ESPERANÇA POR VIR: APROXIMAÇÕES COM ERNST BLOCH

May 26, 2017 | Autor: Marco Scapini | Categoria: Ernst Bloch, Esperança, Por vir
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ESPERANÇA POR VIR: APROXIMAÇÕES COM ERNST BLOCH Marco Antonio de Abreu Scapini1 “Os desastres que marcam o fim do milênio são também arquivos do mal: dissimulados ou destruídos, interditados, desviados, “recalcados”. Jacques Derrida2

O presente texto pretende aproximar a questão da possibilidade da desconstrução da violência com o pensamento de Ernst Bloch, sobretudo no que diz respeito ao seu componente mais fundamental, ou seja, a esperança. Desde o questionamento derridiano acerca da possibilidade de se aprender a viver, bem como da sua noção de responsabilidade incondicional pelo outro e, ainda, da dimensão espectral da realidade propriamente dita, há a aproximação com a concepção do ainda-não-consciente de Bloch como possibilidade de abertura ao por vir, o que significa também a possibilidade de uma resposta ética ao outro.

(***)

A violência histórica se desdobra em tantas formas que o seu âmago pretende-se indecifrável como uma espécie de cripta, cuja expressão as vozes emudecidas são testemunhas. A responsabilidade por toda e qualquer injustiça perpetrada por esta violência é a herança a qual não podemos recusar. Para Jacques Derrida: “responsabilidade infinita, desde entonces”3. Trata-se, portanto, de uma responsabilidade incondicional pelo outro, o que interdita qualquer repouso de boa consciência e exige o respeito por cada singularidade. Nas palavras de Derrida “la vida de un hombre, tan única como su muerte, será siempre más que un paradigma; otra cosa que un símbolo. Y es esto precisamente lo que un nombre propio

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Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais. Doutorando em Filosofia pela PUCRS. Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS. Bolsista CNPq. 2 DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. 3 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. El estado de la deuda, el trabajo del duelo y la nueva internacional. Trad. José Miguel Alarcón e Cristina de Peretti. Madrid: Editora Nacional, 2002, p. 7.

deveria siempre nombrar”4. O nome próprio, portanto, supõe a singularidade de cada um, a cada vez. É preciso, então, que sejam dadas respostas às lógicas cambiantes desta violência que se impõe historicamente através de um princípio de calculabilidade, pretendendo reduzir toda e qualquer diferença a uma unidade de sentido previamente imposta nos limites daquilo que Theodor Adorno, bem como a tradição da Escola de Frankfurt em geral denominaram como Razão instrumental5, que levado ao seu limite significa a paralisia do tempo e a coisificação consciência como já referiu Theodor Adorno6. Assim, não é qualquer resposta que necessitamos. É preciso, fundamentalmente, uma resposta ética, sem a qual nenhuma justiça será possível. Em outras palavras, sem o conteúdo fundamentalmente ético, a possibilidade de desconstrução das lógicas de violências que, em certo sentido, dominam a realidade resta obliterada. O apelo ao conteúdo ético propriamente dito que possibilitará, talvez, a desconstrução é, em verdade, um apelo à possibilidade de abertura a outros caminhos, cuja urgência vivenciamos a cada dia. O que nos impõe a tarefa de compreensão do sentido propriamente humano que, conforme diz Ricardo Timm de Souza “corresponde à compreensão das possibilidades da ruptura da Totalidade da violência biopolítica através de sua crítica radical”7. Deste modo, a possibilidade de ruptura com a totalidade da violência exige radicalidade crítica, ou seja, sem concessões ou acordos conciliatórios para se adequar a realidade vigente, sob pena de legitimar ou reelaborar o estado de violência contemporâneo. A radicalidade supõe algo mais do que qualquer razoabilidade possível. É preciso, pois, ir além do possível. Para Max Horkheimer “na maioria dos casos, ser razoável significa não ser obstinado, o que por sua vez indica conformidade com a realidade tal como ela é. O princípio do ajustamento é aceito sem mais8”. Nesse sentido, é preciso uma inadequação em relação à realidade vigente, o que significa a inconformidade com qualquer expressão de violência. Não faltam discursos bem intencionados que propõem, justamente, ofertas conciliatórias para tentar reduzir os danos e os resultados da violência biopolítica. Mas, se levados ao limite, 4

Idem. Op. cit. p. 7. Max Horkeimer afirma que “é como se o próprio pensamento tivesse sido reduzido ao nível dos processos industriais, sujeito a uma programação estrita – em suma, transformado em parte e parcela de produção. (...) Se a própria razão é instrumentalizada, ela assume certa materialidade e cegueira, torna-se um fetiche, uma entidade mágica que é aceita em vez de ser exérenciada intelectualmente.”. Cf. HORKEIMER, Max. Eclipse da Razão. Trad. Carlos Henrique Pissardo. São Paulo: Unesp, 2015, p. 29-31. 6 Cf. ADORNO, Theodor W. Educação após Auschwitz. In: Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Mar. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 7 SOUZA, Ricardo Timm de. Levinas e a ancestralidade do mal: por uma crítica biopolítica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 78. 8 Op. Cit. p. 18. 5

acabam por fortalecer as estruturas de violência já estabelecidas, fazendo o próprio jogo da calculabilidade da violência totalizante, o que acaba por negar, justamente, as suas boas intenções. Não deixemos de lado também as propostas dissimuladas cuja profundidade não ultrapassa o seu próprio verniz, mas que ecoam pelas massas fortalecendo a beligerância dos tempos presentes. Nesse sentido, ressalta-se que, as respostas que necessitamos, não dizem respeito a qualquer prescrição legal ou padrão normativo, o que tornaria toda resposta uma espécie de obediência à ordem imposta. É necessário romper inclusive com a normatividade. Para Ricardo Timm de Souza “trata-se da irrupção do excepcional, da exceção que trinca as regras da normatividade, da normalização intrinsecamente violenta que reproduz como reflexo a violência de origem”9. A resposta, configurada aqui como responsabilidade ética pelo outro, não pode, em nenhuma hipótese, fazer qualquer espécie de concessão que tenha como resultado a afirmação, mesmo que por reflexo, da violência de origem. Assim, percebe-se porque a resposta ética não pode estar previamente normatizada, pois ela é a própria possibilidade de irrupção da norma. Se a resposta fosse apenas o cumprimento ou a aplicação de uma norma como dever, haveria apenas a manutenção do atual estado contemporâneo esvaziado de sentido propriamente humano em que tudo é equalizado formalmente, tornando a indiferença pelo outro a regra absoluta do viver. Segundo Bensussan: A responsabilidade ética descreve, ao contrário, um tipo de situação que os limites da regra e o quadro da prescrição devem ser exercidos, mesmo que o sujeito respondente não o queira: é-lhe necessário, no instante, inventar a regra de seus atos, ou, mais exatamente, agir no ‘processo’, precedendo a toda regra, pela impossibilidade de toda substituição e de toda delegação, pela assignação que me atém no instante ético da resposta, por isso, somente então, meu si é único” 10.

A responsabilidade ética, portanto, excede qualquer prescrição ou determinação prévia, colocando, no limite, a própria possibilidade de regulação. Assim, no instante em que é preciso decidir, a regra, em certo sentido, precisa ser inventada, pois a responsabilidade ética se dá sempre a cada vez, inaugurando-se passo a passo diante do encontro com outrem. Se assim não fosse, a ética em sua dimensão fundamental estaria neutralizada por uma espécie de juridificação, o que implicaria em ter que se submeter a uma regra para responder ao outro. No mesmo sentido, uma resposta previamente calculada por um código seria

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SOUZA, Ricardo Timm de. Op. Cit. PP. 78-79. BENSUSSAN, Gérard. Ética e experiência: a política em Levinas. Trad. Ozanan Vicente Carrara. Passo Fundo: IFIBE, 2009, pp. 28-29. 10

incapaz de fazer justiça à singularidade deste outro chegante, pois, além de abstrata e universal, absolutamente fora do tempo do encontro. A estrutura já regulada violenta a exterioridade do outro, na medida em que se constrói independentemente deste, ou seja, tornase indiferente à diferença fundamental da alteridade que resiste a qualquer tentativa de redução ou ordenação prévia. Não por outra razão, o encontro se configura pela expressão do trauma deixado. A possibilidade da ética se dá, justamente, neste encontro, a cada vez, inaugural. Assim, conforme Bensussan:

De outra forma, a ética seria simplesmente revertida e convertida de maneira selvagem em desastre para a subjetividade – desastre dos universalismos (eu, como todos os outros!), desastre dos diferencialismos (o outro, sou eu!). Essa liberdade heterônoma, em que tudo se jogará irremediavelmente no instante de uma resposta que virá ou não, permite também melhor apreender porque o acolhimento de outrem pode constituir e constitui frequentemente um traumatismo. O traumatismo de uma liberdade inalienável, de uma liberdade tão radical e tão tênue, que eu não sou, de maneira alguma, livre de não ser livre dessa liberdade, destitui definitivamente a “primariedade” da liberdade no sentido da autonomia, sua função fundante da arché do sujeito11.

O trauma do encontro, portanto, me inquieta a cada vez, antecedendo o ter que responder ao outro. O outro, nesse sentido, me coloca em questão. A irrupção que significa a sua chegada desajusta a ordem anteriormente estabelecida, fazendo da resposta algo que se apresenta tarde demais. Além disso, ao me colocar em questão, me destitui da primariedade da liberdade enquanto autonomia. Nesse sentido, segundo Ricardo Timm de Souza afirma que “’liberdade’ não pode ser um conceito meramente formal, ou substancialmente pensado enquanto atributo de uma mônada, sob o risco de se confundir às insolúveis aporias que a história relembra continuamente”12. A liberdade, portanto, em si mesma formulada como estrutura prévia estará sempre carente de sentido, esvaziada pela ausência de concretude. Ou seja, pela ausência, justamente, deste outro que me chama e me coloca em questão. O trauma do encontro, além de fazer pulsar a dimensão propriamente humana do viver no instante em que é preciso decidir assombrado por uma loucura por justiça, também possibilitará colocar em questão o próprio sentido de pensar. Para Ricardo Timm de Souza “há que pensar o momento no qual a respiração é suspensa”13. O encontro, em sua inadequação própria enquanto trauma que faz parar a respiração, nos traz, desde o chamamento do outro, a esperança de realização da justiça.

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BENSUSSAN, Gérard. Op. Cit. pp. 29-30. SOUZA, Ricardo Timm. Justiça em seus termos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 57. 13 Idem. Op. cit. p. 92. 12

Esta inadequação é o que nos impõe, a cada vez, a necessidade de ter que aprender a viver apesar de suas aporias. Nesse sentido, aproximamos os questionamentos elaborados por Derrida: “aprender a vivir. Extraña máxima. ¿Quien aprendería? ¿De quién? Aprender [y enseñar] a vivir, pero, ¿a quién? ¿ Llegará a saberse? ¿ Se sabrá jamás vivir, y, en primer lugar, se sabrá ló que quiere decir aprender a vivir? ¿ Y por qué por fin?14. São estas questões fundamentais e difíceis de tradução, mesmo se enfrentadas a partir de certa contextualização, o que torna a resposta sobre aprender a viver falível e insuficiente em relação ao viver propriamente dito. Desde esta locução (aprender a viver), para Derrida “por boca de un maestro, este fragmento de máxima nos diría siempre algo acerca de la violencia. Vibra como una flecha en una direción yrreversible y asimétrica”15. Nesse sentido, esta direção irreversível e assimétrica varia entre a experiência de viver à direção de educar e, ainda, como endereçamento. Em sendo a experiência mesma, como ensinar a viver? É possível aprender por si mesmo a viver? Para Derrida “aprender-lo por uno mismo, solo, enseñarse a sí mismo a vivir (quisiera aprender a vivir por fin), ¿no es, para quien vive, lo imposible?, ¿no es acaso lo que la lógica misma prohíbe? A vivir, por definición, no se aprende”16. Se não se aprende a viver, por definição, é porque a cada vez é preciso responder à singularidade do instante, motivo pelo qual Derrida afirma que: Nada es, sin embargo, más necesario que esta sabiduría. Es la ética misma: aprender a vivir – solo, por uno mismo –. La vida no sabe vivir de otra manera. ¿Y acaso se hace jamás otra cosa que no sea aprender a vivir, solo, por uno mismo? ¡Extraño empeño para un ser vivo y supuestamente vivo, desde el momento en que este Quisiera aprender a vivir es la vez imposible y necesario! Sólo tiene sentido y puede resultar justo en una explicación con la muerte. Con mi muerte tanto como con la del otro. Entre vida y muerte, pues; es ahí donde está el lugar una sentenciosa inyunción que aparenta siempre hablar como habla el justo 17.

Saber viver no sentido que estamos introduzindo com Derrida significa o mais necessário apesar de sua impossibilidade, uma expressão da ética mesma. É preciso, pois, aprender o impossível. O sentido da questão de aprender a viver somente é possível se relacionada à morte, tanto a minha como a do outro. É neste lugar entre a vida e a morte que é possível aprender a viver. Nem na vida nem na morte. Não é possível aprender a viver somente na vida ou somente na morte. Há aí, segundo Derrida, “la intervención de algun

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DERRIDA, Jacques. Op. cit. p. 9. Idem. Op. cit. p. 9. 16 Idem. Op. cit. p. 9. 17 Idem. Op. cit. p. 10. 15

fantasma”18. Esta dimensão espectral desconstrói o sentido de uma presença plena, pois, por definição, não é nem essência nem existência, nem substância. O espectro jamais se apresenta como tal. Nesse sentido, saber viver significa saber viver com os fantasmas que não estão aí, ou seja, a viver com a inadequação de um tempo sem presente reitor. Para Derrida “no hay ser-con el otro, no hay socius sin este con-ahí que hace al ser-con en general más enigmático que nunca19. Além disso, é desde este com os fantasmas que poderemos fazer emergir uma política fundamentalmente ética da memória, considerando ainda a política de herança e de gerações. Desde esta intervenção fantasmagórica, abre-se a possibilidade para se falar em nome de uma justiça por vir, que ainda não está aí, que não está presente e que não se deixa reduzir a qualquer dimensão própria do direito. Trata-se de uma justiça propriamente fantasmagórica que não será jamais presentificada, o que impossibilita uma futura regulação como lei. Segundo Derrida: Hay que hablar del fantasma, incluso al fantasma y con él, desde el momento en que ninguna ética, ninguna política, revolucionaria o no, parece posible, ni pensable, ni justa, si no reconoce como su principio el respeto por esos otros que no son ya o por esos otros que no están todavía ahí, presentemente vivo, tanto si han muerto ya, como si todavía no han nacido. Ninguna justicia – no digamos ya ninguna ley, y esta vez tampoco hablamos aquí del derecho – parece posible o pensable sin un principio de responsabilidad, más allá de todo presente vivo, en aquello que desquicia el presente vivo, ante los fantasmas de los que aún no han nacido o de los que han muerto ya, víctimas o no de guerras, de violencias políticas o de otras violencias, de exterminaciones nacionalistas, racistas, colonialistas , sexistas o de otro tipo; de las opresiones del imperialismo capitalista o de cualquier forma totalitarismo20.

A relação com os fantasmas e a necessidade de se falar dos e com os fantasmas, neste momento em que nenhum outro caminho parece possível, onde a hegemonia totalizante de uma racionalidade instrumental parece ter tudo nos seus devidos lugares, emergem, justamente, dos escombros dos tempos presentes e do sangue destes outros, cujo sofrimento atravessa as maciças entranhas coisificadas deste tempo. Nas palavras de Reyes Mate “os que nos precederam deixaram seu rastro carregando o ar que respiramos com sua própria respiração”21. Não há justiça possível nem pensável sem se ter como princípio de responsabilidade estes outros que ainda esperam por justiça. Trata-se de um princípio além de todo o presente e que desestabiliza o presente como tal. A possibilidade da justiça se dá, justamente, nesta 18

DERRIDA, Jacques. Op. cit. p. 10. Idem. Op. cit. p. 10. 20 Idem. Op. cit. p. 11-12. 21 MATE, Reyes. Meia-noite na história: comentários às teses de Walter Benjamin “Sobre o conceito de história”. Trad. Nélio Schneider. São Leopoldo: ed. UNISINOS, 2011, P. 89. 19

relação fantasmagórica com os que já não estão mais aí presentemente vivos e com os que ainda não nasceram. Este princípio de responsabilidade que significa ter que responder eticamente a estes outros abre a possibilidade do por vir, pois é essa responsabilidade com a justiça que exige a singularidade da resposta, a cada vez. Os fantasmas desajustam secretamente o presente, a inadequação que daí provém se dá pelo excesso fantasmagórico em relação a toda e qualquer presença. É deles, portanto, que vêm à esperança espectral de outro tempo. O que mais precisamos é esperança. Reyes Mate, ao comentar as extremas dificuldades de Walter Benjamin em sua trajetória, afirma que “se o que seu tempo mais necessita é esperança, porque é meia-noite no século, será preciso buscá-la nos desesperados, sobretudo nos que morreram desesperados”22.

A busca de esperança que necessitamos,

portanto, encontra-se nos rastros de todas as mortes desesperadas que assombram o presente. As vítimas, ainda que desesperadas no instante de suas mortes, ainda esperam por justiça. Daí advém, segundo Reyes Mate “uma reserva potencial inesgotável de esperança, porque ela espera a sua realização”23. Nesse sentido, é preciso um pensamento que faça da inadequação espectral a potência de sua crítica na esperança de responder à altura para todos estes que ainda aguardam a realização das suas esperanças. Tal pensamento se guia em busca de um outro amanhã para além de toda a vida presente, pois, conforme Reyes Mate “se algo justifica a nobre atividade do pensamento, é pensar de novo, isto é, desprender-se do já sabido”24. Assim, desde o percurso até aqui apresentado, entendemos que o pensamento de Ernst Bloch pode apresentar novos caminhos por vir, justamente, porque segundo o autor “pensar significa transpor” 25. Em outras palavras, significa transpor o já estabelecido ou o já positivado. Transpor significa ir em busca com esperança do que ainda não se realizou. A esperança é a força movente de seu pensamento. Para Bloch “a falta de esperança é, ela mesma, tanto em termos temporais quanto em conteúdo, o mais intolerável, o absolutamente insuportável para as necessidades humanas”26. Assim, podemos dizer que o viver propriamente dito, em sua condição digna, somente é possível através da esperança. Uma esperança em que ainda resta algo a ser, que ainda não se realizou totalmente. Significa que o tempo está aberto a tudo o que resta por vir.

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Idem. Op. cit. p. 37. Idem. Op. cit. p. 37. 24 Idem. Op. cit. p. 35. 25 BLOCH, Ernst. Princípio Esperança. Vol. I. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, p. 16. 26 Idem. Op. cit. p. 15 23

A dimensão ainda não consciente de Bloch é fundamental para a compreensão da própria ontologia do autor. Para Arno Münster “em Bloch, a ontologia surge ligada à utopia, com a pretensão de se auto-superar em sua realização, pois, sem essa pretensão, a ontologia não passaria da simples justificativa das condições existentes”27. Assim, o esforço de Bloch parece se dar na direção das possibilidades de transformação das condições existentes a partir da tomada de consciência de que a realidade ainda não foi resolvida. Segundo Suzana Albornoz “ao tomar consciência da realidade como imperfeição e possibilidade, reconhece sua realidade como relatividade do determinismo. Sua realidade surge, então, para a consciência, como algo que existe sob a forma do ainda-não”28. Esta realidade ainda não consciente é central no pensamento e na obra de Bloch em direção ao novo. Para Bloch, “o tema fundamental da filosofia, de uma filosofia que é enquanto vem a ser, é a pátria que ainda não veio a ser, ainda não alcançada, assim como ela está se formando, construindo-se na luta dialético-materialista do novo com o velho”29. A filosofia, então, segundo a proposição de Bloch, possui a sua dimensão fundamental desde a busca por aquilo que ainda não foi alcançado. Trata-se de um impulso como se o ainda-não fosse o alimento da atividade de filosofar. O ainda-não-consciente de Bloch não se subordina a qualquer elemento da consciência atual ou manifesta. O autor alemão afirma que:

O ainda não consciente é assim unicamente o pré-consciente do vindouro, o local psíquico de nascimento do novo. E se mantém pré-consciente sobretudo porque nele se encontra um conteúdo da consciência que ainda não se manifestou nela de forma clara, que ainda está alvorecendo a partir do futuro30.

A relação do ainda-não-consciente, portanto, é com o por vir. Trata-se de uma relação com o vindouro, ou seja, com aquilo que ainda não chegou. Significa que há uma relação para a frente, que pode vir também de um passado. É possível fazer despertar do passado elementos que ainda não ocorreram. Para Bloch “um futuro ainda esta vivo no passado, porque também muitos conteúdos noturnos não foram quitados nem estão prontos e por essa razão exigem o sonho diurno, a intenção para frente”

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. Há no passado ainda algo a nos

MÜNSTER, Arno. Utopia, messianismo e apocalipse nas primeiras obras de Ernst Bloch. Trad. Fávio Beno Siebeneichler. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997, p. 18. 28 ALBORNOZ, Suzana. Ética e utopia: ensaios sobre Ernst Bloch. Porto Alegre: Movimento, 1985, p. 28 29 BLOCH, Ernst. Op. cit. p. 20. 30 BLOCH, Ernst. Op. cit. p. 117. 31 BLOCH, Ernst. Op. cit. p. 103.

dizer, não como algo recalcado numa espécie de inconsciente, mas sim como algo que não veio a ser e que ainda não pode se manifestar suficientemente. Além disso, este elemento ainda não consciente possui um componente elementar que o impulsiona para a frente que é, justamente, a esperança. O que faz com que, para Bloch, a realidade esteja sempre em construção, sobretudo porque, conforme afirma Suzana Albornoz “no real há um não”32 . Este “não” é a resistência da realidade em relação a qualquer pretensão de completude, significa a possibilidade da abertura e da vinda do novo. Em outras palavras, trata-se daquele elemento de inadequação em relação ao presente. A cada instante, portanto, há o germe do que ainda não se realizou. Esta é a esperança que se torna o conteúdoalvo da consciência antecipadora de Bloch. Para o autor alemão “o mundo tem lugar também para essa sensação de falta: na linha de frente de seu processo, o próprio conteúdo-alvo está em fermentação e é possibilidade real33. É nesse sentido que a utopia carrega a possibilidade de sua realização para Bloch, justamente tendo como alvo o que ainda não veio a ser. Para Suzana Albornoz:

Ante-o-ainda-não-ser de Ernst Bloch caem todos os realismos, mas o que sobra não é um idealismo, e sim um hiperrealismo, que vê além da aparência mais imediata da realidade atual e assim não deixa de ver os germes do novo desta mesma realidade: sua possibilidade real. É através deste hiper-realismo que se percebe o caráter auroral do mundo, o seu caráter de aurora, de amanhecer, de dia incompleto, de abertura para mais ser e para o novo. É quando percebemos que recém-chegamos no começo34.

Este hiperrealismo de Bloch é fundamental para a abertura do que está aí positivado diante de nós. Impulsionam-se os germes para um novo amanhã, possibilitando uma resposta ética aos apelos do outro que nos convoca, a cada vez, na esperança de ter realizada a justiça. Deste modo, podemos dizer que, a cada instante, há sempre um novo começo e é assim que devemos aprender a viver mesmo que diante do desastre. O pensamento de Ernst Bloch, portanto, permanece atual aos tempos presentes, justamente por sua inadequação em relação às condições existentes, o que implica na negação ética da violência.

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ALBORNOZ, Suzana. O enigma da esperança: Ernst Bloch e as margens da história do espírito. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 17. 33 BLOCH, Ernst. Op. cit. p. 193. 34 ALBORNOZ, Suzana. O enigma da esperança: Ernst Bloch e as margens da história do espírito. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 33.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor W. Educação após Auschwitz. In: Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Mar. São Paulo: Paz e Terra, 2010; ALBORNOZ, Suzana. .

Ética e utopia: ensaios sobre Ernst Bloch. Porto Alegre:

Movimento, 1985; _______; O enigma da esperança: Ernst Bloch e as margens da história do espírito. Petrópolis: Vozes, 1999; BENSUSSAN, Gérard. Ética e experiência: a política em Levinas. Trad. Ozanan Vicente Carrara. Passo Fundo: IFIBE, 2009; BLOCH, Ernst.

Princípio Esperança. Vol. I. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro:

Contraponto, 2005; DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. El estado de la deuda, el trabajo del duelo y la nueva internacional. Trad. José Miguel Alarcón e Cristina de Peretti. Madrid: Editora Nacional, 2002; _______; Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001; HORKEIMER, Max. Eclipse da Razão. Trad. Carlos Henrique Pissardo. São Paulo: Unesp, 2015; MATE, Reyes. Meia-noite na história: comentários às teses de Walter Benjamin “Sobre o conceito de história”. Trad. Nélio Schneider. São Leopoldo: ed. UNISINOS, 2011; MÜNSTER, Arno. Utopia, messianismo e apocalipse nas primeiras obras de Ernst Bloch. Trad. Fávio Beno Siebeneichler. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997; SOUZA, Ricardo Timm de. Justiça em seus termos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; _______; Levinas e a ancestralidade do mal: por uma crítica biopolítica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.

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