Espaços públicos de propriedade privada: um olhar ao público no shopping center 1

May 31, 2017 | Autor: Fábio Bortoli | Categoria: Public Space, Privately owned Public Space, Shopping centers
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Espaços públicos de propriedade privada: um olhar ao público no shopping center1 Fábio Bortoli (1) (1) PROPAR-UFRGS /UniRitter , Brasil. E-mail: [email protected] Resumo: Este documento artigo apresenta investigação sobre a possibilidade de ocorrência de lugares públicos em espaços privados comerciais, tipicamente relacionados como shopping centers. A noção de que as grandes cidades desenvolvem-se, desde meados dos século XX, como extensas áreas de tecido fragmentado e perderam sua condição de oferecer espaços públicos qualificados para o desenvolvimento da esfera pública propõe a questão de que uma rede de espaços privados possa suprir parte desta demanda. O artigo estabelece os padrões conceituais do entendimento clássico de espaço público e esfera pública, para introduzir a ocorrência de atividades públicas no interior privado dos shopping centers, finalizando por expor as contradições desta dicotomia públicoprivado. A avaliação final propõe que uma visão mais ampla que permita graus diversos de relação entre espaço privado e atividades públicas é necessária. Palavras-chave: lugar; espaço público; shopping center. Abstract: This paper presents research on the possibility of public places exist in commercial private spaces, typically listed as shopping malls. The notion that the bigger cities developed since the midtwentieth century extensive areas of fragmented urban fabric and lost their condition to provide qualified public spaces for the development of the public sphere poses the question that a network of private spaces can supply part of this demand. The article sets out the conceptual patterns of the classical understanding of public space and public sphere to introduce the occurrence of public activities in the private inside the malls, finishing by exposing the contradictions of this public-private dichotomy. The conclusion proposes a broader view in with different degrees of relation between private space and public activities is necessary. Key-words: place; public space; shopping center. 1. INTRODUÇÃO As grandes concentrações urbanas atuais, dentro do contexto da economia de mercado, podem ser tidas como a Metrópole Fragmentada descrita por Shane (2011), com extensões de solo que não constituem tecido urbano, mas sim, puramente, adensamentos construídos, estruturados basicamente pelo sistema viário e caracterizadas por baixas densidades, fragmentação do tecido, carência de equipamentos e espaços públicos. Neste contexto, os lugares privados adquirem caráter público, pois oferecem urbanidade em configuração diversa (e dispersa) da que ocorria na cidade tradicional, ou, conforme prevê Castello & Bortoli (2014) numa “rede de lugares”, que muitas vezes buscam “clonar” qualidades encontradas nos lugares tradicionais. Novos lugares da contemporaneidade, podem se apresentar de diversas formas, sob a configuração de shopping malls, áreas históricas reurbanizadas, complexos esportivos, cinemas multiplex, museus, campus universitários, complexos corporativos, entre outros. Em comum a utilização de estratégias de simulação da cidade tradicional e a busca de oferecer “urbanidade”: "a qualificação vinculada à dinâmica das experiências existenciais conferidas às pessoas pelo uso que fazem do ambiente urbano

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Este artigo faz parte da pesquisa desenvolvida no PROPAR-UFRGS para a tese de doutorado, em produção, intitulada “O Shopping Center como Lugar Público”, orientada pelo Prof. Doutor Lineu Castello. 1|

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público, através da capacidade de intercâmbio e de comunicação de que está imbuído esse ambiente” (Castello, 2007, p. 29). O shopping center, conforme concebido nos EUA, pelo arquiteto vienense Victor Gruen, na década de 1960, intencionava emular as condições para produzir urbanidade das cidades tradicionais europeias nos ambientes fechados Wall (2005), através da reprodução de características morfológicas, incentivando as experiências de fruição social, superando a função de equipamento puramente comercial. Scharoun (2012), ao se referir aos países norte americanos, descreve, a importância dos shopping malls como local de vivências públicas para adolescentes e idosos, ressaltando a importância do local de concentração em meio à subúrbios homogêneos daquele contexto. Soma-se a isso o fato de que, gradativamente, desde seu surgimento no início do Século XX, os shoppings centers incorporaram diversos programas que os conduziram a serem complexos multifuncionais: cinemas, espaços de lazer, hotéis, centros de eventos, parques de diversões, entre outros. 1.1. Objetivo A percepção de decadência dos espaços públicos é uma das discussões mais presentes na literatura de diversas disciplinas que se dedicam ao estudo da cidade. Tal percepção vem alinhada, quase em sincronia, à de que os espaços privados crescem em importância e validade na vida dos cidadãos e, em virtude disto, seriam os responsáveis por esta decadência. Pretende-se discutir o papel dos shopping centers como lugares públicos de propriedade privada, apontando seu papel relevante na constituição da cidade contemporânea. Coloca-se a questão de avaliar até que ponto o caráter público destes lugares pode ser considerado válido, na medida em que os conflitos inerentes à dicotomia público-privado, essencial às sociedades democráticas, são colocados à prova no processo de evolução desta sociedade. 1.2. Justificativa Bodnar (2015) aponta a crescente preocupação do pensamento sobre a cidade com relação tema “espaço público”: ao avaliar a produção do periódico Urban Studies, aponta que, desde 1990, 300 artigos foram publicados sobre o assunto, sendo que apenas seis tinham esse foco entre 1965 e 1990. Além disto, o tema se aponta essencial na discussão atual sobre a recuperação dos espaços públicos, num contexto democrático sem precedentes, no qual se rediscute o próprio papel das cidades brasileiras e da constituição do domínio público. De sua parte, os shopping centers assumiram condição central na vida urbana contemporânea, ao oferecer produtos, serviços e facilidades que os centros urbanos tradicionais têm dificuldade de reproduzir. Contudo, ao simular as condições tradicionais no interior dos shopping centers, afloraram os conflitos pela liberdade de ação individual e coletiva, que colocam discussões relevantes não só à condição privada dos shopping centes, mas em relação à qualidade e quantidade de opções de espaços públicos. 1.3. Método empregado A pesquisa bibliográfica inicial tenta estabelecer os conceitos básicos em relação ao que se pode tomar como domínio público é condição essencial para as sociedades democráticas. A descrição das condições dos shopping centers será utilizada para apresentar o pano de fundo do objeto em estudo. Em seguida, a análise de situações e eventos contemporâneos será utilizada para dispor os conflitos entre a demanda pública no interior dos shopping centers e as suas características de constituição privada.

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2. RESULTADOS OBTIDOS 2.1. Conceituando o Lugar Público

2.1.1. A esfera pública Qual posição pode o arquiteto tomar em relação à esfera pública que é marcada por mudanças contínuas? A pergunta é feita por Avermaete et al. (2009), que para tentar responde-la, elenca o pensamento mais relevante na relação com arquitetura e urbanismo e a esfera pública. Ele aponta a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, feita em Paris, durante a Revolução Francesa, em 1789, como um dos documentos definidores da moderna esfera pública. A Declaração apresenta um tripé de distinção entre público e privado, baseado na propriedade, na acessibilidade e no propósito. O domínio público está relacionado aos espaços de posse e controle do estado, acessíveis a todos, a qualquer momento, e de propósito coletivo. Mesmo fundamental na constituição do campo, a abordagem da Declaração exclui incontáveis espaços nos quais as relações entre público e privado são mais complexas. Estes espaços são, atualmente, de importância central nas cidades contemporâneas. Para Avermaete et al. (2009) é Jürgen Habermas, com seu “Mudança Estrutural da Esfera Pública” (2014), que define a esfera pública como o domínio da vida social no qual algo abordando a opinião pública pode ser formado e no qual os cidadãos podem conferenciar/consultar/comparar/deliberar de forma irrestrita. A esfera pública é um domínio social (assim como o estado e o comércio), no qual a discussão racional ocorre entre cidadãos na busca do interesse geral. A esfera pública burguesa pode ser concebida como uma esfera de “pessoas privadas” que se reúnem como um público: debates da sociedade organizada podem ocorrem em discussões pessoais ou em meio impresso. Par Habermas, novos espaços públicos também incluem bares, cafés e clubes. E A Condição Humana (2014), Hannah Arendt coloca que a esfera pública é o local onde as pessoas agem mais do que trabalham (a autora utiliza-se da distinção entre duas formas de atividade, de Aritstóteles: atividade/trabalho é por necessidade/compulsão; ação é por liberdade e auto-realização). A essência da esfera pública é permitir a relação entre as pessoas em sua pluralidade, com o objetivo de criar um mundo comum. O espaço associado a essa condição e atividade é o espaço público (ágora), mas par a autora, a esfera pública pode assumir diversas formas. Uma cultura cívica altamente desenvolvida exige cidadãos participantes energicamente em numerosas associações, de todos os tamanhos, que oferecem oportunidades de ação. Esfera pública tem dois significados: aparência - algo que é visto e falado pelos outros e por nós mesmos - constitui realidade; o mundo em si mesmo, na medida em que é comum a todos nós e distinto do nosso lugar de propriedade privada nele. Este mundo é constituído pelo ‘mundo das coisas’, artifício humano. Arquitetura, como parte do ‘mundo das coisas’, é premissa para a vida pública. Richard Sennett (1998) – O Declínio do Homem Público – localiza claramente o público no contexto da cidade. A esfera pública da cidade moderna é o espaço no qual indivíduos anônimos interagem. Espaço público é o local social onde estranhos se encontram (inclui boulevares, parques públicos, cafés, teatros e óperas, onde o público congrega). Até a cidade moderna, as congregações em espaços públicos se davam entre círculos relativamente fechados, por convite. Assim que os encontros entre estranhos começaram a ser mais frequentes, a sociedade precisou novas convenções sociais para trazer ordem ao novo domínio público. Neste clima de tolerância e interação social com estranhos, o debata público pode florescer, diz Sennett, cujo argumento, neste aspecto relembra Habermas. Não só o espaço urbano, mas também a política se tornou pública. Carmona et al. (2012) coloca que a condição relativa do espaço público pode ser considerada em termos de três qualidades: propriedade - se o espaço é de propriedade pública ou privada e se constitui em território “neutro”; acesso - se o público tem acesso ao espaço, - o que coloca a questão em relação à cobrança do acesso (nem todos os espaços públicos são “abertos” e acessíveis a todos); e 3|

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uso - se o espaço é ativamente utilizado e compartilhado por diferentes grupos e indivíduos. Em uma visão estritamente objetiva, a divisão entre público e privado é claramente definida e não provoca confusão. Do ponto de vista construtivo ou interpretativo, onde a realidade é construída, não há um espaço público ideal, e sim perspectivas variáveis que competem entre si em termos do que as coisas são e o que elas significam. Desta forma, se as pessoas pensam que um espaço é público, então ele é um espaço público. Deste ponto de vista, precisamos sempre nos perguntar “para quem” um espaço pode ser mais, ou menos, público. Esta perspectiva não deixa claro o que é espaço público: ele passa a significar coisas diferentes para pessoas diferentes.

2.2. A fruição pública do espaço privado Para Chiodelli e Moroni (2015), a visão de que espaço público e esfera pública (como conceito de Habermas) se sobrepõe não é, necessariamente, obrigatória: a esfera pública pode se desenvolver em espaços privados (é onde de fato ela surge, em cafés, bares...) e espaços virtuais (a internet com seus fóruns e redes sociais, assim como no passado em jornais, revistas, rádio e televisão). “O mero fato de algo ser privado mais do que público, comercial mais do que cívico, suburbano mais que urbano, não determina sua qualidade como lugar e não afeta, per se, seu potencial papel como um componente do domínio público” (CARMONA, 2010 apud Chiodelli; Moroni, 2015). Antes na realidade das cidades do hemisfério norte, mas atualmente também por estas terras, despontam experiências de gerações de usuários que não têm contato com o urbano tradicional e com o espaço público como tradicionalmente concebido: estruturam sua experiência do lugar público calcado na realidade fragmentada, onde o mais próximo do urbano é o privado (Castello, 2006). De fato, para a realidade norte americana, a adoção, pela população, de lugares privados que simulam a cidades onde não há crime ou falta de moradia só são possíveis porque os norte-americanos, em grande parte, esqueceram o que os centros urbanos costumava ser (Scharoun,2012, Kindle Locations 1262-1263). Nas cidades brasileiras contemporâneas, como Porto Alegre, a ausência de espaços públicos qualificados e a sensação de insegurança tornam os shoppings lugares interessantes para as atividades de encontro e lazer de diversos grupos sociais (terceira idade, adolescentes e famílias inteiras). Este “serviço secundário” se soma aos tradicionais objetivos deste equipamento, relacionados essencialmente ao consumo. De forma parecida com o que ocorreu nos subúrbios norte americanos, nossas metrópoles conurbadas carecem de centralidades que verdadeiramente representem o caráter da urbanidade e os shopping malls comparecem para suprir parte desta demanda. Além disto, a evolução tipológica do shopping center, processada ao longo do século XX, conduziu à internalização dos espaços de comércio e à incorporação de atividades que até então ocorriam em locais públicos. Em 1956, com a inauguração, nos EUA, do primeiro shopping center completamente fechado e artificialmente climatizado, o Southdale Center Mall, na cidade de Edina, Minesota, projeto do Victor Gruen e Associados, surge o protótipo que se difundiria pelo mundo. Gruen tinha percepção concreta de que seu invento deveria ser mais do que equipamento comercial, para que alcançasse pleno sucesso: deveria ser um lugar de urbanidade. Conforme Wall (2005), os administradores planejaram fazer da praça coberta (figura 1) uma festiva praça pública. Um palco podia ser montado para desfiles de moda (figura 3), concertos, palestras, e havia espaço suficiente para receber exposições de arte e de produtos. O evento mais popular, no entanto, era o baile anual de caridade Southdale Charity Ball – (figura 2), que recebia, usualmente, 2.000 frequentadores.

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FIGURA 1 – Praça coberta do Shothdale Center Mall . Fonte: Wall, 2005, p. 98)

FIGURA 2 – Baile anual de caridade, na praça coberta do Shothdale Center Mall . Fonte: Wall, 2005, p. 98)

FIGURA 3 – Desfile de moda no Shothdale Center Mall . Fonte: Wall, 2005, p. 98)

Os centros super-regionais, surgidos na década de 1980, levaram o modelo do fechamento completo ao limite, através do aumento da escala e da congestão de atividades. O West Edmonton Mall (figura 4), projeto do arquiteto Maurice Sunderland para o subúrbio de Albert no Canadá, realizado entre 1981 e 1999, é um ícone desta tendência. Aqui o delírio da ingestão não é só programático: a arquitetura interna configura cenários urbanos que remetem aos bulevares parisienses do século XIX - Europa Boulevard - ou as ruas de Nova Orleans - Bourbon Street (figura 5). Parque de diversões, parque aquático (figura 6) entre outras atrações de grande escala podem ser encontradas sob seu mesmo telhado.

Figura 4 – West Edmonton Mall: situação. Fonte: Google Earth, 2010.

Figura 5 – Vista interior: Bourbon Street. Fonte: TAKATOHI, 2010.

Figura 6 – Parque aquático coberto. Fonte: VOLKSN8R, 2010.

No Shopping Center Iguatemi Porto Alegre (figura 7), aberto em 1983, as atrações comerciais a muito deixaram de ser o único objetivo dos seus frequentadores. Além dos ambientes internos preparados para o calmo passeio de uma família, ao longo do ano, uma extensa programação de eventos se dilui nos seus espaços cobertos, incluindo festividades temáticas como Natal (figura 8) e Dia das Mães (datas mais festejadas do comércio varejista) e eventos locais, como o desfile de moda “Donna Fashion”. Comparadas no tempo com os exemplares antecedentes descritos, a ambientação interna das circulações, a ala com pátio em pé-direito triplo, cafés e quiosques, a “Praça do relógio” (figura 9) e as galerias soam repetição, mas somente para quem tiver o olhar acurado. No geral, estes ambientes se inundam de usuários em busca de compras, serviços ou, simplesmente, de um local coberto, seguro e climatizado para passeio.

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Figura 7 – Vista aérea do Shopping Center Iguatemi Porto Alegre.

Figura 8 – Alameda decorada para o Natal.

Figura 9 – Relógio d’água, motivo de pátio interno.

Se o fenômeno do fechamento das atividades de varejo e serviços, originalmente, evoluiu com justificativas comerciais e locacionais, em terras brasileiras não há como negar uma pitada de insegurança e segregação. Inicialmente, a tendência era de migração do comércio de alta renda para os shoppings, como se o comércio popular ainda mantivesse vitalidade nas ruas comerciais e a força do comércio do centro das cidades fosse uma prova disto. Posteriormente, os próprios shopping centers se dinamizam e se diferenciam para atender todas as gamas de comércio varejista e todas as classes sociais (Bortoli, 2010). Sendo a cidade constituída, também, do movimento e da presença das pessoas, o fechamento e a segregação dos espaços de comércio é interpretado como ingrediente a mais para desqualificação dos espaços públicos, pelo esvaziamento de algumas funções ou segmentos comerciais específicos. Ao mesmo tempo, o que se oferece pelo fórum público é o espaço privado (semi-público, no máximo) controlado e domesticado de shopping centers e complexos multifuncionais. Consciente disto, conforme Amendola (2000), em 1994, a Suprema Corte do estado norte-americano de Nova Jersey admitiu a liberdade de discurso e de distribuição de anúncios impressos no interior dos shopping centers, incidindo sobre sua natureza de áreas absolutamente privadas, porque, conforme a decisão da corte, “os shopping centers suburbanos tem substituído o feito das áreas de negócios do centro como centros de atividade comercial e social”. Há, no mínimo, outro exemplo de ação comunitária no interior de shopping centers norte-americanos: a abertura dos corredores internos para a prática de “jogging” por idosos que veem ali o pavimento ideal para o exercício. A decisão, contudo, é exceção: para a ampla maioria dos casos, nos EUA e no Brasil, o regramento legal continua definindo a capacidade do proprietário e administrador de exercer seu direito de propriedade. Novamente Chiodelli e Moroni (2015), levando em consideração os aspectos públicos e privados dos shopping centers, defendem uma abordagem com mais nuances sobre o entendimento do fenômeno e seus efeitos, inclusive com uma discussão mais flexível sobre que tipos de regulações devem ser aplicadas. Sem absolver o shopping de seus efeitos negativos sobre a cidade e sobre o tecido urbano, os autores concluem que o shopping center não necessariamente privatizam o espaço público, nem necessariamente erodem a esfera pública e insistem no papel dos atores públicos de prover os espaços qualificados para o desenvolvimento amplo e irrestrito da esfera pública.

2.3. Os conflitos do uso público dos shopping centers A utilização intensiva do shopping center para atividades que tradicionalmente ocorriam em espaços públicos, diluindo a fronteira que limita a percepção do espaço privado e do lugar público, projetada e desejada por Victor Gruen com a intenção de recriar os centros urbanos europeus em meio aos 6|

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subúrbios norte americanos, esconde simplificações que conduzem a conflitos entre usuários e administradores. Pode-se afirmar que nem sempre os interesses de promotores, empreendedores, lojistas e usuários coincidem harmoniosamente no espaço interior de um shopping center. Além disto, as práticas sociais de diferentes grupos sociais conduzem a diferentes interpretações do lugar, levadas por interesses diferentes. A reprodução de ambientes urbanos, de fato, acaba por entrar em conflito direto com as necessidades de rentabilização destes empreendimentos, principalmente em relação ao controle dos espaços e à manifestação pública. Avaliando os shopping malls como espaços públicos, Scharoun (2012) cita diversos eventos de conflitos e avalia que ao longo das últimas décadas, decisões judiciais, em sua extensa maioria, garantiram o caráter privado e controle aos administradores, limitando praticamente todas as manifestações espontâneas populares e acrescendo de diversas formas a vigilância e o controle nestes espaços. Já no início de 2015, uma manifestação política, realizada por grupos organizados no Mall of America, foi duramente reprimida, não só pelo próprio shopping, mas pelas autoridades municipais, como noticiado: “Autoridades de Bloomington – Minesota - estão fundamentando acusações contra os organizadores de uma manifestação anti brutalidade policial no Mall of America, que atrapalhou um dos mais movimentados - e lucrativo - dia de compras do ano” (Jany, 2015). Na América do Norte, há a clara percepção de que, em contextos urbanos fragmentados e dispersos, carentes de qualquer centralidade, os shopping malls, são o único lugar de concentração de pessoas capaz de trazer impacto para uma manifestação pública. No Brasil, e em Porto Alegre, a percepção de que o shopping mall é lugar apropriado como público pode ser interpretada de diferentes formas. Para grupos socialmente melhor posicionados, que possuem experiência do urbano tradicional, o shopping mall é lugar de segurança e conveniência. Para novas gerações e grupos que buscam afirmação social, o shopping mall é o local de interação social, de múltiplos sentidos (Castello, 2006). Rolezinhos, bondes e manifestações de grupos sociais organizados buscam no shopping mall, na grande maioria das vezes, não visibilidade para protestos ou manifestações políticas, mas sim a legitimação de sua identidade como consumidores de mercadorias e dos lugares em si. Desta forma, nos últimos anos, tem chamado atenção popular os relatos, dos veículos de mídia e das redes sociais, de atividades que já ocorriam em shopping malls, há pelo menos uma década, como a concentração não organizada de adolescentes ou os rolezinhos (encontros organizados). Também os eventos de protesto já tomaram as manchetes, mais pelo caráter excepcional e crítico, tais como manifestações de moradores de rua ou grupos políticos. Estes relatos ressaltam a discrepância de percepções de como estes lugares poderiam, ou deveriam, ser utilizados, além de conflitos que advêm da indesejada condição heterogênea destes usuários (G1, 2015a). As reações dos shopping centers, com vistas a proteger sua viabilidade, envolvem iniciativas jurídicas, ações policiais e de segurança, vigilância e controle. No Estado de São Paulo, em 2014, alguns empreendimentos obtiveram decisões judiciais que ratificam a autonomia para proibir e dispersar os rolezinhos (Locatelli, 2014). Mais recentemente, dois empreendimentos do interior de São Paulo estabeleceram o toque de recolher para adolescentes desacompanhados (G1, 2015), reproduzindo procedimento que já é comum em malls norte americanos. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme demonstrado, as dificuldades de definição do caráter público do shopping center estão relacionadas à percepção dos seus usuários e à condição de propriedade desses equipamentos. Se por um lado as determinações legais deixam pouca margem para interpretação, os limites dos comportamentos possíveis dentre de um shopping center estão a todo momento sendo testados. Ao 7|

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incorporar atividades públicas como forma de promoção e atração de usuários, os shopping centers abriram essa possibilidade. A condição das cidades contemporâneas e seus espaços públicos, demanda um novo olhar sobre as relações público-privado, que possa incorporar as manifestações dentro de uma noção que incorpore diversos graus de condição pública. Numa cidade fragmentada e policêntrica, espaços privados de uso público, como os shopping centers, podem representar oportunidades de desenvolvimento de certos aspectos da esfera pública, que os próprios espaços públicos carecem de oferecer.

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