Esta Europa renacionalizada e nada solidária

June 14, 2017 | Autor: João Pedro Dias | Categoria: Nacionalismo, Separatismo, Catalunha
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Esta Europa renacionalizada e nada solidária João Pedro Simões Dias - 2015.11.10

Os tempos conturbados que a Europa – sobretudo a da União – tem vivido têm revelado o quão mal preparada estava, em muitas das suas dimensões, para atacar e fazer face a crises de natureza diversa como aquelas por que tem passado e a que tem sido sujeita. Nos anos mais recentes, desde o início deste século, a União Europeia começou por se defrontar com o desafio do seu próprio alargamento a um conjunto vasto de Estados que, durante meio século haviam habitado para lá da cortina de ferro e que, mal recuperada a respetiva soberania, decidiram encetar o processo de aproximação e adesão à União Europeia. Num ápice, sem preparação e de forma precipitada, a União viu-se catapultada de quinze para vinte e cinco Estados (depois, vinte e sete, finalmente os vinte e oito atuais). Só por ingenuidade ou manifesta impreparação se poderia supor que tal mutação não iria provocar transformações sérias na União, sobretudo sabendo-se que tais alargamentos não foram acompanhados nem pelas necessárias reformas institucionais nem por quaisquer transformações nos processos decisórios comunitários. Na sequência desta crise ocasionada pelos alargamentos, surgiu a inevitável crise institucional. Em lugar de se reformar antes de se alargar, a União fez o contrário: alargou-se, aumentou o número dos seus Estados-membros, e só depois cuidou de se reformar institucionalmente, de se reformar e de se refundar. Foi, estaremos recordados, o que se ensaiou fazer com a célebre e defunta Constituição europeia que, chumbada em referendos populares, acabou por ser retirada e ser substituída por um novo Tratado (o Tratado de Lisboa)

feito pela presidência alemã, à medida dos interesses alemães – que concederam o privilégio de o mesmo ser assinado já sob a presidência portuguesa – consagrando a dimensão intergovernamental da União e abrindo as portas para o diretório que se viria a impor nos anos subsequentes. Mal refeita dos traumas provocados com a tentativa de se reordenar institucionalmente, a União viu as suas instituições pseudo-reformadas serem postas à prova com a mais grave crise financeira que assolou o mundo no pós-segunda guerra mundial e que logo se transformou numa enorme crise económica e numa crise social sem igual nem paralelo nos últimos cinquenta anos. Foi o momento que permitiu evidenciar todas as lacunas, omissões e insuficiências do novo Tratado de Lisboa, que pôs em destaque a falta de perfeição da união económica e monetária, que mostrou a falta de instrumentos reguladores e normativos de que a UEM ainda padecia e que, uma década depois, evidenciava as fragilidades da moeda única europeia – concebida essencialmente como um instrumento político e ao serviço da política do final dos anos noventa e, talvez por isso mesmo, padecendo de vícios e lacunas que era suposto não conhecer, sobretudo numa divisa que aspirava a ter uma projeção mundial que a fizesse rivalizar com o dólar norte-americano. Ora, esta sequência de crises em espiral em que a Europa tem andado mergulhada tem tido como efeito principal um afastamento cada vez mais evidente e mais perceptível de muitos dos valores em que se inspirou e que foram determinantes para a sua edificação. Perante uma União impreparada para defrontar os desafios que o mundo lhe lançava de forma cada vez mais séria e gravosa, a generalidade dos seus Estados-Membros convenceram-se e capacitaram-se que o melhor seria tratarem por si das suas vidas e curarem de defender os seus próprios interesses. Cientes de que, se o não fizessem

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ninguém o faria por eles. E por isso, enquanto das instituições europeias se escutavam pios apelos ao reforço da unidade e ao esforço de aprofundamento da integração europeia, na prática os Estados europeus encetavam um processo de verdadeira desconstrução europeia, promovendo a (re)nacionalização de certas políticas, estimulando uma competição e concorrência fiscal muitas vezes à margem das regras europeias (faz agora um ano que foram anunciadas as práticas ilegais de alguns Estados europeus, com o Luxemburgo à cabeça, no domínio fiscal, no que ficou conhecido como o célebre caso “Luxleaks” que minou de forma irreparável a autoridade moral das instituições europeias e de alguns dos seus principais Estados) – e tudo proporcionou o renascimento, um pouco por toda a Europa, de um dos fenómenos que o nascimento do projeto europeu quis combater: o renascimento dos nacionalismos. E associado a esse renascimento, a multiplicação de fenómenos secessionistas que julgávamos não serem mais possíveis numa Europa politicamente integrada. E a par desta renacionalização europeia, um dos aspetos mais chocantes deste processo europeu em marcha acelerada de desunião: a falta e quebra de solidariedade entre os diferentes Estados e entre estes e as instituições europeias. Um fenómeno que se torna mais evidente e mais percetível em momentos de crise e, sobretudo, de crise humanitária. A tragédia vivida por estes dias, semanas e meses em solo europeu com os refugiados e migrantes provenientes do norte de África e do oriente médio é um desses tristes exemplos que a Europa está a dar ao mundo. A falta de solidariedade grassa e nem as imagens chocantes parecem acordar ou abanar as consciências europeias, indiferentes e impotentes ante o drama que já não se passa lá longe, nos confins ou fronteiras externas do velho continente: passa-se bem no centro do solo europeu e convoca à ação Estados que pela sua história, posição estratégica e responsabilidades políticas tinham obrigação de assumir uma postura diferente e construir uma solução alternativa das que têm sido testadas. No dia em que a

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solidariedade for letra morta, será todo o projeto europeu que definitivamente morreu. Já estivemos mais longe desse dia. Post scriptum: já depois de elaborado o texto que antecede, o Parlamento autonómico da Catalunha, na sequência das últimas eleições regionais, aprovou ontem uma declaração independentista da Catalunha, dando início ao processo independentista e secessionista de Espanha. O nacionalismo que referimos no texto encontra aqui a sua maior e mais evidente expressão. Bem como a falta de solidariedade igualmente invocada. Sem se aperceber bem do caminho que está a trilhar, a Europa restaura e faz renascer fantasmas que no passado recente conduziram, pelo menos por duas vezes, a tragédias à escala global. Infelizmente parece não ter aprendido nada com esse passado nem com os seus próprios erros. E, inconscientemente, vai dando ouvido a novas vozes encantatórias que, parecendo prometerem novos amanhãs que cantam, se arriscam a conduzi-la, uma vez mais, para a tragédia e o descalabro.

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