 37.34; Jó 1.20), vestir-se de panos de saco (2Rs 6.20), pôr terra sobre a cabeça (Js 7.6; Jó 2.12), rolar a cabeça ou o corpo todo no pó (Jó 16.15; Mq 1.10), deitar e sentar sobre cinzas (Is 58.5; Jr 6.26), e, inclusive, raspar a barba e o cabelo ou fazer incisões no próprio corpo (Jó 1.20; Is 22.12; Jr 16.6; 41.5). Eclesiastes (12.1-7) fala da radicalidade da morte e do vazio que ela provoca na vida. Sobra apenas o pó e nada mais. Música fazia parte dos sepultamentos, como aparece no caso da filha do centurião (Mt 9.23). As pessoas falecidas eram envoltas em panos, com um véu no rosto, como Lázaro (Jo 11.14). O próprio Jesus foi envolto em um pano de linho (Mc 15.46). No Antigo Testamento, se faz referência a pessoas enterradas com suas roupas do cotidiano (1Sm 28.14, 2.19 e 15.27) e de combate, no caso dos guerreiros (Ez 32.27). (MANSK, 2010, p. 21)

A crença na ressurreição faz com que inicialmente os cristãos não interpretassem a morte como um aspecto negativo da vida, os cortejos eram alegres e festivos, reflexo da convicção de que assim como Jesus Cristo ressuscitou, os homens comuns também ressuscitariam. Esta crença fez nascer nos cristãos o desejo de perpetuação da memória do morto, talvez com a ideia de que se os vivos se lembrasse do morto, Deus também lembraria das coisas boas que ele fez em vida, garantindo a entrada no paraíso. Por isso eram realizadas missas no terceiro, nono e quadragésimo dias após a morte, incluindo os mortos na comunidade eclesial. Além destas celebrações de lembranças públicas é importante que o morto seja lembrado no dia de seu aniversário e no dia do seu falecimento. O Dia dos Fiéis Defuntos (mais conhecido como dia de finados) tem sua origem no século V d.C. quando a Igreja dedicava um dia no ano para rezar pelos defuntos que ninguém lembrava, ou aqueles que já não tinham ninguém para rezar por eles, a institucionalização do dia 2 de novembro como Dia dos Fiéis Defuntos acontece somente no século XIII. O costume reforça essa ideia cristã de necessidade de perpetuação da memória dos defuntos com o intuito de lembrar a Deus as boas ações dos que já morreram.

Figura 20 - Gravura mostrando a transferência de corpos de personalidades importantes francesas para o Père-Lachaise

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Análise espacial Os cemitérios judaicos, em geral, ficam fora dos limites da cidade. O Monte das Oliveiras não é uma exceção, localizado na colina em frente à cidade sagrada de Jerusalém com vistas para o templo. A escolha do local do cemitério é também muito simbólica. Em diversas passagens bíblicas o local era usado como ponto de reflexão, oração e de memória, chegando a ser inclusive o refúgio da presença divina depois da destruição do Templo de Salomão. A localização deste tradicional cemitério judaico moldou um costume bastante difundindo entre os praticantes da religião. O cemitério está localizado a leste da cidade antiga de Jerusalém, com vistas para o Monte do Templo, onde estava o Templo de Salomão. A crença diz que no Dia do Juízo final, Deus voltará à Terra e reinará a partir deste templo, então, na tentativa de assistir à entrada divina no seu palácio, os judeus são enterrados com os pés voltados para o oeste, desta forma não perderão o acontecimento sagrado. A localização dos cemitérios fora das cidades pode ser explicada também por outra ideia de impureza dos corpos pregada pelo judaísmo. A putrefação dos corpos, embora muito benéfica para a alma, não é higiênica para os vivos, então mortos e vivos não devem coexistir para que um não interfira no cotidiano do outro. As fontes de água limpa nas saídas dos cemitérios são também demandas da crença da impureza do corpo morto. A veneração judaica não permite veneração aos mortos e nem promove a ideia de vida consciente após a morte, por isso, os túmulos são bastante simples, sem ornamentações e, em alguns casos, nem as inscrições com o nome do morto aparecem. A partir desta compreensão, para os judeus a morte representava o fim de tudo, das relações sociais interpessoais, um destino comum para todas as pessoas, do qual não se podia fugir e para além do qual nada deve ser esperado, para todos os propósitos práticos morrer era o fim (SOARES, 2006, p. 31). A divisão do Monte das Oliveiras seguindo as diferenças étnicas dos povos judeus é bastante representativa da vida. Tais etnias ou castas, muitas vezes são inimigas e discordam entre si, como por exemplo, os conflitos entre fariseus e hassídicos (SHRAGAI, 2009, p.3). A partir daí o cemitério foi dividido chegando a receber cercas e muros, para que o morto de uma crença não fique próximo ao morto de outra crença. Os Ghats, como já ditos não são apenas estruturas funerárias, eles participam como importantes motores e reguladores do movimento da vida urbana. São áreas de interação social entre vivos e mortos, civis e sacerdotes, nativos e turistas. A passagem do sagrado Rio Ganges pela cidade, com as margens pontuadas por 58 ghats, é acompanhada pelo movimento da vida urbana, como se fosse impulsionado pela corrente do rio, forçando a caminhada por entre os Ghats organizadores dos espaços. A cidade se conecta aos ghats por estreitas ruas ou becos, um fantástico labirinto de sensações. Estas vielas são chamadas gallis. Os gallis são a representação máxima da experiência urbana de Varanasi. Os edifícios espremidos, batalhando por espaço se amontoam para olhar a rua e a vida que ela abriga. Casas, comércio, escolas e hospitais todos juntos configurando a experiência de andar por uma rua sagrada de Varanasi. Para chegar ao Ghat é preciso cruzar o galli, assim, a cidade abriga a morte. O principal galli de acesso ao Manikarnika é um dos mais movimentados da cidade (ARORA, 2014, p. 15). Os corpos a serem cremados são levados às piras pela principal rua de Varanasi, sob o olhar atento da vida, a morte passa em procissão. Esta

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caminhada para o crematório é bastante simbólica representando a caminhada da vida levando ao fim do corpo, evidenciando a finitude, todos os caminhos levam à morte. É costume que as cremações aconteçam no período da noite, ativando, desta forma, uma iluminação urbana bastante cênica. Imagine-se percorrendo uma rua estreita, sob a luz amarelada de tochas, ao longe escutam-se os cânticos fúnebres e o choro, a cada passo que se dá em direção ao ghat o cheiro de cedro se intensifica e no final da incerta caminhada se depara com uma grande cerimônia funerária, repleta de cores, luz e sons. A visão natural e positiva que a religião hinduísta prega é refletida nos espaços do Manikarnika: os espaços fúnebres se confundem com os espaços urbanos. A equalização entre a vida e a morte, não há muros, não há separação, uma coisa pertence a outra. É interessante como a aceitação da morte se traduz na aceitação do espaço, não só no sentido de que o crematório se insere na malha urbana, mas também ativa e regula o uso da cidade. No caso de Varanasi, a associação da morte e vida é transcendental, a principal pira crematória está ao lado do local de onde acredita-se que Vishnu criou o mundo. Assim a cremação mais que um ato de destruição é um ato de criação que devolve ao mundo os elementos que criaram a vida humana. O Cemitério Oriental foi construído em um momento de transição da ideia de morte no cristianismo. O motivo de sua construção foi a retirada dos mortos do interior da cidade para que a ela se tornasse mais higiênica e para que os vivos não tivessem contato tão diário com os mortos. Então a construção o Père-Lachaise traz uma ideia negativa da morte de afastamento da vida. Quando a cidade se expande e novamente integra os cemitérios à malha urbana, retoma-se o projeto de destruí-los e retirá-los dali, mas o conceito que se tinha da morte havia mudado; a presença do cemitério era necessária para a sociedade, era a marca construída da memória nacional, as raízes de um povo. Assim o cemitério tem dois momentos de representação da morte na sociedade ocidental. O traçado inspirado pelos parques ingleses também reflete um sentimento de que os cemitérios são espaços públicos de uso cotidiano, visa dar importância ao morto e ao seu lugar na cidade, já representando o início da mudança no pensamento a respeito da morte. A ideia de vida pública já citada também reforça o traçado do cemitério como parque. Os monumentos funerários que estão construídos no Père-Lachaise são extremamente opostos ao que vimos no Monte das Oliveiras e no Manikarnika Ghat. Aqui os túmulos devem refletir traços da personalidade do morto, ser um monumento de memória à sua vida, informar aos visitantes os feitos da pessoa que está enterrada ali. Enquanto nos outros dois casos a individualidade é inexistente (Manikarnika Ghat) ou quase inexistente (Monte das Oliveiras) aqui os túmulos são extremamente pessoais e monumentais. Como o cemitério se torna um parque, um campo de adoração nacional. É importante que o monumento informe ao visitante quem está enterrado ali, é importante chamar a atenção para a grandiosidade da nação e a importância de seus heróis na história.

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As últimas palavras É chegada a hora. O momento da reflexão antes do fim. O que foi feito? Quais os aprendizados? O que posso concluir? O fim sempre traz consigo muitas reflexões, as retrospectivas são inevitáveis, o balanço das ações do homem. O trabalho se encaminha para o fim, é chegada a hora de refletir sobre o que foi produzido. Do prelúdio podemos perceber como a morte adquire significados tão dissonantes nas culturas. Ora ela é boa, ora é terrível. Tem gente que acredita que a morte não é o fim, tem gente que não vê nada além dela. Neste momento de incertezas, as pessoas se agarram às suas crenças e costumes como um porto seguro, a cultura como zona de conforto, de identificação do ser. Como diz o xamã Aua “Não sei como, não podemos dizer o porquê, mas nós mantemos essas regras” a pratica cultural intrínseca ao ser humano, para tentar explicar o inexplicável e se proteger do sofrimento. Os rituais também se mostraram tão diferentes desde o medo e o temor da morte no Vodu à tranquilidade e naturalidade da morte na Igreja dos Santos dos Últimos Dias. A impureza do corpo e de tudo que envolve a morte no zoroastrismo completamente oposto à visão tranquila e serena pregada pelo Budismo. A morte com certeza é independente da cultura, cada visão particular ajuda o ser humano a superar a ausência. É interessante perceber aqui como a morte é um fenômeno extremamente ligado à religião. Talvez por ter efeitos tão desconhecidos, não sabemos o que acontece depois da morte, a sociedade busca explicações não-terrenas, divinas, metafísicas. O inexplicável explicando o inexplicável. Mas o capítulo seguinte vai mostrar que a visão ocidental da morte está mudando. A morte na História traz a visão em perspectiva que nos mostra também essa pluralidade do conceito de morte. Até uma mesma cultura apresenta visões cambiantes do que a morte significa e como se deve tratar os mortos. A Revolução Científica fez crescer a descrença nas religiões e a aumentar a crença na ciência e na exatidão dos números. Desde então a visão ocidental da morte está tendendo para o lado científico também. A morte médica, fria e calculada. O luto contido para não interferir no cotidiano. Instala-se o tabu da morte, como defende o historiador Philippe Ariès. O corpo se torna desimportante e poluidor, os memoriais se proliferam, são cemitérios sem corpos, depósitos de memórias. Esta pratica de construção de memoriais e impulsionada também pela morte trágica, a morte acidental. Principalmente depois das Guerras Mundiais muitas vezes se morre e os corpos não podem ser identificados ou localizados. Passou-se a morrer em grupo também, as armas químicas, os acidentes aéreos, os surtos de doenças matam centenas de uma só vez, tragédias sociais. Estamos caminhando para uma valorização da memória em detrimento ao corpo ou relíquias fúnebres. A morte no espaço corrobora com o Prelúdio. Aqui percebemos espacialmente como a cultura se manifesta. Desde a escolha da implantação do cemitério, ou do crematório, até como os rituais são abrigados pelo espaço. Fica evidente que a leitura espacial é, em suma, uma leitura cultural. Os espaços nascem como narrativas sociais, reflexos de crenças e costumes. Finalmente fazendo uma análise do contexto atual, integrando os três capítulos anteriores, os memoriais de guerra ou de grandes tragédias são espaços que incentivam a reflexão, o contato do homem com o seu interior e com suas memórias. São espaços de reflexão muito mais que de perpetuação da memória individual. Preza-se pela memória coletiva, pela construção de narrativas nacionais. Em uma

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sociedade discreta e individual, onde a tristeza, ou a saudade devem se esconder no interior do indivíduo, onde a tristeza ou a lamentação não são aceitas publicamente, os espaços de morte se voltam também para o interior, buscando na psique humana os vestígios do passado.

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