Espiritualidade em Transformação: Sentido, Humanidade e Vida (Editora Novos Diálogos, 2015)

July 3, 2017 | Autor: Jonathan Menezes | Categoria: Philosophy Of Religion, Spirituality, Theology of Culture
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ESPIRITUALIDADE EM TRANSFORMAÇÃO: Sentido, humanidade e vida

JONATHAN MENEZES

DEDICATÓRIA

À minha amada avó, Alice Menezes (em saudosa memória), semeadora amorosa e incansável do evangelho na minha vida e de toda a nossa família. Dela ouvi, pela primeira vez, que andar com Jesus é percorrer um fascinante caminho de transformação. Por tudo o que ela foi e representa, seus frutos e seu exemplo me acompanharão por toda a minha existência. E a nós, os transviados, porque sedentos de vida, paixão, liberdade e amor.

AGRADECIMENTOS A Deus, o amante maior da vida, que silenciosa e misteriosamente me mantém por ela apaixonado. À minha mulher, Cibele, e ao meu filho, Cauã. Razões de existir, termômetros do viver, amores de minha vida. Obrigado pela compreensão nos momentos em que precisei ficar ausente. Jamais poderei compensar esse tempo. Mas espero que o sacrifício tenha, de algum modo, valido à pena. Aos ‘dois Marcos’ – o Monteiro e o Orison – por toparem endossar e contribuir com mais esse pequeno devaneio. Ao Pedro Sampaio, por dividir comigo no último ano muitas das angústias e murmurações que motivaram alguns capítulos desse livro. Ao Flávio Conrado e Clemir Fernandes, por continuarem apostando em mim como autor. À Faculdade Teológica Sul Americana, que me proporcionou tempo e condições para escrever mais este trabalho. Aos meus alunos, de perto e de longe, que sempre são as primeiras ‘cobaias’ a comigo partilhar de inquietações, ideias e perguntas, muitas perguntas.

SUMÁRIO Prefácio – Marcos Monteiro Introdução Parte I: Sentido 1. Um elogio à dúvida: espiritualidade e significado 2. Sombras da existência: espiritualidade e o trágico 3. Humanizando o espírito: espiritualidade e ateísmo Parte II: Humanidade 4. Aliviando a bagagem: espiritualidade e deserto 5. Abraçando a condição humana: espiritualidade e sexualidade 6. Seguindo o mestre: espiritualidade e discipulado Parte III: Vida 7. Em louvor à fragilidade: espiritualidade e missão 8. Um persistente ‘sim’: espiritualidade e cultura 9. Na via da transformação: espiritualidade e o político Epílogo – Marcos Orison Apêndices I. Carta a um jovem masturbador II. Carta a um jovem casal sexualmente ativo

PREFÁCIO Caminhar com este livro por uma espiritualidade em transformação é um convite inesperado a assumir formas novas a cada desafio que a vida traz. Admitindo que não existem fórmulas mágicas nem soluções prontas, o texto nos chama a descortinar em situações diversas a complexidade da fé e a complexidade da vida e a nos arriscar na busca do inefável, ali mesmo onde ele parece não estar: nas dores ou prazeres do mundo, nos escaninhos da dúvida ou na experiência da sexualidade. Uma espiritualidade que vive a existência na ambiguidade, na angústia, no deserto, no trágico, mas procurando teimosamente transcendência, significado e comunhão. Transformação que não busca formas, mas as encontra quando estas mesmas se aproximam, meio assim despudoradas, e as assume com a coragem e a avidez de quem vive seus limites. Aqui, a transcendência do mundo, a transcendência da vida e a transcendência de mim mesmo se tornam linguagem, esse lugar da existência que aponta para profundidades e amplidões que vão se resolvendo em incessante diálogo com pessoas, coisas e acontecimentos. A atenção, desse modo, vai se dirigindo do que foi dito ao ainda por dizer e especialmente ao modo como se diz. Por isso, é preciso ler as linhas, as entrelinhas, e ainda mais escrever e reescrever o texto, reescrevendo a vida, completando constantemente as lacunas trazidas pelo inesperado e até produzindo novas lacunas, armazenando perguntas sobre as perguntas existentes, transformando a vida em um constante inquirir. Assim, estamos refazendo a questão da autoria e da pertença do texto, tornando-nos todos e todas autores e co-autoras de uma tessitura que ultrapassa o ato de dizer. Mas, se seremos todos autores e autoras, é porque alguém ousou provocar essa multiplicidade de sentidos e nos convidou corajosamente a esse dialogar. Esse facilitador, esse primeiro a nos autorizar, aparece como a própria encarnação da tragédia que em algum momento anuncia. Que a vida é trágica, pois termina com a morte, e que o autor morre no momento em que escreve o texto, nos traz a atual reflexão sobre a existência, a linguagem e a interpretação. Então, o autor oficial, esse primeiro a se arvorar como texto, é um transgressor, que assim se reconhece no ato de escrever e demonstra a coragem trágica de se dissolver na multiplicidade das interpretações, de se jogar no abismo da textualização. Enquanto se joga, porém, e se dissolve (enquanto morre, por assim dizer) pretende dissolver a própria morte, se possível, buscando quantidade e qualidade de vida que não possa ser capturada nos limites de qualquer existência individual, de qualquer parcela de um tempo que pode e deve ser parábola da eternidade. No momento do escrever de Jonathan Menezes, o autor (ou primeiro autor) se torna ilustração e mensagem, imbricação de vida e texto. Em outras palavras, o texto pretende falar sobre espiritualidade, mas fala imediatamente sobre esse escritor, em suas próprias buscas, na dinâmica da sua própria vida, na transformação de sua própria espiritualidade. Um escritor que se desnuda publicamente faz do seu texto um

momento escandaloso e um projeto de confissão. Assim se desnudando, questiona o nosso figurino e ri de nossas máscaras, essa teatralização cotidiana em que vestimos roupas e representamos rostos e gestos de outros, seguindo pomposamente um script que não escrevemos e do qual intimamente discordamos. Desse modo, a escrita sobre uma espiritualidade em transformação vem envolvida também em uma linguagem em transformação. Linguagem que tem os seus próprios caminhos e suas próprias formas, que ora nos vem como construção linguística quase erudita e às vezes como simples conversação, dessa comezinha, cheia do cotidiano e do jeito de cada dia. Porque se espiritualidade é o jeito próprio de cada um ser, os jeitos da linguagem se esparramam pelos jeitos da vida, trazendo criatividade e comunicação para cada momento próprio ou impróprio. Os interlocutores da vida, como os interlocutores deste livro, nos propõem um manejo da língua diversificado, do mesmo modo como a existência é diversificada. Mais uma vez, o escritor é aquele que utiliza a linguagem como meio de comunicação e de provocação em que diversos interlocutores se encontram e se reconhecem. Precisamos também ouvir, entre os gritos e sussurros da linguagem, os seus silêncios. As pequenas ausências: textos bíblicos cotidianos, tão citados quando o assunto é espiritualidade, pequenos mantras para garantir segurança e felicidade, formulários e catálogos de gestos e atitudes, regras repetidas por todos e todas para nos tornarmos seres mais espirituais, historinhas exemplares cheias de ternura e pieguice, as pequenas arapucas para capturar o pássaro da vida, não estão presentes neste livro. Mas nos surpreendem e ao mesmo tempo nos desafiam as grandes ausências. Não há profundas discussões sobre existência ou não existência de Deus, nem um estudo histórico sobre a nossa tradição ocidental ou oriental no campo da espiritualidade, nem um convite a praticarmos as chamadas disciplinas espirituais. A prioridade da vida e do irmos vivendo na respiração do nosso próprio ar, tentando discernir a respiração de Deus, pode talvez ser considerada a ênfase deste livro, o que nos coloca diante de um desafio de maior complexidade. Respirar seria caminhar humanamente e caminhar para uma humanidade cada vez maior, em uma peregrinação que palmilha um caminho para dentro de mim mesmo, um caminho para o outro, enquanto companheiro de respiração, e um caminho para horizontes em que o conhecido e o desconhecido se encontram. Somos acima de tudo seres horizontais, no sentido em que nos deparamos sempre e sempre com horizontes, linha simbólica em que céu e terra se encontram, horizonte que me constitui estruturalmente enquanto ser com os pés no chão e olhar para o além. Espiritualidade em transformação, por conseguinte, seria espiritualidade peregrina que caminha em diálogo com “todo ser que respira”. Se isso pode nos convidar a uma próxima reflexão sobre espiritualidade e ecologia, aqui é a respiração da humanidade que está em jogo, de toda a humanidade. Aprender a caminhar com a humanidade se apresenta como a coragem de dialogar com pessoas trágicas como Nietzsche e Van Gogh, por exemplo, mas também com ateus modernos, especialmente aqueles que propõem a ética como a nossa casa comum, lugar que pode abrigar religiosos e não

religiosos, agnósticos ou ateus. Aqui o paradoxo da reflexão recebe a sua culminância. A tentativa é de se caminhar por uma espiritualidade cristã e ao mesmo tempo incluir outras tradições espirituais e até uma espiritualidade sem Deus. Em outras palavras, não preciso negar a minha própria identidade para dialogar com a identidade do outro. Ou dito de outro modo, não preciso desvalorizar a beleza e a integridade da espiritualidade do outro, tão diversa e até tão estranha, para preservar ou valorizar a minha. Pelo contrário a espiritualidade do outro, enquanto vivência humana, sempre desafia e ajuda a compor a minha própria espiritualidade. Esse outro nem sempre (ou quase nunca) tem uma biografia triunfalista ou uma receita de sucesso. Quem conhece Jonathan já aguarda a presença de Henri Nowen em seus escritos. Esse padre holandês que tentou aprender a caminhar no caminho de Jesus, em meio às próprias fraquezas e angústias, vai sendo pouco a pouco apresentado a nós, que não o conhecemos tanto assim, na profundidade de um grito humano que busca sentido lutando contra seus abismos e procurando o serviço ao outro como lugar de encontro com um Deus que me convida a viver a intensidade da vida também em fraqueza e fragilidades. Isso nos remete a outra característica deste livro: a saudade. Saudade diferente porque saudade do futuro, tanto de utopias desconhecidas, como na reflexão sobre a política e o político, como saudade dos próximos livros em que conheceremos mais um pouco dessa fascinante e intrigante figura cristã que marcou e ainda marca a vida de tanta gente. De um modo geral, este é um livro provocador e inspirador. Espiritualidade cristã coloca inevitavelmente Jesus Cristo como o centro da nossa respiração, e isso em meio à vida que nos vem enquanto cultura e vocação. No interior de nós mesmos somos interpelados ou movidos por impulsos e sentimentos que guiam os nossos passos, muitas vezes para paisagens desconhecidas. Esse chamado interior nos torna seres que se guiam para um objetivo, o que nos investe de uma missão. Essa missão é inerente à nossa humanidade, ou seja, somos enviados basicamente para sermos humanos, e nos torna seres políticos imersos em uma cultura. Discipulado cristão, portanto, seria seguir esse chamado interior em diálogo atento com a figura histórica de Jesus de Nazaré, enquanto Cristo de Deus. Através de Jesus devemos ser seres mais humanos, ou seja mais políticos e mais presentes na cultura, enquanto manifestação humana de inspiração divina. Sendo humanos, somos seres sexuados. Portanto, sexualidade e espiritualidade têm relação e relações complexas e desafiadoras. Nesse caso, talvez o momento mais emblemático de toda a reflexão deste livro estejam em seus anexos. São duas cartas, corajosas cartas em que o assunto da sexualidade é tratado como um conselho pastoral. Quem lida com pessoas concretas em situações concretas pode imaginar duas coisas: o peso de uma palavra pastoral (considerada devida ou indevidamente como palavra de Deus) e o senso de libertação quando essa palavra não vem carregada de chavões ou proibições tão absurdas quanto desanimadoras. O sexo, sempre tratado como anexo, aqui não é anexo, mas assunto transgressor que se apodera da vida pelas margens, astúcias de marginalizados em

geral. Os anexos deixam de ser anexos e se tornam talvez a temática mais complexa e mais central (por isso mesmo) quando se trata de ética e espiritualidade cristãs e são demonstrações claras da espiritualidade do autor em sua coragem de se expor. São cartas para praticantes da masturbação (ou seja, para toda a humanidade) e para casais de namorados sexualmente ativos (a maioria dos namorados da atualidade). Para parte dos leitores, a abordagem talvez ainda seja tímida. Para a grande maioria será certamente uma novidade transgressora, no sentido de questionar as bases de uma tradição que tenta escamotear ou negar certamente a mais profunda das experiências humanas. Uma espiritualidade que nega o sexo seria uma espiritualidade que nega o corpo. O conjunto de regras e restrições sexuais que se acumularam em nossa história do cristianismo são uma tentativa de negar aquilo que não pode ser negado ou de ditar regras sobre aquilo que é responsabilidade humana, mas que não tem contornos assim tão claros e definidos como desejam dogmas e censores religiosos. Diante de tudo o que foi dito até aqui, uma espiritualidade em transformação, seria a dinâmica de se viver, preservando o mistério da vida, do ser humano e de Deus. Nenhuma espiritualidade pode ser uma armadilha para capturar Deus. Por definição, Deus estará sempre além de nossas definições e de nossas reduções religiosas. Mas podemos viver a aventura de procurar misteriosamente uma vida que nos dá Deus, assim meio escondido e meio enigmático. Mas é exatamente esse o Deus que nos dá a vida, também misteriosa, também enigmática.

Marcos Monteiro Feira de Santana, Abril de 2015.

INTRODUÇÃO De todos os escritos, amo apenas o que alguém escreve com seu sangue... Todas as verdades para mim são sangrentas. – Friedrich Nietzsche A vida querendo ultrapassar-se é a boa vida, e a boa vida é a vida corajosa. – Paul Tillich

Em tempos como o que atualmente vivemos, escrever sobre um tema como espiritualidade é um empreendimento quase inglório. Primeiro, porque há bastante tempo a espiritualidade deixou de ter um centro orientador ou, por assim dizer, uma religião que gerencie e/ou domestique seus atos e práticas. Muitos autores – como alguns dos que aqui escolhi como meus interlocutores – já fazem uma clara diferenciação entre religião e espiritualidade, e entendem que não mais podemos perder de vista a segunda em decorrência de nosso desencanto com a primeira. Logo, como ficará claro ao longo deste livro, há muitas definições possíveis para a palavra, e também muitos modos de significá-la na experiência cotidiana, religiosa ou não, o que complica mais o intuito de concebê-la conceitualmente. Logo, nenhuma definição por mim apresentada neste livro a define de fato. Em segundo lugar, porque, apesar dessa descentralização, quando falamos em espiritualidade estamos navegando em um mar no qual muitos já navegaram e que, portanto, tem uma longa história, um repertório grande de abordagens e também uma lista de princípios que foram sendo criados e adotados e sem os quais, para muitos (sobretudo, para os cristãos, que são meu foco aqui), seria inconcebível falar de espiritualidade. Como tratar de espiritualidade sem abordar temas como, por exemplo, oração, meditação, lectio divina, jejum, liturgia ou adoração? Não é improvável, desse modo, que este livro seja desclassificado como um texto que não é “autenticamente espiritual”, já que resolvi percorrer uma trilha diferente – não necessariamente nova, mas em certos aspectos inusitada, ocupando-me de temas espinhosos e deixando de lado muitos outros. Em terceiro e último lugar, porque, como disse o amigo Júlio Zabatiero no endosso de meu primeiro livro, “qualquer coisa que escrevamos sobre espiritualidade é consumido antropofagicamente e reduzido a um ‘gostei’ ou ‘não gostei’ de leitoras e leitores”. Em tempos de consumismo religioso desenfreado e da proliferação e sucesso de livros esotéricos e de autoajuda, ou você escreve um livro ao sabor da última moda, ansiando que logo caia no gosto de uma grande massa de leitores e obtenha um sucesso razoável de vendas – quem sabe até que se torne um Best-seller na área – ou se opta por escrever tentando ser, antes de qualquer coisa, fiel ao seu próprio estilo e personalidade, consciente de que suas reflexões provavelmente terão um efeito menos efêmero, um impacto menor, menos sucesso numérico, mas que, em contrapartida, pode ser mais decisivo e significativo na vida de seus raros leitores. Eu escolhi a

segunda opção, e sei, portanto, que este não é um livro para todo mundo, e sim, talvez, para quem deseja ir mais fundo quando o assunto é espiritualidade. Esta busca por uma espiritualidade mais humana ou encarnada foi o mote de meu livro anterior, Humanos, graças a Deus (2013). Tenho repetido isso como um lema de existência nos últimos anos, mas também tenho notado certo desajuste: por um lado, exalto o fato de ser humano e de não querer ser diferente disso, mas, por outro, vejo-me como perfeccionista em tudo o que faço, o que suga muito de minhas energias e torna meu apelo à humanidade um tanto incoerente. Recentemente, retornei ao médico após uma bateria de exames de rotina que fiz. O doutor disse que meu quadro geral estava excelente; porém, rebati com uma série de queixas sobre minha saúde emocional e psíquica. Dentre as respostas que ele me deu, uma fala me marcou em especial: “Jonathan, o que você está passando não é nenhuma anormalidade, mas é apenas sinal de que você é humano. Portanto, aceite e assuma os limites da sua humanidade”. Dei-me conta naquele instante que não tenho abraçado tanto minhas limitações quanto penso, ou como gostaria. Por essa razão, não posso vir aqui e me colocar como paladino ou modelo de coisa alguma, pois sei bem dos paradoxos que eu mesmo tenho de enfrentar. Continuo em busca de uma espiritualidade encarnada, mas desisti de pensar que isso é uma tarefa mais nobre que qualquer outra ou que apenas isso me faz mais gente; contudo, ainda nutro o desejo de que a igreja de Cristo a abrace com mais intensidade e intencionalidade. Por isso decidi escrever este livro, que em parte é uma tentativa de dar prosseguimento a algumas de minhas investidas em Humanos, e em parte é o desejo de dar um passo adiante e ser mais intencional no fomento de uma espiritualidade conectada com a vida, e que possa sair do lugar comum de negação e fuga, para o de afirmação e presença da e na vida. Assim, Espiritualidade em transformação é uma aventura por temas e mundos nos quais, normalmente, a espiritualidade não é vista. E não porque não tenha lugar ali, mas porque ainda não conseguimos, com raras exceções, pensá-la fora do paradigma do “relacionamento pessoal com Deus”. Nesse sentido, sua premissa básica é a de que o encontro com Deus coexiste com um encontro com o outro e com o mundo, porque pressupõe, já e aqui, uma caminhada de luta, pessoal e comunitária, pela vida em suas diferentes manifestações. A transformação sobre a qual falo pode ser entendida como um processo natural pelo qual a natureza passa e as pessoas também. Não a penso como algo induzido, mas como uma resposta às ondulações próprias do simples existir; se alguma coisa ou alguém passa por transformação, ou é porque tem vida ou é porque foi tocado por vida. Um dos testes para saber se na espiritualidade se tem vida, é verificar se nela há transformação; e isto só se tem quando a espiritualidade tanto não é uma coisa estática, quanto não é uma emulação de outra vida, de uma vida no céu ou no espaço sideral dos espíritos flutuantes, mas um modo de ser terreno e, como tal, demasiadamente humano. Pelas razões acima mencionadas (e outras que o próprio leitor possa encontrar na leitura deste livro), a visão de espiritualidade aqui esposada procura fugir das vias

convencionais. E isso incomodará, para o bem e/ou para o mal, a muita gente que está acostumada a pensar espiritualidade dentro de padrões já mais ou menos consagrados e aceitáveis. Sinceramente, não me causará grande espécie ou surpresa se aqueles/as que se enquadram nesse perfil o rejeitarem logo de cara; primeiro porque a rejeição faz parte do negócio de escrever e publicar, e segundo porque, sinceramente, não é a estes que escrevo. Por isso, se aqui estiverem buscando apenas confirmação para o que acreditam ou fórmulas de como adquirir uma vida espiritual que agrade a Deus, sugiro que fechem este livro e não o abram nunca mais. Em contrapartida, creio que ele pode ser instrumento de ajuda a muita gente escondida e marginalizada dos sistemas religiosos e que, como eu, não suporta mais ouvir as mesmas respostas para perguntas que não foram feitas, mas que ainda quer desesperadamente aprender de Jesus e sonha com outra espiritualidade possível. É este tipo de leitor que tenho em mente ao escrever este livro, e espero que pelo menos parte das expectativas deste público possa aqui ser mais ou menos cumprida. No livro Minha fé, de Hermann Hesse, deparei-me com o poema “Reflexão”, escrito por ele mesmo em 1933 e que acirrou os ânimos de alguns de seus leitores mais religiosos, em parte pela ousadia e honestidade de, mesmo tendo se aproximado da fé com idas e vindas (ou precisamente por isso), considerar-se um “transviado”. Creio que ele representa bem o espírito que me moveu ao escrever muitas das linhas deste ensaio. Por isso, reproduzo-o aqui, como um prelúdio do que você, leitor/a, poderá encontrar pela frente. Divino e eterno é o espírito Para ele, de que somos imagem e instrumento, Corre o nosso caminho; a nossa mais íntima aspiração É ser igual a ele, evoluir para a sua luz. Mas terrenos e mortais fomos criados, Inerte pesa a carga sobre nós criaturas. Doce e cálida nos envolve a natureza maternal O raio exortante do espírito imortal. Paternalmente faz da criança um homem, Apaga a inocência e despertam-nos para a luta e a consciência Assim entre mãe e pai, Assim entre corpo e alma Hesita da criação a mais frágil criatura, O homem de alma fremente, capaz de sofrimento Como ninguém mais, capaz do mais sublime: Do mais fiel e confiante amor. Difícil é o seu caminho, pecado e morte seu alimento, Perde-se às vezes nas trevas, às vezes Ser-lhe-ia melhor não ter nascido. Eterna, porém, brilha sobre ele a sua missão, O seu destino: a luz, o espírito. Sentimos: ao que está em perigo, a ele,

O eterno ama com amor especial. Por isso a nós irmãos transviados É-nós possível o amor em toda desunião E não julgamento e ódio, Mas o amor tolerante, A tolerância amante nos leva Mais perto do santo destino (HESSE, 1971, p. 65).

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