Espinosa e Hegel. Deus, Consciência e Liberdade

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ESPINOSA E HEGEL DEUS, CONSCIÊNCIA E LIBERDADE Rui Esteves Universidade de Lisboa Por realidade e perfeição, entendo a mesma coisa. (Espinosa)

A frase em epígrafe, arredados que estejamos das controvérsias religiosas da salvação, tranquiliza. A palavra, o pensamento, o amor podem também ser vias, reais, de salvação. O presente texto, que segue a forma de um ensaio livre, levanta apenas possibilidades. Move-se com Hegel, tendo Espinosa como fundo. Faz do movimento, nas suas dimensões escrita e pensante a inscrição no não-movimento. Almeja, pela via especulativa e no seu desenvolvimento, a que a palavra se estenda no campo aberto ao pensar, procurando na afirmação a possibilidade e não a conclusão, no questionamento o próprio questionamento e não a afirmação, na conclusão um novo começo e não um sôfrego fim. O Deus, de Hegel, actualiza-se, conhece-se nos povos, inscreve-se na História. O Deus de Hegel tem consciência de si mesmo na consciência humana, como pessoa humana universal. O recolhimento, desenvolvido no processo de auto-conhecimento do Espírito, realiza-se na sua mais desenvolta forma, conservando-se, na Cultura: nas nações como Estado (integrando os pilares institucionais naturais, morais, jurídicos e éticos) mas, essencialmente, na Arte, na Religião e na sua forma mais suprema na Filosofia. Se é certo que o Espírito, segundo Hegel, se conhece nos povos e na sua História, também o é que, segundo o pensamento hegeliano, o Espírito nem sempre se encontra realizado, activo, inscrito no Ser do Mundo. Por vezes está até mesmo separado, sem identidade actual face à realidade mundana. Na filosofia dialéctica hegeliana pode dizer-se que é também dialéctico o Espírito? Ou apenas o real e o pensar são dialécticos? A realidade é racional. A racionalidade é tida como consciência humana, como um pensamento pensante que se pensa a si mesmo e à sua envolvência por si englobada como totalidade real. E, dado que a realidade como actividade e consciência é movimento, movimento esse que é dialéctico, importa ter em conta que o movimento racional na realidade humana fundada como consciência, vive em cisão com a Natureza (a que falta a razão). A Natureza é então imediatamente dada e não sujeita a desenvolvimento autónomo por

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não haver nela Consciência. Isto é, o Espírito só é dialéctico na medida em que se conhece no desenvolvimento da consciência e actividade humanas em processo histórico, político, cultural, social e religioso dos povos que, a dado momento, encabeçam a sabedoria do Mundo. É que a Consciência, embora Universal, realiza-se plenamente, em determinados povos representantes a dado momento histórico do conhecimento e da Verdade, ainda que a suprema realização do Espírito se conserve, na sua mais ampla plenitude na Cultura e como já anteriormente foi dito: na Arte, na Religião e sumamente na Filosofia. Na relação e na mediação o Espírito resolve-se e conhece-se na proximidade de novo ao Mundo. O Deus de Hegel conhece-se como um outro de simesmo na Natureza. Esse conhecer-se como um outro de si-mesmo possibilita o conhecer-se a si mesmo na Razão. É como se, no Mundo da Razão, se conhecesse como Consciência, mas o Mundo da Razão é também o Mundo onde há Natureza. A Natureza – para Hegel e em conformidade com o seu idealismo –, por si mesma, não tem História, não tem Consciência, não tem movimento. O Deus, em Hegel, conhece-se, movente, no Mundo do movimento, através do Homem, figura humana do Espírito. Sem a contradição da não-identidade como ausência e impossibilidade de auto-conhecimento na Natureza (uma vez que a Natureza não tem razão, consciência ou movimento), seria impossível o conhecimento no mundo racional. O mundo humano divide-se assim entre uma naturalidade dada e uma racionalidade em desenvolvimento. O Espírito (por um lado como linguagem, por outro apenas como Espírito) medeia. A auto-consciência dá-se, evidentemente, pela racionalidade. O Espírito conhece-se na Razão. A Natureza não se conhece a si mesma pois não tem Consciência. O Espírito conhece-se nos homens porque os homens como actividade precisam de alcançar o auto-conhecimento e são os intervenientes da caminhada histórica no mundo e da própria história humana do Espírito. O Deus de Hegel divide-se (indiviso na sua suma perfeição) entre a Natureza e a Razão. O Deus de Hegel é, sobretudo, Consciência. A realidade, para Hegel, é racional. O real é racional e o racional é real mas o real nem sempre está de acordo com a razão e a razão nem sempre está de acordo com o real. Ou seja, a realidade efectiva é uma realidade que se efectua (em efectivação), fruto de um passado que torna vivo o presente. O presente é presente pelo passado, mas no presente prevalece mais o presente do que o passado. Procurando clarificar: o presente é passado na medida em que é o desenvolvimento de um percurso historicamente percorrido, mas o presente é mais real pela actualidade do presente do que pelo passado que o fez (e perfez). Assim, se o real é o racional, se o racional é o real, o real deve estar em conformidade com o racional para que seja a sua verdade viva. Afinal, o real na sua verdadeira realidade é racional.

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A plena realização da razão é, em conformidade com o acima dito, a identidade entre o Espírito e a realidade concreta e efectiva. Quando se fala na filosofia de Hegel como uma filosofia da identidade, por tratar-se de uma filosofia idealista, atende-se essencialmente à relação sujeito-objecto dada na consciência representativa. De qualquer forma (mesmo se entendido o problema como formal) a filosofia da identidade parece mais ser uma filosofia da identidade e da não-identidade, fomentando a filosofia hegeliana como uma filosofia inscrita no movimento histórico e real, ainda que resolvido, é certo, como Consciência, mas efectuando-se como actividade movente. O Espírito conhece-se nos povos, reconhece-se e logo perde a identidade para novamente a recuperar (e conservar). Tomando nesta medida a mediação entre Deus e Mundo temos uma filosofia da identidade e da não-identidade. Da identidade quando o Espírito se actualiza na realidade do Mundo, da não-identidade quando a realidade do Mundo não está conforme ao Espírito ou, sendo o Espírito no mundo a Razão, à Razão. Essa cisão entre identidade e não-identidade, finito e infinito, Razão e Natureza, Homem e Deus, Carne e Espírito, justifica o movimento mas também a ligação. O movimento dá-se não só por via de uma totalidade dialéctica no seu seio mas igualmente pela imobilidade impulsionadora e unificadora de uma actividade permanente. Por um lado, o Homem precisa de se aproximar de Deus, para que Deus se conheça no Homem. Por outro, o Homem precisa de se aproximar do que o Homem é realmente para que o Homem se conheça como Homem. Assim, e ainda mais importante, o homem precisa de se aproximar do homem para que o homem seja o que o homem é. Esta directriz evoca dois pilares da filosofia, não só de Hegel mas também de Espinosa: o amor e a comunidade. A complexidade do universo especulativo hegeliano pode bem inserir-se num aprofundamento concreto do Conceito. A dialéctica resolve-se no fechamento circular de superação no interior do próprio Conceito. A realidade torna-se, no seu mais rico desenvolvimento o mais rico desenvolvimento do/no próprio Conceito. Ao nível do pensar, realidade e pensamento resolvem-se em identidade. A identidade movente entre pensamento e realidade tornam-se uma só: unidade. A realidade torna-se pensamento e o pensamento realidade. Para Hegel, Espinosa representa o começo de todo o filosofar. O erro de Espinosa, segundo o filósofo do idealismo dialéctico, terá sido o de não conceber a substância como sujeito. A substância, não sendo sujeito, não exerce actividade pensante sobre si mesma. A substância, sendo sujeito, pensa-se a si mesma, é pensamento pensante pensando-se a si mesmo. Para Espinosa a realidade não é pensamento. A ideia é modo. O pensamento é atributo. Mesmo o materialismo de Espinosa é questionável. A realidade para Espinosa abarca a totalidade de todas as determinações. Reduz o acontecimento à necessidade. A história, o movimento, a gradação, são

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reduzidas à necessidade. A natureza gera e é gerada. Apela, por um lado, a um sentido biológico e genético da vida mas a potência unificadora é intelectual. A extensão de Deus como Mundo é intelectual. O amor intelectual a Deus nasce do terceiro modo de conhecimento, o mais supremo, que é ciência intuitiva. O amor intelectual de Deus é eterno. A ciência intuitiva é intuição já não como atributo de pensamento por não haver limitação como parte da essência da substância mas tão só como intuição intelectual em perfeita actividade. Deus é eterna actividade em eterna perfeição. Deus é Natureza. A Natureza é totalidade. A Natureza naturante é como pura produtividade imanente no Todo, como infinita actividade de Deus resultante na realidade existente, na sua totalidade e perfeição. Tão perfeita é a actividade que produz, sempre em acto, em acto infinito, como a realidade existente em perfeita actualização. A realidade é perfeitamente real, actual, existente e esta constatação superou já, em Espinosa, as fases limitativas, as gradações, os estádios, a positividade e a negatividade, o desejo, o esforço. A liberdade em Espinosa é plena actualidade em eterna actualização. Na filosofia de Espinosa é tão difícil falar da liberdade como da não-liberdade. O seu fechamento (não sistemático) é harmonioso, a sua harmonia totalizante e permanente. A ciência intuitiva conduz ao amor intelectual de Deus. O intelecto liga, pelo amor, Deus ao Homem e o Homem a Deus. Para o judeu Espinosa, o amor funda a vivência intelectual do filósofo, a convivência do homem em comunidade e a harmonia com Deus. O amor funda-se em ética. A ética envolve o pensamento. A construção ética do pensamento faz prevalecer a ética. É a ética que engendra o pensar e não o pensar a ética. A filosofia faz-se ética. Uma filosofia da vida funda uma ética do viver. Deus não se realiza pelo poder. Deus potencia mas não é potência. A perfeição potencia mas não é potência, nada lhe falta. À própria realidade nada falta, por isso é irrelevante a historicidade. O agora é sempre agora. O amor e a alegria fundam a vida. Que bom preceito a tomar. Professora Doutora Maria Luísa Ribeiro Ferreira que me perdoe a ousadia de escrever sobre o seu querido Espinosa sem o rigor e a sabedoria que sempre exige, quer nos seus próprios textos, quer nas suas lições na Faculdade de Letras de Lisboa, onde tive oportunidade de ser seu aluno. Por certo perdoará. Resta-me, para além de manifestar o meu grande prazer em participar nesta Homenagem, e no final de um breve texto construído segundo breves reflexões guiadas por filosofias que muito me fascinam, terminar com uma definição de Espinosa, a que serve para o passado, para o presente, para o futuro, a que salva, a que tranquiliza, a que potencia a alegria, a que sabe nulo o mal, a que funda o bem, a que é a mesma da epígrafe: “por realidade e perfeição, entendo a mesma coisa”.

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Referências Barata-Moura, José (1990), A Realização da Razão: Um Programa Hegeliano?. Lisboa: Caminho. Barata-Moura, José (2010), Estudos sobre a Ontologia de Hegel, Ser, Verdade, Contradição. Lisboa: Edições Avante! Carmo Ferreira, Manuel J. do (trad. e notas) (1990), Prefácios. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Carmo Ferreira, Manuel J. do (1992), Hegel e a Justificação da Filosofia. Lisboa: Imprensa NacionalCasa da Moeda. Espinosa, Bento de (1992), Ética. Lisboa: Relógio D’Água. Hegel, Georg Wilhelm Friedrich (1955), Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte, Band I, Die Vernunft in der Geschichte, ed. Johannes Hoffmeister. Hamburg: Felix Meiner Verlag. Hegel, Georg Wilhelm Friedrich (1970a), Phänomenologie des Geistes, Theorie Werkausgabe, ed. Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt a.M.: Suhrkamp Verlag, vol. 3. Hegel, Georg Wilhelm Friedrich (1970b), Wissenschaft der Logik, Theorie Werkausgabe, ed. Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel. Frankfurt a.M.: Suhrkamp Verlag, vol. 6. Jordão, Francisco Vieira (1990), Espinosa, História, Salvação e Comunidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Ribeiro Ferreira, Maria Luísa (1997), A Dinâmica da Razão na Filosofia de Espinosa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Abstract The present work, being first of all a small contribution in honor of Professor Maria Luísa Ribeiro Ferreira, is also the result of two years of studies in the Philosophy Department of our Faculty of Letters. Having chosen “Spinoza and Hegel: God, Conscience and Freedom” as the subject of this study, I have tried to build a brief reflection, in a more free and less academic style, but always with the respect for the thought of both philosophers. Keeping in mind the triad that constitutes the title of the present study, I started by tracing the route between the conceptions of God, Reality, History, Thought, Man, Conscience, Nature and Freedom in Hegel’s speculative philosophy. On a second moment, I have placed the thought of the German philosopher in dialogue with that of Spinoza whose ideas were presented taking as center the epigraph which begins and concludes the present essay: “by reality and perfection, I understand the same thing”. Recognizing that the present work is only a small essay, and without pretending to exhaust the proposed subject, my goal was to open possibilities of reflection and lines for building further thought. A contribution which I hope to be humble and sober.

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