Especismo como critério de demarcação

June 3, 2017 | Autor: Cassiano Calegari | Categoria: Igualdade, Ética Animal, Especismo, Direitos dos Animais
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Artigo apresentado à disciplina Direito da Natureza e Ecologia Profunda do curso de Mestrado em Direito da IMED.
Advogado, mestrando em direito (IMED). E-mail [email protected]; telefone (54) 9952-6228.
No original: Encourage basic and clinical research on the recognition of pain in animals, mechanisms of pain in animals, and management of pain in animals.
Encourage the use of spontaneous animal disease as a model for studying mechanisms and alleviation of human pain.
Encourage cross-species collaboration in pain research.
Act as a central point for interdisciplinary discussion of pain in non-human species.
No original: On the basis of these considerations, it must be decided that the conclusions described in the previous paragraph (which arise from the neuro-anatomical analysis of the analogy postulate) are generally correct. However, they need further specification in the sense that animal emotional experiences may only be expected in anthropoid apes and possibly dolphins. Since these species have at their disposal both the neural structures and the cognitive capacities that could produce emotional expeciences with positive fitness functions, only these species can be given the benefit of the doubt as regards their emotional experiences.
No original: A critical review of the literature inevitably leads to the conclusion that the claims for suffering in animal species, other than in anthropoid apes and possible dolphins, are incorrectly substantiated. Such claims are the products of anthropomorphic projections.
No original: Temptations and trials were everywhere. The most surprising turned out to be the realization that I couldn't actually explain to myself or anyone else why killing an animal was any worse than killing the many plants I was now eating.
Surely, I'd thought, science can defend the obvious, that slaughterhouse carnage is wrong in a way that harvesting a field of lettuces or, say, mowing the lawn is not. But instead, it began to seem that formulating a truly rational rationale for not eating animals, at least while consuming all sorts of other organisms, was difficult, maybe even impossible.
[...]
Unlike a lowing, running cow, a plant's reactions to attack are much harder for us to detect. But just like a chicken running around without its head, the body of a corn plant torn from the soil or sliced into pieces struggles to save itself, just as vigorously and just as uselessly, if much less obviously to the human ear and eye.
When a plant is wounded, its body immediately kicks into protection mode. It releases a bouquet of volatile chemicals, which in some cases have been shown to induce neighboring plants to pre-emptively step up their own chemical defenses and in other cases to lure in predators of the beasts that may be causing the damage to the plants. Inside the plant, repair systems are engaged and defenses are mounted, the molecular details of which scientists are still working out, but which involve signaling molecules coursing through the body to rally the cellular troops, even the enlisting of the genome itself, which begins churning out defense-related proteins.
Plants don't just react to attacks, though. They stand forever at the ready. Witness the endless thorns, stinging hairs and deadly poisons with which they are armed. If all this effort doesn't look like an organism trying to survive, then I'm not sure what would. Plants are not the inert pantries of sustenance we might wish them to be.
Maybe the real problem with the argument that it's O.K. to kill plants because they don't feel exactly as we do, though, is that it's the same argument used to justify what we now view as unforgivable wrongs.
Slavery and genocide have been justified by the assertion that some kinds of people do not feel pain, do not feel love — are not truly human — in the same way as others. The same thinking has led to other practices less drastic but still appalling. For example, physicians once withheld anesthetics from infants during surgery because it was believed that these not-quite-yet-humans did not feel pain (smiles were gas, remember).


Especismo como critério de demarcação
Cassiano Calegari


RESUMO: Demarcar a extensão dos direitos atuais constitui uma das maiores inconsistências do direito contemporâneo. Embora as legislações presumam que as normas e princípios se aplicam somente à espécie humana, novas correntes tem surgido em favor da expansão desta proteção jurídica para animais não-humamos. O presente estudo visa compreender as consequências do abandono de critérios especistas no direito, assim como as eventuais inconsistências que uma lógica igualitária pode gerar. O método utilizado para tanto é o dedutivo e a técnica de pesquisa é bibliográfica.
Palavras-chave: especismo; direitos dos animais; princípio da igualdade; ética animal.


ABSTRACT: Determining the extent of the existing rights is one of the biggest inconsistencies of contemporary law. Although the laws presume that the rules and principles apply only to the human species, new studies have arisen in favor of the expansion of legal protection for non-humamos animals. This study aims to understand the consequences of abandoning speciesist criteria to the law, as well as any inconsistencies that may generate an egalitarian logic. The chosen method is deductive and the research technique is bibliographic.
Keywords: speciesism; animal rights; equality; animal ethics


Introdução
Em se tratando de direitos dos animais, a ausência de um critério objetivo que demarque onde os direitos humanos acabam e os direitos dos animais (aqui utilizados para fazer referencia a animais não-humanos, ou seja, distante de seu sentido biológico) tem inicio constitui uma grave inconsistência lógica que da margem para uma série de conflitos de ordem prática e jurídica.
Esta falha de demarcação fomenta conflitos de interpretação entre os grupos que defendem os direitos dos animais e aqueles que os opõe, resultando em uma série de falácias de ambos os lados baseadas na impossibilidade de compreender o pensamento de seus opositores.
Portanto, estabelecer critérios objetivos para se entender a abrangência das aspirações protecionistas e a delimitação de seus efeitos práticos constitui uma prioridade à tomada de qualquer medida legal em qualquer sentido relacionado à temática de direitos dos animais, possibilitando compreender com precisão a abrangência das medidas realizadas e antecipar seus efeitos práticos.
No presente estudo serão analisadas algumas questões da formação ética contemporânea, visando elucidar os fatores éticos envolvidos com o especismo. Em seguida será tratado a igualdade em relação aos animais e as implicações éticas que envolvem a pesquisa em animais para se compreender a abrangência do critério especista e as implicações de seu abandono.
Para realizar o presente estudo utilizar-se-á, em especial, a obra de Peter Singer: Ética Prática, por sua análise lógica e consistente, além de trazer a questão do especismo e uma crítica (que será questionada no presente estudo) à sua utilização.
Considerações sobre a ética e critérios de demarcação
Para o desenvolvimento do tema, em especial ao se tratar da ética animal, cumpre ressaltar algumas considerações sobre a ética tratada no presente estudo. Primeiramente, com o advento da modernidade, resultado do abandono dos modelos de Estado teístas e absolutistas (e das falácias do direito natural), houve um abandono do conceito clássico de ética como algo único e imutável.
A ética teísta (em geral a ética cristã) parte do ideal ético de um "deus" absoluto, sendo que a ética é aquela determinada por este, comumente externada através de um livro sagrado. Outros modelos de Estado, no caso do absolutismo, utilizam as determinações de um Rei ou Faraó compreendido como um ser superior por motivos culturais (muitas vezes relacionados a questões religiosas) como o ideal de ética. Nestes Estados o correto é aquilo determinado pelo líder, este cria a ética, muitas vezes de forma ad hoc para resolver o caso concreto e para guiar as ações futuras de seu povo.
O grande problema para a ética veio na modernidade, onde houve o afastamento entre o Estado e a Igreja (teísmo), rompendo com a ideia de uma ética universal, imutável e divina. Assim como a ascensão das democracias e dos Estados Democráticos de Direito expandiu este problema gerando as perguntas: Quem cria a ética e por que devemos segui-la?
Este problema, embora presente, esteve sob controle até o século XX nos apresentar o fenômeno da globalização e da mídia das massas (mass media). Através destas revoluções tecnológicas os Estados passaram e ter contato com outras culturas e interagir diretamente e diariamente com modelos éticos diversos daqueles produzidos por seu grupo.
Ao mesmo tempo houveram tentativas de se criar premissas éticas universais através de tratados internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, um resultado da publicidade dos atos realizados durante a Segunda Guerra Mundial, possibilitada pela mídia das massas. Houveram também retrocessos, como pode ser observado no totalitarismo nazista, em que a vontade do líder determinava as aspirações da nação alemã.
Passou-se então por um período de intensa produção científica com o intuito justificar a existência destas premissas éticas para tentar evitar que se chegue à conclusão óbvia. Reviveu-se o contratualismo como uma tentativa de se explicar a ética como um acordo de vontades ignorando-se o fato de que nunca houve um real acordo da população de uma nação sobre as premissas éticas nem podem estas entrar em desacordo ou desrespeita-las.
Ao abandonar as justificativas teístas e o misticismo associado à figura do monarca também abandonou-se qualquer chance de se justificar a existência de uma ética universal, restando toda a construção ética (e a construção jurídica baseada nesta) sem um embasamento lógico para a sua aplicação além do poder de autodeterminação do Estado. A ausência de um embasamento lógico das premissas éticas demonstra seu real caráter de dogmas, que podem estar em acordo com o que se é compreendido como algo "bom", mas nem por isso deixam de estar baseadas em nada além da crença generalizada de sua validade reforçada por meio do aparato estatal (recomenda-se prudência do leitor para evitar a conclusão de que o mesmo se aplica a normas e princípios constitucionais).
O mesmo ocorre com os critérios de demarcação, constituem limites imaginários entre conceitos científicos estabelecidos de forma arbitraria para facilitar sua compreensão e estudo. Vale salientar que embora sua criação seja arbitraria, tais critérios devem possuir uma base lógica clara, sob pena de gerar inconsistências que resultem na autodestruição do próprio critério ou em irracionalidade.
Um exemplo claro de critério de demarcação aplicado aos direitos ocorreu durante o período escravista, em que ser "branco" constituía o critério de demarcação para ser um sujeito de direitos. Pode-se argumentar acerca da validade ética deste critério e, para a sociedade atual, certamente constituiria um critério de demarcação completamente inapropriado, porém a história nos demonstra não haver grandes conflitos éticos sobre a questão no período em que foi implantado (apesar desta posição ter se modificado gradualmente com o passar do tempo).
O critério baseado na cor da pele encontra, entretanto, diversos problemas de consistência: Primeiramente não é tão simples observar a cor da pele de uma pessoa em casos limite, como "brancos" que possuem uma pele escura em função da exposição à radiação UV ou "negros" com condições congênitas, como o albinismo. Em segundo lugar, é possível a miscigenação entre pessoas de pele "negra" e "branca", apaziguando os indicativos visuais de sua cor de pele e prejudicando o critério, uma vez que não é possível que haja uma pessoa com "parcelas de Direitos".
O especismo, entretanto, não sofre das mesmas inconsistências, uma vez que se baseia em critérios um genético absoluto (a espécie). É impossível existirem humanos parciais ou miscigenação entre espécies, desta forma não existiriam conflitos em casos limites.
Vale salientar que a adoção do especismo como critério de demarcação não implica restringir os direitos somente à raça humana, mas garantir que os direitos e deveres existentes se aplicam somente aos humanos ao menos que seja estabelecido em contrario. É possível a criação de mecanismos de proteção tanto dos animais como do meio ambiente, apenas devem ser elaborados desta forma desde sua concepção.
Singer critica o especismo ao tratar de sua arbitrariedade como critério de demarcação:

Deste ponto de vista, a raça é irrelevante para a consideração dos interesses, porque o que conta são os interesses em si. Conceder menor importância a uma quantidade específica de dor por essa dor ser sentida por um membro de uma determinada raça seria fazer uma distinção arbitrária. Por que motivo escolher a raça? Porque não escolher o facto de uma pessoa ter nascido em ano bissexto ou não? Ou o de ter mais de uma vogal no seu nome? Todas estas características são igualmente irrelevantes para o carácter indesejável da dor de um ponto de vista universal. Daí que o princípio da igualdade na consideração de interesses mostre claramente por que motivo as formas mais exacerbadas de racismo, como o nazismo, estão erradas -- porque :, os nazis se preocupavam apenas com o bem-estar da "raça ariana" e ignoravam o sofrimento dos Judeus, dos Ciganos ou dos Eslavos. (SINGER, 2002, p. 20)

A partir deste discurso surge a conclusão de Singer ao tratar do valor da vida do "homo sapiens":

Com a clarificação trazida pelo nosso interlúdio terminológico e o recurso ao argumento do capítulo anterior, esta secção pode ser muito breve. O mal de infligir sofrimento a um ser não pode depender da espécie a que esse ser pertence; nem o mal de o matar. Os factos biológicos que traçam a fronteira da nossa espécie não têm significado moral. Dar preferência à vida de um ser apenas porque esse ser é membro da nossa espécie pôr-nos-ia na mesma posição que os racistas, que dão preferência aos membros da sua própria raça. (SINGER, 2002, p. 63)

O trecho transcrito não contem uma crítica ao especismo propriamente dito, mas aos critérios de demarcação como um todo. Estes critérios possuem uma origem essencialmente metodológica e, embora possuam um embasamento lógico, não podem ser estabelecidos de outra forma senão arbitrária, ao menos sem considerar a existência de uma ordem divina ou um "direito natural" que determine como as coisas devem ser.
Sobre a semelhança trazida por Singer entre o especismo e o racismo, deve-se evitar cair na falácia Ad hominem apresentada pelo autor, seu fundamento estaria na arbitrariedade com que são estabelecidos, não em algum ético problema em relação ao especismo propriamente dito. Esta analogia, portanto, poderia ser válida com qualquer outro critério de demarcação, como a maioridade civil, a cidadania no Direito Internacional ou a capacidade civil. Todos estes foram estabelecidos de forma arbitraria e dão preferencia a um grupo do qual o legislador faz parte (Congressistas devem ser brasileiros e maiores, assim como possuir capacidade civil).
Ademais, conforme observamos, o racismo apresenta sérios problemas de consistência, enquanto o especismo constitui um critério perfeitamente consistente. O próprio especismo, se aplicado, proíbe o racismo, uma vez que nada justificaria, em uma lógica especista, restringir um ser da mesma espécie de qualquer direito com base em sua cor de pele, tratando todos os seres humanos como iguais por integrarem a espécie humana.
A igualdade e o direitos dos animais
Ao iniciar a análise mais específica da temática do direito dos animais vale adentrar a discussão sobre a dor, o sofrimento e a necessidade de evita-los. Sobre a capacidade dos animais sentirem dor, trata-se de um tema pacífico no estado atual da ciência, apesar de haverem diferenças na percepção da dor em espécies diferentes. A própria Internacional Association for the Study of Pain (IASP) utiliza animais para testar efeitos da dor em seres vivos, assim como em pesquisas que visem o desenvolvimento de analgésicos (IASP, 2014).
A associação também possui um grupo (Special Interest Group – SIG) de pesquisas sobre a dor em animais, visando:

Incentivar a pesquisa de base e clinica sobre o reconhecimento da dor em animais, mecanismos da dor em animais e administraçãoo da dor em animais.
Incentivar a utilização de doenças animais espontâneas como um modelo para o estudo de mecanismos e alívio da dor humana.
Incentivar a colaboração inter-espécies na pesquisa da dor.
Agir como um ponto central para discussões interdisciplinares sobre a dor em espécies não-humanas. (tradução livre) (IASP, 2014)

Por outro lado, a capacidade de animais sofrerem (nos padrões humanos) constitui um tema ainda debatido pela doutrina. Nesse sentido cumpre ressaltar:

Baseado nessas considerações, deve ser decidido que as conclusões descritas no parágrafo anterior (que surgem a partir da análise neuro-anatômica do analogy postulate) estão em geral corretas. Entretanto, elas precisam de uma maior especificação no sentido de que as experiências emocionais dos animais podem apenas ser esperadas em macacos antropoides e, possivelmente, golfinhos. Uma vez que estas espécies possuem à sua disposição as estruturas neurais e as capacidades cognitivas que podem produzir uma experiência emocional com funções de aptidão positiva, apenas a estas espécies pode ser concedido o beneficio da dúvida em relação às suas experiências emocionais. (tradução livre) (BERMOND, 1997, p. 138)

O autor prossegue sua análise para a conclusão após uma análise de estudos de alguns autores sobre o tema:

Uma revisão crítica da literatura nos leva, inevitavelmente, à conclusão de que as alegações de sofrimento em espécies animais que não macacos antropoides e, possivelmente, golfinhos, estão fundadas incorretamente. Estas alegações são o produto de projeções antropomórficas. (tradução livre) (BERMOND, 1997, p. 138)

Portanto, no presente estudo será evitado adentrar a questão do sofrimento em animais por se tratar de um tema controverso nas ciências biológicas e comportamentais. Desta forma, conclui-se que os animais em geral possuem a capacidade de sentir dor enquanto o sofrimento propriamente dito é pacífico somente naqueles animais intelectualmente mais complexos, como macacos do grupo antropoide e golfinhos.
Singer, em sua obra, parece utilizar o termo sofrimento em um sentido mais próximo a "sentir dor", como pode-se observar na passagem:

A capacidade de sofrer e de gozar as coisas constitui um pré-requisito para ter quaisquer interesses, uma condição que tem de ser satisfeita antes de podermos falar de interesses com algum sentido. Seria descabido dizer que não é do interesse de uma pedra levar um pontapé de uma criança numa rua. Uma pedra não possui interesses porque não sofre. Nada do que lhe possamos fazer tem qualquer importância para o seu bem-estar. Um rato, pelo contrário, tem de facto um interesse em não ser molestado, porque os ratos sofrem se forem tratados desse modo.
Se um ser sofre, não pode haver justificação moral para a recusa de tomar esse sofrimento em consideração. Independentemente da natureza do ser, o princípio da igualdade exige que o sofrimento seja levado em linha de conta em termos igualitários relativamente a um sofrimento semelhante de qualquer outro ser, tanto quanto é possível fazer comparações aproximadas. Se um determinado ser não é capaz de sofrer nem de sentir satisfação nem felicidade, não há nada a tomar em consideração. (SINGER, 2002, p. 43)

Percebe-se aqui um dos problemas gerados pela ausência de um critério de demarcação: a aplicação do princípio da igualdade aos animais. De fato se os princípios humanos forem aplicáveis a animais, em especial no tocante à igualdade, a dor animal deve ser levada em consideração.
Não se restringe entretanto à igualdade, sem um critério de demarcação todos os princípios e direitos humanos devem ser estendidos aos animais, dentre eles a saúde, segurança, educação (apesar deste poder ser ignorado por impossibilidades práticas)... É claro que não se deve supor que haverão chimpanzés em hospitais ou policiais patrulhando as florestas, mas estas hipóteses permitem acentuar a inconsistência gerada pela inexistência de um limite de aplicação dos direitos.
Pressupor que a igualdade se aplica a animais é presumir que qualquer principio constitucional também o faz e, portanto, animais podem ser pacientes de habeas corpus caso enjaulados, possuindo liberdade e direito ao devido processo legal, além de contraditório e ampla defesa.
Singer prossegue em seu discurso sobre o princípio da igualdade:

Os racistas violam o princípio da igualdade atribuindo maior peso aos interesses de membros da sua própria raça quando há um confronto entre os seus interesses e os de outra raça. Os racistas de ascendência europeia não aceitavam geralmente que a dor conta tanto quando é sentida pelos Africanos, por exemplo, como quando é sentida pelos Europeus. Do mesmo modo, aqueles a quem chamo "especistas" atribuem maior peso aos interesses dos membros da sua própria espécie quando há um conflito entre esses interesses e os das outras espécies. Os especistas humanos não aceitam que a dor sentida por porcos ou ratos seja tão má como a dor sentida por seres humanos. (SINGER, 2002, p. 44)

Sem o especismo, supondo que os princípios constitucionais (em especial a igualdade) se apliquem a todos os seres, o discurso do autor é válido, nada justificaria uma priorização dos interesses humanos sobre aqueles de qualquer animal. Entretanto superar o especismo como o limite para a aplicação dos direitos esbarra em gigantescas barreiras práticas, a principal sendo que a legislação atual foi desenvolvida tendo em mente apenas a espécie humana e escolher princípios ou normas que seriam aplicáveis a animais de forma análoga (na verdade sequer seria analogia se considerados sujeitos de direitos), além de resultar em diversos problemas de difícil solução, consistiria em uma tarefa homérica e questionável por ser realizada, necessariamente, de forma arbitraria.
Desta forma o especismo como critério de demarcação não constitui uma forma de discriminar os animais ou de se medir de forma diversa a importância entre ambos, mas apenas um mecanismo para adicionar consistência ao sistema, criando um marco de alcance máximo dos direitos hoje estabelecidos. Ele não proíbe a criação de mecanismos de proteção a animais ou até mesmo o reconhecimento de direitos a animais, apenas determina que os direitos como estabelecidos hoje estão limitados à espécie humana e que direitos aplicáveis a animais deverão ser especificados desta forma.
Singer prossegue com sua argumentação acerca da igualdade:

Na realidade, este é, pois, o argumento completo para alargar o princípio da igualdade aos animais não humanos; mas surgem algumas dúvidas sobre o que esta igualdade implica na prática. Em particular, a última frase do parágrafo anterior pode levar algumas pessoas a responder: "é claro que a dor sentida por um rato não é tão má como a dor sentida por um ser humano. Os seres humanos têm maior consciência do que lhes está a acontecer e este facto torna o seu sofrimento mais intenso. Não se pode comparar a dor de uma pessoa, digamos, que morre de cancro numa agonia prolongada com a de um rato de laboratório que sofre o mesmo destino."
Aceito perfeitamente que, no caso descrito, a vítima humana de cancro sofre mais que a vítima não humana. Este facto não põe em causa a igualdade na consideração de interesses dos não humanos. Significa antes que temos de ter cuidado quando comparamos os interesses de diferentes espécies. Em algumas situações, um membro de uma espécie sofrerá mais do que o de outra. Neste caso devemos continuar a aplicar o princípio da igualdade na consideração de interesses, mas o resultado dessa atitude consiste, é claro, em dar prioridade ao alívio do maior sofrimento. Um exemplo mais simples pode ajudar a esclarecer esta questão.
Se eu der uma forte palmada na garupa de um cavalo, este pode sobressaltar-se, mas é de presumir que sinta pouca dor. A sua pele é suficientemente espessa para o proteger de uma simples palmada. Porém, se eu der a mesma palmada a um bebé, este chorará e é de presumir que sinta dor, porque a sua pele é mais sensível. Logo, é pior dar uma palmada a uma criança do que a um cavalo, se ambas forem administradas com igual força. Mas tem de haver algum tipo de golpe - não sei o que poderá ser, mas talvez uma pancada com um pau pesado - que cause ao cavalo tanta dor como a que provocamos a uma criança com uma simples palmada. É isto que pretendo dizer com "a mesma quantidade de dor". E, se considerarmos um mal infligir uma dada quantidade de dor a um bebé sem motivo, temos de considerar igualmente um mal infligir a mesma quantidade de dor a um cavalo sem motivo - a não ser que sejamos especistas. (SINGER, 2002, p. 45)

A utilização de um bebê no exemplo de Singer está associada à suposição (presumivelmente válida para fins ilustrativos) de que este possui um nível de consciência semelhante à de um cavalo. Não há qualquer problema de consistência na lógica de Singer, de fato, se presumirmos que ha uma igualdade entre todos os animais (incluindo aqui os humanos) e que a única diferença na percepção de sofrimento esta relacionada ao grau de consciência, não ha nenhuma diferença entre a dor de um cavalo e a dor de um bebê humano se de idênticas intensidades.
Esta constatação pode parecer perturbadora para o leitor, certamente seria para uma parcela significativa da sociedade. O exemplo do cavalo e do bebe demonstra outro problema de se excluir o especismo. Se não houver qualquer priorização entre seres da mesma espécie, lógicas semelhantes (como deficientes mentais e cavalos) se tornam perfeitamente válidas. Se estaria criando, assim, um dilema ético caso fosse necessário escolher entre a vida de um animal ou de um bebê humano (ou deficiente mental) desconhecido.
A exclusão do especismo, sopesando humanos e animais de forma igual, não gera apenas problemas éticos e jurídicos, mas inconsistências maiores de impossível solução. Suponhamos que tirar a vida de um ser humano possa salvar a vida de 100 animais, em uma lógica igualitária a exclusão deste humano poderia ser considerada a escolha mais benéfica.
Agora suponhamos que em um momento a humanidade conclua que a sua existência tem gerado (e irá inevitavelmente gerar) a morte de muito mais animais do que o número de seres humanos. Neste exemplo a aniquilação da humanidade seria a resposta mais acertada em uma lógica igualitária? Não se esta presumindo que um ser humano e um rato possuam o mesmo valor, mas que um ser humano, em uma lógica igualitária, poderia possuir o mesmo valor que 100 animais (ou qualquer outro número).
Se a conclusão for que ha um número de animais que justifique a extinção da espécie humana, se estará concluindo pela própria destruição da espécie, uma escolha que é, em qualquer hipótese, errada.
Partamos de uma visão não-teísta da vida em que o objetivo de uma espécie é a sua própria perpetuação. Nesta visão, reconhecer a possibilidade de uma espécie optar pela prevalência de outra(s) espécie(s) resultando em sua própria aniquilação é reconhecer a sua própria falha na seleção natural.
Portanto, presumindo que haja igualdade entre espécies (I), em um caso em que seja necessário escolher entre os seres humanos (H) e um número suficiente de animais (A) que supere o valor da humanidade (essa possibilidade deve ser possível, pois se admitirmos que os seres humanos sempre possuirão um valor superior ao dos animais, independente de sua quantidade, estaremos, segundo Singer, sendo especistas), surgem duas possibilidades:

((x)Ix ((x)Hx (x)Ax)
asm 1 (x)Hx
asm 2 (x)Ax

Na primeira conclusão possível (asm 1), há a prevalência da raça humana sobre qualquer número de animais. Essa constitui a hipótese especista, em que, havendo um conflito, optar-se-á sempre pela humanidade.
Na segunda conclusão possível (asm 2), há a prevalência dos animais sobre a humanidade, ou seja, em um conflito em que o prejuízo causado pela humanidade aos animais foi constatado ser maior do que o beneficio causado pela humanidade ao mundo, esta optou por sua própria extinção. Novamente, esta conclusão deve ser possível do contrario se estaria afirmando que a humanidade sempre possuirá um valor maior que os animais, independente da quantidade e do prejuízo causado a eles.
Elaborando mais nossos silogismos, partamos do nosso pressuposto anterior que o objetivo da vida (O) é a perpetuação da espécie (P). Com base nesta premissa, suponhamos que passamos pelo conflito em que devemos escolher entre animais (A) ou humanos (H) em um sistema igualitário (I). Se optarmos pelos animais, então estaremos descontinuando a espécie, ao faze-lo, estaremos falhando com o objetivo da vida e, portanto, realizando uma escolha que é, necessariamente, inconsistente (estamos contrariando nossa própria premissa, gerando uma contradição).

(x)(Ox=Px)
((x)Ix ((x)(Hx Px) (x)Ax)
xAx x(¬Hx ¬Px)
(x)¬Ox

A única maneira de conferir consistência a uma lógica não especista (que eu venho chamando de igualitária, pois expande o principio da igualdade além dos humanos) é modificar a premissa inicial, ou seja, que o objetivo da vida é a perpetuação da espécie (pois atualmente ha uma contradição entre as linhas 1 e 4). Desta forma, uma premissa válida seria que o objetivo da vida é a preservação de qualquer forma de vida, esta premissa permitiria a autodestruição sem gerar uma contradição.
O grande problema de se modificar a premissa inicial é que, enquanto ela resultará em um sistema consistente, ao mesmo tempo falseará grande parte da experiência humana, uma vez que a vida em cidades é mais danosa para a vida em geral do que é benéfica para a humanidade. A existência das cidades implica na destruição do habitat de diversas espécies, além de prejudicar o fluxo migratório e resultar na inevitável morte de milhares de animais (entre pássaros que se chocam com janelas de vidros ou veículos em movimento até ratos, baratas, cães, gatos e outras espécies tidas como "pragas").
Não há dúvidas de que esta hipótese parecerá tentadora para alguns leitores, de um retorno da espécie humana para a vida em aldeias mais próximas da natureza de forma a reduzir os danos sobre o meio. Entretanto, esta não constitui uma alternativa viável, abdicar da civilização é uma hipótese tão utópica quanto uma sociedade justa e sem crimes, não podemos partir de um ideal inatingível para chegar às nossas conclusões ou não estaremos produzindo doutrina útil ao mundo real.
Deve-se, portanto, conciliar a vida em sociedade com uma lógica que seja consistente e permita que tanto os direitos humanos, quanto eventuais direitos dos animais existam em harmonia. Para que isso ocorra não é possível partir de uma premissa igualitária, sob pena de se esbarrar nas inconsistências e problemas aqui demonstrados. Da mesma forma, não é possível idealizar o fim da civilização, sob pena de se criar uma doutrina vazia.
O especismo como critério de demarcação resolve os problemas de inconsistência e permite que seja mantida a civilização moderna sem criar dilemas éticos como os apontados por Singer, que prossegue:

Ao avaliarmos a ética da utilização da carne de animais na alimentação humana nas sociedades industrializadas, estamos a considerar uma situação na qual um interesse humano relativamente menor tem de ser contrabalançado pelas vidas e pelo bem-estar dos animais afectados. O princípio da igualdade na consideração de interesses não permite que interesses maiores sejam sacrificados a interesses menores.

[...]

Estes argumentos não nos forçam a adoptar na íntegra uma dieta vegetariana, uma vez que certos animais, como as cabras e as ovelhas e, em certos países, as vacas, ainda pastam livremente no campo. Esta situação pode mudar. O sistema americano de engordar o gado bovino em unidades superpovoadas está a espalhar-se a outros países. Entretanto, a vida dos animais do campo é decerto melhor que a dos animais criados em unidades industriais. Continua, porém, a ser duvidoso que utilizá-los para a alimentação seja compatível com a igualdade na consideração de interesses. Um dos problemas reside, como é evidente, no facto de a sua utilização na alimentação obrigar a matá-los (SINGER, 2002, p. 47)

Embora Singer traga que o argumento não força a adotar uma dieta vegetariana, a redução da produção de leite ou ovos resultante do abandono de métodos de produção industrial seria insuficiente para garantir a demanda da sociedade moderna, tornando estes produtos artigos de luxo acessíveis apenas a uma pequena parcela da população. Para a grande maioria da população a alternativa seria a produção de seus próprios produtos (possuindo galinheiros e pastos para a produção de leite) ou a adoção de uma dieta vegetariana (o que seria a única possibilidade na esmagadora maioria dos casos).
A construção lógica de Singer é, novamente, perfeitamente consistente, o problema é estar baseada em premissas defeituosas (a igualdade de todos os seres) e resultar em conclusões completamente alheias ao mundo moderno. Qualquer filósofo pode, com uma simples inferência lógica, concluir que nenhum ser humano deve matar:
Morrer (M) é ruim (R), matar (K) outro ser humano (H) indica que outro ser humano poderia matar você (a), se alguém matar você, você morre, logo matar é ruim para você.

xMx xRx
(Ka xHx (xKx Ha))
xKx Ha Ma)
(Ka Ra)

Porém esta lógica não é aplicável ao mundo real, sabemos que muitas pessoas matam por diversos motivos (muitas vezes injustos) e que não podemos moldar seu comportamento com um simples conjunto de silogismos. Não bastaria escrever estes silogismos em pedra e se presumir que a partir dai ninguém mais mataria (Moisés tentou), deve-se criar uma lógica aplicável ao mundo e que considere a complexidade de interesses e aspirações da humanidade.
Portanto, concluir que todos devem virar vegetarianos, embora consistente com a lógica de Singer, é tão vazio quanto concluir que ninguém mais deve matar baseado no fato de que matar alguém é ruim. O grande desafio é conciliar o interesse da humanidade no consumo de carne com a proteção e a garantia de um tratamento razoável aos animais sem que isso resulte na destruição da civilização como a conhecemos.
A utilização de animais em pesquisas científicas
Prosseguindo com a análise da lógica se Singer entramos no tema controverso dos animais em pesquisas científicas. Aqui não será abordada a utilização de animais para experimentos bélicos, cosméticos ou que não tragam um beneficio significativo para a saúde humana ou outros casos limite, mas apenas a utilização em experimentos que venham a resultar em um incremento na saúde da humanidade ou de outros animais (como pesquisas de novos medicamentos).
Singer traz em seu discurso:

Trata-se de uma questão puramente hipotética, dado que as experiências não tiveram resultados assim tão espectaculares; mas, se a sua natureza hipotética for clara, penso que a resposta deveria ser afirmativa; por outras palavras, se tivéssemos de fazer experiências com um ou mesmo com uma dúzia de animais para salvar milhares de pessoas, penso que fazê-lo seria um bem e que estaria de acordo com a igualdade na consideração de interesses. Em todo o caso, esta é a resposta que um utilitarista tem de dar. Aqueles que acreditam em direitos absolutos podiam sustentar que é sempre um mal sacrificar: um ser, quer humano quer animal, em benefício de outro. Nesse caso, a experiência não se deveria efectuar, quaisquer que fossem as suas consequências.
À pergunta hipotética acerca de salvar milhares de pessoas por intermédio de uma única experiência num animal, os adversários do especismo poderiam responder com uma pergunta hipotética de sua lavra: seriam os cientistas capazes de realizar as suas experiências em seres humanos órfãos com profundas e irreversíveis lesões cerebrais se essa fosse a única forma de salvar milhares de pessoas? (Escolhi "órfãos" para evitar as complicações dos sentimentos dos familiares humanos.) Se os cientistas não forem capazes de utilizar órfãos humanos com lesões cerebrais profundas e irreversíveis, a sua prontidão em utilizar animais não humanos é uma discriminação unicamente com base na espécie, uma vez que os símios, macacos, cães, gatos e até mesmo os ratos são mais inteligentes, têm consciência do que lhes está a acontecer, são mais sensíveis à dor, etc., do que muitos seres humanos com lesões cerebrais profundas que sobrevivem a custo nas enfermarias de hospitais e de outras instituições. Não parecem existir características moralmente relevantes que esses seres humanos possuam e os animais não. Logo, os cientistas revelam-se tendenciosos em favor da sua própria espécie sempre que efectuam as suas experiências em animais não humanos com objectivos que eles próprios pensam que não justificariam o uso de seres humanos com um grau igual ou inferior de senciência, consciência, sensibilidade, etc. Se esse preconceito fosse eliminado, o número de experiências com animais reduzir-se-ia consideravelmente. (SINGER, 2002, p. 50)

Portanto, na lógica igualitária de Singer a distinção entre os animais para fins de experimentos científicos (em função da sua capacidade de sentir dor) se da devido à sua capacidade intelectual, desta forma, conforme já abordado, um bebê humano ou um humano com deficiências mentais poderiam se assemelhar a um animal. Sem um critério de demarcação não há, portanto, diferença entre a realização de experimentos em humanos que se enquadrem nessas categorias e animais com o mesmo nível intelectual.
Novamente, a lógica é consistente em uma perspectiva igualitária, o que reforça a necessidade de se estabelecer um critério de demarcação a fim de evitar conflitos éticos.
Outra passagem a ser destacada que pode resultar em problemas de consistência maiores ainda refere-se à dor em plantas:

É significativo que nenhuns dos fundamentos em que nos baseamos para acreditar que os animais sentem dor se apliquem às plantas. Não podemos observar qualquer comportamento que sugira dor - as afirmações sensacionalistas em contrário, não foram comprovadas - e é certo que as plantas não possuem um sistema nervoso organizado como nós. (SINGER, 2002, p. 52)

Esta passagem incluída por Singer visa garantir a possibilidade da existência humana. O critério igualitarista de Singer pressupõe que devemos evitar a dor, uma vez que plantas não sentem dor, estamos autorizados a consumi-las (resta a dúvida sobre consumir seres com insensibilidade congênita à dor).
Nesse ponto cumpre ressaltar trechos de uma matéria do jornal The New York Times:

Tentações e provações estavam por toda a parte. O mais surpreendente acabou por ser a percepção de que eu não poderia realmente explicar a mim mesmo ou a qualquer outra pessoa por que matar um animal era pior do que matar as muitas plantas que eu estava comendo.
Certamente, eu pensei, a ciência pode defender o óbvio, que a carnificina dos matadouro é errado de uma forma que a colheita de um campo de alfaces ou, digamos, cortar a grama não é. Mas em vez disso, começou a parecer que formular uma lógica verdadeiramente racional para não comer animais, pelo menos, ao consumir todos os tipos de outros organismos, foi difícil, talvez até impossível.
[...]
Ao contrário do mugido de uma vaca, as reações de uma planta a ataques são muito mais difíceis para nós de detectarmos. Mas, assim como uma galinha correndo sem a cabeça, o corpo de uma planta de milho arrancado do solo ou cortado em pedaços luta para salvar a si mesmo, com o mesmo vigor e tão inutilmente para os ouvidos e olhos humanos.
Quando uma planta é ferida, o seu corpo entra imediatamente em modo de proteção. Ela libera um buquê de produtos químicos voláteis, que em alguns casos têm demonstrado induzir as plantas vizinhas a preventivamente intensificar suas próprias defesas químicas e, em outros casos, visando atrair predadores dos animais que podem estar causando o dano às plantas. Dentro da planta, sistemas de reparo são ativados e as defesas são montadas, os detalhes moleculares ainda estão sendo estudados pelos cientistas, mas envolvem moléculas de sinalização que circulam através do corpo para reunir as tropas celulares, até mesmo o alistamento do próprio genoma, que passa a produzir as proteínas relacionadas com a defesa.
Plantas não apenas reagem aos ataques, no entanto. Elas estão sempre a postos. Vislumbre os espinhos intermináveis, pêlos urticantes e venenos mortais com os quais elas estão armadas. Se todo esse esforço não se parece com um organismo tentando sobreviver, então eu não sei o que pareceria. As plantas não são as despensas inertes de sustento que gostaríamos que fossem.
[...]
Talvez o verdadeiro problema com o argumento de que está tudo bem matar as plantas, porque eles não sentem da mesma forma que nós, porém, é que é o mesmo argumento usado para justificar o que nós agora vemos como erros imperdoáveis .
A escravidão e o genocídio foram justificados pela afirmação de que alguns tipos de pessoas não sentem dor, não sente amor - não são verdadeiramente humana - da mesma forma como os outros. O mesmo pensamento levou a outras práticas menos drásticas, mas ainda deploráveis. Por exemplo, houve uma época em que os médigos negavam anestésico a bebes durante a cirurgia, pois acreditava-se que esses não-muito-humanos-ainda não sentiam dor (sorrisos eram gás, lembre-se). (tradução livre) (YOON, 2011)

No mesmo sentido existem estudos demonstrando que as plantas podem ouvir quando estão sendo devoradas e reagir ao ato (FEINBERG, 2014). Embora a percepção das plantas sobre o mundo provavelmente seja muito diversa da humana ou daquela dos animais intelectualmente complexos, em especial em relação à sua percepção de dor, a perspectiva de que são seres vivos que lutam para se manter vivos e cooperam para assegurar a existência de sua espécie traz perspectivas novas sobre o funcionamento da natureza.
Embora plantas não possuam um "sistema nervoso" no modelo tradicional, estas utilizam sinais eletroquímicos para transmitir informações de uma forma semelhante ao sistema nervoso nos animais, demonstrando, inclusive, que plantas possuem uma memória de curta duração (BOYLE, 2010) (ZHANG, 2013).
Estas considerações não são suficientes para falsear o argumento de Singer, baseado unicamente na dor, mas expandem as premissas a serem consideradas quando se opta por um tipo especifico de alimentação. Pode-se argumentar que o prejuízo de uma planta será menor que o de um animal, mas sempre se estará infringindo um grau de prejuízo (ou sofrimento).
Seguindo o igualitarismo de Singer seria difícil justificar o consumo de carne de animais (hipóteses como estado de necessidade ainda o justificariam), mas experimentos científicos com animais seria algo provavelmente incompatível com sua ética. Sem o especismo se estaria em uma situação em que, de fato, não ha diferença lógica entre experimentar em animais ou bebês humanos ou pessoas com deficiências mentais, uma vez que o único critério restante (por mais questionável que possa ser), seria o nível de percepção do ser.
Se adicionarmos à equação princípios como o da vedação de retrocesso, que proíbe que sejam suprimidos direitos sociais já materializados, torna-se impossível a aplicação de testes em seres humanos (atualmente as fases de testes de medicamentos em seres humanos devem, necessariamente, estar precedidas de testes bem sucedidos em animais).
Desta forma, como não seriam possíveis testes em seres humanos, nada justificaria realizar os mesmos testes em animais (sob pena de se estar sendo especista), gerando o abandono de pesquisas cientificas que requeiram experimentação, ou seja, praticamente todas as pesquisas na área de medicamentos e tratamentos cirúrgicos (devemos considerar que introduzir um produto no mercado sem os devidos testes também constituiria uma forma de teste).
Embora existam outras etapas envolvidas no desenvolvimento de medicamentos, como a projeção de resultados em modelos computacional e seu teste em colônias de células, as fases finais de desenvolvimento sempre passam por testes em animais e, posteriormente, humanos. Sem estas ultimas etapas é impossível compreender os efeitos colaterais do medicamento em seres complexos.
Considerações finais
Mensurar a extensão dos direitos atuais constitui o primeiro passo para se desenvolver um ordenamento consistente, a construção legislativa em geral considera critérios especistas como o limite da aplicação de uma lei, remove-lo como critério de demarcação prejudica a consistência total do sistema, gerando dilemas éticos e conflitos que podem acabar aniquilando qualquer ordenamento, como pode ser visto ao se esmiuçar uma hipotética aplicabilidade prática do principio da igualdade para além de seres humanos.
Critérios especistas, entretanto, não impedem a existência de direitos dos animais, apenas determinam que tais direitos devem ser expressamente direcionados aos animais desde a sua criação.
Conforme observamos, uma lógica igualitária possui problemas sérios de consistência que necessitariam de diversas adaptações ad hoc para produzir um sistema funcional sob pena de destruir a civilização humana ou de se viver em constante contradição. Desta forma, o abandono do especismo constituiria um daqueles casos em que o remédio é pior que a doença, afetando toda a estrutura ética humana de uma forma que seria vista como danosa para a grande maioria dos seres humanos.
Há sim uma necessidade de se modificar a interação entre seres humanos e animais, em especial no que trata aos meios de produção industriais e insustentáveis característicos do período atual. Porém, tais modificações podem ser realizadas sem o abandono de uma lógica especista, garantindo a proteção dos seres humanos e dos animais, em patamares diferentes, mas considerando suas singularidades e necessidades específicas.
Singer constrói seu discurso acerca do direito à vida sobre a premissa de que o especismo constitui um argumento "tão ruim quanto o racismo", entretanto, conforme observamos, todos os critérios de demarcação são estabelecidos de forma arbitraria, bastando apenas escolher aqueles mais adequados à ética e sujeitos a gerar o menor grau de inconsistência no sistema e, nesse aspecto, não existe ainda algum critério melhor do que aquele da espécie.
Referências
BERMOND, B. The myth of animal suffering. In: DOL, M., et al. Animal Consciousness and Animal Ethics: Perspectives from the Netherlands. Assen: Van Gorcum & Comp., 1997.
BOYLE, R. Can Plants Think? Popular Science, 2010. Disponivel em: . Acesso em: 16 jul. 2014.
FEINBERG, A. Nice Try, Vegans: Plants Can Actually Hear Themselves Being Eaten. Gizmodo, 2014. Disponivel em: . Acesso em: 16 jul. 2014.
GENSLER, H. J. Introduction to Logic. 2. ed. New York: Routledge, 2010.
IASP. International Association for the Study of Pain. IASP Guidelines for the Use of Animals in Research, 2014. Disponivel em: . Acesso em: 12 jul. 2014.
IASP. International Association for the Study of Pain. Pain and Pain Management in Non-Human Species, 2014. Disponivel em: . Acesso em: 12 jul. 2014.
SINGER, P. Ética Prática. Lisboa: Gradiva, 2002.
YOON, C. K. No Face, but Plants Like Life Too. The New York Times, 2011. Disponivel em: . Acesso em: 16 jul. 2014.
ZHANG, S. Plant Cells "Talk" With Electric Signals, Too. Gizmodo, 2013. Disponivel em: . Acesso em: 16 jul. 2014.



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