Esporte, pessoa com deficiência, dramas: receita de sucesso

June 3, 2017 | Autor: W. Camargo | Categoria: The Disabled Body, Antropología, Disabled People and Sport, Esportes
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CONTEMPORÂNEA | Edição Nº 4 – MARÇO DE 2016

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Esporte, Pessoa com Deficiência, Dramas: receita de sucesso! por Wagner Xavier de Camargo

Este texto pretende fazer uma apreciação crítica do livro ParaHeróis, de Joanna de Assis, publicado em 2014 pela editora Belas Letras, de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul. A autora é jornalista do canal Sport-TV, com experiências em vários jornais e portais de notícias. O livro reúne histórias de dez atletas com deficiência, os quais se tornaram o que ela chama de “paraheróis”, ou seja, casos bem-sucedidos dentro do esporte paralímpico. É ilustrado com fotos em branco-e-preto e tem aproximadamente 200 páginas. A obra é despretensiosa, e sua produção teria sido incentivada por um grupo de parentes e amigos determinados a registrar casos esportivos particulares (ela própria explicita isso nos agradecimentos). Diria que é bem-intencionado (como muitas das ações de pessoas não deficientes em relação ao universo da deficiência), e inédito no atual cenário da literatura esportiva, além de lançar, no mercado editorial, algo novo, inusitado, isto é, histórias de pessoas não comuns que lutaram para ser o que são e chegar ao lugar em que chegaram no esporte. Dessincronizado cronologicamente, pois não apresenta os paratletas por geração, o livro registra a história de quatro cegos (dois que nasceram com a deficiência e dois que a adquiriram a cegueira por acidentes), um caso de degeneração neurológica, dois deficientes físicos por trauma (todos oriundos de acidentes) e três casos de má formação fetal e, portanto, com consequências físicas irreversíveis. Um mérito do livro é expor tais deficiências de modo contextual para um público leigo, sem partir para explicações biomédicas detalhistas, como frequentemente ocorre quando se trata de deficiências. Joanna de Assis narra as sagas de Alan Fonteles, corredor biamputado de membros inferiores que derrotou Oscar Pistorius na última Paralimpíada; Rosinha, a da arremessadora carinhosa que faz “milagres” sem uma das pernas; a de Terezinha, a cega corredora extravagante; as de Clodoaldo e Daniel, nadadores com má formação congênita, multimedalhistas, que podem quase ser considerados “mestre” e “discípulo”; a de Dirceu, paratleta de bocha com distrofia muscular progressiva; a de Ádria dos Santos, uma das maiores corredoras cegas de todos os tempos; a de Tenório, o brilhante judoca que vence “até” gente que enxerga; a de Jovane, o esgrimista que ficou paraplégico devido a um tiro; a de Mizael, cego futebolista, advogado e administrador esportivo.

Na tentativa de capturar os leitores, a autora trabalha com clichês a todo instante: em geral, as histórias seguem a fórmula “origem humilde – dificuldades – deficiência – superação – esporte – sucesso”. Frases como “o deficiente se aceita, os outros é que são o inferno” (p. 48), “deficientes querem ser exemplos de desempenho, da excelência que possuem no esporte” (p. 87), “[ele] é um campeão nas águas da vida” (p. 93), “e como os cegos odeiam as bengalas” (p.120), “os paralímpicos são muito mais competitivos do que os atletas ditos normais [...]” (p. 162) recheiam o livro e constroem equívocos sobre tais sujeitos que são, igualmente, paradoxais, contraditórios, lenientes, mentirosos, esforçados, vitoriosos e fracassados como qualquer um de nós. Não querem ser exemplos de nada; só aceitam esse “discurso” pela necessidade de ter um pouco de dignidade perante uma sociedade “hábil”/”capaz” que os exclui, e permanecem no imobilismo do assimilacionismo!i As afirmações de Assis são, assim, ingênuas, superficiais, típicas de alguém que enxerga as pessoas com deficiência no esporte como “heróis”. Suas trajetórias são tão ou mais dramáticas, tão ou mais injustas ou tão ou mais espetaculares que as de quaisquer um de nós. Além disso, a autora teima em “falar” pelos atletas. Não aparecem depoimentos do que tenha significado uma colocação no pódio, uma convocação, a conquista de uma medalha, ou ainda como foi entrar para o paradesporto. Tudo passa, irremediavelmente, por sua narração em primeira pessoa. Ela incorre em um erro bastante comum, ao se propor a “falar” pelos que não têm voz, possibilitar “uma chance” para que tais pessoas sejam “ouvidas”. Porém, o que se “ouve” (ou se lê, no caso) são histórias romantizadas e adornadas pelo viés interpretativo de uma jornalista que se coloca como bemintencionada. Mas o olhar sobre a deficiência tem dessas coisas: incita, provoca comoção, sensibilização, mudanças de atitude entre o “antes” e “depois” da exposição à anomalia, ao acidente, à amputação, à própria deficiência. Portanto, isso não é falha de Joanna de Assis, mas de uma sociedade que teima em “resgatar” a deficiência do ostracismo social só para minimizar a culpa de não enxergá-la. A visibilidade dada a ela, então, seria uma forma de recompensa para o apaziguamento de consciências pesadas. Há pontos positivos (e de certo modo inéditos) no livro, os quais merecem ser comentados: o caso do guia-corredor,

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explicado em vários momentos (principalmente nas trajetórias de Terezinha e Ádria), figura fundamental na relação atleta/acompanhante no caso de cegueira total, que de voluntário passou por um processo de profissionalização ao longo dos anos; o modo como as próprias pessoas com deficiência tratam umas às outras, chamando-se de “ceguetas”, “chumbados” etc., surpreendendo-nos e desfazendo nosso senso comum, “politicamente correto”, em relação a isso; o desprezo dos videntes (pessoas que enxergam) para com os cegos, principalmente quando desviam dessas pessoas na rua ou quando procuram ajuda-las, mais por constrangimento moral do que por comprometimento com o próximo; ou ainda a falta de reconhecimento em relação ao paratleta, que por mais medalhas que tenha obtido em competições ou vitórias no currículo, é infinitamente menos valorizado do que atletas sem deficiência. Por conhecer praticamente todos os paratletas tratados no livro e ter acompanhado momentos importantes de suas trajetórias no esporte, aponto ainda que a narrativa reconstruída por Assis traz dois fatos que não poderiam ter sido deixados de lado: a) a carreira de corredora de Ádria durante muito tempo foi balizada pela disputa com a espanhola Puri Santamarta, as duas protagonizavam uma rivalidade digna de nota, com imposições corporais, agressões verbais e estratégias distintas de corrida nas pistas, e, além disso, b) antes da Confederação Brasileira de Desportos para Cegos existir, como aparece na história de Mizael (p. 194), havia a Associação Brasileira de Desportos para Cegos, fundada em 1984, responsável pela estruturação do esporte de pessoas com cegueira ou visão subnormal no Brasilii. Mizael foi um “filho” desse processo de institucionalização, dada a convivência bastante próxima, durante anos, com os principais presidentes das entidades, o que contribuiu para sua formação na gestão do paradesporto. Se Joanna diz ter “chorado várias vezes em frente ao computador” (p. 12) escrevendo tais histórias, eu não chorei vez alguma ao ler o livro. E não se trata de falta de sensibilidade. Em parte, porque conheci a realidade das pessoas com deficiência durante muitos anos e sempre mantive uma postura de que eram pessoas como outras quaisquer, independentemente de suas particularidades/necessidades (afinal, todos temos as nossas). E também porque tomei contato com histórias tão ou mais trágicas que as narradas por Assis. Eliane Brum, em sua obra A vida que ninguém vê, traz casos próximos a nós (mendigos na calçada, faxineiras, funcionários de carga, entre outros), ao lado dos quais passamos no dia-adia e nem notamos. Talvez Joanna tenha chorado pela

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consciência que tomou de que poderia fazer mais do que faz e reclamar menos da vida ou do lugar que ocupa no social. Mais do que uma “comoção” para com os deficientes, essa parece ser somente uma “crise de consciência”. Por isso minha crítica máxima ao livro, que mesmo para leigos, repete o mantra de uma sociedade “hábil/capaz” nos momentos em que reafirma textualmente clichês como “deficientes fazem a diferença”, “da combinação de talento e valentia”, ou que são pessoas que “também podem” e que têm igualmente uma vida “normal”. Subliminarmente a autora, assim como a maioria de nós, se impressiona com o exótico, com o outro diferente, hipervalorizando suas habilidades conquistadas como forma de minimizar muitos dos preconceitos que nos cercam e são produzidos por nós mesmos. Em tempo: nunca saberei se Assis leu o livro de Brum, como fiz menção anteriormente, mas há uma referência às “vidas que ninguém vê” (p. 22) que me faz pensar que sim. Entretanto, sinto muito em dizer que se essa minha assunção é verdadeira, talvez ela não tenha entendido a mensagem daquela autora, que diz que “as vidas que ninguém vê” estão em todos os lugares, todos os dias.

ASSIS, Joanna de. Para-Heróis. Caxias do Sul: Belas-Letras, 2014. 202 p. i Tendo vivido e convivido entre atletas com deficiência há cerca de quinze anos, não me constrange fazer tal afirmação. O “assimilacionismo”, ou o mostrar que também se é “capaz” por modos e modelos instituídos, traz à superfície das considerações um lugar desejado no social, seja porque creem que deve haver num “ajuste de contas” da sociedade para com os deficientes, seja porque os paratletas também anseiam por um reconhecimento mediante suas conquistas. 1 ii Explicando de modo simplificado, as pessoas com deficiência visual podem ser “cegas totais” (ou seja, não enxergam nada ou têm pequenas percepções de luminosidade) ou têm “visão subnormal”, o que implica nas várias deficiências visuais que apresentam déficits de campo e/ou acuidade visuais. No esporte há três classificações que mesclam esses fatores e alocam os sujeitos entre o cego total e os com resquícios visuais.

SOBRE O AUTOR Wagner Xavier de Camargo é cientista social com mestrado em Educação Física. Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi bolsista da Deutscher Akademischer Austausch-Dienst (DAAD) em estágio internacional na Freie Universität Berlin (FU Berlin), Alemanha. Insere-se no campo dos estudos antropológicos das práticas esportivas e dedica-se, com especial destaque, à investigação das relações de gênero entre masculinidades nos esportes de competição. http://lattes.cnpq.br/8062918408696939 CONTATO: [email protected]

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