Esse tal cinema catarinense: prefiro não

May 28, 2017 | Autor: Luiz Felipe Soares | Categoria: National Identity
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Esse tal "cinema catarinense": prefiro não

Luiz Felipe Soares



Preferiria não falar de provincianismo, mas o lançamento de Matou o
cinema e foi ao governador reacende uma discussão importante sobre algo
imaginado como o "cinema catarinense". O filme mostra o quanto essa questão
ontológica mais atrapalha do que ajuda a produção de cinema – de qualquer
cinema. Proponho aqui como definição de "cinema catarinense" aquele que (1)
é produzido aqui e (2) é provinciano. Em outras palavras, é o cinema,
produzido aqui, que valoriza acima de tudo seu "ser catarinense", abdicando
de querer ser outra coisa. Essa definição tem a vantagem de esvaziar de
sentido aquela pergunta do senso comum: "por que o cinema catarinense é tão
ruim?".

Exemplos de "cinema catarinense" abundam, apesar de os filmes ainda
serem poucos. Obviamente a definição não é exata, é comparativa. Paredes,
por exemplo, é mais "catarinense" em Novembrada (heroísmo local
orgulhosamente relembrado) do que em Desterro (transposição ao espaço local
de uma tragédia política cuja estrutura ficcional é comum a vários outros
espaços-tempos). Zeca Pires é mais "catarinense" em Ilha (aproveitamento
orgulhoso-glamuroso de clichês locais) do que em Manhã (adaptação
ageográfica de algo em Drummond que remete ao suposto "universal").

Além disso, esse provincianismo da definição aparece não só em filmes,
mas também em certo discurso sobre cinema. O último FAM, por exemplo,
exibiu um curta feito no estado, O Sr. e a Sra. Martins, de Laine Milan,
cujo enunciado, no geral, não é exatamente provinciano. Antes da
apresentação, porém, parte da equipe do filme subiu triunfalmente ao palco
do teatro do CIC, aplaudida simplesmente por ter conseguido produzir no
estado. A cena tinha algo de "teatrinho" de fim de ano em escola
fundamental, de um orgulho pela pequena proeza familiar. Apelo afetivo ao
que diz respeito apenas à província.

Somando enunciado e enunciação, o emblema do "cinema catarinense"
acaba recaindo sobre o longa Procuradas, de Zeca Pires e José Frazão. O
filme promove, talvez como nenhum outro daqui até agora, o encontro entre
as duas dimensões do provinciano em sua relação singular: o orgulho local
determinado por valores universais, mas em oposição ao espaço universal. De
certa forma, essa dualidade já aparece nos nomes de Pires e Frazão: o
batalhador unânime do cinema local e o realizador "de fora", com trânsito
entre "grandes nomes nacionais". Os clichês "de fora" se encontram com os
de dentro, para orgulho dos últimos: a beleza estonteante de estrelas
"nacionais" torna-se um reconhecimento merecido à beleza estonteante da
paisagem local. Ao mesmo tempo, a pobreza de uma trama de mistério à la
Scooby Doo ("teria dado certo se não fossem esses garotos enxeridos") e a
hesitação pueril da subjetividade narcisista da câmera insistem em
valorizar, por oposição, justamente essas belezas tradicionais em seu
encontro triunfal, alçando à dimensão industrial o orgulho provinciano de
quem percebe finalmente tê-las merecido. Para reforçá-lo, segundo
reclamação compreensível de Zeca Pires, alguns comentadores locais que
elogiaram o filme antes de Gramado mudaram de idéia e acompanharam os
críticos "nacionais" que o bombardearam: o orgulho provinciano é mais
evidente quando se trai ao se reconhecer envergonhado.

Além do fato de ser um longa, o filme recém lançado tem, à primeira
vista, nada em comum com Procuradas. Nada de seu aparato industrial, de seu
apelo espetacular. Trata-se de uma justaposição de dez curtas
despretensiosos, feitos rapidamente e com recursos mínimos. Dirige-se
frontalmente contra o governo (e o governador) Luiz Henrique da Silveira,
contra as mazelas de sua administração relativas à produção cultural.
Encontra, no entanto, sua afinidade com Procuradas naquela junção entre
enunciado e enunciação provincianas, tornando-se o segundo ou terceiro
longa "catarinense" (não vi O preço da ilusão).

Mesmo dentro dessa afinidade, há a diferença de que agora o
provincianismo é bem mais deliberado do que em Procuradas. A raiva,
certamente ela, moveu os realizadores a mergulhar no mesmo espaço de
preconceito, moralismo e miséria intelectual daqueles que denuncia. Briga
de família. O deboche a Márcia Méll, por exemplo, ganhou duas versões
jocosas, cujo moralismo meritocrático revela não apenas ressentimento, mas
até despeito: o alvo da denúncia não é exatamente (ou não apenas) uma
impropriedade da aplicação de dinheiro público, mas uma alegada "falta de
talento" da personagem.

Isoladamente, o curta final, vômito catártico no rosto do governador –
num tratamento de imagem que Marco Martins começa a utilizar em direção,
talvez, a sua maturidade –, bastaria como metáfora da revolta contra o
provincianismo do setor cultural de qualquer governo, inclusive este.
Martins, a quem é atribuída a idéia do longa, já vinha demonstrando força
intelectual e criativa para superar todo o provincianismo a que me refiro
(veja-se, por exemplo, seu Veludo e cacos de vidro). Parece, no entanto,
ter cedido desta vez a um velho "espírito de grupo", a essa manifestação
ingênua da revolta coletiva, enfim, a esse desperdício de energia contra
algo que, no entanto, é um dos aspectos mais graves da cultura local.
Isoladamente, seu novo curta teria um alcance metafórico bem maior, na
tragédia política estrutural mencionada acima; no conjunto do longa, porém,
acabou se tornando o primeiro "filme catarinense" de Martins. A boa notícia
é que ele próprio, em debate após a exibição, reconheceu o filme como mero
vômito mesmo, provocado pela revolta, mas como algo a ser superado em
breve. Seu cinema, espero, ninguém matou.

Afinal, o que pretendo sugerir com essa definição? Outra definição,
outro cinema catarinense, aquele que será qualquer. E outro discurso sobre
cinema no âmbito local, para além do bom ou do ruim, para além do
provinciano. Criatividade e energia, vontade de outra coisa, não faltam.
Encontro-as, por exemplo, entre alguns alunos e ex-alunos do curso de
Cinema da Unisul. Alguns entre eles dispensam recursos, outros não se
importarão em buscá-los em fontes não provincianas (dentro ou fora da
província). Proponho, em resumo, que a nova geração (não importa a idade)
continue buscando o qualquer, adotando frente ao "catarinense" a fórmula de
Bartleby: "preferiria não".
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