Esporte, Política de Estado e Homofobia institucionalizada: Sochi-2014

June 28, 2017 | Autor: W. Camargo | Categoria: Russian Politics, Homophobia, Sports
Share Embed


Descrição do Produto

Esportes, Política de Estado e Homofobia institucionalizada: Sochi-2014 Por Wagner Xavier de Camargo

O mundo todo assistiu maravilhado a mais uma edição dos Jogos Olímpicos de Inverno, desta vez realizados na cidade de Sochi, região do Cáucaso e do Mar Negro, localizada na Federação Russa. O que se viu, no entanto, foi uma controversa demonstração de superioridade do sistema político russo, conduzido ferrenhamente por Vladmir Putin e amparado legalmente por leis antiterrorismo e — pasmem — antipropaganda homossexual. Para alguém atento ao noticiário internacional, entre uma pirueta da patinação no gelo ou uma manobra radical do snowboard, protestos, prisões e manifestações de diversas naturezas contra a política de Estado impressa na “ordem social” instituída em Sochi invadiam boletins informativos de vários meios de comunicação. Obviamente tais protestos tinham um cunho ideológico maior de defesa da liberdade de expressão e mesmo de luta pelo reconhecimento de direitos humanos de minorias sexuais, notadamente no caso em questão, dos sujeitos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros/as). O governo russo, se antecipando ao evento esportivo e à “perniciosa influência ocidental” (em seus termos), aprovou no parlamento ainda em 2013 uma lei intitulada “antipropaganda gay” (anti-gay propaganda law), que punia com prisão e possível multa manifestações a favor da “homossexualidade como comportamento normal”. A decisão parlamentar foi amparada pela Igreja Ortodoxa e grupos conservadores no país, que defendem a família, as crianças e os valores tradicionais, num contexto marcadamente heterossexual (e idílico), onde homens e mulheres criam juntos seus filhos e filhas. Portanto, os Jogos Olímpicos de Inverno aconteceram à revelia dos pressupostos básicos da carta do Comitê Olímpico Internacional (COI) — que prega o “esporte como direito humano, livre de discriminação em relação à raça, ao sexo ou à orientação sexual”—, num contexto que se empostou, claramente, contra uma tendência mundial na contemporaneidade de garantia de respeito aos direitos humanos básicos, de busca por legitimação de políticas sociais, de luta por reconhecimento de micropolíticas grupais, de estabelecimento de igualdade e equiparação de gêneros. Tomando o cenário internacional como referência, e dentro de uma perspectiva sistêmica, os eventos em Sochi se alinharam aos acontecimentos globais, numa lógica de círculos

concêntricos girando em direções opostas, mas embalados por um mesmo ritmo globalizado pela participação democrática, no qual cidadãos comuns reivindicam seus papéis nas ações do Estado. Dizer que a Olimpíada de Inverno de Sochi foi homofóbica não é suficiente para explicar o que de fato estava em jogo no contexto. A homofobia foi explicitamente institucionalizada pelo governo de Putin e isso quis dizer que estava então oficializada e legitimada a aversão aos sentimentos homoeróticos e homoafetivos, o rechaço às novas e outras formas de composição familiar (notadamente homoparentais) e a indignação à explicitação de desejos/gestos que não os heteronormativos. Isto tudo com o agravante do respaldo religioso cristão-ortodoxo, no qual a maioria das pessoas (pelo menos oficialmente) são adeptas. As posições discursivas governamentais oficiais em Sochi e na atual Rússia estão entranhadas no passado de um gigantesco país, que foi denominado ‘superpotência’ durante a Guerra Fria, em vigor em parte do século XX. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que se desmantelou frente aos ventos de mudança em 1989, erigia-se monstruosamente a partir do domínio de outras 22 províncias (hoje países independentes), promovendo a russificação e o domínio cultural (inclusive linguístico) sobre minorias étnicas em todos os pontos de seu vasto território. A Guerra Fria e sua lógica de existência deixaram marcas indeléveis na organização social e, sobretudo, legaram resíduos às esferas institucionais do Estado russo. Não nos esqueçamos, por momento algum, que Vladmir Putin governa (ou participa do governo) da Federação Russa há dezesseis anos. Ele recebeu das mãos do então presidente Boris Yeltsin o comando de um país que fez questão de reorganizar a seu estilo. Putin mostrou-se stalinista, tanto ou mais do que os declarados presidentes anteriores que se rejubilavam com a centralização do poder nas “mãos de ferro” do soberano. A referência à década de Josef Stálin (anos 1920) sempre fora um gozo, um regozijo, pronunciado institucionalmente. Putin foi criado nos entranhas de um sistema repressor, autoritário e aprendeu reproduzir tais valores, acrescidos de uma boa dose de desconfiança e espionagem. Afinal, é ele também um ex-agente da extinta KGB. Com tal perfil, tem ampla vantagem sobre os líderes do mundo ocidental, visto que decide sozinho, não necessitando do escrutínio de comissões ou de decisões amparadas pela maioria. Age silenciosamente em prol do que acredita, sem escrúpulos e, ao que parece, baila de modo ensandecido a um prelúdio tchaicovskiano, algo que lembra os delirantes momentos de Adolf Hitler ao som das composições de Wagner.

Em que pese o rigor da lei, os jogos seguiram seu rumo, nem mais nem menos “gay” do que outros momentos esportivos na história de Olimpíadas e Copas Mundiais. No fim das contas, o esporte é uma instituição social, e como tal, prescreve em seus cânones regimentais, velados ou explícitos, uma aversão ao que foge do normativo, do estabelecido como “normal” em comportamentos, gestos e discursos. Já comentei em outra ocasião que a homofobia não se caracteriza somente como uma forma de resistência contra a entrada/participação da cultura homossexual no esporte, mas funciona como elemento mantenedor da masculinidade hegemônica, do capital masculino e da estrutura patriarcal. O mais interessante de ser notado é que os esportes de inverno são, por si mesmos, manifestações dissonantes e clamam por uma corporalidade ou gestos corpóreos totalmente diversos daqueles prescritos pelos esportes de verão. Não precisamos ser experts para perceber preconceitos instituídos e hierarquizados nas falas de atletas em geral no tocante ao que é estabelecido como norma e convencionado socialmente nas masculinidades/feminilidades. Por exemplo, note-se quando jogadores de futebol de campo se comparam com voleibolistas, ou ainda, quando boxeadores se pronunciam sobre corredores de marcha atlética. Nesse sentido, patinadores/as artísticos/as, jogadores/as de curling, esquiadores/as, snowboarders teriam argumentos suficientes para se afastarem das prescrições instituídas no mundo esportivo, ligadas principalmente à misoginia e à homofobia, quando se pronunciassem acerca de si e de outros/as. Indiscutivelmente, Sochi entrou para a história mundial esportiva como a Olimpíada de Inverno mais cara até então realizada e a que alavancou a Rússia ao topo do quadro de medalhas. Nem os últimos Jogos Olímpicos de Londres-2012 arregimentaram tantos protestos reais e virtuais, tantas ações de Organizações Não-Governamentais esportivas ou Comitês Olímpicos Nacionais, ou nem mesmo chegaram próximos das inúmeras mensagens nas redes sociais que comentaram fatos ocorridos na pequena e hoje mundialmente conhecida cidade russa. Uma pena, no entanto, é constatar que o que fica como legado são os momentos ditos sublimes, a referida grandiosidade das cerimônias de abertura e encerramento, as estruturas opulentas. Nunca, na história dos jogos de inverno, um governo usou ditas competições tão eficazmente como instrumento político de visibilidade do regime como fizera Putin. A cortina do espetáculo se fecha e traz novos (e preocupantes) fatos na esteira de uma geopolítica esportiva em movimentação: a Ucrânia, que vive um período de incertezas relativas à sua situação política e socioeconômica, postulou há pouco sua candidatura junto ao COI para

sediar os Jogos Olímpicos de Inverno em 2022. Ao mesmo tempo e ironicamente, encontra-se em discussão, nos meios políticos mais conservadores do país, uma lei similar à aprovada na Rússia “anti-propaganda gay”. Óbvio que nenhuma nação tem ficha totalmente limpa no decorrer de sua história em relação aos direitos humanos de suas populações; contudo, o COI tem o poder de recusar cidades candidatas onde há leis criadas especificamente para discriminar ou atacar a dignidade das pessoas. Resta-nos, portanto, a posição de espectadores críticos e de cidadãos globais conscientes para que não deixemos que mais um movimento de dados possa definir aquilo que pensamos, que desejamos ou que estabeleça a quem devemos amar.

Publicado na Revista Pontos de Vista (USP), em março de 2014

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.