\"ESPORTE ESPETACULAR\" : COMPETIÇÃO, PREMIAÇÃO E PRESTÍGIO NA ÁFRICA ROMANA

June 1, 2017 | Autor: Regina Bustamante | Categoria: North Africa Studies, Sports History, Ancient Mosaics, Ancient Rome History
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“Esporte espetacular”: competição, premiação e prestígio na África Romana

BUSTAMANTE, R. M. da C.

“ESPORTE ESPETACULAR”: COMPETIÇÃO, PREMIAÇÃO E PRESTÍGIO NA ÁFRICA ROMANA1 Prof.ª Dr.ª Regina Maria da Cunha Bustamante2

Introdução Um dos aspectos mais característicos da cultura da Roma Antiga foi sua dimensão acentuadamente espetacular, que estava onipresente nas suas mais diferentes atividades. De fato, o espetacular impunha-se tanto na vida pública quanto na privada: desde as marchas dos triunfos às procissões fúnebres, dos discursos eloqüentes no fórum aos banquetes privados... Meneses3 considerou as sociedades da Antigüidade Clássica como escópicas, ou seja, estavam sempre amostra. A representação assumia-se, portanto, como categoria indispensável. Neste contexto de uma “cultura espetacular”, a comunicação visual constituía-se num dos seus elementos mais importantes.4 Assim sendo, para o presente estudo, selecionamos um mosaico,5 conservado – infelizmente com algumas lacunas – no Museu Arqueológico de Gafsa na Tunísia. Datado do início do século IV, ele decorava o pavimento de uma das salas de um modesto estabelecimento termal de uma pequena cidade interiorana (atual Baten Zammour) na planície tunisiana de Talh, então pertencente à província romana de Bisacena. 6 Medindo 6,6m X 6,5m, o mosaico figurativo foi confeccionado com tesselas7 policromáticas em fundo branco, condizente com o estilo musivo africano.8 A escolha 1

Texto apresentado para o VIII Seminário Lazer em Debate, realizado no período de 25 a 27 de abril de 2007 e promovido pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC)/UFRJ, Laboratório do Tempo Presente/UFRJ, Grupo de Pesquisa “Anima”: Lazer, Animação Cultural e Estudos Culturais/UFRJ e Centro de Estudos do Lazer e Recreação/UFMG. 2 Professora e pesquisadora de História Antiga do Laboratório de História Antiga (LHIA) e do Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC)/UFRJ. 3 Palestra do Prof. Dr. Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses (USP) no workshop “Imagem e História: estudos de iconografia e interpretação”, promovido pelo LHIA / UFRJ no período de 16 a 20/10/ 1998. 4 THEML, N. Linguagem e comunicação: ver e ouvir na Antigüidade. In: THEML, N. (org.). Linguagens e formas de poder na Antigüidade. Rio de Janeiro: Mauad / FAPERJ, 2002, p. 11-24. 5 Sua reprodução imagética encontra-se em: BLANCHARD-LEMÉE, M. et alii. Mosaics of Roman Africa; floor mosaics from Tunisia. London: British Museum Press, 1996, figs. 137-142, p. 192-195; KHADER, A. B. A.-B.; BALANDA, É. de; URIBE ECHEVERRÍA, A. (dir.). Image in stone; Tunisia in mosaic. Paris: Ars Latina / Union Latine / Tunisian Agency for the Development of Heritage and Cultural Promotion, 2003, fig. 229, p. 530; FANTAR, M. H. et alii. La mosaïque en Tunisie. Tunis: Les Éditions de la Méditerranée, 1994, p. 174-175; THUILLIER, J.-P. Le sport dans la Rome Antique. Paris: Errance, 1996, p. 119; LAVAGNE, H.; BALANDA, É. de; URIBE ECHEVERRÍA, A. (dir.). Mosaïques, trésor de la latinité; des origines à nos jours. Quetigny: Ars Latina / Union Latine, 2000, figs. 59-60. 6 Esta província foi criada no governo do imperador Diocleciano (284-305). Ignora-se a data precisa da sua criação: entre 294 e 305. A reforma administrativa dividiu a Província da África Proconsular em três: Zeugitana ou África Proconsular propriamente dita, Bisacena e Tripolitânia. Esta divisão visava aumentar os recursos fiscais para enfrentar as ameaças exteriores, reforçar a autoridade imperial e, ao mesmo tempo, diminuir a do procônsul da África Proconsular, cujo poder em geral fazia o jogo dos usurpadores. (MAHJOUBI, A. O período romano e pós-romano na África do Norte. In: MOKHTAR, G. (coord.). História Geral da África. v. 2: A África Antiga. São Paulo – Paris: Ática – UNESCO, 1983, p. 482) 7 Peças de pedra, vidro ou terracota cortadas aproximadamente no formato de um cubo. 8 Na África do Norte, havia uma tradição musiva púnica. Com o domínio romano, houve sua interrupção, embora subsistisse em algumas cidades púnicas. Por volta do final do século I e início do II, mosaístas criavam mosaicos geométricos em preto e branco com padrões muito simples, semelhantes aos italianos do mesmo período, relegando suas próprias tradições. O estilo musivo africano começou a se desenvolver em meados do século II, favorecido pela prosperidade norte-africana, quando os mosaístas da região afastaram-se dos padrões italianos e introduziram gradualmente a policromia nas bordas e a integração de elementos florais e geométricos. Produziram-se então mosaicos figurativos, que seguiam a tradição

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da técnica do mosaico para decorar uma terma, sem dúvida, satisfazia requisitos que a pintura não tinha, especialmente a durabilidade, quando se tratavam de locais úmidos, como era o presente caso. Mesmo reconhecendo que os mosaicos de chão forneciam uma superfície lisa e resistente para ser pisada, seria uma simplificação afirmar que eles se desenvolveram somente a partir do desejo de tornar os pavimentos mais duráveis, na medida em que havia muitos outros tipos de pavimentos utilitários – os de argamassa, lajes de pedra e cerâmica (incluindo fragmentos de telhas ou potes) – tão resistentes e à prova de água quanto os mosaicos. Assim, a melhoria na aparência dos cômodos através da decoração musiva era um aspecto importante, como comprova a difusão desta técnica. Foi esse papel estético que promoveu o sucesso do mosaico em tesselas. O mosaico analisado apresenta cenas de competições atléticas e combate. Eis mais uma característica do estilo musivo da região: a representação de situações inspiradas na realidade ao seu redor. Na África Romana, a moda dos concursos esportivos parece remontar ao período dos imperadores da dinastia dos Severos (193235), de origem afro-síria. Neste período, foram criados os grandes concursos das Severia em Caesarea (Cherchell, na Argélia) e das Asklepeia (em honra a Asclépio/Esculápio, deus da medicina e filho de Apolo) e Pythia (em honra a Apolo) em Cartago.9 A realização deste último concurso conheceu um sucesso considerável. O africano Tertuliano, apologista cristão de fins do século II e início do III, fez uma referência sarcástica disto no seu tratado Scorpiace I, VI, 2: “Hoje ainda as cidades, uma a uma, fatigam Cartago com suas felicitações por ter recebido um concurso pítico próximo ao velho estádio”. Os espetáculos de jogos atléticos e de pugilato na África não se limitavam aos concursos nas grandes cidades. Existiam também concursos locais ou ocasionais para celebrar eventos públicos ou privados. Várias inscrições epigráficas de distribuição de azeite para o ginásio atestam a larga difusão da prática de atletismo nas cidades africanas. 10 Entretanto, o cuidado com o corpo entre os antigos romanos se inseria na vida coletiva das cidades principalmente através da terma. Grimal considera a terma uma invenção romana derivada do ginásio helênico.11 O arquiteto latino Vitrúvio (Arquitetura V, 11, 1) reconhecia que os italianos não eram afeitos à construção de helenística, com cenas idílicas e mitológicas. O estilo africano chegou a sua maturidade a partir do século III – época do mosaico em estudo – e foi disseminado noutras partes do Império. Este estilo caracterizouse pelo uso da policromia e representação, em fundo branco, de cenas inspiradas na realidade ao seu redor. (KHADER, A. B. A. Ben. The African Mosaic in Antiquity. In: KHADER, A. B. A.-B.; SOREN, D. Carthage; a mosaic of Ancient Tunisia. New York – London: The American Museum of Natural History – W. W. Norton & Company, 1987, p. 132-135; YACOUB, M. Le Musée du Bardo; Départements Antiques. Tunis: Éditions de l’Agence Nationale du Patrimoine, 1993, p. 174-177; PICARD, G.-Ch. Genèse et évolution de la mosaïque en Afrique; MANSOUR, S. Ben. Techniques et écoles. In: FANTAR, M. H. et alii. Op. cit., p. 16-59; FRADIER, G. Mosaïques romaines de Tunisie. Tunis: Cérès, 1997, p. 9-20; LING, R. Roman Africa. In: LING, R. Ancient mosaics. London: British Museum Press, 1998, p. 77-97; DUNBABIN, K. M. D. The North African provinces. In: DUNBABIN, K. M. D. Mosaics of the Greek and Roman World. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 101-129; BLANCHARD-LEMÉE, M. et alii. Op. cit.; PICARD, G.-Ch. et alii. L’Afrique romaine: le langage de la coleur. In: LAVAGNE, H.; BALANDA, É. de; URIBE ECHEVERRÍA, A. (dir.). Op. cit., p. 68-74; KHADER, A. B. A.-B.; BALANDA, É. de; URIBE ECHEVERRÍA, A. (dir.). Op. cit., p. 25114; TROMBETTA, S. O cotidiano e sua representação nos mosaicos das províncias romanas da Gália, Norte da África e Palestina. Tese. Programa de Pós-graduação em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) / USP. Orientação: Maria Beatriz B. Florenzano. São Paulo, 2004, p. 13-33. 9 KHANOUSSI, M. Jeux d’amphithéâtre et spectacles athlétiques. In: FANTAR, M. H. et alii. Op. cit., p. 169-170; THUILLIER, J.-P. Op. cit., p. 55. 10 KHANOUSSI, M. Op. cit., p. 169. 11 GRIMAL, P. Les villes romaines. Paris: PUF, 1971, p. 89.

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palestras e ginásios, distintamente dos gregos, o que foi também expresso pelo imperador Trajano (98-117) numa carta a Plínio, o Jovem: “estes pequenos gregos (Graeculi) são loucos por seus ginásios” (Carta LX, 2). Aos olhos de tradicionalistas romanos, o ginásio representava a frouxidão e a perversão gregas. Veyne12 afirma que a melhor parte do dia transcorria na terma. Era um importante local não apenas de cuidado com o corpo, mas de socialização no período imperial. Ao final da tarde, quando a jornada de trabalho se encerrava e antes do jantar, costumava-se freqüentá-la.13 Passavam-se em média duas horas diárias neste local. Relaxados, seus usuários se entregavam ao convívio social. Assim, além de servirem para a higiene, já que as casas populares não tinham banheiros privativos, a terma era utilizada para encontros, conversas, negócios, jogos de dados, leituras14 e exercícios físicos. Geralmente, havia um espaço descoberto, cercado ou não de pórticos, e, às vezes, com uma piscina, para as atividades esportivas. Durante o Império, as termas se multiplicaram; não havia cidade que não tivesse pelo menos uma. Todos tinham acesso aos banhos.15 Os estabelecimentos termais passaram a ser construções cada vez mais suntuosas: as palavras de ordem eram luxo e conforto; daí Robert16 denominá-los de “villa do pobre”. Caracterizavam-se por uma grande agitação pela freqüência variada e com os mais diferentes fins. Assim, a escolha da terma como espaço de exposição do mosaico em análise compreende-se não apenas pela ligação direta com uma das várias funções sociais do edifício – a prática de exercícios físicos – mas também por ser um importante ambiente de circulação social, atingindo um amplo público leitor. Esta abrangência era ainda mais acentuada pelo código utilizado: a linguagem visual, pois as imagens são olhadas e compreendidas de forma sincrônica, global e imediata, não demandando um conhecimento tão especializado quanto a escrita. Numa época, em que o domínio da escrita era privilégio de poucos e os documentos escritos eram de circulação restrita, a imagem constituiu-se numa forma de comunicação com maior amplitude. Inseria-se ainda, e muito mais profundamente que os textos escritos, na vida cotidiana do mundo clássico familiarizando seus integrantes uns com os outros através de representações idealizadas e vivenciadas. Contemplando ou fabricando-a, cotidianamente as sociedades antigas a utilizavam, decifravam e interpretavam. 12

VEYNE, P. O Império Romano. In: ARIÈS, P., DUBY, G. (org.). História da vida privada. v. 1: do Império Romano ao ano mil (P. Veyne, org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 193-194. 13 O banho compreendia tradicionalmente três fases. Após se despir no apodyterium, seguia-se para a sala fria (frigidarium); a seguir, a tépida (tepidarium); e, por fim, a quente (caldarium), onde a alta temperatura provocava uma sudorese abundante. Podia ainda haver uma espécie de sauna para transpirar (sudarium) e até um laconicum, cuja temperatura deveria ser ainda mais alta. O piso de mosaico das salas era suspenso e sustentado por pilares de tijolos criando um espaço para circular os gases quentes de uma grande fornalha de bronze e aquecer as salas (hipocaustum). Havia ainda piscinas e locais para unção com óleos perfumados, massagens e depilação. Ver: VITRÚVIO. Arquitetura V, 10, 1-5. 14 Poderia haver bibliotecas – menores que as públicas – anexas às grandes termas. Cavallo considera que talvez as obras fossem lidas ao longo das alamedas, no interior da basílica ou nas salas das termas. Aventa também que o seu acervo fosse composto principalmente de literatura de evasão. (CAVALLO, G. Entre volumen e codex: a leitura no mundo romano. In: CAVALLO, G.; CHARTIER, R. (org.). História da leitura no mundo ocidental. v. 1. São Paulo: Ática, 1998, p. 77) 15 As mulheres tinham acesso à terma em horários reservados ou em partes do edifício, que lhes eram destinadas. Por algum tempo, os banhos tornaram-se mistos, voltando a ser separados por sexo no governo de Adriano (117-138). O clima era geralmente de muita sensualidade, o que despertou as críticas dos moralistas cristãos contra estes estabelecimentos (BERARDINO, A Di (org.). Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. 1347). 16 ROBERT, J.-N. Os prazeres em Roma. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 55.

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Interpretando o discurso imagético do mosaico

A distribuição de cenas em níveis foi mais um recurso desenvolvido pelos mosaístas norte-africanos. Observando o mosaico, evidenciamos quatro níveis horizontais de registro: no primeiro e terceiro, apresentam-se práticas desportivas e, nos outros dois, predominam as premiações. Assim, tão importante quanto à própria competição (ágon) era o reconhecimento do vitorioso e a sua conseqüente recompensa. No nível superior, à esquerda, identificamos a partida de uma corrida a pé com quatro corredores, dos quais três estão mais ou menos bem preservados, enquanto um foi inteiramente destruído. Estes corredores estão nus – como era costume entre atletas 17 17

Para os helenos, a nudez atlética era uma distinção em relação aos bárbaros e, muitas vezes, estava associada ao regime democrático, pois o ato de exibir a nudez em atividades atléticas era considerado como uma confirmação da dignidade do cidadão, reforçando os laços cívicos entre atenienses (LESSA, F. de S. Atividades esportivas nas imagens áticas. Phoînix. Rio de Janeiro: Mauad, v. 11, 2005, p. 61; Id. O esporte como memória e festa na Hélade. In: LESSA, F. de S.; BUSTAMANTE, R. M. da C. (org.). Memória e Festa. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 331; SENNETT, R. Nudez. O corpo do cidadão na Atenas de Péricles. In: SENNETT, R. Carne e pedra; o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1977, p. 30; MARROU, H.-I. História da educação na Antigüidade. 5. ed. São Paulo: E.P.U., 1990, p. 200). A relação entre nudez e democracia confronta-se com a informação de Tucídides

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– e usam majoritariamente um tufo de cabelo amarrado no topo da cabeça (cirrus in vertice).18 Eles estão em pé, atrás de uma barreira horizontal, ligeiramente inclinados para frente e as mãos colocadas sobre esta barreira, esperando o sinal para começar, sob o olhar vigilante de um árbitro careca e barbado,19 vestido com uma túnica e um manto branco com faixas vermelhas verticais (clavi) e calçado com sandália. Ele segura um tipo de vara, que servia para intervir caso houvesse alguma irregularidade. Mais para a direita, há dois atletas em plena corrida. Para Thuillier,20 pode-se considerar que se tratam tanto de dois momentos sucessivos da mesma prova quanto de duas provas diferentes, em que a primeira seria uma corrida rápida de curta distância e a outra uma corrida de fundo, o que estaria de acordo com a posição dos dois corredores. Infelizmente, a continuidade deste nível foi perdida, o que levantou conjecturas, como veremos mais adiante. No segundo nível, destaca-se a premiação no centro, em que o atleta segura a palma21 na mão esquerda e, na outra, um objeto – talvez uma bolsa contendo o prêmio (Guerra do Peloponeso I, 6) de que uma das inovações para a técnica esportiva helênica introduzida pelos espartanos, cujo regime político era aristocrático, foi a nudez completa do atleta, em contraposição aos calções estreitos dos tempos minóicos (MARROU, H.-I. Op. cit., p. 37). Podemos, então, aventar que os atenienses ressemantizaram esta prática. Mas, não era apenas na Hélade que ocorria a nudez atlética; também estava presente nas competições etruscas desde o último terço do século VI a.C. (THUILLIER, J.-P.Op. cit., p. 29-30). 18 No mosaico, apenas três atletas não o usam: um dos corredores do registro superior, o atleta com o lenço do segundo registro e um dos lutadores do último registro. Slim e Thuillier consideram que o cirrus era distintivo do atleta profissional (SLIM, H. Spectacles. In: BLANCHARD-LEMÉE, M. et alii. Op. cit., p. 190; THUILLIER, J.-P. Op. cit., p. 142-145). Entretanto, para Rich, este penteado era apenas para impedir que os lutadores, no calor do combate, agarrassem o cabelo (RICH, A. Dictionnaire des Antiquités Romaines et Grecques. Singapour: Molière, 2004, p. 158). Thuillier (Op. cit., p. 143) aventa a possibilidade de que os dois atletas, que não têm cirrus no mosaico, fossem mais velhos ou tivessem calvice precoce, situações que inviabilizariam a existência de cabelos para fazer o penteado. Porém, o autor ressalva que estas explicações não podem ser aplicadas a todos os atletas que não apresentam cirrus. Houve variações locais, questões de ordem estética e elementos de outra natureza que podem ser levantados para a não adoção obrigatória do coque no alto da cabeça. As origens deste costume são difíceis de determinar. Talvez, remontem ao Egito, onde os lutadores de ostraka já utilizavam algo similar. Há também algo análogo nas pinturas litúrgicas de Delos de fins do século II ao início do I a.C. Na Etrúria, há apenas um registro imagético: as pinturas da tumba tarquínia dos Biges. Poderia ter intervindo questões de ordem prática (evitar que o cabelo atrapalhasse no momento da luta), mas não se pode descartar o simbolismo contido numa farta cabeleira: os cabelos nos homens estava relacionados ao vigor físico e mesmo a força vital em geral. O cirrus, que coroava a cabeça do atleta, era o sinal visível de que o seu portador guardava intactas todas as forças que deviam lhe assegurar o seu triunfo. 19 Sinais diacríticos de idade adulta (LESSA, F. de S. Atividades esportivas..., p. 61). No mosaico em análise, todos os três árbitros são barbados enquanto dos dezenove atletas, dos quais é possível ver o rosto, apenas dois possuem barba (cerca de 1,5%), a saber: um dos corredores na extremidade esquerda do registro superior e um dos lutadores do último registro. Assim, inferimos que experiência e autoridade eram demandadas para arbitrar, mas a competição esportiva era praticada majoritariamente por jovens em vista do seu vigor físico. 20 THUILLIER, J.-P. Op. cit., p. 118. 21 Nas regiões áridas do sul do Mediterrâneo, a palmeira era bastante apreciada pelo leite, azeite, madeira, sombra, fruto, seiva e folhagem para cestaria e lã (BIEDERMANN, H. Diccionario de símbolos. Barcelona: Paidós, 1999, p. 343). A palmeira (phoenix dactylifera) foi adotada pelos antigos como símbolo da vitória em virtude da grande elasticidade desta madeira e da força que tem para resistir sem se romper. Os romanos, assim como os gregos, davam palmas aos atletas vitoriosos (RICH, A. Op. cit., p. 453-454). Na cultura clássica, a palma estava associada a Apolo e Niké/Vitória. Quando do nascimento de Apolo e Ártemis/Diana, o único local que aceitou dar asilo à parturiente Latona, mesmo incorrendo na cólera da ciumenta Hera/Juno para com mais uma amante do seu marido Zeus/Júpiter, foi Ortígia (também chamada Astéria), uma ilha flutuante e estéril, cuja única árvore era uma palmeira. À sombra

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pela vitória (brabeum);22 por detrás dele, um grupo de quatro homens (vestidos com túnicas e mantos): o da extrema direita, com uma coroa de flores e usando calceus, 23 sopra um longo trompete (tubicen) anunciando o vencedor; os dois, à esquerda do músico, erguem um braço cada um e seguram um objeto (há falha no mosaico; possivelmente, fosse uma coroa), sobre a cabeça do atleta vencedor; por fim, o da extrema esquerda, de calceus, segura uma palma na mão direita. Há um consenso 24 que os dois personagens, calçando simples sandálias e que estão coroando o vencedor, seriam serviçais e o outro, de calceus, seria o organizador do evento (editor ludi). Ladeando a premiação do segundo nível, há duas cenas que interpretamos como ações subseqüentes. Na da direita, observamos a corrida da vitória de, pelo menos, dois atletas, já que parte do mosaico está danificado. Um dos atletas corre para a direita e acena com a palma da vitória na mão direita; carrega sobre o ombro esquerdo um saco, provavelmente, de dinheiro e tem um vaso metálico pendurado no punho esquerdo. Do outro atleta, resta apenas seu braço direito com parte da palma. Há um outro personagem nu observando esta cena que levanta para trás um lenço com a mão direita. Khanoussi25 considera que seria um atleta, pois está nu, dando o início para a competição. Thuillier26 mostra-se mais cauteloso, questionando uma possível analogia entre a ação deste personagem e o gesto feito pelo árbitro (judex), durante os ludi circenses, para sinalizar a partida das corridas de carros: por que este papel seria confiado a um atleta numa competição esportiva? Compartilhando a dúvida deste autor e inserindo o personagem nos contextos contíguos de premiação e da volta de comemoração, supomos que este atleta estaria saudando o seu colega vencedor. No lado esquerdo deste segundo nível, há uma outra cena parcialmente danificada, que levantou muitas suposições na interpretação dos indícios sobreviventes. Identificamos um atleta ajoelhado, que tem um objeto (saco de dinheiro?) na mão direita próxima ao rosto e um vaso de bronze pendurado no braço esquerdo. Há ainda a parte inferior de uma perna e, na extremidade esquerda, vemos parcialmente um ramo de palmeira. Os sinais diacríticos do vaso, do objeto (provável saco de dinheiro) e parte da palma indicam prêmios pela vitória, conferindo ao atleta a condição de vencedor – conforme cena central deste nível. Seria o mesmo atleta vencedor, que fez a corrida da vitória, na medida em que detém os mesmos objetos (palma, vaso e suposto saco)? A atitude deste atleta foi considerada como de prosternação por Khanoussi27 e Thuillier.28 Entretanto, por haver uma lacuna, não se sabe com certeza para quem ou para o que o desta, nasceram os gêmeos e o deus, em reconhecimento pela acolhida, fixou a ilha no centro do mundo grego e deu-lhe o nome de Delos, a brilhante (GRIMAL, P. Dicionário da mitologia grega e romana. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1997, p. 32). Teseu, herói epónimo ateniense, ao aportar em Delos, após matar o Minotauro em Creta, organizou jogos em homenagem a Apolo, nos quais os vitoriosos recebiam um ramo de palmeira (PLUTARCO. Vida de Teseu. XXI, 2). Lessa destaca que, nos discursos imagéticos e literários antigos, os jogos apareciam vinculados ao passado mítico helênico (LESSA, F. de S. O esporte como memória e festa na Hélade, p. 331). 22 Rich apresenta uma figura antiga de um cocheiro vencedor nas corridas de circo que segura os mesmos objetos (RICH, A. Op. cit., p. 454). O brabeum (brabium ou bravium) era o prêmio dado ao vencedor nos jogos públicos. A exclamação “Bravo!”, como sinal de aprovação, vem desta palavra (Ibid., p. 83). 23 Sapato ou bota, que subia pela direita e esquerda e cobria completamente o pé; contrário às sandálias e pantufas, que o cobriam apenas parcialmente (RICH, A. Op. cit., p. 94). 24 THUILLIER, J.-P. Op. cit., p. 121, KHANOUSSI, M. Op. cit., p. 173 e SLIM, H. Op. cit., p. 196. 25 KHANOUSSI, M. Op. cit., p. 173. 26 THUILLIER, J.-P. Op. cit., p. 121. 27 KHANOUSSI, M. Op. cit., p. 173. 28 THUILLIER, J.-P. Op. cit., p. 121.

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atleta está prestando homenagem. Para estes dois estudiosos, seria a divindade, que presidia o espetáculo (Heracles/Hércules? Hermes?), que lhe teria concedido a vitória. Thuillier aventa uma outra possibilidade, apesar de reconhecer que a anterior seja mais plausível: fazendo paralelo com um baixo-relevo29 de um desultor,30 poderia ser que o atleta tivesse se prosternando diante do organizador dos jogos (editor ludi) antes da prova. Entretanto, ressaltamos que os sinais diacríticos de vitória situam o atleta após a realização da prova, quando já recebeu sua premiação, como explicitada anteriormente. No terceiro nível, observamos quatro competições atléticas: as duas, à direita, são esportes de contato – o boxe e o pancrácio – e as outras duas, à esquerda, não – o salto em distância e o lançamento de disco. Estas últimas são realizadas ao som de um longo trompete, assoprado por um músico vestido com túnica ricamente ornada e descalço. A música servia para marcar o ritmo do atleta e/ou o início da prova.31 No chão, encontram-se instrumentos relacionados a estes esportes: duas enxadas para preparar a terra onde os atletas atuariam (scamma); três varas para estabelecer o limite, que não devia ser ultrapassado quando do salto e do lançamento, e para aplainar a terra; réguas com pequenas estacas (semata) para medir a distância; e um disco. O atleta mais próximo ao músico é um saltador em distância: está de pernas juntas, na ponta dos pés, joelhos um pouco flexionados e braços dobrados em ângulo reto contra o peito. Ele segura dois halteres, 32 cuja forma parece ser mais ou menos semicircular, que “reforçariam o jogo do balanço dos braços e facilitariam o impulso necessário para o salto”.33 À direita, um pouco abaixo, há um discóbolo preparando-se para o lançamento: o tronco inclinado à direita, o peso corporal sobre sua perna direita e segura o disco 34 com a mão contra o antebraço direito. O outro disco no chão evoca talvez as cinco tentativas que o atleta tem direito.

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O baixo relevo R 14 (26) de Mairiémont (Ibid., p. 98). Cavaleiro que fazia voltas de equitação no circo sobre cavalos treinados para isto. Dirigia, algumas vezes, quatro cavalos, mas o mais comum eram dois, que ele montava sem sela e freio. O nome desultor adveio da sua habilidade de saltar de um cavalo a outro em plena corrida (RICH, A. Op. cit., p. 226-227). 31 A música era freqüentemente executada nos festivais esportivos etruscos (THUILLIER, J.-P. Op. cit., p. 118). Os gregos utilizaram o trompetista (salpincta) para apresentação nos palcos, treinamento militar, acompanhamento e comunicação (sinal de ataque, toque de fuga e manobras sincronizadas da cavalaria) das tropas nas campanhas militares, anúncio dos vencedores nos grandes festivais atléticos e acompanhamento nas corridas em armas e as de carros (CERQUEIRA, F. V. Música e guerra na Grécia Antiga. O testemunho dos textos antigos e da iconografia. Phoînix. Rio de Janeiro: Mauad, v. 8, 2002, p. 140-152). Cerqueira aponta a equivalência do acompanhamento musical em atividades físicas, sejam atléticas ou guerreiras: “No acompanhamento das atividades físicas (atléticas e guerreiras), a música age civilizadoramente no sentido de conter o ímpeto de violência (lýssa) inerente às atividades que lidam com a força e a energia físicas, as quais podem induzir facilmente à desmedida, à barbárie. Nas atividades físicas, desempenha também, através do ritmo e da melodia, um estímulo encorajador para enfrentar os desafios, ajudando psicologicamente a suportar a fadiga em movimentos repetitivos. Nessas mesmas atividades, a música é absolutamente necessária, por intermédio de sua ritmicidade, para uma maior eficiência dos movimentos envolvidos (principalmente no caso do péntathlon) e para uma sincronia, regularidade e preservação do ordenamento das falanges hoplíticas.” (Ibid., p. 151) 32 Era feito de pedra ou de bronze; podia ter duas formas: um setor de esfera (escavada para facilitar a preensão) ou uma massa arredondada provida de um cabo; seu peso variava de 1 a 5 kg. (MARROU, H.I. Op. cit., p. 192) 33 LESSA, F. de S. Atividades esportivas..., p. 63. 34 Desde o século V a.C., o disco grego era de bronze e seu peso variou bastante (de 1,3 kg a 4 kg), dependendo do costume local, da época e da idade dos praticantes. (MARROU, H.-I. Op. cit., p. 192) 30

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Na continuação deste mesmo registro, seguem-se dois esportes de contato, muito apreciados pelos romanos no período imperial: o boxe (pugilatio)35 e o pancrácio (pancration).36 Pelo biógrafo latino Suetônio, sabemos que o boxe estava bastante difundido na África Romana desde o século I, pois o imperador Calígula (37-41) “deu, várias vezes, combates de gladiadores, seja no anfiteatro de Tauro, seja no recinto das eleições, no qual reunia grupos de pugilistas escolhidos entre os mais hábeis da África e da Campânia” (Vida de Calígula 18).37 No mosaico, dois lutadores em pleno combate têm seus braços cobertos de peliça e cæstus38 nas mãos. Sangue escorre da cabeça39 do contendor da direita. No pugilato, os golpes eram dados essencialmente na cabeça, o que levava à guarda alta e ao braço distendido. Acompanhando o combate, o árbitro (barbado e vestido de túnica, manto com clavi e sandálias) encurvado intervém com a vara na mão para separá-los. Ainda não se sabe o resultado da disputa, apesar de vitória tender para o boxeador da esquerda. Situação distinta da próxima cena à direita – o pancrácio – em que o atleta vencedor imobiliza seu adversário: segura para baixo a sua cabeça, o faz encostar o joelho direito na terra e dobra o esquerdo. À direita, o árbitro (careca, barbado, vestido com manto e sandálias) avança para os dois pancratiastae, segurando na mão esquerda a vara e, na mão direita, uma pequena palma com a qual vai designar o vencedor. No nível de registro mais inferior do mosaico, há quatro cenas. Analisando as do meio, percebemos a realização de mais um combate. Certamente, não é pugilato, porque não usam cæstus. Para Thuillier, 40 Slim41 e Khanoussi42 seria outro pancrácio. Entretanto, consideramos que o mosaísta teve justamente o cuidado de figurar no nível anterior a fase mais característica e emocionante do pancrácio: a disputa no solo, e, no nível seguinte, preocupou-se em mostrar os atletas em pé. Assim, optamos por classificar o combate como luta propriamente dita ou “luta em pé”. Na luta grega clássica, o vitorioso era aquele que conseguia derrubar três vezes seu adversário sem 35

De origem antiga; etruscos e gregos o praticavam. O pugilatio era o combate com o punho (pugnus). (THUILLIER, J.-P. Op. cit., p. 15-22; MARROU, H.-I. Op. cit,. p. 195; RICH, A. Op. cit., p. 517) 36 Combate ginástico de origem helênica, que combinava a luta e o boxe com as mãos nuas. Os contendores poderiam empregar quase toda espécie de golpes (socos, pontapés, torções, chaves de braço e de perna, estrangulamentos, mordidas...), exceto enfiar os dedos nos olhos e nos orifícios do rosto do adversário. O combate continuava mesmo com os lutadores derrubados no chão, demarcando a fase final da disputa. O terreno da luta, escavado com a enxada, era molhado previamente e os combatentes chafurdavam, deslizavam e rolavam na lama. O final do combate se dava com a desistência de um dos lutadores, que levantava o braço, ou com o desfalecimento ou morte de um dos adversários. (RICH, A. Op. cit., p. 455; MARROU, H.-I. Op. cit., p. 195-196). 37 O boxe foi moda na Roma Republicana e Imperial (TITO LÍVIO. História de Roma I, 35; SUETÔNIO. Vida de Augusto 45). No século II a.C., o comediógrafo latino Terêncio, na sua peça A sogra 33-36, graceja que o fracasso da primeira vez que a comédia foi encenada em Roma deveu-se à concorrência com a realização de uma luta com um pugilista famoso. No período imperial, esta paixão permaneceu como evidenciamos por Suetônio, em Vida de Augusto, 44, quando narra a pressão popular sobre Augusto (27 a.C.-14) para que ocorresse uma luta. 38 Manopla para pugilato; consistia de correias de couro atadas em torno das mãos e dos punhos e subindo algumas vezes até o cotovelo; podia ser equipada com chumbo ou cravos de metal (RICH, A. Op. cit., p. 91). Para maiores detalhes, ver THUILLIER, J.-P. Op. cit., p. 146-147. 39 Os golpes no corpo não eram expressamente proibidos. Não havia assaltos (rounds) regulares e o combate terminava quando um dos concorrentes estivesse exausto ou reconhecesse sua derrota levantando o braço. (THUILLIER, J.-P. Op. cit., p. 114-115; MARROU, H.-I. Op. cit., p. 195) 40 THUILLIER, J.-P. Op. cit., p. 120. 41 SLIM, H. Op. cit., p. 191. 42 KHANOUSSI, M. Op. cit., p. 175.

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cair; do contrário, o golpe era anulado.43 No mosaico, dois lutadores de mãos nuas e em pé se entreolham. Slim salienta a diferença entre os combatentes: um deles (o da direita) é jovem e usa o cirrus (o que seria, para este autor, um distintivo do profissional; ver nota 18); o outro (o da esquerda) aparenta ser mais velho e tem uma compleição mais escura, com cabelo curto e uma barba cheia: ele seria um amador.44 Com esta cena, o mosaico apresenta quatro esportes do pentatlo: a corrida a pé, o salto em distância, o lançamento de disco e a luta, faltando apenas o lançamento de dardo. A modalidade do pentatlo tinha um prestígio especial, pois combinava cinco diferentes práticas esportivas, o que exigia uma maior diversificação dos movimentos corporais, força física, velocidade, destreza e resistência, por conseguinte, seu vencedor seria o atleta mais completo.45 Seria apenas uma coincidência os quatro esportes do pentatlo estarem presentes no mosaico ou o mosaico representaria o conceituado pentatlo? Neste caso, como explicar então a ausência do quinto esporte? Thuillier 46 e Slim47 aventam que a prova de lançamento de dardo poderia estar retratada na lacuna da extremidade direita do nível de registro superior. É uma suposição bastante plausível... Se Thuillier e Slim consideram que o pentatlo está sendo retratado, é contraditório que eles classifiquem as lutas representadas no mosaico apenas como boxe e pancrácio, que não compunham os cincos esportes desta modalidade. Mesmo no triatlo romano, composto por boxe, luta e corrida a pé, o pancrácio estava ausente. 48 É mais um motivo para supor que a disputa do registro inferior fosse luta e não pancrácio. Próximo aos dois lutadores, destaca-se a mesa, dita agonística, pois era onde ficavam os prêmios dos vencedores das competições: palmas (sete atrás da mesa e mais duas no vaso da frente), coroas agonísticas (seis em duas pilhas de três na frente da mesa) e quatro sacos com vinte e cinco 49 mil denários50 cada um sobre a mesa. Havia, então, o costume de oferecer duas coroas ao vencedor: uma de flores utilizada no próprio dia e outra, a agonística, utilizada como troféu durável da vitória na competição. Esta era feita de metal leve com faixas de bronze dourado, trançadas ou rebitadas. Entretanto, apesar de muito prestigiosa e servir como “memória”, a coroa agonística não era suficiente e a recompensa monetária se fazia necessária: “Os grandes atletas, de fato todos profissionais, não se contentavam evidentemente com as coroas, aliás, muito honoríficas, que eles podiam recolher aqui e ali: não somente, suas cidades lhes gratificavam quando do seu retorno com recompensas diversas, mas, sobretudo, existiam numerosos concursos dotados de prêmios em dinheiro – estes concursos eram então ditos thematitai – sem contar outros espetáculos de atletas, regulares ou não, cuja epigrafia nos revela um pouco sua existência por toda parte durante o Império.”51 Ladeando a mesa agonística, à esquerda, há um trompetista, coroado de flores e ricamente vestido, segurando seu instrumento sobre seu ombro esquerdo. Do outro lado da mesa, há um personagem togado, de calceus, com a cabeça coroada de flores, segurando uma palma com sua mão esquerda e acenando com a outra. Não é um atleta, 43

Eram permitidas chaves de braço, pescoço e de corpo, mas vetadas as chaves de perna. Possivelmente, a rasteira podia. (MARROU, H.-I. Op. cit., p. 194) 44 SLIM, H. Op. cit., p. 191. 45 LESSA, F. de S. Atividades esportivas..., p. 59; MARROU, H.-I. Op. cit., p. 194. 46 TULLIER, J.-P. Op. cit., p. 120. 47 SLIM, H. Op. cit., p. 191. 48 THUILLIER, J.-P. Op. cit., p. 113-114. 49 Em cada saco, a inscrição em algarismos romanos: XXV. 50 Principal moeda de prata dos romanos. 51 THUILLIER, J.-P. Op. cit., p. 118.

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nem um músico... Certamente é um vitorioso, pois está com a palma e agradece o reconhecimento do público. Concordamos com Khanoussi, 52 que identifica este personagem como “o generoso evergeta53 que ofereceu o espetáculo e que, ao encomendar este mosaico, conseguiu eternizar em pedra a lembrança de sua munificência”. Os comanditários dos mosaicos ansiavam por ver comemorados, propalados e memorizados os espetáculos que ofereciam de modo tão luxuoso para seus concidadãos; no caso do mosaico, custou a significativa quantia de um milhão de denários! Deste modo, faziam-nos reproduzir nas imagens que decoravam suas residências e edifícios públicos, exaltando assim a sua própria benemerência. O patrocínio deste tipo de atividade lhes trazia prestígio social. A prática de financiamento de espetáculos, construções públicas, embelezamentos do espaço público, banquetes, distribuição de dinheiro e alimentos para os cidadãos pela elite local inseria-se no gênero de vida urbana do Império Romano; criava uma solidariedade ao abranger os diferentes grupos sociais. Era uma questão de obrigação (munus) para a elite local, especialmente por ocasião da sua ascensão às dignidades públicas ou municipais. 54 Neste processo, como se objetivava a promoção social, era imprescindível o reconhecimento público, condição necessária para uma carreira local, o que ocorria através das prodigalidades, como a organização e o financiamento de espetáculos. A historiografia, a partir do século XIX, reduziu esta prática à expressão panem et circenses do poeta latino Juvenal (Sátira X, 81), construindo uma imagem do povo romano como ocioso e alienado,55 que foi vulgarizada pelo discurso fílmico. Desde o final do século I a.C., a popularidade dos espetáculos fez com que o seu oferecimento se convertesse num meio eficaz de conquistar prestígio. Ademais, constituía-se num vetor de exibição da riqueza do ofertante. A tendência dos espetáculos de servirem como instrumento de vantagens políticas acentuou-se no período imperial, pois os jogos era uma atividade que congregava todos os grupos sociais e canalizava a energia popular. 56 Entretanto, a perspectiva passiva do espectador e o efeito “alienador” dos espetáculos devem ser relativizados, pois estes também podiam se tornar num lugar de manifestação das insatisfações populares, pressionando as autoridades no atendimento das suas exigências, ainda mais numa época em que as assembléias foram esvaziadas de poder e passaram a ser uma mera formalidade. 57 Os espetáculos romanos foram, portanto, um

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KHANOUSSI, M. Op. cit., p. 175. Veyne cunhou o neologismo evergetismo, a partir do termo grego euergetein, para denominar uma manifestação de uma “virtude ética”, de uma qualidade de caráter, uma magnificência. (VEYNE, P. Le pain et le cirque; sociologie historique d’un pluralisme politique. Paris: Seuil, 1976) 54 LUSSANA, A. Munificenza nell’Africa Romana. Epigraphica. Bologna: Università di Bologna, v. 14, p. 100-113, 1952; DUNCAN-JONES, R. Wealth and munificence in Roman Africa. Papers of the British School at Rome. London: British Academy, v. 31, p. 159-177, 1963; VEYNE, P. Le pain et le cirque. 55 Garraffoni realizou uma análise historiográfica desta expressão (GARRAFFONI, R. S. Panem et circenses: máxima antiga e a construção de conceitos modernos. Phoînix. Rio de Janeiro: Mauad, v. 11, 2005, p. 246-267). 56 Em virtude do reconhecimento do potencial político dos espetáculos como instrumento para obter apoio popular, as autoridades imperiais passaram a organizar e centralizar o oferecimento dos principais jogos públicos na cidade de Roma, inseridos no calendário religioso romano. 57 Ver VEYNE, P. Op. cit.; VILLE, G. La gladiature en Occident des origines à la mort de Domitien. Paris: École Française de Rome, 1981; ACTES DE LA TABLE RONDE DE ROME (3-4 mai 1991). Spectacles sportifs et scéniques dans le monde étrusco-italique. Rome: École Française de Rome, 1993; WIEDEMANN, T. Emperors and gladiators. London: Routledge, 1995; KÖHNE, E.; EWIGLEBEN, C. Gladiators and Caesars; the power of spectacle in Ancient Rome. London: British Museum Press, 2000. 53

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fenômeno bastante complexo com diferentes usos e significações.58 Ocorreram por todo o Império e, na África do Norte, os vários mosaicos com cenas de espetáculos demonstram a pronunciada predileção pelo circo (corridas de carro) e anfiteatro (combate de gladiadores e caçadas). Entretanto, o atletismo também contava com apreciadores, como deduzimos pelo presente mosaico. Na extremidade esquerda do registro inferior do mosaico, foi imortalizado o reconhecimento do vitorioso. O atleta vencedor, a exemplo dos aurigas (condutores de carros) nos ludi circenses, realiza a volta da vitória, coroado com flores na cabeça, tendo a palma na mão esquerda e, na mão direita, a famosa coroa agonística. Ele está sendo saudado por dois dos seus colegas: um levanta os dois braços e o outro, o direito, pois está carregando um saco e um vaso de bronze (objeto utilitário para água ou prêmio?). Lessa59 já enfatizara que, distintamente da concepção atual de que “O importante é competir” (frase do Barão de Coubertin, idealizador e realizador dos Jogos Olímpicos contemporâneos), entre os antigos helenos, o importante era vencer, pois imortalizava o atleta na memória da sociedade. Com os romanos, houve uma “adição”. O mosaico em análise é uma prova cabal disto: valorizaram-se os todos os vitoriosos neste tipo de atividade, não apenas o atleta vencedor, mas também o evergeta, o patrocinador do espetáculo. Na extremidade oposta deste nível, há uma corrida a pé, cujos participantes portam capacetes emplumados, escudos na mão esquerda e tochas na direita. Tradicionalmente, o programa da maior parte dos jogos helênicos terminava com corrida em armas. A corrida com archotes era considerada como um pouco à margem dos esportes propriamente ditos.60 Os romanos aliaram os dois tipos de corrida. O acréscimo das tochas61 devia dar um efeito algo feérico, principalmente ao escurecer. Por esta razão, os organizadores dos jogos não hesitavam, em alguns casos, em anunciar que haveria iluminações (lumina) para melhor seduzir os espectadores e seus concidadãos eleitores.62 Consideramos que a distribuição em níveis do mosaico não foi aleatória; houve uma intencionalidade de dar uma ordem seqüencial às cenas conforme ocorriam nas competições, o que estava condizente com a preocupação de apresentar imagens inspiradas na realidade, uma das características do estilo musivo africano. Este aspecto, apesar de reconhecido pelos estudiosos do mosaico, não foi trabalhado por nenhum deles. Pouco sabemos sobre a ordem das provas do pentatlo: quanto à primeira, há uma divergência entre a corrida a pé e o salto em distância e sobre a última, consensualmente considera-se que fosse a luta.63 Em termos de duração, a tradição olímpica helênica estabelece que as competições do pentatlo eram realizadas num único dia, uma após a outra e sem intervalos.64 Apesar do acirrado debate sobre quem seria o vencedor do pentatlo, está se chegando ao consenso de que fosse o atleta vitorioso em três 58

GARRAFFONI, R. S. Gladiadores na Roma Antiga; dos combates às paixões cotidianas. São Paulo: Annablume – FAPESP, 2005. 59 LESSA, F. de S. O esporte como memória e festa na Hélade. p. 327-328. 60 MARROU, H.-I. Op. cit., p. 191. 61 A corrida com archotes aparece em diversos mosaicos romanos, particularmente nos da Piazza Armerina na Sicília, cuja confecção se reputa aos mosaístas africanos. (CARANDINI, A. La villa di Piazza Armerina, la circolazione della cultura figurativa africana nel tardo impero ed altre precisazioni. DIALOGHI DI ARCHEOLOGIA 1: 93-120, 1967; DUNBABIN, K. M. D. Op. cit., p. 130-143) 62 THUILLIER, J.-P. Op. cit., p. 120. 63 LESSA, F. de S. Atividades esportivas..., p. 59; MARROU, H.-I. Op. cit., p. 194. 64 LESSA, F. de S. Atividades esportivas..., p. 67.

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modalidades esportivas. 65 Confrontando estas informações com a distribuição das cenas em níveis de registro no mosaico, elaboramos uma proposta de seqüência temporal para a leitura deste discurso imagético. O registro superior mostraria as primeiras provas do pentatlo, a corrida a pé e um provável lançamento de dardo na lacuna do mosaico. No segundo nível, ocorreriam então as premiações das primeiras provas. Passando para o terceiro nível, teríamos a continuidade do pentatlo com as provas de salto em distância e de lançamento de disco. Haveria aí a inserção “latina” de dois esportes extremamente populares: o boxe e o pancrácio. Por fim, no registro inferior, após finalizar o pentatlo com a prova da luta, se faria a premiação, graças à generosidade do evergeta, dos vencedores nas competições ocorridas no terceiro e quarto níveis. Somente a partir de então, poderia ser declarado o vencedor do pentatlo: o atleta vitorioso em três modalidades. Este teria seu reconhecimento do público portando a coroa de flores na cabeça, a palma e a sua coroa agonística. Faria a volta da vitória, recebendo o aceno dos demais competidores. Encerrando o espetáculo esportivo, haveria a corrida com armas e archotes. Seria a dimensão espetacular da cultura romana se manifestando: ao final de um dia pleno de competições atléticas do pentatlo e de populares esportes de combate, o cair da noite conferiria um cenário perfeito para as tochas cortando a pista. Conclusão É imprescindível analisarmos o mosaico inserido em seu contexto histórico específico, o que nos permite apreender a sua complexidade, a sua historicidade cultural. O termo cultural é utilizado num sentido mais amplo, abarcando atitudes, mentalidades e valores e suas expressões, concretizações ou simbolizações em artefatos, práticas e representações. Para se compreender a cultura visual da antiga sociedade romana, devemos atentar para o consumo social que, basicamente, tece hierarquias e consolida bases, lugares e relações de poder. Partimos da premissa de que o produtor da imagem – no caso, o comanditário do trabalho do mosaísta – escolheu a temática e o local de exposição. O mosaico analisado apresenta o reconhecimento de uma prática evergética; é um exemplo de um comissionamento, constituindo-se num registro permanente de beneficência. Evidenciamos, aqui, o papel central da riqueza da elite local, patrocinadora de ações de benemerência, reforçando a interação entre poder, status e prestígio e reafirmando sua pertença à civilização romana. A ascensão da dinastia dos Severos ao poder imperial beneficiou muito a África Romana. No século IV, esta região era próspera66 devido, sobretudo, a produção e comercialização de cereais, azeite e vinho, o que favoreceu o financiamento pela elite de espetáculos. O poder desta elite advinha das suas propriedades fundiárias; era ela que, comumente, comissionava os mosaicos. Estes expressavam uma sociabilidade condizente com a unidade cultural do período romano, utilizando um código visual comum com símbolos conhecidos, necessários para tornar compreensível a mensagem aos leitores. Havia temáticas que eram reproduzidas e se inseriam na retórica, que teve papel central na construção do pensamento e expressão da 65

LESSA, F. de S. Atividades esportivas..., p. 67; MARROU, H.-I. Op. cit., p. 194. Ver: DECRET, F.; FANTAR, M. H. L’Afrique du Nord dans l’Antiquité; histoire et civilisation des origines au Ve. siècle. 2.ed. Paris: Payot, 1988; FÉVRIER, P.-A. Approches du Maghreb Romain; pouvoirs, différences et conflits. Aix-en-Provence: ÉDISUD, 1989 e 1990, t. 2; JULIEN, Ch.-A. Histoire de l’Afrique; des origines à 1830. 3. ed. Paris: Payot, 1994; MAHJOUBI, A. O período romano e pósromano na África do Norte. In: MOKHTAR, G. (coord.). Op. cit., p. 473-509; MANTON, E. L Roman North Africa. London: Seaby, 1988; PICARD, G.-Ch. La civilisation de l’Afrique Romaine. 2. ed. Paris: Études Augustiniennes, 1990; RAVEN, S. Rome in Africa. 2. ed. London – New York: Longman, 1984. 66

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elite do mundo clássico. Este documento, datado do início do século IV, constitui um testemunho de grande valor sobre a difusão dos concursos agonísticos à moda grega no Mediterrâneo Ocidental e também a sua interação com a cultura romana. Era uma maneira de comunicar experiências e acontecimentos dentro de certa espécie de moral ou rede social; era uma forma de expressar alguns “significados compartilhados”,67 que fundamentavam a cultura da qual se originava, construindo e consolidando uma identidade romana no Mediterrâneo.

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HUSKINSON, J. (ed.). Experiencing Rome; culture, identity and power in the Roman Empire. London: Routledge – Open University, 2000, p. 7.

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