Ésquilo. Suplicantes. Estudo introdutório, tradução e notas. Coimbra, FESTEA, 2012.

June 29, 2017 | Autor: Carlos Jesus | Categoria: Greek Tragedy, Aeschylus, Aeschylus' Suppliants
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Suplicantes Estudo introdutório, tradução do grego e notas Carlos A. Martins de Jesus

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Autor: Ésquilo Título: Suplicantes Tradutor: Carlos A. Martins de Jesus Editor: FESTEA – Tema Clássico Edição: 1ª/ 2012 Propriedade: FESTEA – Tema Clássico Concepção e Planeamento: FESTEA – Tema Clássico Apoio à Edição: FCT – POCI 2010 Esta publicação insere-se no plano de actividades da linha de “Pragmática Teatral” do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos. Secretariado: FESTEA – Tema Clássico Instituto de Estudos Clássicos Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Praça da Porta Férrea 3004-530 Coimbra Telefone: 967685736 Fax: 239410022 e-mail: [email protected] Edição exclusiva para uso do Festival Internacional de Teatro de Tema Clássico. Obra editada em cumprimento do Novo Acordo Ortográfico. IMPRESSÃO E EXECUÇÃO GRÁFICA: Artipol - Artes Tipograficas, Lda Zona Industrial de Mourisca do Vouga Apartado 3051, 3754-901 Águeda ISBN: 978-972-8869-36-6 Depósito Legal: 342302/12 4

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Índice

Estudo introdutório

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Notas à tradução

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ESTUDO INTRODUTÓRIO A polémica questão da data Durante muito tempo se pensou que Suplicantes fosse a mais antiga das tragédias conservadas de Ésquilo – e como tal o mais antigo dos dramas ocidentais que nos chegou –, sobretudo a partir de um conjunto de características formais de sabor arcaizante: a ausência de prólogo, a predominância das partes cantadas e dos monólogos – revelando, com isso, um ainda bastante precário uso do segundo ator –, a ação simples e a métrica, também ela, mais arcaica. Finalmente, o tom eloquente do drama, dado sobretudo pela escolha vocabular (onde abundam termos e fórmulas da épica) era também um dos argumentos com frequência utilizados. Mas a prova mais evidente do que era considerado um estado dramático antigo, de que não conservávamos qualquer outro exemplar, era talvez a predominância do coro, a sua centralidade na ação dramática. De facto, isso é inegável, o coro das Danaides é a personagem principal, sendo que do seu drama e das suas palavras vive, no essencial, a tragédia. Por estes e outros dados, datava-se a trilogia entre os anos 493-490 a.C.1 Foi em 1952, com a publicação do Papiro 2256 (n.º3) da coleção de Oxirrinco que esta ideia começou a ser abandonada. Consistia esse texto numa didascália que identificava, entre os concorrentes no festival em que teria sido exibida a trilogia das Danaides, a presença de Sófocles. Ora, sabemos que este último tragediógrafo granjeou o primeiro prémio logo na primeira vez que se apresentou a concurso, em 468 a.C., com a tragédia 1 Essa era a opinião de P. Mazon 1966: 3, na sua introdução à tradução francesa da peça.

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Triptólemo, e que o próprio Ésquilo, em 467 a.C., teria vencido com a tetralogia a que pertencia Sete contra Tebas.2 Ficava deste modo estabelecido um período de compromisso para a datação do drama: o segundo quartel do século V a.C. De outro modo, era de aceitar a década de 60 para a sua composição. Mas o texto do papiro que referimos podia mesmo dar-nos a datação exata de Suplicantes, se na primeira linha fosse aceite a leitura epi Ar[chedemidou em vez de epi ar[chontos; ou seja, a primeira hipótese situa o drama claramente no ano de 463 a.C., pois que Arquedémides terá sido arconte entre 464 e 463. Mesmo antes de 1952 houve quem sugerisse que a tetralogia das Danaides não pudesse ser o mais antigo drama grego conservado. No entanto, críticos há ainda que se recusam a aceitar esta datação mais tardia e que, em alguns casos, duvidam mesmo do crédito a dar ao texto do papiro.3 Outros argumentos foram ainda utilizados com vista a uma datação relativa da tragédia, designadamente o estabelecimento do contexto político possível para a sua produção. Muito se discutiu sobre uma possível aliança entre Atenas e Argos, para a qual não temos quaisquer outras fontes diretas que não a própria peça, de um asilo político de Temístocles nessa cidade, que teria ocorrido entre 470-469 a.C., além de outras condicionantes demasiado complexas para aqui serem expostas.4 O manifesto elogio do sistema democrático, personificado na figura do monarca Pelasgo, não obriga no entanto a considerar, como seria difícil, que ao tempo da tragédia Argos estivesse já democratizada. 2 Disso dão testemunho, entre outros, Plínio-o-Antigo (História Natural, 18. 12) e Plutarco (Cimon, 8). 3 Para a exposição de toda esta polémica de datação vejase a introdução à versão portuguesa da tragédia por A. P. Quintela Sottomayor 1968: 3-7, bem como os trabalhos de E. C. Yorke 1954: 10-11, E. A. Wolf 1958: 119-139, H. Lloyd-Jones 1964: 356-374 e idem 1991: 42-56. 4 A. J. Podlecki, The Political Background of Aeschylean Tragedy (Michigan, 1966) 42-62 analisa a fundo as possibilidades de condicionalismo político de Suplicantes. Para uma visão de conjunto das diferentes hipóteses avançadas, remetemos uma vez mais para o estudo A. P. Quintela Sottomayor 1968: 23-26.

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Para conseguirmos alguma conciliação, aceitemos como data de apresentação de Suplicantes os finais da década de sessenta do século V a.C., o que implica entender como anteriores, apenas de entre as que conservamos, as peças Persas (472 a.C.) e Sete contra Tebas (467 a.C.). O mito e a trilogia Suplicantes é a primeira das peças de uma tetralogia, de que fariam também parte as tragédias Egípcios e Danaides, além do drama satírico Amímone.5 Das últimas três, mais não possuímos do que sete fragmentos fatalmente pouco reveladores6, que, pese embora a tentativa de muitos, não permitem, por si só, reconstruir de forma completamente segura a ação desses dramas. Mas, a essa tarefa, voltaremos adiante. Duas são as gerações, distantes no tempo do mito, de uma mesma genealogia, que estão em causa no desenvolvimento de Suplicantes. As cinquenta filhas de Dânao, posto que as desejam para casar os cinquenta primos, filhos de Egito, fogem do Nilo onde habitam para pedir asilo político e religioso em Argos.7 Perante o rei dessa terra, portanto, suplicam por proteção,8 apresentando como argumento maior a descendência 5 Estes títulos surgem no elenco das tragédias de Ésquilo no Códice Neapolitanus II. f. 31. Perdidos no global os textos correspondentes, a relação dos títulos com o mito de Suplicantes parece denunciar, com grande grau de certeza, que seriam essas as restantes peças da tetralogia. Praticamente todos os estudiosos concordam que fosse essa a organização das peças na trilogia. 6 Para a sua tradução, vide A. P. Quintela Sottomayor 1968: 87-88. 7 Segundo Apolodoro 2.22 e Higino (fábula 227) Atena terá instruído Dânao a construir um barco com duas filas de remadores, num total de cinquenta lugares, para se escaparem, ele e as filhas, do Egito. Além de um pequeno relevo tardio, datado já do séc. I da nossa era, que alguns identificaram como representando essa embarcação (LIMC, s.v. ‘Dânaos’ 3), uma hydria ática da primeira metade do séc. IV (LIMC, s.v. ‘Dânaos’ 2) ilustra o desembarque em Argos, mostrando Dânao ainda no barco e a descarregar, com ajuda das filhas, uma série de oferendas para o rei dessa terra, presentes esses que, ao que tudo indica, vemos serem entregues a Pelasgo numa outra hydria da mesma proveniência e do mesmo período (LIMC s.v. ‘Dânaos’ 1). 8 São significativas as cenas de súplica das Danaides a Pelasgo

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da mesma mulher, Io, num passado mitológico ainda mais remoto. É portanto a súplica, a mesma que dá o nome à peça, que estabelece a ponte entre estes dois níveis de uma mesma genealogia mitológica. Io, em tempos que a memória não alcança, era filha de Ínaco, o primeiro rei lendário de Argos, e sacerdotisa de Hera (vv. 291-292). Por ela se apaixonou perdidamente Zeus, despertando com isto, como em tantas outras ocasiões, o ciúme violento da deusa sua esposa. Como resposta imediata a essa traição, Hera transforma a donzela mulher em vaca, além de lhe providenciar um “guarda que tudo vê”, Argos. Porque pretendia de facto a rapariga, Zeus verteu a sua própria forma em touro e, com isso, conseguiu unir-se-lhe no leito. Segundo outras versões, teria sido o pai dos deuses o mentor dessa metamorfose, como forma de livrar a mulher amada dos ciúmes da esposa, ou que ela teria ocorrido, simplesmente, depois de a tocar (e.g. Hesíodo, frg. 124 M-W). Famosa, em termos literários e iconográficos, terá sido a imagem de Argos, esse “boieiro de inúmeros olhos”, como o caracteriza o próprio Ésquilo (Suplicantes, 304 e Prometeu Agrilhoado, 568-569). Na pintura de vasos, ele surge ora com dois rostos e dois pares de olhos (LIMC, s.v. Hera n.º 485, c. 540 a.C.), ora com um olho extra no peito (e.g. LIMC, s.v. Io I n.º 31), ora finalmente, na grande maioria dos casos, com um sem número de olhos espalhados por todo o corpo, que vigiariam em todas as direções (LIMC, s.v. Io I, n.ºs 4-7, 11, 13). Conta Apolodoro (Biblioteca 2. 1. 3) que Zeus ordenou a Hermes que roubasse a novilha a Argos, resultando disso a morte do boieiro. Pormenor na pintura de vasos. Numa série de representações do séc. IV (LIMC, s.v. ‘Danaides’ 1-4; ‘Pelasgos’ 2-8) vêmo-las sobre um altar, envergando ramos de suplicante e, em alguns casos, marcam presença divindades como Atena, Apolo, Eros e Afrodite (e.g. LIMC s.v. ‘Danaides’ 2; ‘Pelasgos’ 2, 8, 9), sugerindo o espaço religioso do altar de Argos consagrado a múltiplas divindades. Curioso é o caso de dois krateres do séc. IV a.C. (LIMC, s.v. ‘Pelasgos’ 2, 3), do segundo dos quais apenas restando um fragmento, onde parece ser o próprio Dânao quem, em posição oficial de súplica – aos joelhos de Pelasgo – suplica por proteção. 10

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lírico da tradição, para que o facto não fosse esquecido pelos vindouros, Hera consagrou a Argos o pavão, pintando na sua cauda, para toda a eternidade, os muitos olhos do seu fiel aliado agora morto. Mas a deusa não se dá ainda por satisfeita. A perseguir a donzela põe um moscardo (ou tavão), fantasma do boieiro que outrora a guardava, e é esse animal que desencadeia a fuga da virgem-novilha de Argos até ao Egito. É notável o tratamento que Baquílides de Ceos dá a este mito no ditirambo 19, composto para os Atenienses em data que não nos é dado saber. Portanto, não é impossível que o texto que vamos citar, em tradução, seja anterior às duas tragédias que tratam desse mito, Suplicantes e Prometeu Agrilhoado, a última de atribuição questionável a Ésquilo.9 Transcrevemos pois os versos 15-36 desse texto: Em tempos (?), abandonando Argos rica em cavalos, pôs-se em fuga a áurea vaca por conselho do supremo Zeus de imenso poder, a filha de dedos róseos de Ínaco, quando a Argos, o que vigia de todos os lados com olhos infatigáveis, ordenou a grande soberana de peplo dourado, Hera, que sem intervalo e sem sono a novilha de belos chifres guardasse; e nem o filho de Maia conseguiu, durante os dias de clara luz, iludi-lo, nem durante as noites sem mácula. Então aconteceu… o veloz mensageiro [de Zeus 9 Não é completamente segura a datação de nenhuma destas peças. Quanto ao Prometeu Agrilhoado, apenas sabemos com certeza que terá sido apresentado depois da erupção do Etna, a que parece aludir, facto ocorrido entre 479/478 a.C. Sobre a data de Suplicantes, refletimos já acima.

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Ésquilo dar morte [ao terrível filho da Terra de robusta descendência [com uma pedra, a Argos; ou, por certo, [cerraram seus olhos terríveis impronunciáveis preocupações; ou as Piérides cultivaram [com doce melodia a cura das suas penas [intermináveis.

Baquílides parece não querer comprometer-se com qualquer versão do mito em concreto, lançando, no final, diversas hipóteses para a morte de Argos. Não obstante, serve o texto de prova da fama do mito, com fórmulas específicas e imagens que vemos repetidas no drama que traduzimos adiante. Em Prometeu Agrilhoado (vv. 563 sqq.), recupera o dramaturgo a mesma história. É no decurso da sua fuga pelo mundo que Io, já metamorfoseada em novilha, chega ao Cáucaso, junto de Prometeu, e o encontra agrilhoado, no cumprimento do seu tão famoso castigo. Ela vem perseguida pelo moscardo, morto que está já Argos, mas nesse animal vê a toda a hora a sombra do seu antigo vigilante. Depois de contar a sua própria história, a pedido do coro, Io vai ouvir da boca de Prometeu as muitas penas que ainda a esperam (vv. 700-740). São-lhe referidos os inúmeros locais do mundo por onde terá ainda que passar, na sua errância que parece não ter fim, até chegar ao Egito onde, fecundada por Zeus (v. 850), há de gerar Épafo. É então que Prometeu acrescenta dados que constituem, no fundo, a versão da lenda como a aproveita Ésquilo para a trilogia das Danaides: (...) a quinta geração a partir dele, de cinquenta filhas, voltará de novo para Argos, contra vontade, para fugir ao casamento com parentes, os seus primos. Mas eles, arrebatados pela paixão, falcões já no encalço das pombas, chegarão desejosos de um casamento indesejável. Mas um deus lhes negará tais uniões e a terra dos Pelasgos os sepultará, dominados por Ares que mata pelo braço das mulheres, com noturna audácia vigilante. Cada esposa roubará a vida ao seu marido, enterrando-lhe na garganta uma espada de dois gumes. (...) Mas o desejo de ter filhos seduzirá uma delas a não matar o marido e a sua decisão se fará 12

Suplicantes fraca. Preferirá ouvir dizer que é cobarde a ser assassina. E será ela que em Argos dará à luz uma estirpe régia.10

A narração conclui com a referência a Héracles, que dessa “estirpe régia”11 há-de nascer, porquanto será ele o libertador de Prometeu. O mito, como o conta Ésquilo e, no global, as restantes fontes, assume-se desde logo como um mito fundacional, de diáspora. Por onde passa, na sua fuga, Io funda povos e cidades que dessa sua passagem recebem o nome. O caso mais flagrante é talvez o do Bósforo cimério, que no seu nome vê refletida, à letra, a “passagem da vaca”. Com Suplicantes situamo-nos no início da ação trágica das cinquenta filhas de Dânao e dos cinquenta filhos de Egito que as pretendem, de forma dita indigna, para um casamento por elas indesejado. É esse, por assim dizer, o segundo nível desta linhagem mitológica. A unir ambos os tempos, o de Io e o das Danaides, está a súplica, formalmente concebida. De outra forma, a história de Io, a sua origem argiva e as suas penas às mãos de Zeus encontram agora, no tempo da ação presente, um paralelo demasiado evidente que lhe permite ser usada como argumento para o pedido de asilo. Um terceiro nível do mesmo mito poderia ainda ser identificado na história que constituiria a ação das duas tragédias perdidas12. Pese embora as dificuldades em reconstituir a ação da trilogia, sobretudo pela escassez de fragmentos conservados, é de admitir que os versos acima transcritos do Prometeu Agrilhoado, mesmo levando em conta a 10 Tradução de A. P. Quintela Sottomayor (1992), Ésquilo. Prometeu Agrilhoado. Lisboa. 11 Porque será de extrema utilidade para a leitura da peça, deixamos aqui a árvore genealógica descendente de Io, mas apenas até à geração em evidência na trilogia das Danaides. Io há de gerar Épafo; da união deste com Mênfis nascerá Líbia que, fecundada por Poséidon, dará à luz dois filhos, Agenor e Belo. Do último descenderão Dânao e Egito, sendo que o primeiro será pai de cinquenta filhas e o segundo de cinquenta varões. 12 Essa tarefa tem sido levada a cabo por vários estudiosos, sendo de realçar A. F. Garvie 1968: 163-233, R. P. Winnington-Ingram 1961: 141156 e A. P. Quintela Sottomayor 1968: 31-35.

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sua problemática atribuição a Ésquilo, constituiriam, em traços gerais, a versão da lenda seguida pelo dramaturgo. Aigyptoi, a segunda peça, abriria com o coro dos filhos de Egito (ou seus representantes13) já após a luta contra os Argivos e, segundo a opinião da maioria dos autores, quando Pelasgo tinha já morrido e o poder sobre Argos havia sido entregue a Dânao. Toda a peça trataria então das negociações conducentes às bodas entre os primos, com as quais – nova esperança vã – terminaria. A ser assim, há que conceder um novo salto na ação, na passagem para a terceira peça, a saber, o assassinato dos cinquenta primos na noite de núpcias, do qual apenas Linceu é poupado por Hipermnestra. Como tal, o terceiro drama, Danaides, poria em cena a resolução religiosa e legal do conflito, sendo de admitir, como defendem alguns estudiosos, que se assistisse ao julgamento das filhas de Dânao, cujo crime havia entretanto sido descoberto. Esta hipótese – que aproxima a estrutura de Danaides de outro conhecido drama esquiliano, Euménides – faz desde logo sentido se levarmos em conta o fr. 44 Radt (cit. Athen. 13.600A = 3.322.24 Kaibel), que tem sido interpretado como parte da defesa dessas mulheres, pela boca da própria deusa Afrodite, ou do ato singular de Hipermnestra. O fragmento, com efeito, versa sobre a universalidade de Eros e Afrodite, tema já aflorado, em jeito de advertência, no final de Suplicantes (vv. 1034-1042). Mas qual seria, afinal, o desfecho da trilogia? O fr. 43 Radt tem sido interpretado como o prelúdio de um epitalâmio que, se colocado no final da última peça, faz crer que esta terminasse com o anúncio, por parte de uma divindade, de novas bodas para as Danaides, que assim seriam reintegradas na ordem social e cósmica que renegavam. Com efeito, um passo da Pítica 9 de Píndaro (vv. 111-116) alude ao episódio mítico segundo o qual Dânao teria dado as 48 filhas (as 50 iniciais, à exceção de Hipermnestra e Amímone, a última das quais pretendida por Poséidon) aos primeiros 48 classificados de uma corrida 13 Apenas M. L. West 1990: 169 (Studies) estranhou que, se de facto o coro da segunda peça fosse constituído pelos filhos de Egito, ela recebesse o título Aigyptoi e não, por exemplo, Aigyptiadai.

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pedestre; e, na Nemeia 10 do mesmo poeta (vv. 1-10), as Danaides são apresentadas como objeto da veneração local, em Argos, na qualidade de fundadoras, ao que tudo indica por via das suas segundas bodas. Fosse ou não esse o destino anunciado no final da trilogia esquiliana, parece coerente depreender que, na versão seguida pelo dramaturgo, seria o casamento o desfecho prescrito para essas mulheres, assim dando cumprimento ao aviso já presente em Suplicantes (vv. 1050-1051). Por isso, o castigo mítico pelo qual ficariam mais conhecidas – e que seria o mais cultivado nas artes plásticas, musicais e dramáticas ao longo dos tempos –, que as coloca no Hades, a encher de água, pela eternidade, uma vasilha furada que nunca fica completa, poderia ser resultado de uma contaminação do mito14 com ritos iniciáticos e de purificação, a avaliar, desde logo, pelo caráter tardio das fontes que o transmitem (Ov. Met. 4.463, 10.43, Her. 14; Hor. Carm. 3.11.25; Tibull. 1.3.79; Hyg. Fab. 168; Serv. in Aen. 10.497). E também a iconografia antiga conservada vem demonstrar que esse castigo penitencial não é detetável durante a Época Clássica. Como bem concluiu Eva Keuls (LIMC, ‘Danaides’, pp. 336-337), ele deve ter sido o resultado de uma fusão da lenda com origens Italiotas, durante o século IV a.C., zona e período dos quais conservamos um considerável número de vasos gregos, sobretudo de produção apúlia (LIMC, ‘Danaides’ 7-20). Essa versão terá sido a que transitaria para a cultura romana, de forma mais profícua, conhecendo a difusão literária que já referimos e uma igualmente assinalável fortuna plástica (LIMC, ‘Danaides’ 24-31)15. 14 A. F. Garvie 1968: 234-235, que concorda com esta teoria, apresenta uma lista dos estudos que a corroboram. 15 A mesma autora, em monografia dedicada em exclusivo ao motivo da expiação das Danaides no Hades (E. Keuls 1974) concluiu que, mesmo nestes vasos do Sul de Itália, não é segura a identificação das figuras, não legendadas, com as filhas de Dânao; mais, que esse modelo expiatório é iconograficamente anterior ao mito em estudo, sendo que com ele terá ganho maior notoriedade. Finalmente, é possível que ele possa já vir indiciado na trilogia de Ésquilo quando, por exemplo, lemos em Suplicantes a promessa do coro de para sempre honrar com hinos os fecundos campos de Argos (vv. 1024-1029), assim aludindo já à associação

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Quanto ao drama satírico que integraria a tetralogia, Amímone, dele se conservam não mais que três brevíssimos fragmentos (frs. 13-15 Nauck2) que poucas ou nenhumas ilações permitem retirar. No entanto, sabemos que Ésquilo foi um hábil e profícuo escritor nesta modalidade,16 e preservamos duas fábulas do latino Higino (n.os 118 e 119), sendo que, pelo menos uma delas, ter-se-á inspirado diretamente no texto esquiliano. Praticamente coincidentes são as versões de Apolodoro (Biblioteca, 2.1.4) e da fábula 119 de Higino, que de seguida resumimos. Amímone, filha de Dânao, enquanto ia buscar água para um sacrifício, é surpreendida por um sátiro que pretende possuí-la. É então que a rapariga implora a proteção de Poséidon (ou Neptuno, na versão latina) que, lançando o seu tridente contra o sátiro, o põe em fuga. Mas a donzela não está ainda a salvo, pois que em seguida é vítima do próprio deus que vai violentá-la, dessa relação nascendo Náuplio. A lenda explica também, etiologicamente, a origem de uma fonte em Lerna, causada pelo cravar do tridente do deus numa rocha. Na fábula 118, Higino apenas acrescenta um pormenor: Amímone estaria a caçar quando, por acidente, atingiu o sátiro que, em resposta, quis depois violá-la. Clara é a relação com as setas de Cupido, que ferem de uma paixão incontrolável quem por elas é atingido, o que pode denunciar o sabor mais tardio desta versão. Não é possível saber com segurança qual dos dois textos do autor latino constitui o resumo do drama satírico esquiliano17 nem quais as reais origens deste episódio.18 Tampouco os dados iconográficos nos auxiliam, pois que sobre esta lenda nada de explícito nos parece ter chegado. De qualquer modo, ambas as versões permitem uma relação fácil com a trilogia das Danaides que teria sido apresentada a concurso imediatamente antes. Em dessas jovens a ninfas de água que viriam a receber culto oficial. 16 Isso testemunham, por exemplo, Pausânias (2.13.6) e Diógenes Laércio (2.17.10). 17 As opiniões a este assunto são, de facto, diversas. Para o seu elenco, vide A. P. Quintela Sottomayor 1968: 37-38. 18 Kurt von Fritz, Antike und moderne Tragödie (Berlin, 1962) 192 admite mesmo que tenha sido Ésquilo o criador deste episódio mítico. 16

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primeiro lugar, estamos no seio da mesma família. Depois, e não menos importante, muda o registo dramático mas continua a ser central o tema da virgindade e da fuga à união com o elemento masculino, chaves de leitura preciosas para o entendimento do drama das Danaides. Culpa e castigo: o drama das Danaides Um leitor mais leigo, a quem comovem de imediato os dramas de Electra, Antígona ou mesmo Medeia, tem grandes dificuldades, se quisermos ser simplistas e colocar desse modo o problema, em compreender qual é, afinal, o drama destas mulheres. A resposta poderia estar num feminismo muito contemporâneo, algo que, por certo, não seria a resposta esquiliana ao problema. Qual, afinal, o drama destas mulheres, que fogem de um casamento nobre, quando tantas heroínas trágicas antigas lamentavam, precisamente, a impossibilidade de casar a que haviam sido votadas19? Pode a chave de interpretação deste drama, à semelhança das restantes tragédias de Ésquilo, residir na dialética culpa/ castigo? Julgamos, à semelhança de tantos outros, que sim. No entanto, falta-nos algo tão importante como sejam duas tragédias completas, para compreender este ciclo de crime e castigo. De outro modo, compreender a mensagem de Suplicantes afigura-se tarefa complicada se pensarmos, desde logo, como seria entender o drama de Orestes se, para tal, apenas conservássemos Agamémnon, a primeira peça da única trilogia que nos chegou completa, a Oresteia. M. Orselli (1990: 15-30) assenta a sua análise da trilogia, e de Suplicantes em especial, nos três níveis mitológicos de que acima falávamos. Ao nível do paradigma mítico mais remoto, Io cometeu hybris ao unir-se no leito a Zeus (ainda que contra a sua vontade), uma culpa que tem, assim mesmo, de ser expiada quer pela sua deambulação pelo mundo, quer pelo nascimento de Épafo, momento de purificação. De facto ele é, na etimologia do 19 O caso mais evidente é o da Electra euripidiana, dada em casamento pela mãe a um camponês.

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seu nome, o “toque”, prova de que só a mão divina pode pôr fim a uma expiação, a um ciclo vicioso e de outro modo interminável de culpa/castigo.20 No segundo nível, o da ação trágica de Suplicantes, as cinquenta filhas de Dânao têm igualmente uma culpa inicial, a aversão ao elemento masculino, que ofende as leis cósmicas de Eros, seja ela universal ou contra estes homens em específico (disso falaremos adiante). A expiação desta falta, como a da sua antepassada, é de igual modo feita pela fuga e pelo exílio. E é talvez essa a questão central e mais debatida de Suplicantes: afinal, qual a razão da fuga das Danaides?21 Responder a esta pergunta garante-nos, de algum modo, a chave para o entendimento do drama. É que, à partida, nada de proibitivo haveria no casamento entre primos, pelo menos não ao nível trágico. Casos mitológicos sobejamente conhecidos, de que são exemplo Orestes e Hermíone, provam isso mesmo.22 A resposta a esta questão tem necessariamente de levar em conta o sintagma autogenei phyxanoria (v. 8) e a tradução a dar-lhe. Tratar-se-á de uma aversão natural à raça masculina, em geral, ou apenas no que diz respeito ao grupo dos cinquenta primos? De outro modo, fará sentido colocar a questão em termos de endogamia e exogamia, ou seja, em termos legais?23 É um facto que Pelasgo, confrontado com o pedido de asilo das suplicantes e temendo uma nova e terrível guerra que há de abater-se sobre o seu povo, caso o conceda, lhes pergunta se não têm os seus primos, enquanto parentes mais próximos, o direito de as pretenderem para esposas (vv. 387-391). De facto, sabe20 H. Bacon 1961: 34 considera que foi Ésquilo o introdutor na lenda do motivo do nascimento de Épafo pelo toque de Zeus. Já Heródoto (3. 28) atesta a versão de ter sido um relâmpago que, ao atingir a novilha, gerou Épafo. 21 Muito se escreveu sobre este assunto. Remetemos, pelo seu interesse e pertinência, para os estudos de F. Ferrari 1974: 375-385, G. Cuniberti 2001: 140-156, J. MacKinnon 1978: 74-82 e M. Orselli 1990: 15-30. 22 Sobre esta questão, vide W. E. Thompson 1967: 273-282. 23 É isso que defendeu G. D. Thompson, Aeschylus and Athens (London, 1941) 293-309.

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se que, segundo as leis de Atenas (Sólon, fr. 48b R = Demosth. 46.18)24, um pai tinha o direito de dar a sua filha em casamento a quem bem entendesse, sendo mesmo comum que tal disposição ficasse expressa em testamento; não obstante, a mesma lei previa que, na ausência da figura paterna, fosse o familiar masculino mais direto o responsável pela decisão de casamento, pelo que, morto Dânao, os filhos de Egito teriam de facto, segundo o código de leis ateniense, autoridade para tomarem as primas como esposas, além de que essa seria a forma legal de as herdeiras conservarem a herança paterna. Seria então fácil perceber que também Dânao recusasse esta união, pois que o que estava sob ameaça era, afinal, a sua própria vida, tomados os sobrinhos por uma vontade incontrolável de deitar as mãos ao seu património. Não nos parecendo ser esta a explicação mais adequada para a problemática acima enunciada, não deixa de ser curioso constatar como Pelasgo, diante de um grupo de estrangeiros, os questiona sobre questões legais, à partida, segundo o paradigma grego, para só depois procurar saber se, também no Egito, haveria alguma lei que autorizasse os cinquenta varões a decidir do futuro das suas primas. Também ao nível legal, portanto, estamos perante uma recategorização do elemento bárbaro. Discutível nos parece também essa outra teoria que entende que o coro odeia por natureza todo o elemento masculino. Os autores que a defendem apoiam-se, não totalmente sem razão, nas constantes invocações a Ártemis, a deusa da caça e da virgindade, ou mesmo na comparação que Pelasgo estabelece entre as Danaides e as Amazonas (v. 287). No entanto, esta última mais não reflete, segundo acreditamos, do que o estranhamento que o confronto com alguém fisicamente diferente causa no rei de Argos e, quanto às invocações da deusa, elas podem ser fruto da tensão do momento. Queremos com isto afirmar que, em desespero, as mulheres deste coro invocam não a deusa que obsessivamente veneram (como é o caso, por exemplo, de Hipólito, na tragédia de Eurípides que recebe o seu nome), 24 A lei soloniana a que aludimos é tratada em detalhe por D. F. Leão, Sólon. Ética e política (Lisboa, 2000) 365-367.

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antes aquela cuja virgindade mais se adequa com o estado físico e moral que, in extremis, querem conservar. Ou seja, é a recusa destes esposos que, no limite, as leva a recusar todos os esposos. O pathos será então o verdadeiro responsável pela generalização da aversão ao elemento masculino, como vemos, por exemplo, nos versos 141-143. Indo mais longe, se é verdade que Ártemis é tradicionalmente associada à virgindade, ela é também, na religião grega, a deusa tutelar da transição feminina da juventude para a idade adulta, por via do casamento. Como deusa das feras, é sua a função de sobre elas impor o jugo, e pode essa atribuição estar em causa na tragédia em apreço25. Dito de outro modo, as Danaides são a mais recente imagem da novilha desvairada que era Io, a necessitar de freio e do toque divino para a redenção. Não deixa contudo de ser pertinente referir como o mito das Danaides, nas suas origens, parecia revestir-se de um acentuado caráter amazónico. Nos cerca de 6000 versos que constituiriam o poema épico perdido Danaida, texto datado do século VI a.C. que Ésquilo poderia conhecer, desenvolvia-se todo o mito, nas suas sucessivas gerações. O fragmento 1, uma curta citação transmitida por Clemente de Alexandria, apresentanos as filhas de Dânao a armar-se para a batalha, nas margens do Nilo, o que nos pode levar a supor que, na versão do mito a que o texto se reporta, haveria lugar a um combate entre as cinquenta virgens e os primos, em igual número. Já na segunda metade do século V a.C. – num texto, portanto, contemporâneo da tragédia que estamos a comentar –, o fragmento 757 PMG atribuído a Melanipes volta a aludir às características masculinas das Danaides, desta vez dedicadas à caça, o que facilmente as associa às Amazonas. E mesmo Eurípides, já no século IV a.C. (Hécuba, 886), alude pela boca da matriarca troiana às filhas de Dânao, comparando-as às mulheres de Lemnos, com o seu génio 25 J. Larson 2007: 106-107 realça como este tipo de cultos matrimoniais, associados a Ártemis, proliferavam um pouco por toda a Grécia, denotando uma dupla função religiosa e social (cívica), na medida em que também se relacionavam com a continuidade e prosperidade da comunidade.

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guerreiro.26 Estas coordenadas do mito parecem no entanto ser relegadas para segundo ou terceiro plano por Ésquilo, mais interessado em evidenciar a feminilidade e sensibilidade destas mulheres. Parece-nos pois preferível entender que estas virgens fogem da violência (hybris) dos primos que as querem transformar não em esposas, mas em escravas. Disso os acusam em variadíssimos momentos da tragédia (e.g. vv. 30, 81, 104, 426, 487, 528, 817, 845, 880 sqq.), acusações que terão uma concretização cénica clara no episódio em que assistimos à ação desmedida do Arauto egípcio que, em diálogo com o rei Pelasgo, afirma que pretende arrastar pelos cabelos as donzelas que se recusarem a seguilo. Também o rico símile das pombas perseguidas pelo “falcão de semelhante plumagem” (vv. 226 sqq.) realça a insolência quase animalesca dos filhos de Egito, que perseguem aquelas que desejam para esposas como se de uma caçada o amor e o casamento se tratassem. A culpa destes varões reside pois na negação da liberdade das mulheres (e mesmo do pai destas) ao pretenderem impor-lhes as núpcias pela força. Por isso terão de sofrer, segundo a lei trágica de que um crime ou uma falta, contra os deuses ou contra os homens, exige expiação. Mas tampouco as filhas de Dânao ficam ausentes de culpa. Não importa qual a verdadeira razão do seu ódio ao casamento e ao elemento masculino, a sua conduta ofende as leis cósmicas de Eros e Afrodite, pois renegam a necessidade de casar e, mais importante, de procriar. Também esse, no fundo, é um crime que deve ser pago, o que, no caso destas jovens, acontecerá com a própria concretização do casamento, em segundas bodas, ou, na tradição posterior do mito, na pena sem fim que terão de passar no Hades, já mortas, imagem possível do ventre feminino que, contra as leis da natureza, recusou ser fecundado e albergar nova vida. Do primeiro castigo (ou antes, desfecho inevitável), ao que parece, adverte-as já o segundo coro que, independentemente 26 Estes e outros dados literários referentes ao mito são analisados por J. M. Lucas de Dios 1991: 4-7.

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das dúvidas quanto à sua constituição27, parece ganhar voz no Êxodo da peça. Esta canção final, antecedida de resto pelo discurso de Dânao sobre os poderes de Eros e Afrodite (vv. 9961005), funciona como um aviso para o castigo que a sua culpa há de atrair. As mesmas mulheres que, de forma tragicamente simbólica, recusam as fecundas águas do Nilo (vv. 854-857)28, pedem agora, chegadas a uma nova terra, que seja fecunda a cidade que amavelmente as acolhe (vv. 688-697); mas parecem esquecer-se de que ser férteis é também a sua missão cósmica. Parecem ter esquecido que essa mesma fertilidade, auxiliada pelo erotismo inerente à sua condição de juventude – e para esse perigo advertira Dânao, num passo de extrema beleza poética (vv. 996-1005) – sairia mais promovida ainda pela fertilidade do 27 Todos os críticos concordam que, a partir do verso 1034, a peça põe em cena dois coros, defensor cada um deles, em alternância, de duas posições contrárias. Houve já quem defendesse que este “segundo coro” fosse constituído (1) por uma metade do coro inicial, que a partir de dada altura se dividiria, (2) pelos filhos de Egito, (3) pelos soldados que entretanto teriam entrado em cena ou, na hipótese que perfilhamos, (4) pelas criadas das filhas de Dânao (elas que, de resto, tinham já sido referidas nos versos 977-979). D. A. Hester (1987) 9-18, baseando-se no facto de todos os verbos, nos versos atribuídos a este segundo coro, estarem no singular, defendeu a possibilidade de apenas Hipermnestra defender as virtudes do casamento, fazendo deste modo o elo para a tragédia seguinte, que perdemos quase na totalidade. Sendo que o próprio autor reconhece que o seu argumento, puramente linguístico, não é cabal, parece-nos de igual modo forçado ver já neste ponto um tão importante papel concedido a Hipermnestra – a única das Danaides, relembremos, que se recusaria a assassinar o esposo, por desejar ter filhos –, e preferimos fazer da última ode coral uma leitura agonística, de resto comum na tragédia grega. Discutimos a formação deste coro adiante, em nota à tradução. 28 H. Bacon 1961: 54-55 reparou nos paralelos entre as referências corais de Suplicantes ao Nilo e os hinos egípcios de louvor a Hapy, deus desse rio. A outro nível, Plínio-o-Velho (NH 36. 58) alude a uma estátua egípcia na qual dezasseis crianças circundam o deus, representando os 16 cúbitos de altura (aproximadamente 7,20 m) que, anualmente, o rio transbordava, assim garantindo a fertilidade do país. Uma série de grupos escultóricos do período alexandrino, dos quais se encontrou um exemplar em Roma, nos inícios do séc. XVI, tê-la-iam imitado.

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espaço que, atendido o seu pedido, seria daí em diante o seu. Naquela que seria a última tragédia da trilogia, Danaides, seriam as filhas de Dânao, uma vez mais, as integrantes do coro, e aí teria lugar a expiação da sua feminilidade assassina, implicitamente concretizada na transição do segundo para o terceiro drama da trilogia. Mas não é preciso sair de Suplicantes e entrar no plano das conjeturas para ver como, desde cedo, a antinomia formulada na ode de abertura (que associa a hybris ao macho e a justiça e ponderação à fêmea) é comprometida. Não é próprio de gente sensata, de facto, a “bárbara” ameaça que o corifeu faz a Pelasgo (vv. 459-465) de que este coro há de manchar com o sangue do seu pescoço suspenso os altares dos deuses onde se encontram. Uma mancha que, desde o início, garantiram não ter sido o motivo da sua fuga apressada (vv. 6-7) e que, em desespero, acaba por vir à tona e por servir de vil chantagem. Na oposição entre sexos de que vive, programaticamente pelo menos, a trilogia – como vimos um tema caro ao mito em causa, desde a sua origem –, todas as certezas são problematizadas e tanto homens como mulheres cometem faltas que não podem deixar de sofrer expiação. Assim o dita a lei dos deuses (que é também lei dramática) tão cara à tragediografia esquiliana. Gregos e bárbaros: a construção da (in)diferença Dânao e as suas cinquenta filhas não são, assumidamente, gregos. O próprio coro reconhece, por inúmeras vezes, a sua diferença, uma diferença que é desde logo linguística, porquanto, dizem, a sua linguagem tem um acento bárbaro (v. 119). No entanto, em termos dramáticos, a opção esquiliana foi a de dotar tanto Dânao como as Danaides da capacidade de se exprimirem num grego quase perfeito,29 remetendo a marca da diferença linguística para o Arauto egípcio e os filhos de Egito que entram em cena na parte final da tragédia. O discurso destes, de facto, denota a utilização de termos egípcios e de uma série 29 Dizemos quase perfeito porque, entre outros, H. Bacon 1961: 20 identificou um conjunto de palavras que poderiam soar estranhas aos ouvidos de um grego.

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de repetições cacofónicas que, em palco, os aproximariam, aos ouvidos dos espectadores, da barbárie. Mas é essencialmente quanto ao aspeto físico e à indumentária que a sua diferença é mais evidente para o grego que as recebe e analisa, Pelasgo, da mesma maneira que o seria para o público. Da sua pele dizem que é queimada pelo sol do Nilo30 (vv. 70, 154-155) e, mais adiante, o próprio Dânao confessa a estranheza que pode causar a sua aparência e a das suas filhas, pois “não alimenta o Nilo uma raça semelhante à de Ínaco” (vv. 496-498). Mas é sobretudo a primeira reação de Pelasgo à apresentação que de si mesmo fez o coro que melhor revela o estranhamento causado pelo confronto de raças (vv. 279-288). Perante o exotismo físico das mulheres que tem diante de si, o rei de Argos mais não pode do que tentar identificá-las com as outras raças que, embora diferentes, conhece, ou das quais ouviu já falar: por isso afirma que as identificaria com mulheres da Líbia, da Cípria ou mesmo com as Amazonas.31 A representação do outro é feita, portanto, de acordo com os paradigmas que o ocidental que o representa conhece e, de algum modo, domina. Como elas, também os filhos de Egito, seus primos, porque da mesma raça e habitantes na mesma terra, recebem caracterização 30 Não é necessário entender estas referências à cor da pele como indicativas de que a raça egípcia fosse, ao tempo, considerada negra. H. Bacon 1961: 26, por exemplo, distingue os Egípcios, que, pelo contacto com outros povos, seriam apenas escuros, dos Etíopes, esses sim considerados realmente negros (e.g. Ésquilo, Prometeu Agrilhoado, 808). 31 Esta comparação das Danaides às Amazonas, quando Pelasgo não conhece ainda o motivo da súplica que lhe será dirigida, pode funcionar como uma antecipação dramática do destino desta geração. Como as Amazonas, também elas vão considerar inútil o casamento e o intercurso sexual com o elemento masculino. Mais, o caráter selvagem, o desprezo pela lei da cidade (masculina) e a associação ao Oriente que caracteriza as Amazonas na literatura grega podem, de facto, apontar essas mesmas características, ainda que subrepticiamente, às cinquenta filhas de Dânao. Este dado foi apontado como prova por quantos defenderam a teoria de que este coro é por natureza avesso ao género masculino e não, como defendemos, na esteira de outros, apenas ao casamento violento com os seus primos.

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física semelhante (vv. 530, 719-720, 745). E também no que toca ao trajo há diferenças evidentes: os Egípcios vestem-se de branco (vv. 720) e as Danaides envergam faustosos vestidos de linho, cobertas as suas cabeças por um véu de Sídon (vv. 119-120). Ao longo de todo o drama vamos tomando contacto com o elevado grau de conhecimento de Ésquilo em relação à terra e aos costumes do Egito. Lemos a alusão ao hábito egípcio de beber cerveja (v. 953), e uma série de metáforas pretende realçar a superioridade grega perante o povo egípcio: enquanto aqueles são comparados aos lobos, estes assemelham-se a cães, como a espiga leva a melhor sobre o fruto do papiro (vv. 760-761), símbolos do sustento de ambos os povos. Mas o dramaturgo vai mais longe. Já H. Bacon 1961: 40 reparou nas proximidades entre as referências ao Nilo presentes na peça e os hinos egípcios dedicados a esse rio. No entanto, é em termos morais (também religiosos) e políticos que Ésquilo trata a diferença entre Ocidente e Oriente, resultando esse esforço, no final, mais na constatação da igualdade que caracteriza esses povos. Que as Danaides são, em termos práticos, tão estrangeiras quanto os seus primos é um facto que não pode negar-se. A identidade coletiva imediata de ambos é a mesma, a cultura egípcia, sendo que as primeiras vão deliberadamente negá-la em prol de uma ascendência muito remota, que é grega, e que apenas num passado mitológico distante encontra alguma réstia de fundamento. Essa negação abrange os costumes e a própria religião. Em detrimento dos deuses das terras do Nilo, a que o Arauto egípcio, no final, se mantém fiel (v. 922), as Danaides prestam culto ao altar comum de divindades gregas, na praia de Argos, demonstrando um forte conhecimento dos atributos e competências de cada deus. A isso as aconselhara Dânao, seu pai e mentor. Com isto, pretendem uma aproximação mais evidente do povo a quem suplicam auxílio, de forma a tornar mais difícil a recusa da parte do anfitrião que as recebe. É no entanto em termos morais que, elas próprias, procuram demonstrar perante Pelasgo em que medida são diferentes dos primos. A cultura egípcia que agora recusam, encarnada nos cinquenta primos que as perseguem, recebe da boca deste coro 25

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constante acusações de insolência (hybris) e impiedade (asebeia). Pela sua parte, buscam as Danaides comportar-se, à tradicional maneira helénica, em plena observância dos preceitos da moderação e da piedade para com os deuses. Era esta, em traços globais, a forma tradicional de distinguir gregos e bárbaros, no tempo em que o total desconhecimento do Outro forjava retratos selvagens de quem não era grego, de quem não falava ou não se comportava moralmente como um habitante da Hélade. Contra esta teoria, vimos já como, em diversas ocasiões, a atitude do coro resvala para a hybris e para o excesso, em especial quando ameaçam Pelasgo de manchar de sangue o recinto religioso onde se encontram. Igualmente insolente e desmedida é a sua postura face ao casamento e à união entre os sexos que, pese embora a violência dos varões que as pretendem, não deixa de atentar contra as leis cósmicas. Ainda no que toca aos costumes, a súplica,32 algo sagrado para os Helenos, é a forma eleita por estas mulheres para se aproximarem dos Argivos e, com isso, conseguirem o que pretendem. A peça abre com a invocação a Zeus, protetor dos suplicantes (v. 1), e constitui talvez um dos melhores testemunhos de que dispomos para a compreensão dos rituais de súplica. É Dânao quem instrui as filhas – estrangeiras que chegam, fugitivas, a um lugar sagrado – sobre qual deve ser a sua postura, enquanto suplicantes, perante as gentes da terra a que aportaram (vv. 191-203), dando conta do pormenor dos ramos entrelaçados de lã, que devem mesmo ser segurados na mão esquerda.33 E é Pelasgo, o rei que as recebe, quem, ao notar isso mesmo, refere claramente que apenas nisso as mulheres que tem diante de si 32 Suplicantes é talvez a tragédia conservada que mais dados fornece ao estudioso sobre os traços formais da súplica dramática, insistindo em pormenores como a presença de um altar (no caso concreto múltiplos altares), nas posições a adotar pelo coro, na descrição dos ramos de suplicantes ou, mesmo, no tom de voz que convém a um suplicante. Sobre este assunto, vd., em especial, J. Gould 1973: 74-103, R. Rhem 1988: 263-307 e M. F. Sousa e Silva 2005: 18-28.

33 Estas informações estão ausentes, por exemplo, das Suplicantes de Eurípides, tragédia do último quartel do século V a.C. Sobre o simbolismo possível desses ramos, na tragédia em apreço, vd. infra, n. 7 à tradução.

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se assemelham a gente da Hélade (vv. 241-245, 333-334). Sabem as Danaides de como não pode um grego recusar a súplica de quem se lhe dirige, se formalmente encetada, e com essa certeza esperam conseguir o favor de Pelasgo, que se torna talvez a única personagem de Suplicantes a lidar com um verdadeiro dilema trágico, por ele próprio formulado (vv. 438-442).34 Mas todo o ritual de súplica vai ser como que pervertido, aquando da primeira recusa categórica do rei, momento que motiva as suplicantes a ameaçá-lo, da forma que já referimos.35 Finalmente, a análise do confronto grego/ bárbaro em Suplicantes tem ainda de levar em conta um outro nível, o da lei. Se pensarmos em lei divina, vimos já como é essa máxima de Zeus, protetor dos suplicantes, que sustenta todo o drama. No entanto, no que à lei dos homens diz respeito, a questão merece um desenvolvimento mais demorado. Colocando de lado os complicados condicionalismos políticos da produção da tetralogia, haja ou não referências claras a um clima de aliança entre Atenas e Argos, estivesse ou não a última polis já democraticamente consolidada, parece claro que Pelasgo, e o povo que dele recebe o nome, funcionam em termos dramáticos como modelos de uma sociedade democrática onde a opinião do coletivo deve sobrepor-se à do monarca em específico. É disso exemplo inequívoco a descrição que, da assembleia popular, faz o próprio Dânao, quando revela às filhas o que nesta se decidiu (vv. 605-624). Um modelo que busca, no anacronismo que o drama permite, ser um retrato da Atenas contemporânea do dramaturgo. O dilema deste rei não é meramente moral e interior. A ameaça de uma mancha de sangue duradoira feita pelo coro não se traduzirá apenas em consequências individuais. Como ele próprio assume, em toda a sua clarividência, toda a cidade ficará manchada e pagará, com o tempo, o preço desse facto (vv. 366367). Como tal, é categórico quando afirma que tem de consultar 34 Sobre Pelasgo, o seu dilema trágico a a sua funcionalidade dramática vide sobretudo os artigos de P. Burian e N. C. Durham 1974: 5-14 e F. Ferrari 1974: 375-385. 35 Vide C. Turner 2001: 27-50.

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o povo antes de tomar qualquer decisão. Perante uma situação limite, quando está em causa ofender os preceitos divinos ou, respeitando-os, provocar uma nova e sangrenta guerra entre os homens, Pelasgo transforma-se naquilo que P. Burian e N. C. Durham 1974: 5-14 oportunamente designaram de “monarca constitucional”, salvaguardados todos os anacronismos de tal nomenclatura. Com essa postura, no entanto, volvese o representante da mensagem política de Ésquilo, onde democracia e tirania se opõem de forma flagrante.36 Defensoras da última, porquanto um tal regime lhes seria, no momento, favorável, são as Danaides. Ao proclamarem, de forma lapidar, que Pelasgo e apenas ele é o povo (v. 370), e que ele sozinho deve ter poder de decisão, pretendem evitar uma recusa de auxílio futura, uma vez consultada a assembleia dos Argivos. Com semelhantes afirmações políticas, ao insistirem em ver em Pelasgo o paradigma oriental do monarca absoluto, as mulheres deste coro, mesmo sem o saberem, estão a afirmar a sua natureza bárbara perante os espectadores gregos, naquilo que pode apenas ser um dos muitos presságios das consequências perniciosas, nos dramas perdidos, da sua também evidente insolência. É Dânao, volvido por momentos em mensageiro trágico, quem vem contar às filhas o resultado dessa assembleia, passada fora do campo de visão do espectador. Z. Petre (1986) 25-32 analisou a fundo o vocabulário jurídico de Suplicantes, em especial da referida cena em que Dânao conta às filhas o sucedido na assembleia que deliberou dar-lhes asilo (vv. 600 sqq.). Aspetos como o elogio da liberdade de expressão ou o valor da palavra persuasiva, numa reunião coletiva com esta importância, passando mesmo pelo pormenor do ar que ficou cheio pelos braços levantados dos votos favoráveis, levaram o autor a concluir, com razão, como em termos políticos a tragédia que estamos a comentar se aproxima da ideologia de Euménides, pela defesa de 36 Semelhante confronto de ideologias políticas vamos encontrar nas Suplicantes de Eurípides (vv. 399-462), quando Teseu e um arauto tebano discutem qual a melhor forma de governo. O que está em causa, nesta tragédia, é entregar ou não os cadáveres dos sete heróis que lutaram contra Tebas.

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uma soberania popular assente nas leis divinas da Justiça (Dike). De igual modo, os passos onde mais diretamente parecem ecoar cenários e momentos comuns da Atenas democrática do século V a.C. (para cujo conhecimento também a comédia nos fornece dados preciosos), embora extemporâneos à ação mitológica, podem funcionar como encómio de uma democracia florescente e, ao mesmo tempo, estão perfeitamente enquadrados no contexto dramático vivido, cujo centro gravitacional é o dilema trágico de Pelasgo. Dito de outro modo, o recurso à consulta popular não tem forçosamente de ser lido como um simples anacronismo político, antes como resultado da situação extrema que vivem as personagens, e Pelasgo em especial. Bem assim, sabemos o quão decisiva é para a moral esquiliana a problemática da liberdade e da responsabilidade no agir. Admitida pelo próprio rei a sua amechania, a sua total incapacidade de decisão, de que resulta o phobos (v. 379), é a necessidade de uma “ideia salvadora” que motiva, agora em termos estritamente dramáticos, o recurso ao parecer da assembleia (vv. 407-417). Entre o medo de uma guerra de homens e da cólera de Zeus, vence, num primeiro instante, este último fator. Mas não encontra ainda solução definitiva o dilema do rei. Ele há de pagar as consequências da sua cumplicidade com a hybris das Danaides. A anuência popular, de algum modo, permitiu-lhe apenas resolver o impasse, tornando coletiva uma decisão que, precisamente pelo medo – que é acima de tudo humano, e como tal também apanágio dos reis – se tornou menos pesada. Uma última palavra merece o tema do asilo suplicado pelo coro, o objetivo para que concorrem todas as suas palavras e atitudes, mesmo as menos moderadas. G. W. Bakewell 1997: 209228 faz da metoikia37 o vetor central da sua análise de Suplicantes, recordando no entanto como a súplica, por si só, garantiria já um acolhimento temporário no território anfitrião. Mas este coro e o seu pai pretendem algo mais concreto e seguro. Também neste 37 Aristóteles, Política 1275b 36-37, considera a metoikia uma medida das reformas de Clístenes (c. 508/507 a.C.). Sobre esta questão, bem como sobre os direitos e deveres legalmente estabelecidos por esse processo e a sua utilização em Atenas, vide D. F. Leão 2005: 63-66.

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aspeto, podemos dizê-lo, conhecem perfeitamente as implicações do que vêm suplicar. Que se trata de um pedido específico de metoikia, um privilégio legal concedido por Atenas a estrangeiros, prova-o a ocorrência do verbo metoikein num discurso de Dânao (vv. 609-614), quando informa as filhas da decisão dos Argivos, reunidos em assembleia, e do próprio substantivo metoikos, pela boca da mesma personagem (v. 994). As suas filhas não poderão ser feitas escravas ou reféns e ficarão legalmente ao abrigo de uma lei que prevê a inviolabilidade da pessoa humana. O cuidado com que Pelasgo descreve as possibilidades de habitação oferecidas às Danaides é também significativo, porquanto em Atenas era vedado aos metecos possuir propriedade. Dânao e o coro tornarse-ão, de algum modo, locatários permanentes, sem obrigação de renda (vv. 1011). Aos Argivos – ao rei, em primeiro lugar, e a todo o povo – fica reservado o papel de protastes (vv. 963-965), uma espécie de procurador encarregue da integração do estrangeiro a quem foi concedido esse direito. Todo este processo, na sua origem, revela intenções de assimilação (mais do que integração) do Outro pela oferta de direitos e deveres que são, em exclusivo, de forja helénica. De algum modo, procura-se pela assimilação neutralizar quem, sem mais, poderia constituir uma ameaça. Em termos de funcionalidade dramática, este recurso legal encontra fundamento num pedido de asilo baseado na ascendência mítica do coro. De facto, é claro o paralelo com a história de Io: as Danaides fazem o percurso inverso ao da sua “mãe antiga”, do Egito para a Grécia. Mais do que um regresso à pátria lendária que dizem ser a sua, o pedido de acolhimento em solo grego tem a alicerçá-lo uma intenção encomiasta do regime democrático. São sempre duas culturas – moral, religiosa e culturalmente entendidas – que se encontram. Desse encontro nasce o estranhamento, a início, mas logo se parte para a identificação, para a representação condicionada do outro segundo paradigmas que são gregos. Todo esse processo fica facilitado quando, como é o caso, é o estrangeiro quem recusa a sua condição e pretende, porque nisso vê a sua salvação, ser aceite e transformado por quem o recebe. 30

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Nota sobre a edição crítica e a tradução Para a presente tradução de Suplicantes, adotámos como base a mais recente edição crítica de M. L. West 1990, em diversos pontos divergente da clássica edição de D. L. Page 1989, sobretudo no que diz respeito à parte final da tragédia e à identificação dos dois semicoros que aí entram em cena. Entre parênteses retos identificamos os passos dúbios, espúrios ou reconstituídos pelo editor, bem assim a identificação não completamente inequívoca das personagens, opção justificada pela natureza fragmentária de uma parte considerável da tragédia. Edições, traduções, escólios e comentários Friis Johansen, H., Whittle, E. W. (1980), Aeschylus. The Suppliants (3 vol.), Copenhagen. Page, D. (1976), Scholia in Aeschylum. Pars I, Leipzig. Radt, S. (1985, 22009), Tragicorum Graecorum Fragmenta. Vol. 3. Aeschylus. Göttingen. [fr. Radt] Sottomayor, A. P. Quintela (1968), Ésquilo. As Suplicantes, Coimbra. West, M. L. (1990), Aeschylus. Tragoediae cum incerti poetae Prometheo, Leipzig. Estudos Bakewell, G. W. (1997), “Metoikia in the Supplices of Aeschylus”, Classical Antiquity 16. 2, 209-228. Bacon, H. H. (1961), Barbarians in Greek Tragedy, New Haven. Burian, P. e Durham, N. C. (1974), “Pelasgus and Politics in Aeschylus’ Danaid Trilogy”, Wienen Studien 8, 5-14. Caldwell, R. S. (1974), “The Psychology of Aeschylus’ Supplices”, Arethusa 7. 1, 45-65. Cuniberti, G. (2001), “Le Supplici di Eschilo, la fuga del maschio e l’inviolabilità della persona”, Museum Helveticum 58. 3, 140-156. Deagustini, M. P. F. (2011), “Deixis social en Suplicantes de Esquilo. Definición de vínculos, motivo y motor dramático”. In Zecchin de Fasano (ed.), G. C., Deixis social y performance en la literatura griega clássica. La Plata. 31

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PERSONAGENS Coro (das Danaides) Dânao Pelasgo [Egípcios] [Arauto Egípcio] [Coro de criadas]

PÁRODO A cena representa a praia da cidade de Argos, onde são visíveis estátuas de vários deuses. O coro entra para a orquestra, seguido pelas criadas e por Dânao. Coro Que Zeus Suplicante1 lance com benevolência a sua mirada sobre o nosso bando marítimo, que um dia partiu das desembocaduras de fina areia do Nilo. Deixando para trás a terra de Zeus, [5] vizinha da Síria2, estamos em fuga; não que, desterradas por voto popular, paga de um crime de sangue3, tenhamos deixado a cidade; antes porque, detestando os varões da nossa raça4, abominamos o casamento com os filhos de Egito [10] e o seu [pensamento] sacrílego. Dânao, nosso pai, o conselheiro e estratego do nosso destino, tendo disposto bem as peças no tabuleiro5, de entre todas as aflições escolheu a mais enobrecedora: fugir em liberdade pela orla marítima [15] e aportar a estas terras de Argos, de onde descende toda a nossa raça, orgulhosa de ter nascido de uma novilha perseguida pelo moscardo, graças ao toque e ao sopro de Zeus6. [20] A que outro país mais propício poderíamos ter chegado, tendo nas mãos estes ramos de suplicantes, galhos entrelaçados de flâmulas de lã7? 37

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[Ó divindades pátrias de Argos] [22a], a quem pertence esta cidade, esta terra e as suas águas cristalinas; deuses das alturas e subterrâneos, [25] que punis com severidade e ocupais as vossas tumbas8, e tu, Zeus Salvador – em terceiro9 lugar te invoco –, tu que proteges a morada dos homens justos! Acolhei como suplicante o nosso bando de mulheres nesta terra onde sopram ventos de piedade. [30] E ao másculo enxame10 carregado de insolência, descendente de Egito, antes que ponha o pé neste terreno pantanoso, recambiai-o na sua nau veloz para mar alto. Aí, no meio de inóspita tempestade, [35] sujeitos ao raio, ao trovão e à confusão dos ventos que trazem a chuva, oxalá pereçam em mar tumultuoso, antes de tomarem de assalto os leitos, interditos por lei divina, das primas que os não desejam. Estrofe 1 [40] Agora invoco o novilho de Zeus, meu defensor, que mora para além do mar, o filho da minha antepassada, a novilha que se alimentava de flores, ele que nasceu do toque [45] e do sopro de Zeus. Cumprido o tempo determinado pelo destino, com razão ela deu à luz o que recebeu o nome de Épafo11. Antístrofe 1 E chamando pelo seu nome, [50] nestas paragens de ricos pastos da minha mãe ancestral, recordada das suas penas antigas, darei a conhecer as dores presentes, indícios dignos de fé que aos que habitam esta terra [55] parecerão inesperados. Reconhecerão no entanto a história com o tempo. Estrofe 2 E acaso ande pelas redondezas um intérprete da língua das aves deste país, ao escutar os meus gemidos [60] julgará ouvir a voz da plangente esposa de Tereu12, digna de compaixão, ou a do rouxinol13 perseguido pelo falcão14, Antístrofe 2 que, banido das suas terras e dos seus rios, chora entre lamentos a sua nova aparência [65] e compõe o canto de morte pelo 38

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filho, contando como indignamente às suas mãos ele sucumbiu, atingido por uma fúria que não é própria de uma mãe. Estrofe 3 Do mesmo modo eu, que me comprazo em chorar à moda da Iónia15, [70] dilacero o meu rosto terno, queimado pelo sol do Nilo, e o meu coração não acostumado às lágrimas. Colho flores de grave lamento, sempre indagando se por estas bandas, na minha fuga [75] da Terra Negra16, encontrarei um amigo pronto a assistir-me. Antístrofe 3 Mas agora, deuses meus antepassados, vós que sabeis discernir o que é justo, escutai-me. [80] E se forçoso for que a minha juventude não se realize contra o destino, posto que tendes horror a toda a espécie de insolência, mostrai-vos ao menos justos quanto ao assunto das minhas bodas. Mesmo aos exilados, oprimidos pela guerra, se oferece um altar, [85] objeto de veneração das divindades.17 Estrofe 4 Oxalá triunfe o desejo de Zeus, se de Zeus é realmente! Não é fácil compreendê-lo. [93] Ocultos se estendem, por toda a parte, [95] os caminhos do seu espírito, sombrios, insondáveis. Antístrofe 4 [91] Cai seguro, nunca de costas, o feito que de Zeus, a um movimento da sua testa, tenha recebido ordem de cumprimento18. [88] Brilha em toda a parte, mesmo na noite escura, [90] juntamente com a negra Sorte, para a multidão dos mortais. Estrofe 5 [96] Das suas esperanças, elevadas como torres, derriba os mortais, totalmente vencidos, sem nunca usar de violência: [100] é que, para os deuses, tudo está isento de esforço. Sentado, daí mesmo faz cumprir o seu pensamento, do alto do seu trono sagrado. 39

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Antístrofe 5 Que volva agora a sua mirada contra a insolência, [105] e veja como se renova a raiz de Belo19, florescendo por causa da minha boda, em pensamentos delirantes e com enlouquecido propósito, [110] como um aguilhão a que se não escapa20, revolvido o pensamento pelos logros da cegueira. Estrofe 6 Tais são as dores lamentosas que proclamo, com os meus cantos agudos, profundos, fonte de lágrimas – ai, ai! [115] Inconfundível por estas desgraças, viva ainda, com meus gemidos me enalteço! Refrão 1 Invoco o favor da montanha de Ápis21! Compreendes bem, ó terra, o meu bárbaro acento22? [120] Uma e outra vez, o seu linho desfazendo em farrapos, me lanço sobre este véu de Sídon23. Antístrofe 6 Para os deuses acorrem sacrifícios em ação de graças, quando tudo vai bem e longe se sente a morte. [125] Ai, ai! Ai a incerteza das minhas penas! Onde há de enfim levar-me esta maré? Refrão 1 Invoco o favor da montanha de Ápis! [130] Compreendes bem, ó terra, o meu bárbaro acento? Uma e outra vez, o seu lindo desfazendo em farrapos, me lanço sobre este véu de Sídon. Estrofe 7 Aqui me trouxeram, não há dúvida, os remos [135] e uma morada feita de lenho entrelaçado com cordas, protetora do assalto das ondas, sem tempestades, com auxílio de ventos favoráveis. Não posso queixar-me. O desfecho, com o tempo, queira o Pai que tudo vê [140] estabelecê-lo favorável.

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Refrão 2 A ilustre semente da minha nobre mãe, de leito varonil – oh, oh! – possa ela livrar-se, sem bodas nem cativeiro. Antístrofe 7 E que, favorável a quem implora o seu favor, [145] queira a casta filha de Zeus24, protetora das portas sagradas25, dirigirme um olhar, garante da minha salvação. Que em todo o seu poder, irada por esta perseguição, virgem que é, ela se torne [150] a salvadora de outra virgem. Refrão 2 A ilustre semente da minha nobre mãe, de leito varonil – oh, oh! – possa ela livrar-se, sem bodas nem cativeiro. Estrofe 8 A não ser assim, nós, [155] a raça enegrecida pelos raios de sol26, ao subterrâneo, a Zeus hospitaleiro para com os defuntos27, com estes ramos na mão nos havemos de apresentar, [160] mortas já pelo enlace de uma corda28, se não alcançarmos o favor dos deuses olímpicos. Refrão 3 Ah Zeus! Ai, é a cólera contra Io que nos persegue, por decreto divino. Bem conheço a ira [165] da esposa de Zeus, o que domou os céus: de forte ventania surge a tempestade29. Antístrofe 8 De outro modo, como poderá Zeus não se ver em meio de vozes que proclamam a sua injustiça, [170] por ter desonrado o filho da Novilha30, a quem ele próprio deu vida e a cujas súplicas vira agora o rosto? [175] Oxalá escute claramente, das alturas, a nossa prece. [Refrão 3] [Ah Zeus! Ai, é a cólera contra Io que nos persegue, por decreto divino. Bem conheço a ira da esposa de Zeus, o que domou os céus: de forte ventania surge a tempestade.] 41

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PRIMEIRO EPISÓDIO Dânao (que escutara, em silêncio, a canção das filhas) Filhas, é necessário ser prudente. Com ajuda de prudente timoneiro31, digno de confiança, este vosso velho pai, aqui chegastes. Mas agora que estamos em terra firme, para que nos acautelemos, incito-vos ainda a gravar nas tabuinhas do vosso espírito32 as minhas palavras. [180] Vejo poeira, arauto mudo de um exército. Não se calam os cubos das rodas, movendo-se no seu eixo. Avisto uma multidão, armada de escudos e brandindo a lança, com cavalos e côncavos carros. Talvez para junto de nós se dirijam os reis desta terra, para nos examinarem, [185] alertados por um qualquer mensageiro. De qualquer modo, quer aqui chegue em paz, quer venha esta expedição armada contra nós, tomada de cólera funesta, melhor é, minhas filhas, que vos senteis nesta colina consagrada aos deuses da cidade. [190] Melhor refúgio do que uma fortaleza é um altar, um escudo inviolável33. Ide pois o quanto antes, e segurando na mão esquerda, de modo a causar pena, os vossos ramos entrelaçados de branca lã, insígnia do divino Zeus, dirigi aos nossos hóspedes, como convém a estrangeiros, palavras de reverência, de súplica e de lamento, [195] deixando bem claro que o vosso exílio não se deve a qualquer crime de sangue34. Antes de mais, que nem uma réstia de audácia acompanhe a conversação, que vaidade alguma se evidencie dos vossos rostos modestos ou dos vossos olhos calmos. [200] Depois, não tomeis a palavra em primeiro lugar nem vos alargueis em discursos: a gente desta zona é de génio irascível. E recorda-te de ceder, já que és exilada e estrangeira em apuros: a língua jactanciosa, é bem verdade, não convém aos mais fracos.

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Corifeu Pai. Falas com sensatez a quem é igualmente sensato. [205] Cuidarei de me lembrar, a toda a hora, desses teus sábios conselhos. E que Zeus, progenitor da nossa raça, olhe por nós. Dânao [210] Que olhe por nós, sim, mas com olhos de clemência. [Corifeu] [208] Quem me dera ter já, junto de Ti, o meu assento! [Dânao] [207] Não tardes mais! [Que a tua técnica35 leve a melhor.] [Corifeu] [209] Zeus, compadece-te das minhas desgraças, antes que a morte me atinja! [Dânao] [211] Se for esse o Seu desejo, tudo acabará em bem. Invocai também esta ave de Zeus36 que aqui vedes. [Corifeu] Invocamos os raios salvadores de Hélios. [Dânao] E ao puro Apolo, também ele um deus desterrado do céu37. [Corifeu] [215] Se também ele conhece essa sorte, há de ter compaixão dos mortais. [Dânao] Que tenha compaixão de nós e, favorável, se perfile a nosso lado. [Corifeu] Que outra destas divindades devo ainda invocar? 43

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[Dânao] Vislumbro um tridente, clara insígnia de um deus38. [Corifeu] Em segurança nos guiou até aqui, em segurança há de receber-nos nesta terra! [Dânao] [220] E este outro é o mensageiro39, segundo os costumes dos Helenos. [Corifeu] Oxalá traga a gente livre boas notícias40! [Dânao] Prestai homenagem ao altar comum de todas estas divindades e tomai assento neste recinto sagrado, qual bando de pombas que teme o falcão de semelhante plumagem41, estirpe impura de inimigos que partilham o mesmo sangue. [225] Como pode ser isenta de mácula a ave que devorou outra ave? De igual modo, como pode ser isento de mácula aquele que pretende o casamento contra a vontade da mulher e contra a vontade de seu pai42? Nem mesmo no Hades, morto que seja, escapará à acusação de impiedade, se desse modo insistir em comportar-se. [230] É que, segundo dizem, quem entre os mortos julga é um outro Zeus43, que para todos os crimes dá sentenças das quais não há recurso possível. Portanto, observai com atenção e respondei desta maneira, se quereis que saia vencedora a nossa causa. Entra o rei Pelasgo, montado num carro, fazendo-se acompanhar de uma escolta de homens armados. [Pelasgo] De onde chega esta multidão, de aspeto tão pouco grego, [235] faustosamente equipada com vestes e bárbaras cintas no cabelo, a quem dirijo a palavra? Esta não é com certeza 44

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indumentária de mulheres da Argólida44 nem de qualquer outra zona da Hélade. E que haveis chegado a esta terra sem arautos, sem hóspedes e sem guias, [240] nada atormentadas pelo medo, isso é o que mais me espanta. É certo que vos vejo depositar ramos, à maneira dos suplicantes, junto dos deuses da cidade: só nesse aspeto a questão pode assemelhar-se à terra da Hélade. Sobre isto, muito mais poderia eu conjeturar, se não te coubesse a ti explicar tudo, [245] posto que estás presente e és provida de língua. Corifeu Quanto à minha indumentária, de facto, não mentiste. Mas agora, é suposto dirigir-me a ti como a um cidadão, um guarda portador do cetro sagrado45 ou o chefe da cidade? Pelasgo Quanto a isso, podes falar e fazer-me perguntas com toda a segurança. [250] Sou filho de Palécton, o que um dia nasceu da Terra46, chamo-me Pelasgo e sou o rei supremo deste país. De mim, seu soberano, recebeu com acerto o nome a raça dos Pelasgos que colhe os frutos desta terra. O meu governo compreende todo o território por onde corre o límpido [255] Estrímon47, em direção ao sol poente. Arrecado ainda a terra dos Perrebos48, todas as regiões que, para lá do Pindo49, fazem fronteira com a Peónia50 e as montanhas de Dodona51; é aí que o mar corrente recorta as minhas fronteiras. Sobre todos esses lugares exerço o meu poder. [260] Quanto ao solo desta terra, recebeu em tempos o nome de Ápia, como homenagem imortal a um herói curador deste país, Ápis, o médico e adivinho filho de Apolo, que em tempos aqui chegou, vindo de longe, da costa de Naupacto52, e libertou o país desses monstros homicidas que, [265] como paga de antigos crimes, a Terra gerara enfurecida – colónia terrível, verdadeiro ninho de serpentes53. Contra eles encontrou Ápis remédios infalíveis e libertadores para terra de Argos, de modo irrepreensível, [270] tanto que, como recompensa, será para sempre lembrado pelas nossas preces. 45

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Estando tu, por fim, em posse de dados suficientes a meu respeito, podes agora vangloriar-te da tua raça e continuar a falar. Mas tem em conta que esta cidade não aprecia longos discursos. [Corifeu] Breve e concisa será a minha resposta. Orgulhamo-nos de ser de raça argiva, [275] descendentes de uma novilha de nobre ascendência. E é verdade tudo isto, como te demonstrarei no decurso da conversa. Pelasgo Inacreditáveis, estrangeiras, são aos meus ouvidos as palavras que proferistes, que sois de raça argiva! Mais vos pareceis com mulheres da Líbia54, [280] e de modo algum com gente desta terra; e também o Nilo poderia ter alimentado semelhante criatura. De igual modo o aspeto cíprio, moldado por mão masculina em formas femininas, é semelhante ao vosso55. Ouvi contar que há índias nómadas que montam, [285] com as suas selas, sobre camelos, como se fossem cavalos, e assim correm de lés a lés as zonas fronteiriças aos Etíopes56; se estivésseis armadas de arco, por certo vos teria confundido com as Amazonas que não têm esposo e comem carne crua. [Mas] se me informares, compreenderei melhor [290] como é possível ser argiva a tua linhagem e a tua origem. [Corifeu] Afirmam que Io guardava as chaves do templo de Hera nesta terra de Argos57. [Pelasgo] [293] Assim é, de facto. E muito se espalhou essa história. [Corifeu] [295] E não dizem também que Zeus se uniu a essa mortal? [Pelasgo] E que às ocultas de Hera não ficaram esses abraços. 46

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[Corifeu] [...] [Pelasgo] E como teve fim essa querela entre os dois soberanos? [Corifeu] A deusa de Argos transformou a mulher de que falamos em novilha. [Pelasgo] [300] E, mesmo assim, não se aproximou Zeus dessa novilha de belos cornos? [Corifeu] Assim consta, vertido o próprio corpo num touro cobridor. [Pelasgo] E que fez a esse respeito a impetuosa esposa de Zeus? [Coro] Junto da novilha pôs de plantão um guarda que tudo vê. [Pelasgo] A que boieiro de múltiplos olhos58, guarda de uma só novilha, te referes? [Coro] [305] Argos, o filho da Terra, a quem Hermes deu morte. [Pelasgo] E que inventou então ela contra essa novilha de sorte desgraçada? [Corifeu] [306a] Um moscardo [alado lhe enviou]. [Pelasgo] Uma mosca que agita [os bois, a isso te referes]? 47

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[Corifeu] [308] “Tavão” é o que lhe chamam junto ao Nilo. [Pelasgo] [310] Em tudo o que disseste estamos de acordo. [Corifeu] [311] Até que, por fim, chegou a Canobo59 e a Mênfis60. [Pelasgo] [309] E assim a expulsou desta terra em grande corrida? [Corifeu] [313] E Zeus, ao toque da sua mão, engendrou-lhe um filho. [Pelasgo] E que novilho de Zeus se pode gabar de ser filho dessa novilha? [Corifeu] [315] Épafo, que com acerto recebeu o nome desses consentimentos. [Pelasgo] [...] Corifeu Líbia, que recorre a maior [parte] desta terra61. [Pelasgo] E que outro rebento afirmas que dela descende? [Corifeu] Belo, pai de dois filhos e pai deste meu pai. [Pelasgo] [320] Revela-me então o nome desse homem tão sapiente. 48

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[Corifeu] Dânao, o que tem um irmão, pai de cinquenta filhos. [Pelasgo] Diz-me também o nome dele, não receies as palavras! [Corifeu] Egito. Agora que conheces a nossa origem ancestral, talvez venhas a agir como quem está diante de uma frota de gente argiva. [Pelasgo] [325] Parece-me de facto que desde tempos imemoráveis partilhais connosco esta terra. Mas como vos atrevestes a abandonar a morada de vossos pais? Que sorte se abateu sobre vós? [Corifeu] Senhor dos Pelasgos, são muito variadas as desgraças dos homens, mas em parte alguma verias semelhante plumagem de infortúnio. [330] Pois quem havia de dizer que esta fuga inesperada nos faria aportar em Argos, desde há muito uma raça parente, impelidas pelo horror aos leitos nupciais? [Pelasgo] Que dizeis então ter vindo suplicar a esta assembleia de deuses, munidas de ramos entrelaçados de branca lã, ainda há pouco cortados? [Corifeu] [335] Jamais vir a ser feita escrava da raça de Egito. [Pelasgo] É questão de ódio, ou referes-te a uma ação contra a lei62? [Corifeu] Quem, afinal, censuraria o seu dono se o amasse? 49

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[Pelasgo] No entanto, é dessa forma que se fortalecem as linhagens entre os mortais. [Corifeu] Coisa fácil é livrar-se assim dos infelizes. [Pelasgo] [340] Como poderei eu ser piedoso para convosco? [Corifeu] Por muito que to peçam, jamais me entregues aos filhos de Egito. [Pelasgo] De pesada sorte falas: despoletar uma nova guerra. [Corifeu] Mas a Justiça protege os que se perfilam lado a lado no combate. [Pelasgo] Sim, se desde o início tomou parte nesses assuntos. [Corifeu] [345] Respeita a proa da tua cidade, rodeada de grinaldas como a vês63. [Pelasgo] Sinto receio ao contemplar estes altares ensombrados. Pesada, sem dúvida, é a ira de Zeus Suplicante. Coro (que se perfila em redor do rei, assumindo a posição de súplica.) Estrofe 1 Filho de Palécton, escuta a minha prece, com coração favorável, ó soberano dos Pelasgos! [350] Volve o teu olhar 50

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para esta fugitiva tua suplicante64, que anda perdida, qual novilha perseguida pelo lobo entre penhascos escarpados, onde, confiante na sua guarda, entre gemidos conta ao pastor as suas penas65. Pelasgo Vejo, à sombra de ramos ainda agora cortados, [355] [um jovem] grupo ante os deuses da cidade. Oxalá a causa destas estrangeiras, que são também cidadãs, não acarrete consigo qualquer desgraça, e que a discórdia não caia inesperada, sem se fazer avisar, sobre a cidade. Disso não tem falta este país. Coro

Antístrofe 1 Oxalá Témis Suplicante66, [360] filha de Zeus que reparte as sortes, olhe pela nossa fuga inofensiva. Quanto a ti, mesmo sendo ancião, aprende com quem é jovem. Não experimentarás [o infortúnio] se respeitares um suplicante […]. A vontade divina [aceita de bom grado os sacrifícios] de um homem sem mácula. Pelasgo [365] Não estais sentadas, levai em conta, nos domínios do meu palácio. Assim, se em comum a cidade fica manchada, deve ser o povo, em comunidade também, a buscar o remédio. Pela minha parte, não me atrevo a fazer-vos qualquer promessa sem antes ter consultado todos os cidadãos a respeito deste assunto. Coro

Estrofe 2 [370] És tu a cidade, tu é que és o povo! Líder a nenhum poder sujeito, só tu governas sobre este altar, coração desta terra, e com o aceno soberano da tua fronte, no teu trono de um só cetro, [375] necessário é que tudo decidas. Evita apenas cometer sacrilégio67. Pelasgo Que o sacrilégio recaia sobre os meus inimigos. Quanto 51

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a vós, não vos posso ajudar sem mais consequências. Mas tampouco é prudente desprezar estas súplicas. Não encontro solução, o medo tomou de assalto o meu espírito: [380] medo de agir, de não agir e de confiar na sorte. Coro

Antístrofe 2 Ao que lá do alto nos olha, n’Ele põe agora o teu olhar, o guarda dos mortais que muito sofrem, dos que, postados diante dos seus semelhantes, não obtêm o que é seu por direito. [385] A ira de Zeus Suplicante está à espreita do que não se compadece dos gritos de quem sofre. [Pelasgo] Se os filhos de Egito, segundo a lei da cidade68, têm direitos sobre ti, quando alegam ser os teus parentes mais chegados, quem há de querer fazer-lhes frente? [390] Em tua defesa deves dizer que, pelas leis do teu país69, não têm qualquer poder sobre ti. Corifeu

Estrofe 3 O que quer que aconteça, que jamais eu caia nas poderosas garras desses homens. Um só caminho vislumbro, fugir sob os astros da noite a essa boda funesta. [395] Tomando como aliada a Justiça, decide-te pelo respeito para com os deuses. Pelasgo Não é fácil tomar partido nesta questão. Não me escolhas a mim como juiz. Como antes disse, nada farei sem primeiro consultar o povo, apesar de ser seu soberano, [400] para que jamais me venham a acusar, se acontecer alguma desgraça, “perdeste a cidade por atenderes a estrangeiras.” Coro

Antístrofe 3 Parente, pelo sangue, de ambas as partes, Zeus, o que para um e outro lado faz pender os pratos da balança, observa lá do 52

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alto estes acontecimentos e, na sua justiça, com castigos premeia os malvados e com recompensas os que estão conforme a lei. [405] Pesadas com equidade estas coisas, [por que te pesa] fazer justiça? Pelasgo Necessito de uma ideia profunda que nos salve. E que bem fundo desça um olhar atento, não afetado pelo vinho, tal qual um mergulhador70, [410] para que, antes de mais, a nossa situação não venha a prejudicar a cidade e em bem se resolva para nós próprios. Que uma guerra de represálias não nos atinja ou, caso vos entreguemos, desse modo prostradas junto aos altares dos deuses, não vamos com isso atrair o funesto Vingador, o deus que tudo destrói71, [415] penoso companheiro de morada, um Alastor72 que nem no Hades dá repouso aos defuntos. Não vos parece então que é necessário arranjar uma ideia que nos salve? Coro Estrofe 4 Reflete pois, e sê para nós, com justiça, piedoso anfitrião. [420] Mas não atraiçoes esta exilada, que partiu de muito longe, vítima de ímpios ataques. Antístrofe 4 Nem queiras ver-me arrebatada, como prémio, destes altares de muitos deuses, [425] tu que deténs o poder supremo sobre esta terra. Reconhece a insolência desses homens e livra-te da cólera73. Estrofe 5 E não consintas ver uma suplicante ser arrastada [430] destas estátuas, contra o preceito da justiça, como uma égua, puxada pelas cintas e agarrada pelos peplos de muitos fios entrelaçados. Antístrofe 5 Fica a saber claramente: a teus filhos e à tua casa, [435] de 53

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acordo com o que agora decidires, a eles caberá, um dia, pagar a Ares a devida recompensa. Pensa bem: o poder de Zeus é justiceiro. Pelasgo Já refleti quanto podia, e aqui é que o navio encalha74: contra uns ou contra outros, forçoso é que empreenda uma grande guerra, [440] e já a quilha está pregada como se tivesse sido arrastada por cabrestantes marinhos. No entanto, não é possível arranjar uma solução isenta de dor. Quando de algumas casas desaparecem as riquezas, [445] com a graça de Zeus, protetor dos bens, [444] mais do que pela guerra, logo podem outras vir compensar a carga; e se uma língua dispara como dardos palavras inoportunas, [448] dolorosas e que revolvem por completo o coração, [447] pode uma conversa apaziguar o resultado de outra conversa. Mas em ordem que não seja derramado sangue do mesmo sangue, [450] é necessário fazer sacrifícios em abundância e oferecer muitas vítimas a muitos deuses, remédio contra o infortúnio. Pela minha parte, evito ao máximo estas contendas. Prefiro ser um mau profeta a um profeta acertado de desgraças. Que tudo tenha, no entanto, um feliz desfecho, contrário a este meu parecer. [Corifeu] [455] Escuta agora a derradeira, das muitas palavras dignas de pena que te dirigi. Pelasgo Escuto sim, e podes falar. Nada me escapará. [Corifeu] Tenho comigo cintos e faixas, com os quais prendo os peplos75. [Pelasgo] [Costumam] esses acessórios cair bem às mulheres. 54

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[Corifeu] Fica então a saber que deles farei uma bela solução. Pelasgo [460] Dirás que discurso é esse que te preparas para proferir. Corifeu Se não fazes a este bando uma promessa de lealdade... [Pelasgo] Que te aproveitará esse esquema das cintas? Corifeu ... com tabuinhas inéditas há de decorar estas estátuas. Pelasgo Enigmáticas são as tuas palavras. Fala mais claramente. Corifeu [465] Aqui, de imediato, penderá o nosso pescoço das estátuas dos deuses. Pelasgo As palavras que escuto açoitam-me o coração. Corifeu Vejo que compreendeste. Fiz-te ver as coisas mais claramente. [Pelasgo] [467a] [Não há dúvida... e] de todas as formas o caso é difícil de levar a cabo, e sobre mim avança um rio transbordante de desgraças. [470] Em profundo pélago de infortúnio me encontro, difícil de cruzar, e não avisto em parte alguma um porto para as aflições76. Se não cumpro a minha obrigação para convosco, ameaças-me com uma mancha impossível de limpar. Ao invés, se contra os filhos de Egito, teus parentes de sangue, [475] em tua defesa fizer frente, postando-me diante da muralha 55

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em posição de combate, como não há de ser terrível a perda de homens que manchem o solo de sangue, por causa de mulheres? Contudo, é imperativo prestar reverência à ira de Zeus, protetor dos suplicantes: esse é o maior dos temores para os mortais. [480] Quanto a ti, velho pai destas mulheres virgens, [...] colhe agora em teus braços estes ramos e leva-os ante outros altares de deuses desta terra, para que todos os cidadãos vejam o símbolo da nossa súplica e não rejeitem [485] o meu pedido. Muito gosta o povo de criticar o poder. Ao ver isto, quem sabe se alguém, enchendo-se de compaixão, não vai odiar a insolência desse bando de homens, e com isso o povo vos seja mais favorável. No que toca aos mais débeis, há sempre lugar para a benevolência. [Dânao] (que permanecera em cena durante o diálogo entre Pelasgo e o coro) [490] Para nós, é já da máxima importância que tenhamos encontrado um anfitrião piedoso. Concede-nos no entanto uma escolta e guias deste país que nos ajudem a encontrar esses altares, que ficam de fronte dos templos dos deuses protetores desta terra, e os assentos desses mesmos deuses, [495] e para que possamos, em segurança, atravessar a cidade: é que a natureza não nos fez de aspeto semelhante ao vosso, já que o Nilo não alimenta uma raça parecida à de Ínaco77. Cuida que a confiança em demasia não venha a gerar o medo. Houve já quem, por ignorância, tenha morto um amigo. Pelasgo (para a sua escolta pessoal) [500] Toca a andar, homens! Bem falou este estrangeiro. Conduzi-o pois aos altares da cidade e aos assentos dos deuses. E com quem encontrardes no caminho, não converseis em demasia, já que conduzis um marinheiro, suplicante dos nossos deuses. (Dânao sai) Corifeu A ele deste já as tuas instruções, que partisse escoltado. [505] Quanto a mim, que devo fazer? Que garantias tens para me dar? 56

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Pelasgo Para começar, deposita aqui mesmo esses ramos, insígnia da vossa dor. [Corifeu] Pois bem. Aqui os deixo, confiada nas tuas palavras. [Pelasgo] Agora desce para a planura deste recinto sagrado. [Corifeu] E como há de proteger-me um recinto sagrado acessível a todos? [Pelasgo] [510] Jamais [te] exporia às garras das aves de rapina. [Corifeu] E se for algo pior ainda do que terríveis serpentes? [Pelasgo] Deves ser auspiciosa para quem é auspicioso contigo. [Corifeu] Não é de estranhar que esteja impaciente, dado o temor do meu espírito. [Pelasgo] Coisa insólita sempre foi o temor [dos soberanos]! [Corifeu] [515] Por isso é a ti, com as tuas palavras e com os teus atos, que cabe refrear o meu espírito. [Pelasgo] Teu pai não te deixará só por muito tempo. Entretanto, apresso-me a convocar o povo deste país, para vos tornar favorável a opinião pública, e ensinarei a teu pai o que convém 57

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que ele diga. [520] Assim sendo, deixa-te ficar aqui e dirige súplicas aos deuses da terra, para obter o que desejas alcançar. Eu tratarei de tudo. E que a Persuasão e a Fortuna realizadora me acompanhem. (Sai Pelasgo)

PRIMEIRO ESTÁSIMO Coro Estrofe 1 Ó soberano dos soberanos, bem-aventurado [525] entre os bem-aventurados, poderosa potestade entre as forças poderosas, ditoso Zeus! Deixa-te persuadir e afasta da tua raça a insolência desses homens, com razão tomado de cólera. Afunda, em mar de cor púrpura, a sua nau [530] da desgraça de negros flancos78. Antístrofe 1 E olhando, propício, para a nossa raça de mulheres, célebre de há muito, descendente de uma mulher por ti amada, minha antepassada, renova agora essa história de afeto. [535] Recordate das muitas promessas que fizeste à minha raça, tu, que tocaste em Io. À linhagem de Zeus nos orgulhamos de pertencer, oriundas desta terra que foi sua morada. Estrofe 2 No encalce de uma pista antiga cheguei a esta colina coberta de flores, que servia de pasto à minha mãe, [540] prado que alimentava uma bezerra, de onde Io, picada por um moscardo, fugiu em tempos, enlouquecida, atravessando muitas tribos de mortais. [Por ordem do destino] transpõe a fronteira da terra [545] que tinha em frente, [em duas partes] dividida79, e atravessa o estreito que as ondas agitam. Antístrofe 2 Avança por terras de Ásia, cruzando a Frígia criadora de carneiros; deixa para trás a cidade de Teutrante dos Mísios, 58

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[550] os vales dos Lídios e as montanhas da Cilícia; pelos rios de Pânfilo que sempre correm e a sua rica terra se precipita, e pela região [555] rica em trigo de Afrodite80. Estrofe 3 Chega por fim, às investidas do aguilhão desse boieiro alado, ao próspero recinto de Zeus que a todos nutre, aos prados que as neves alimentam81, nos quais irrompe [560] a fúria de Tífon82, e às aguas do Nilo nunca tocadas pela doença, desvairada por penas indignas e sofrimentos causados por um aguilhão, qual bacante83 possuída por Hera. Antístrofe 3 [565] Os mortais que habitam essa terra estremecem em seu coração, pálidos de medo, à vista de uma cena inédita, [por verem] um monstro horripilante, ser mortal híbrido, uma parte bezerra, [570] a outra mulher, e perante tal prodígio ficam estarrecidos. Quem, então, foi capaz de quebrar o encanto à miserável Io que tanto vagueou, excitada pelo moscardo? Estrofe 4 O que reina por toda a eternidade [575] [...]; e pelo poder isento de dano de Zeus, com o seu sopro divino, ela se acalma, enquanto, entre muitas lágrimas, chora a sua triste vergonha. [580] Após suportar o peso de Zeus, assim conta a lenda que não mente, gerou um filho irrepreensível, Antístrofe 4 por largo tempo detentor da maior felicidade. E por isso proclama a terra inteira: “É esta a verdadeira descendência de Zeus, [585] senhor que dá a vida.” Quem mais poderia pôr cobro aos ímpetos traiçoeiros de Hera? É obra de Zeus, e acertarias se dissesses que esta é a descendência de Épafo. Estrofe 5 [590] Que outro deus poderia eu com razão invocar para estes assuntos de extrema justiça? [O meu próprio] pai, o soberano e enxertador, por mão própria, da minha raça, o supremo realizador experimentado, bálsamo para todos os males, Zeus, o senhor dos ventos. 59

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Antístrofe 5 [595] Não se senta em trono submetido a nenhum outro, o seu poder não é inferior ao dos mais poderosos; a ninguém, acima de si, presta veneração. É-lhe possível, a uma ordem, dar cumprimento a qualquer ação. Que coisa há que não possa dominar a mente de Zeus? SEGUNDO EPISÓDIO Regressa Dânao, para contar o que se passou na assembleia dos Argivos. Dânao [600] Ânimo, minhas filhas! No que toca aos cidadãos, tudo vai bem: do povo saíram decretos soberanos. Corifeu Ó ancião querido, as melhores notícias me trazes! Mas conta-nos o que se decidiu no final, e de que modo se manifestou o braço maioritário do povo84. Dânao [605] Deliberaram os Argivos, sem margem para dúvidas, de tal modo que senti rejuvenescer o meu velho coração, pois que o éter se eriçou com as mãos direitas de todo o povo, que aprovou a seguinte resolução: que podemos também nós habitar esta terra, em liberdade [610] e protegidos de rapina, com a segurança dos mortais; e nenhum dos habitantes deste país, ou qualquer outro que venha de fora, poderá levar-nos. E se alguém tentar usar de força sobre nós, aquele de entre os proprietários de terras que não nos defender há de ver-se privado dos seus direitos e sofrer o desterro decretado pelo povo85. [615] Com estes discursos a nosso respeito os persuadia o soberano Pelasgo, advertindo-os de que, no futuro, jamais a cidade devia aumentar a terrível cólera de Zeus Suplicante, dizendo que esta dupla mancha, estrangeira e nacional, ao pairar sobre a cidade, [620] poderia converter-se em alimento irremediável para a ruína. 60

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Ouvindo tudo isto, os Argivos, de braço no ar, sem necessidade de escutar o arauto, decretaram que assim havia de ser. O povo dos Pelasgos deu ouvidos aos oradores convincentes que lhe falavam, mas foi Zeus quem determinou este desfecho. Corifeu [625] Vamos! Dirijamos aos Argivos votos de felicidade, em troca da felicidade que nos proporcionaram. E que Zeus hospitaleiro zele pelas honras que lhes tece uma boca estrangeira, [com sinceridade lhes concedendo um desenlace em tudo irrepreensível]. SEGUNDO ESTÁSIMO Coro

Estrofe 1 [630] [É também agora o momento] para que vós, deuses, nascidos de Zeus, escuteis as preces que pedimos para este povo. Que jamais [635] destrua esta cidade da Pelásguia, pelo fogo, o insolente Ares, cujo grito não incita à dança86, ele que ceifa a vida dos homens em prados alheios. Pois tiveram compaixão de nós, [640] concederam-nos o seu voto favorável e apiedaram-se destas suplicantes de Zeus, deste rebanho desditoso. Antístrofe 1 E não votaram a favor dos varões, para desonra [645] da causa das mulheres, por respeito ao olhar realizador de Zeus, sempre vigilante, contra o qual não há guerra possível, e com quem nenhuma casa pode reconciliar-se [650] se o tem sobre o telhado; ao invés, arruína-a o seu peso. Respeitaram enfim estas suplicantes, descendentes do puro Zeus, como irmãs; assim, em puros [655] altares granjearão o favor dos deuses. Estrofe 2 Por isso, voem dos meus lábios ensombrados os votos em sua homenagem. Jamais a peste venha a privar a cidade [660] 61

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dos seus varões, nem [a discórdia87] manche o pátrio solo com o sangue dos seus filhos defuntos. Permaneça por cortar a flor da juventude, e que Ares, [665] o sanguinário companheiro de leito de Afrodite88, não lhe devaste a fina flor. Antístrofe 2 Que se enalteçam as salas em que se reúnem os anciãos de altares bem guarnecidos, em chamas; [670] seja desse modo a cidade bem habitada pelos que prestam reverência ao supremo Zeus, acima de tudo o deus hospitaleiro, que com a velha lei rege o destino89. Nasçam para esta terra, [675] pela eternidade, novos protetores, e que Ártemis que acerta ao longe vele pelos partos das mulheres90. Estrofe 3 E que nenhuma peste assassina de homens acorra [680] a dizimar esta terra, dando armas a Ares, o deus que detesta as danças e a cítara, pai de todas as lágrimas, e a uma guerra civil. Que o terrível enxame de doenças [685] permaneça longe dos cidadãos; seja favorável o deus Liceio91 a todos os seus mancebos. Antístrofe 3 E que Zeus torne verdadeiramente fértil esta terra, [690] em colheitas de todas as estações; sejam fecundos os rebanhos que pascem nos campos, e toda a espécie de benesses lhes venha dos deuses. Que os aedos entoem, junto aos altares, [695] canções inspiradas pelas musas, e que de lábios sem mácula brote uma melodia amante da lira 92. Estrofe 4 Que o povo soberano, guardião da cidade, conserve sem receios as suas honras, [700] poder previdente que a todos atende. Que aos estrangeiros conceda, antes de Ares se aprontar para a guerra, a justiça de arbítrios sem sofrimentos. 62

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Antístrofe 4 E que aos deuses nativos, soberanos desta terra, para sempre [705] os honrem com honras pátrias de oferendas de louro e sacrifícios de bois. Pois o respeito pelos antepassados ocupa o terceiro lugar entre as disposições sagradas prescritas pela veneranda Justiça93.

TERCEIRO EPISÓDIO Dânao [710] Estou de acordo com esses votos prudentes, queridas filhas. Não vos enchais no entanto de medo ao escutar de vosso pai palavras novas e de todo inesperadas. Vejo já o barco, aqui deste posto de vigia que acolhe os suplicantes. Vê-se muito bem. Não me escapam [715] a equipagem das velas ou os resguardos do navio, nem a proa que, na dianteira, com seus olhos indica o caminho a seguir, submetida – nada nossa amiga – às ordens do leme que na parte de trás a dirige. São bem visíveis os marinheiros com os seus membros de cor escura94, [720] por entre a brancura das suas vestes. Mais do que evidentes são também o resto da armada e as embarcações de apoio. A capitania, recolhidas já as velas, dirige-se agora mesmo para a costa, fazendo-se anunciar com grande estrépito. No entanto, é necessário que encareis a questão com calma e prudência, [725] sem descurar estes deuses. Pela minha parte, parto a buscar quem vos apoie e defenda. É bem possível que chegue aqui um mensageiro ou uma embaixada com a pretensão de vos levar como reféns. Mas não há de ser nada, não tenhais medo deles! [730] O melhor, caso tardemos em chegar com auxílio, é que nem por um segundo olvideis a defesa que aqui vos assiste. Coragem! Com o tempo, no dia marcado pelo destino, há de receber castigo todo o mortal que despreza as divindades. 63

Ésquilo

Corifeu Estrofe 1 Pai! Tenho medo, sim, pois estão para chegar as naus de asas velozes95, [735] e já não falta, entretanto, tempo nenhum. Um imenso receio toma conta de mim, se acaso lucrarei com esta minha fuga errante. Pai, estou morta de medo! Dânao Coragem, filha! Terão cumprimento os votos dos Argivos: [740] lutarão por ti, bem o sei. [Corifeu]

Antístrofe 1 Execrável é a terrível prole de Egito, insaciável de combate. Mas isto, digo-o a quem o sabe. Com barcos bem equipados de escura face navegaram até aqui, sob o auspício de uma cólera inspirada, [745] com uma armada de negro aspeto. Dânao Estrofe 2 Muitos homens encontrarão, com os braços fortalecidos pelo sol do meio dia. [Corifeu] Não me deixes só pai, imploro-te! Nada pode uma mulher sozinha. Nela não reside Ares. [750] Malvados, é o que eles são, dissimulados, impuros os seus corações, semelhantes a corvos96, que não respeitam sequer os altares. Dânao Antístrofe 2 Muito nos aproveitaria, minha filha, se eles ganhassem não apenas o teu ódio, mas também o dos deuses. [Corifeu] [755] Nem por respeito a estes tridentes, nem por veneração dos deuses, afastariam eles de nós as suas mãos, meu 64

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pai! Insolentes em demasia, enfurecidos com uma raiva ímpia, atrevidos como cães: nunca dão ouvidos aos deuses. Dânao [760] No entanto, é voz corrente de que os lobos são mais fortes do que os cães; e que o fruto do papiro não leva a melhor sobre a espiga de trigo97. [Corifeu] Mas posto que têm o temperamento de bestas sanguinárias e sacrílegas, é preciso ter cuidado [com a sua força]. Dânao Não é rápido o ataque de uma armada naval, [765] nem a sua acostagem, que necessita de cabos protetores para chegar a terra; nem os comandantes dos navios confiam sem mais nos ancoradouros, em especial quando chegam a um país que não tem porto, ou quando o sol já se deitou, ao cair da noite. A noite [770] compraz-se em dar trabalhos de parto ao piloto que é prudente. Não pode por isso ocorrer um bom desembarque da armada sem que o barco confie plenamente no ancoradouro. Quanto a ti, apavorada como estás, trata de não descurar os deuses. [Pela minha parte, …], uma vez que tenha arranjado auxílio. Não há de a cidade censurar um mensageiro já velho, [775] se ele se mostrar jovem na eloquência do espírito. (Sai) TERCEIRO ESTÁSIMO Coro Estrofe 1 Ó terra montanhosa, objeto justo da nossa veneração! Que há de ser de nós? Para onde fugiremos nesta terra de Ápis, se é que existe ainda, algures, um esconderijo sombrio? Oxalá nos volvêssemos em negro fumo, [780] vizinho das nuvens de Zeus; oxalá, invisíveis de todo, qual poeira desprovida de asas, levantássemos voo e encontrássemos a morte. 65

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Antístrofe 1 Não mais é possível escapar ao terror! [785] Enegrecido, sinto palpitar no peito o meu coração. As visões de meu pai tomam conta de mim. Morro de medo! Quem me dera encontrar o laço fatal das cordas, [790] antes que um varão detestável tocasse a minha pele. Melhor seria, já mortas, que Hades fosse o nosso senhor. Estrofe 2 Onde existirá, para mim, um assento etéreo, onde se mudam em neve as nuvens carregadas de água? Ou uma rocha polida, [795] repleta de escarpas, elevada a perder de vista, solitária e suspensa, verdadeiro ninho de abutres que dê testemunho da minha queda no abismo, antes de suportar em meu coração as violências dessa boda assassina? Antístrofe 2 [800] Não me oporia então a converter-me em pasto para os cães ou banquete para as aves de rapina desta terra: pois a morte liberta dos males que trazem gemidos. Que a morte chegue [805] antes de encontrar o leito de um esposo. Que outra fuga, que outro caminho que me salve do casamento inventarei ainda? Estrofe 3 [Mas ergue a tua voz], cantos celestiais de súplica aos deuses [e às deusas], para que, benévolos, [810] possam aos meus desejos dar cumprimento. Dirige-nos, ó Pai, a tua mirada salvadora e combativa, e contempla, com olhos hostis, como é de justiça, estes atos de violência. [815] Respeita estas tuas suplicantes, ó Zeus todo-poderoso, senhor desta terra! Antístrofe 3 Pois a máscula prole de Egito, insuportável na sua insolência [...] perseguindo-me [820] entre gritos frenéticos, a mim que fujo, pretende à força tomar-me como sua. A Ti só pertence o fiel da balança. Sem Ti, que coisa há que para os mortais se cumpra? 66

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QUARTO EPISÓDIO Entra um Arauto e os filhos de Egito (ou um grupo seu representante), em busca das Danaides. [Egípcios]98 [825] Oh, oh, oh! Ah, ah, ah! ... cá está o raptor! ... [826a] num barco ... [826b] em terra já... [Coro] Antes, porém, oxalá encontres a morte, tu que me arrebatas... de novo... lanço um grito de terror... [830] vejo nisto o prelúdio das minhas penas violentas. Eh, eh!... busca na fuga o teu auxílio... arrogâncias... insolente... dores no mar e na terra... [835] fica do meu lado, senhor desta terra! [Egípcios] A andar, a andar, para o barco, como puderem esses pés! Ou preferem, [ou preferem] esses cabelos arrancados, cabelos arrancados e marcas de ferro quente, [840] o sanguinário e assassino horror das cabeças cortadas. A andar, a andar! Estão perdidas, [estão perdidas, para o barco!] [Coro]

Estrofe 1 Oxalá tivesses morrido enquanto cruzavas esse mar salgado de múltiplas vagas, [845] com essa insolência tirânica, no teu madeiro reforçado de pregos. [Egípcios] Coberta de sangue te lançarei para o barco. Quieta, abandona essa atitude! Ordeno-te que te deixes de gritos [...].[850] Desejo e [cegueira para a mente, oh...]. Deixa esses assentos e vai para o barco, mostra-te piedosa para com esta cidade! 67

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[Coro]

Antístrofe 1 Oxalá nunca mais vejas [855] essas águas que alimentam bois, nas quais, com toda a prosperidade, floresce o sangue que garante a vida entre os mortais. [Egípcios] Isto é gente dada à guerra, de nobreza antiga. [860] [[Estes altares, estes altares ilustres]]99. Mas tu, para o barco, para o barco hás de embarcar sem demoras, queiras ou não queiras. Muita força tem a violência. Rápida [...] é embarcar, [[sofrendo males infelizes, [865] infligindo golpes com as palmas das mãos]]100. [Coro]

Estrofe 2 Ai, ai! Ai, ai! Assim, sem poderes resistir, oxalá encontres a morte, errante pelo promontório sagrado que o mar banha, [870] junto ao túmulo coberto de areia de Sarpédon101, entre os ventos da Síria. Arauto Egípcio102 [882] Ordeno-te que embarques para o barco de dupla proa o quanto antes. E nada de perder tempo. [884] A ter que te arrastar, não haverá qualquer respeito pelas tuas tranças. [Coro] Antístrofe 2 [876] Ai, ai, ai, ai! Ultraje [...] te ufanas [...].[880] Que o poderoso Destino aniquile completamente quem é insolente, graças à sua cegueira. Arauto [872] Grita, geme e invoca os deuses à tua vontade! Do barco egípcio é que não escaparás! [[Grita e vocifera] [875] com voz ainda mais amarga do que as dores da tua desgraça]]. 68

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Coro Estrofe 3 [885] Ai, ai, meu pai! [O refúgio destas estátuas foi em vão103! À força,] passo a passo, como a uma aranha, arrasta-me um pesadelo, um negro pesadelo! Ai, ai! Ai, ai de mim! [890] Ó Terra, minha mãe, ó Terra! Afasta de mim [este grito] tão terrível! Ó pai Zeus, filho da Terra104! Arauto Não tenho medo nenhum dos deuses deste país. Não foram eles que me criaram, nem foi com os seus alimentos que cheguei a velho. Coro Antístrofe 3 [895] Enraivecida se agita a serpente de dois pés, como uma víbora105 me [...]. Que coisa alguma vez [...] monstro [...]? Ai, ai! Ai, ai de mim! [900] Ó Terra, minha mãe, ó Terra! Afasta de mim [este grito] | tão terrível! Ó pai Zeus, filho da Terra! Arauto Se não te pões a andar para o barco como te ordeno, hei de rasgar-te esses vestidos sem piedade! [Corifeu] Estrofe 4 [905] Ai príncipes, senhores deste país! Estou perdida! Arauto [909] Estou a ver que tenho que vos arrastar pelos cabelos, [910] já que parecem não compreender bem as minhas palavras. [Corifeu] Antístrofe 4 [908] Estamos perdidas! Sofremos, senhor, penas impronunciáveis! 69

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Arauto [906] Muitos senhores, os descendentes de Egito, hás de encontrar não tarda. [907] Tem paciência: não te queixarás de falta de senhor! Pelasgo, que ouviu os gritos das suplicantes, entra em cena com uma escolta de homens armados. Pelasgo [911] Tu! O que pensas que estás a fazer? O que te passou pela cabeça para assim desonrares esta terra de homens pelasgos? Julgas por acaso que estás perante uma cidade de mulheres? Bárbaro como és, vanglorias-te em demasia diante dos Helenos [915] e, em toda a tua arrogância, em nada foste sensato. Arauto Que lei contrariei eu com os meus atos? Pelasgo Para começar, não sabes comportar-te como é obrigação do estrangeiro. Arauto Como assim? Limito-me a encontrar e levar de volta o que tinha perdido. Pelasgo E com que patronos desta terra tu falaste? Arauto [920] Com Hermes, [o patrono] maior de quem busca alguma coisa. Pelasgo Mesmo dirigindo-te aos deuses, nenhum respeito mostras pelos deuses? 70

Suplicantes

Arauto Os deuses das margens do Nilo, são esses que eu respeito. Pelasgo E os de cá, se bem te entendo, não te dizem nada. Arauto Hei de levá-las, se ninguém mas arrebatar! Pelasgo [925] Essa atitude há de causar-te muitas lágrimas, caso lhes toques, e não demorará muito! Arauto Bem ouvi! Esse teu discurso é muito pouco hospitaleiro. Pelasgo Eu não sou hospitaleiro para quem vilipendia os deuses. Arauto Vou a correr contar tudo isto aos filhos de Egito. Pelasgo Essas ameaças não dão cuidados ao meu espírito. Arauto [930] No entanto, para que ao chegar eu fale com clareza, bem informado – pois fica bem ao mensageiro contar tudo, com exatidão – como devo falar? Quem direi, à minha chegada, que me privou do bando das suas primas? Estas questões, não as julga Ares em seu tribunal, [935] nem põe termo à discórdia por meio do dinheiro. Antes disso, muitos são os guerreiros que tombam e a muitos outros a vida é arrebatada. [Pelasgo] Qual a necessidade de te dizer o meu nome? Com o tempo 71

Ésquilo

ficarás a sabê-lo, [tu] e os teus companheiros de viagem. [940] Quanto a estas mulheres, poderás levá-las, mas apenas se tal consentirem em seus corações e se as convencer um discurso bem-intencionado [...]. Tais foram os decretos da cidade, suportados pelo voto unânime do povo: nunca entregar pela força este grupo de mulheres. E a cavilha desses decretos [945] foi bem martelada até ao fim, de forma que ficasse bem segura. Estas palavras não foram gravadas em tabuinhas nem escritas em rolos de papiro selados, antes as escutas, com clareza, de uma boca livre. Agora, toca a andar para longe da minha vista, e depressa! [Arauto] [950] Nesse caso, parece-me que em breve se erguerá uma nova guerra. E que a vitória e o poder estejam do lado dos homens. (Sai) [Pelasgo] (Para o arauto, enquanto sai) Homens, poderás também encontrá-los entre os habitantes desta terra, desses que não bebem vinho feito de cevada. Quanto a vós (fala para o Coro), na companhia de todas as servas, vossas amigas, [955] tende coragem, e encaminhai-vos para a cidade de belas muralhas, protegida pelo seu elevado aparelho de torres. É que nela há muitas casas de populares – e eu próprio não construí a minha olhando a gastos. Aí podereis, com muitas outras mulheres, ocupar aposentos bem guarnecidos. [960] E se vos agradar algo ainda melhor, podereis viver em casas só para vós. Escolhei à vontade o que vos seja mais cómodo e mais agradável. O vosso hospedeiro sou eu e todos os cidadãos, por cujo decreto chegámos à presente [965] situação. Porque aguardais ainda por gente mais poderosa do que nós? [Coro] Em troca destes bens, que para sempre prosperes com os teus bens, divino chefe dos Pelasgos! Favorável à nossa causa, 72

Suplicantes

manda-nos chamar Dânao, nosso corajoso pai, o nosso chefe e sábio conselheiro. Dele deve partir a primeira decisão sobre as casas que convém habitar [970] [...] e o local mais propício. Toda a gente está pronta a criticar os que falam uma língua estrangeira. Que tudo corra, então, pelo melhor. [975] [...] com o nosso bom nome e sem o falatório rancoroso das gentes desta terra. [Entra em cena um seguro coro, composto pelas criadas das Danaides.] Tomai a posição, queridas servas, segundo a qual Dânao, a cada uma de nós, deu como dote uma criada. Entra Dânao com uma escolta pessoal de Argivos. Dânao [980] Filhas, impõe-se oferecer aos Argivos preces, sacrifícios e libações, como se de deuses olímpicos se tratassem, pois foram, sem dúvida alguma, a nossa tábua de salvação. Ao ouvirem da minha boca, amigavelmente, as ações cometidas contra quem é da mesma raça, ganharam ódio aos vossos primos. [985] Para mim, providenciaram esta escolta de homens que brandem a lança, para que tivesse um honroso privilégio e jamais fosse esquecido se, desprevenido, calhasse ser ferido de morte pela lança, o que constituiria um peso sem fim para esta terra [...]. [Nem... mais honrosa do que eu]. [990] Já que obtemos semelhantes benesses, há que prestar-lhes do fundo da alma uma homenagem [mais honrosa do que a mim]. E agora, aos muitos outros conselhos que deste vosso pai aprendestes, gravai mais este na vossa memória: apenas o tempo permite que gente estranha seja apreciada. Toda a gente tem a língua pronta para dizer mal do meteco, [995] e em menos de nada se propaga uma calúnia. Peço-vos que não vos torneis, para mim, motivo de desonra, já que tendes essa juventude que cativa o olhar dos mortais. O fruto maduro não é de maneira nenhuma fácil de guardar; desejam-no as feras e os homens, como não! Sejam bestas aladas ou dessas que caminham sobre a terra, Cípris lhes anuncia os frutos maduros, [1000] estropeando os verdes, de forma que delirem de desejo; do mesmo modo, quem quer que vislumbre 73

Ésquilo

[1005] a delicada beleza das donzelas, contra elas lança de seus olhos um raio sedutor, vencido pelo desejo. Por isso, não vamos agora sofrer de novo pelo que já nos fez suportar tantos sofrimentos e nos levou a arar com o lenho106, nem para nós vamos granjear vergonha e satisfação para os nossos inimigos. Duas moradas tendes à vossa disposição: [1010] uma vo-la deu Pelasgo, a outra a cidade, para habitardes sem obrigação de renda. É muito fácil. Guardai apenas estas palavras de vosso pai, prestando à moderação maior reverência do que à própria vida. Corifeu Que em tudo o resto nos sejam propícios os deuses do Olimpo. [1015] Quanto à minha castidade, podes ficar tranquilo, pai. A menos que os deuses decidam algo de novo, não hei de afastar-me da conduta que antes estabeleci.

ÊXODO Coro

Estrofe 1 Vinde pois, [celebrando] os senhores desta cidade, os bemaventurados deuses, [1020] os protetores da cidade e as gentes que habitam perto da ancestral corrente do Erasino. Continuai, servas, o nosso canto. Seja a cidade dos Pelasgos para sempre o motivo do meu canto, e que não mais honremos com hinos [1025] as desembocaduras do Nilo, Antístrofe 1 antes os rios de muitos afluentes que por este país derramam a sua água pacificadora, e com férteis correntes enriquecem o chão desta terra. [1030] Que a pura Ártemis volva, compadecida, a sua mirada para o meu bando, e por força do destino não sejamos arrastadas para a cerimónia de Citereia; a ser assim, obtenha eu o prémio estígio! 74

Suplicantes

[Criadas107]

Estrofe 2 Cípris não deve ser menosprezada, essa a minha lei benévola; [1035] pois tem poder semelhante ao de Zeus e Hera, e a deusa fecunda em ardis108 é honrada pelas suas sacras ações. A seu lado, assistindo a sua mãe, estão o Desejo e essa outra a quem jamais algo foi negado, [1040] Persuasão, a feiticeira, e também a sorte de Harmonia foi dada a Afrodite, tal como os sussurros e o trato dos Amores109. Antístrofe 2 Para estas fugitivas receio os seus sopros, cruas penas e guerras de sangue. [1045] Mas porque fizeram eles boa viagem, seguindo-nos a toda a velocidade? O que está fixado pelo destino há de por força cumprir-se. Insuperável é o grande pensamento de Zeus, insondável. [1050] Seja o casamento o teu fim, como o de muitas outras mulheres anteriores a ti. [Coro]

Estrofe 3 Que Zeus todo-poderoso afaste de mim as bodas com os filhos de Egito. [Criadas] Isso seria o melhor. [Coro] [1055] Pudesses tu dominar quem não pode ser dominado! [Criadas] Acontece que tu ignoras o que está para vir. [Coro]

Antístrofe 3 Porque havia eu de indagar sobre o pensamento de Zeus, sobre o seu olhar impenetrável? 75

Ésquilo

[Criadas] Faz a tua prece com palavras comedidas. [Coro] [1060] Que lição de conveniência queres afinal ensinar-me? [Criadas] No que toca aos deuses, a não cometer excessos. [Coro] Estrofe 4 Que Zeus soberano me livre dessas bodas cruéis com um homem que detesto, ele que libertou Io [1065] das suas penas ao tocá-la com mão salvadora, exercendo uma violência benevolente. Antístrofe 4 E oxalá conceda a vitória às mulheres. Com dois terços de felicidade110 [1070] já me contento – mal menor –, e que, de acordo com as minhas preces, a justiça esteja do lado dos justos, por obra de esquemas libertadores que vêm de um deus.

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Suplicantes

NOTAS À TRADUÇÃO

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Ésquilo

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Suplicantes

1 Zeus Aphiktor (à letra, “protetor dos suplicantes”) não constitui uma forma de culto atestada (essa seria Zeus Ikesios), pelo que se sugeriu já que o epíteto terá sido uma criação de Ésquilo. A tragédia abre com a invocação ao deus supremo, cujo principal atributo é central para a história das Danaides. Desde os Poemas Homéricos que percebemos como o dever de acolher e honrar um suplicante era, para os gregos, algo sagrado, cuja infração o deus puniria severamente. 2 Referem-se ao Egito. A sua designação como “terra de Zeus” visa reforçar o apelo à divindade e explica-se porquanto nesse lugar existia o oráculo de Ámon, que os gregos identificavam com Zeus (Píndaro, Píticas 4.16; Heródoto 2.42.5; Plutarco, Isis 354c). 3 O coro deixa bem claro desde o início que o seu acolhimento em Argos não implica manchar de sangue essa terra, que não cometeu qualquer atimia e, como tal, é seguro dar-lhes guarida. No entanto, mais adiante, ameaçarão poluir o altar onde se encontram pelo enforcamento, caso o rei não lhes conceda auxílio. Desde os tempos heroicos que o homicídio era punido com o exílio. Vide Ilíada 13.695-696, 16.573-574, Odisseia 23.118-120. 4 Autogene phylaxanorian é talvez a expressão mais debatida de todo o texto, porquanto uma opção de tradução determina a explicação adotada para a fuga das Danaides. Em coerência com o que escrevemos na Introdução, preferimos entendê-la como ódio pelos homens da mesma raça, não pela consanguinidade, antes pela sua violência e demência (asebe [dianoian]), a que de resto o texto alude no verso seguinte. 5 O original, neste ponto, parece aludir a um jogo de dados, estando em causa a ponderação cuidada da próxima jogada. 6 Referências globais ao mito no texto da tragédia não serão comentadas em nota, devendo o leitor consultar a Introdução, em especial o capítulo “O mito e a trilogia”. 7 Pelasgo comentará adiante como apenas na observância dos rituais de súplica este coro lhe parece de mulheres gregas. De facto, sabemos por Heródoto 2.81.1 que os ramos de oliveira eram proibidos nos templos egípcios. T. Gantz 1978: 280 considera que a alusão aos ramos de súplica, neste ponto, pretende já sugerir ao público o futuro caráter assassino das Danaides, porquanto, em rigor, a primeira 79

Ésquilo referência do texto é apenas a iketon ennkeididiois (v. 21), à letra, ‘objetos de súplica que se têm nas mãos’, vindo a concretização desse acessório apenas no verso seguinte. Segundo o autor, ficaria de alguma maneira, para os conhecedores do mito, implícito que, ao longo da trilogia, esses ramos se mudariam para punhais. Até porque Apolodoro (Biblioteca 2.1.5), para se referir às armas das Danaides, usa precisamente o mesmo termo. Winnington-Ingram 1961: 148 sugeriu mesmo que, no párodo da peça, o coro envergasse punhais, em vez de ramos de suplicante. A outro nível, os espectadores poderiam ainda recordar o ramo de suplicante que envergava na mão o assassino confesso que é Orestes, no final das Coéforas (v. 1035). O assunto foi recentemente retomado por M. P. F. Deagustini 2011: 85 e n. 22. 8 Estas outras divindades são os heróis, que tradicionalmente protegiam a terra onde estavam sepultados, punindo com severidade quem contra ela atentasse. Vide Ésquilo, Sete Contra Tebas, 709 e Euménides, 767 para outras ocorrências. 9 Zeus seria o terceiro nomeado numa libação, logo depois dos restantes deuses olímpicos (1) e dos heróis (2). Exemplos disso mesmo encontramos em Ésquilo, Agamémnon 284-285, 1386-1387; Coéforas, 1073; Euménides 759-760. 10 A imagem do enxame de homens visa dar conta do número elevado dos filhos de Egito (50, como as primas). Qualquer que seja o animal em que Ésquilo pensou, esta referência inclui-se nas várias metáforas animais usadas ao longo da peça para se referir à esta luta pelas bodas forçadas. A nossa tradução entendeu, de algum modo, como preferível a imagem da vespa, com a conotação sexual e mesmo as relações mitológicas que lhe estão associadas. De facto, também Io foi perseguida por um moscardo que a punha em fuga pelo mundo. Assim, com as Danaides, ainda que em termos imagéticos, a história repete-se. 11 Épafo significa, à letra, “o que nasceu do toque” de Zeus. 12 Refere-se a Procne, a filha de Pandíon, soberano de Atenas, casada com Tereu, rei da Trácia. Filomela, irmã de Procne, vem viver com o casal, Tereu possui-a e, para que nada pudesse revelar desse crime, manda que lhe seja cortada a língua. Conseguindo Filomela exprimir-se pelo bordado de um lavor, Procne resolve assassinar Ítis, o seu filho e de Tereu, e servi-lo em refeição ao próprio pai. Ao descobrir o terrível prodígio, Tereu enceta uma perseguição de ambas as mulheres. Mas os 80

Suplicantes deuses tranformam-no a ele em poupa, a Procne em rouxinol e a Filomela (ou Édona) em andorinha. Os autores latinos, no entanto, parecem ter confundido as metamorfoses de Procne e Filomela. 13 Filomela. Vide nota anterior. 14 O falcão está por Tereu. Muito embora a versão mais divulgada em Atenas, sobretudo através da tragédia Tereu de Sófocles, o apresente metamorfoseado em poupa, a fábula 45 de Higino dá como hipótese a transformação em falcão. A escolha de Ésquilo vai ficar justificada mais tarde, quando as Danaides se comparam a pombas perseguidas por esse animal (vv. 224-225). 15 Forma usada por estrangeiros para referir, simplesmente, “à moda grega”. 16 Segundo o escoliasta, o adjetivo aeria, aplicado ao Egito, teria o sentido de “coberto de névoas”, próprio de uma zona costeira. Traduzimos por “Terra Negra”, porquanto os próprios antigos egípcios à sua pátria se refeririam com a palavra «Kemt», que teria essa mesma tradução. A ideia do original deve, no entanto, reportar-se mais ao nevoeiro de uma cidade costeira que amanhece, uma atmosfera que, para estas mulheres, a aproxima do ambiente do próprio Hades e a relaciona com a morte. 17 Em solo sagrado, também durante a Antiguidade, um escravo ou um exilado de guerra estava a salvo do seu perseguidor e não podia aí ser morto ou feito cativo (e.g. Eurípides, Heraclidas 260). 18 O escoliasta explica esta imagem pela comparação a um lutador, que nunca cairia desamparado em caso de vitória. Mas tal não faz sentido se entendermos como, numa luta, quem cai de todo é o derrotado, não o vencedor, o que não seria conveniente a uma ação de Zeus. Como tal, preferimos a hipótese dos que entendem aqui a referência ao salto de um animal selvagem de grande porte. 19 Belo foi pai de Dânao e Egito, filho de Líbia e neto de Épafo, descendente direto, este último, de Io e Zeus (vd. v. 319). O que está em causa é a imagem vegetal de um dos ramos de uma mesma árvore, a de Belo, que floresce em insolência. 20 O agrilhoar tinha uma forte carga erótica em toda a literatura grega e traz à memória, de igual modo, a história de Io, posta em fuga primeiro pelo aguilhão de Zeus (metaforicamente entendido), e finalmente pelo aguilhão do moscardo que Hera pôs a persegui-la. 81

Ésquilo 21 Ápis teria sido um adivinho, filho de Apolo, que chegara a Argos, vindo de Naupacto, para libertar a região dos monstros que a atormentavam, segundo o próprio Pelasgo vai contar adiante (vv. 259270). Significa, simplesmente, a terra argiva. 22 No grego, o adjetivo karbana, que ganhou o sentido de “estrangeiro” ou “bárbaro”, parece ter origens egípcias, provavelmente referindo-se à terra de Qarbana, no Egito, cidade que os Gregos designavam de Heracleion. Por essas bandas teriam as Danaides encetado a sua fuga. Este sotaque bárbaro que o coro atribui a si próprio não invalida, como dissemos na Introdução, que, à parte de um ou outro termo de sabor estrangeiro, o seu grego seja, no essencial, tão perfeito quanto o do rei Pelasgo. 23 A referência a Sídon é, desde os Poemas Homéricos, uma expressão de luxo e requinte (e.g. Ilíada 2.289-291, Odisseia 4.615-619). A referência ao rasgar das vestes (e mesmo da pele) constitui um dos rituais do lamento grego (Eurípides, Suplicantes 50-51 e Electra 146). Outros casos há onde são mulheres bárbaras quem procede deste modo (Ilíada 19.284; Ésquilo, Persas 124, 538). 24 Ártemis, a sempre virgem filha de Zeus. Discutimos já na Introdução como esta invocação, a nosso ver, não é suficiente para sustentar a opinião de quantos defendem que as Danaides cultivam uma aversão natural a todo o elemento masculino, antes que, porque se trata de manter a virgindade, recusando estas bodas, Ártemis é a deusa mais óbvia a invocar. 25 Pode, neste atributo de Ártemis, estar uma referência à virgindade. Recordamos, a título de exemplo, como, no frg. 196a de Arquíloco (séc. VII a.C.), o sujeito se refere à penetração como o atravessar desses portais. 26 Alusão à diferença do aspeto destas mulheres (vide Introdução). 27 Hades, que também na Ilíada recebe o nome de “Zeus subterrâneo” (9.457). 28 A ameaça será repetida adiante (v. 465), na presença de Pelasgo, em reação à primeira recusa de auxílio do rei dos Argivos. 29 Referência aos ciúmes de Hera que motivaram a perseguição de Io pelo mundo e que, agora, parecem repetir a sua atuação com estas descendentes da novilha amada por Zeus. A última frase parece ter um sentido proverbial. 82

Suplicantes 30 Épafo. 31 A imagem da nau do Estado, pela comparação da cidade a um navio que atravessa a tormenta e depende em exclusivo das qualidades do seu timoneiro, foi cristalizada pela tragédia, em especial a partir dos Sete contra Tebas de Ésquilo, marcando no entanto presença em inúmeros dramas conservados. A imagem é, no entanto, bastante mais antiga, surgindo já nos fragmentos 6, 73, 208 e 305 Lobel-Page de Alceu (fr. 6 e 326 PLF) e, segundo acreditamos, nos frs. 105 e 106 West de Arquíloco. 32 A mesma metáfora surge em Ésquilo, Prometeu Agrilhoado 789. 33 À segurança garantida por um recinto sagrado havia já aludido o próprio coro (vv. 83-85). 34 Mais uma ideia no discurso de Dânao já expressa pelo coro (vv. 6-7), prova de como foram bem instruídas estas mulheres pelo pai, que elas mesmas confessaram, antes, ser o estratego e mentor das suas errâncias (vv. 11-12). 35 A “técnica” (mechane) a que se refere o original é, provavelmente, a retórica, a arte da palavra. 36 A lição Zenos ornin, defendida por M. L. West, permite associar Hélios ao deus-pássaro filho de Amon Ré. A partir deste ponto, tudo indica que o coro se vai referindo aos deuses cujas imagens são visíveis nesse espaço cénico que representa o altar comum de várias divindades em Argos. Os epidíticos do texto grego parecem demonstrar isso mesmo. A primeira divindade referida é Hélios, deus do sol e dos fenómenos atmosféricos. 37 Quando Zeus assassinou o filho de Apolo, Asclépio, por ter ressuscitado um defunto, Apolo vingou-se matando os Cíclopes, filhos de Zeus, o que lhe valeu o desterro do Olimpo (vide Apolodoro, 3.10.4). Será a este episódio mitológico que o coro se refere. 38 Referência a Poséidon, simbolizado na iconografia precisamente pelo tridente, imagem do seu poder sobre o mundo marítimo. Tendo já sido favorável a este coro na viagem de fuga, implora-se-lhe agora que, uma vez mais, se mostre propício. 39 Refere-se a Hermes. 40 Como vimos na Introdução, Hermes tinha sido o matador de Argos, o boieiro que guardava Io, a mando de Hera. Tem, portanto, na história desta linhagem, uma associação óbvia com a ideia de libertação. 41 É uma vez mais óbvia a alusão ao mito de Tereu, Procne e Filomela, acima referido (vv. 60 sqq.). 83

Ésquilo 42 As Danaides, estrangeiras como são, revelam-se conhecedoras do direito grego que, no tempo da apresentação da tragédia, garantia a um pai o direito de casar a filha com quem entendesse. Na ausência dele, essa decisão cabia ao parente mais próximo. 43 É Hades este outro Zeus, senhor do mundo subterrâneo (vide nota 24). 44 O confronto com o elemento bárbaro leva Pelasgo a tentar, sem sucesso, identificá-lo com um qualquer paradigma civilizacional grego. 45 O portador do cetro era um guarda do templo sagrado. 46 Segundo outras versões, seria Pelasgo quem, diretamente, teria nascido da Terra (e.g. Hesíodo, frg. 160 M-W). O próprio nome de Palécton, em grego, significa “indígena”, o que pretende dar essa mesma carga semântica à raça dos Pelasgos. De resto, o nome é aqui usado como epónimo, porquanto a maioria dos autores o chama de Gelanor. 47 Um rio local. 48 De origem pelásgica, este povo habitava no Norte da Tessália. 49 Cordilheira montanhosa entre o Epiro e a Tessália. 50 Uma região da Macedónia. 51 No Epiro. 52 Cidade situada no Golfo de Corinto. 53 De acordo com o escólio a este passo, haveria aqui a alusão a um mito local que não logrou obter fama na tradição literária ou iconográfica. De qualquer modo, o que está em causa, com esta narração de Pelasgo, é alertar as mulheres que tem diante de si da gravidade que representa, para esta cidade, a poluição por derramamento de sangue. 54 Por Líbia, no século V a.C., os Gregos tomavam todo o continente africano. Na sua tentativa de identificação das estrangeiras, Pelasgo não está, geograficamente, muito enganado. 55 Supõe-se aqui uma metáfora da cunhagem de moedas. O texto, no entanto, é duvidoso. 56 Os Etíopes, que segundo Homero viviam nos extremos Este e Oeste do mundo (cf. Odisseia 1.23-24), tinham integrado a armada de Xerxes contra a Grécia (Heródoto, 7.70). Representam, como tal, o limite do desconhecido e da barbárie. 57 O coro inicia o relato, dialogado em esticomitia com Pelasgo, do seu passado mítico, que as legitima como descendentes da terra onde se encontram. Para o mito, vide a nossa Introdução. 84

Suplicantes 58 Vimos, na Introdução, a fama literária e iconográfica do epíteto panoptes, aplicado a Argos. 59 Cidade vizinha do território da atual Alexandria. 60 Mênfis era a antiga capital do Egito. 61 Para a complexa genealogia desta família, vide a nossa Introdução, nota 12. 62 Primeira alusão, ainda ténue, da parte de Pelasgo, à legalidade ou ilegalidade dessas bodas, de acordo com o direito grego. 63 Recupera o coro a imagem da nau do Estado, não para elogiar, desta vez, o seu timoneiro, antes para representar a sua proa, metáfora desse altar costeiro a múltiplos deuses onde se desenrola a ação. 64 O coro dirige-se agora a Pelasgo nos mesmos termos com que, na abertura do drama, se dirigia ao próprio Zeus. São impressionantes os paralelos linguísticos, no original, entre ambas as invocações. Faz isto sentido como prelúdio do poder supremo que, adiante, as Danaides vão afirmar ser o deste rei, que dispensa, como tal, a opinião popular. 65 Mais uma imagem animal, das muitas presentes na tragédia, que denota a violência dos varões (aqui o lobo) e o caráter indefeso do coro (a novilha). 66 Filha de Zeus, Themis (a Justiça) é antes de mais a personificação da justiça de seu pai, em especial para com os suplicantes, de que é patrono. 67 Uma vez mais, Pelasgo é descrito pelo coro como Zeus na terra, na medida em que, ambos – no parecer destas mulheres – são detentores de um poder supremo, insuperável e infalível. Para a discussão dos dois sistemas políticos defendidos por Pelasgo e pelo Coro, veja-se o que a este respeito se disse na Introdução. 68 Novamente a questão legal. Pelasgo tem de certificar-se que não está a agir contra a lei, antes mesmo de consultar o povo sobre o pedido de asilo das suplicantes. De facto, uma vez morto Dânao, a lei ateniense estabelecia que seriam os parentes mais próximos a decidir a quem entregar as filhas em casamento. 69 A lei egípcia, que Pelasgo confessa desconhecer, pode funcionar como tábua de salvação, se nela houver algo que proíba o casamento entre primos. As Danaides nada respondem, a este respeito, pois que, para elas, a questão não é legal, antes têm aversão, segundo cremos, ao caráter insolente dos primos. 85

Ésquilo 70 Segundo o escoliasta, trata-se de um símile em que a reflexão é comparada ao ofício de um mergulhador, coletor de esponjas. Este profissional seria examinado, antes de se lançar à água, para certificar que os seus olhos não mostravam indícios de álcool. A imagem quer expressar, ao que parece, a necessidade de uma reflexão séria, profunda e isenta, dada a gravidade da situação. 71 Zeus, senhor do raio e patrono dos suplicantes. Outros julgam ser o próprio Hades, soberano do mundo dos mortos. 72 Uma divindade maléfica. 73 A referência neste ponto, ao que tudo indica, é à cólera de Zeus, com cuja invocação abriu a tragédia. 74 Apoiados na informação do escoliasta, é possível ver aqui, ainda que ténue, um resquício da alegoria da nau do Estado, que marca grande presença na peça. 75 Este diálogo, com o ritmo rápido próprio da esticomitia, constituiu talvez o momento de maior tensão da tragédia, quando o herói trágico que é Pelasgo vê mais agravado o seu dilema. Ele é também importante na medida em que contribui para a caracterização da personalidade deste coro, que assume definitivamente a sua audácia – contrária, de resto, aos preceitos que lhe dera Dânao – e comete mesmo hybris ao ameaçar, desta forma, derramar sangue sobre um recinto religioso. 76 Mais uma ocorrência da alegoria da nau do estado. Pelasgo, nas suas próprias palavras, é o timoneiro de um navio (a cidade) que enfrenta a tempestade (a ameaça de impiedade) e que vacila na hora de tomar uma decisão quanto à rota a seguir. 77 Ínaco tinha sido o primeiro rei mítico de Argos, de quem nasceu Io, a mãe ancestral das Danaides, como elas mesmas fazem questão de lembrar. 78 No original, lê-se apenas “a desgraça de negros flancos”. A imagem náutica é poderosa, porquanto alude ao exotismo da cor da pele dos filhos de Egito e, em simultâneo, associa o negro à desgraça e à morte, que com a sua chegada há de ter início. 79 Refere-se o poeta ao estreito do Bósforo (à letra, “a passagem da novilha”), que da passagem de Io, já vertida em novilha, recebeu o seu nome. 80 Todos estes são territórios da Ásia menor. 86

Suplicantes 81 Ésquilo parece apontar, neste ponto, uma das várias explicações dos antigos para as cheias do Nilo. 82 Segundo Hesíodo (Teogonia 820 sqq.) e Píndaro (Píticas 1.15), entre outros, Tífon era o maior dos monstros, dos titãs filhos da Terra. Parece, neste ponto, vir identificado com o vento seco do deserto. O passo não é, no entanto, claro. 83 O termo “bacante”, no contexto em que surge, não deve ser tomado como a celebrante em êxtase de Dioniso, antes como qualquer mortal enlouquecida por ação de um deus. 84 Na assembleia do povo (pelo menos na ateniense), o método de votação mais usado era a cheirotonia (do verbo cheirotonein, “votar de braço no ar”), como bem atestam os passos cómicos de Aristófanes, Acarnenses 598, Aves 1571 e, em especial, Mulheres no Parlamento 265, 268. 85 Estes são, em traços gerais, os direitos de um meteco, em Atenas, legalmente instituídos. Vide, a este respeito, a nossa Introdução. 86 À letra, achoros (“avesso a coros”). Ares, deus da guerra, está metonimicamente tomado pela morte que traz consigo, pouco inspiradora de divertimentos. 87 O suplemento que traduzimos (erin) foi proposto por Heath. Outra hipótese avançada seria stasin (“guerra civil”), sugerido por Bamberg. West, neste ponto, não adota qualquer solução. 88 A história dos amores de Ares e Afrodite vem contada ao pormenor na Odisseia, 7. 266 sqq. Segundo algumas versões, dessa união surgiram Eros, Harmonia, Deinos e Phobos. 89 Como acontece na Oresteia, Zeus é identificado com o Destino, a Moira, não sendo mais o deus tirano dos princípios dos tempos. 90 Ártemis era não só a deusa da caça e da virgindade, porquanto ela própria ficou eternamente virgem, mas também a deusa dos partos. Se o coro a invocou já enquanto patrona da virgindade que deseja manter, quando se trata de pedir fertilidade para a cidade de Argos, ela é, uma vez mais, o objeto da prece destas mulheres. 91 Apolo. 92 Ao longo desta ode de agraciamento à terra de Argos, um trecho da tragédia muito discutido pelos estudiosos, até pelos ecos políticos que pode encerrar em si (vide a Introdução), Ésquilo traça o quadro tradicional de uma cidade em paz, onde abunda a riqueza, os campos e as mulheres são férteis, os jovens se perdem em divertimentos 87

Ésquilo e os poetas, em ação de graças, repetidamente cantam louvores aos deuses em ações de graças. O tema era, de facto, comum no século V a.C. O poeta lírico Baquílides, num texto famoso (frg. 4 Maehler), um péan conhecido pelo título de “Hino à Paz”, pintou por palavras um cenário semelhante. Recordemos que já na descrição do escudo de Aquiles (Ilíada 18, 478-608), o mais perfeito exemplo de ekphrasis da literatura grega, se descrevia o ambiente de uma cidade em paz, no segundo anel a contar do centro, a par de uma cidade em guerra, no anel de baixo. E também Aristófanes, no séc. V., dedicou duas comédias a esta relação entre paz (Eirene) e riqueza (Ploutos). Mais tarde, já no séc. IV, teve grande fama o grupo escultórico intitulado Eirene, da autoria de Cefisódoto – do qual não conservamos senão uma série de cópias – que, por volta de 370 a.C., estaria exposto na ágora de Atenas. 93 O escoliasta informa, a este respeito, que em primeiro lugar estava o culto dos deuses olímpicos, seguido da observância das leis e, por último, o culto dos antepassados. 94 Também os filhos de Egito e a sua armada, estrangeiros como são, recebem o pormenor físico da cor escura da pele. Vide a discussão desta questão na Introdução. 95 A fórmula nees okypteroi (‘nau de asas velozes’) é frequente na épica, surgindo também na poesia arcaica mais antiga, de sabor épico, de que é exemplo o mais recente poema elegíaco atribuído a Arquíloco de Paros (P. Oxy. 69. 4708, v. 13), texto publicado apenas no recente ano de 2005 e que conta o episódio em que os Gregos, desembarcando na Mísia, são vencidos e empurrados para o mar por Télefo. 96 Continuam as acusações de insolência e impiedade aos filhos de Egito. A imagem dos corvos, que rapinam as oferendas de comida oferecidas aos altares, visa sublinhar o desrespeito destes homens pela lei dos deuses. 97 Dânao, para todos os efeitos um bárbaro, serve-se destas metáforas para realçar a superioridade dos Gregos, cuja vitória nesse momento mais lhe convém. 98 M. L. West 1990: 152-153 (Studies), explica porque retomou a atribuição dos versos 825-871 a um coro de Egípcios, e não, de imediato, ao arauto destes. Para tal, serve-se sobretudo de argumentos métricos. Considera pouco provável que o Arauto entrasse a cantar e que, se assim fosse, não faria sentido não manter esse metro no diálogo que estabelece 88

Suplicantes em seguida com o coro das Danaides (vv. 872 sqq.), no qual se exprime em trímetros iâmbicos. A outro nível, entende que a referência do coro feminino ao grupo de Egípcios que as persegue “entre gritos frenáticos” (v. 820) deve ser lida como antecipação da entrada, ruidosa e violenta, de um grupo masculino de origem egípcia, seja ele constituído pelos próprios filhos de Egito, seja por representantes seus. 99 Passo extremamente corrupto nos manuscritos. Traduzimos um seu sentido possível, segundo proposta de Johansen-Whittle 1980 (III): 196. 100 Passo igualmente corrupto, mas de sentido mais consensual. 101 Apesar de os antigos nos darem conta de dois promontórios dedicados a Sarpédon, um na Cilícia, junto da ilha de Chipre, e outro na Trácia, tendo em conta o percurso do Egito para Argos, tudo indica que o texto se refira à primeira localização. No entanto, lemos na Ilíada (16. 682683) que o herói, já morto, foi levado para a Lícia para aí ser sepultado, pelo que essa é também uma coordenada a admitir para a referência do coro neste ponto. 102 A partir deste ponto, o texto adquire um tom mais normalizado, sem as repetições das falas anteriores. Esse facto, associado à mudança métrica para trímetros iâmbicos, mais coincidentes com as intervenções de uma personagem individual, levaram a considerar que apenas neste momento tomaria a palavra o Arauto Egípcio, que poderia acompanhar o grupo masculino que entrara a partir do v. 825, ou mesmo sair dele. 103 Por se tratar de um passo muito corrupto, traduzimos a explicação do escoliasta. 104 Zeus era, de facto, filho da Terra e de Cronos, o primeiro grande soberano dos deuses, conhecido por dar morte a todos os seus filhos, temendo pelo seu poder. Ao escapar a esse destino, Zeus venceu o pai e tornou-se, ele próprio, o chefe dos deuses do novo panteão olímpico. 105 Mais uma imagem animal para ilustrar o caráter insolente dos filhos de Egito. Como a aranha, que surgia acima, também a serpente é um animal conotado entre os gregos com a maldade e o veneno, de que dá testemunho Platão, Eutidemo 290a . 106 Metáfora agrícola para a navegação. 107 Não seguimos, neste ponto, a atribuição das falas deste semicoro final à escolta de soldados argivos que acompanha Dânao, como pretende M. L. West, na edição crítica que estamos a seguir, e já defendia O. Taplin 1977: 230-238. Isto porque o tom do diálogo, e 89

Ésquilo o assunto, versando sobre a necessidade do casamento, nos parece, como à maior parte dos críticos e estudiosos, mais coincidente com uma conversa estritamente feminina, além de que esse segundo grupo de mulheres, acompanhantes das filhas de Dânao, havia sido referido antes na tragédia (vv. 954, 977-979). Ainda assim, conjeturamos, com o mesmo O. Taplin 1977: 222, que o coro de Criadas fizesse a sua entrada no verso 977, embora o estudioso defenda que este se limitaria a uma função cénica. 108 Afrodite. 109 Harmonia era filha de Ares e Afrodite. O Desejo e a Persuasão, aqui deificados, são tomados como os patronos mais diretos da relação entre homem e mulher. Este segundo coro está manifestamente a advertir as Danaides da hybris que representa a não reverência a estas divindades, que também ela merecerá castigo. 110 Os três terços de felicidade corresponderiam à plena resolução do problema. Para já, basta-lhes a esperança, dramaticamente ilusória, de que tudo há de acabar em bem.

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