Esta nova e nunca história de Antônio Vieira — O Livro Anteprimeiro e outros escritos Marcus Alexandre Motta
Copyrigth @ 2008 Marcus Alexandre Motta Publicações Dialogarts (http://www.dialogarts.uerj.br) Coordenador do volume: Flavio García
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Catalogação na Fonte E800.m Esta nova e nunca história de Antônio Vieira – O Livro Anteprimeiro e outros escritos. Motta, Marcus Alexandre. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2008. p. 175 Publicações Dialogarts Bibliografia. ISBN 978‐85‐86837‐49‐4 1. Antônio Vieira. 2. Literatura. 3. História. 4. Artes. I. Motta, Marcus Alexandre. II ‐ Universidade do Estado do Rio de Janeiro. III ‐ Departamento de Extensão. IV. Título CDD 801 808.5
978-85-86837-49-4
9 788586 837494
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Dedico este livro à memória de José Carlos Barcellos um dia ele o leu, com sua generosidade, o aceitou
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Índice A ARTE E O TEMPO ENQUANTO TAIS ............................................................ 7 I – O INACABADO E O INCERTO ..................................................................... 10 II – TERMO DA NAVEGAÇÃO........................................................................... 35 III ‐ O QUE SE FINDA NO ANTEPRIMEIRO.................................................. 76 FONTES..................................................................................................................... 85 BIBLIOGRAFIA (SOBRE VIEIRA) ..................................................................... 86
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A Arte e o Tempo enquanto tais Daniel Barreiros E nos rostos poderá ser visto o desapontamento e a angústia que só a travessia causa, travessia esta que, com pontos de partida e chegada conhecidos, mapeados e traçados em seguras linhas desde o sempre, não serão aqui vistos ou alcançados, e estarão à prova do uso de astrolábios e quadrantes, fato que transmuta magicamente a chegada e a partida em pontos antípodas numa presumível esfera, para os quais a saudade do que virá e a ansiedade do que foi podem (ou não) ser a mesma coisa, mediadas somente pela navegação constante, pelo alcance do vôo humano, pelo marear. E lhes terá sido dito que muitos astutos comandantes, de olhos abertos a vasculhar cartas, e bem informados por curiosos e incansáveis marinheiros nas gáveas, que perscrutam horizontes com muitas lentes, e servidos por fiéis contramestres, terão somente dito “estamos em alto mar” quando, sob festa e vinho, marcaram em seus mapas as inelutáveis coordenadas da Taprobana. E é isto que sabe a obra‐de‐arte, junto assim mesmo, com hífens, o que nos dará a confiança de que nem “obra”, nem “arte”, se separem: há pontos de chegada e de partida, mas assumi‐los (ou mesmo mostrar a ousadia de “conhecê‐los”) inevitavelmente é um ato de encurtar distâncias, é o deflagrar de um salto quântico que distancia “arte” da Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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órbita em que circula, fazendo restar somente “obra”. E, ao contrário dos comandantes e de suas cartas, que nutrem certezas, a nós, a quem cabe esta profecia, não nos é dado esperar que a mecânica dos quanta venha promover o movimento inverso, que libera energia ao reunir arte e obra mais uma vez. Não há energia liberada, e não há certeza de que se reúnam, porque esqueceu‐se o caminho. Não o caminho pelo qual se chega; simplesmente as águas. É isto que verão: onde não há nomes, pode haver arte. Verão também aqueles que seguem a rota (não os que a seguiram ou os que a seguirão, porque é desejável que nunca estejam nem no início, nem no fim) que o Texto é, em si, dotado de plena historicidade, que não anulará (e sim aprofundará) sua condição de arte na medida em que esta historicidade seja buscada com o mesmo cuidado com que se contempla o mar oceano. O Tempo, este intérprete único e necessário das profecias, se relaciona de modo sublime com a obra‐de‐arte, e somente assim permite que dela seja feita obra. Aos cartógrafos deixemos que vejam o texto como vestígio, como mancha, como traço (e, vos digo, sob as graças da bela Clio, que efetivamente o são!), e então, se forem venturosos o suficiente, terão sido capazes somente de vislumbrar inícios e fins, mas nunca obra‐ de‐arte; Posídon há de poupá‐los se admitirem sua falha ou a deliberada intenção de ignorar o oceano; se não o fizeram, se profanam a santidade do Mar, utilizando‐o e nunca reverenciando‐o, e assim atestam diante dos deuses, com hecatombes, a glória de seu feito, este de terem vencido o mar nas intrépidas trirremes, rumando de porto a porto, ora, pobres deles! Terão tomado a nuvem por Juno. E, então, diante da pira, lhes será dito que no Texto, dádiva, foi encontrada sua forma profana, e que estará perdida para sempre a mediação que o tornaria a ambrosia do Espírito. Não se acha a arte quando o texto submete‐se ao Tempo, e sim, quando lhe é dado o poder de domá‐lo, e aprofundar‐lhe a experiência, domínio este que não significa a imortalidade. É perecível também a obra‐de‐arte enquanto tal; o “cruzar os séculos” não garante que a Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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“obra” seja “arte”, visto que não se “é” arte. A arte aparece em um “tornar‐se”, que se expressa no domínio sobre o Tempo, que se dá quando lhe tomam o timão e se leva ao limite tudo aquilo que o Tempo sabe. E é exatamente este aprofundamento da experiência e a impossibilidade de dizer‐se que a obra “é” algo, o que sugere a existência de arte, nunca verificável pela empiria. Assim, serão alertados que, o que segue nas páginas adiante, não é cartografia. Curvaram‐ se estas palavras diante dos deuses e, reverenciando o Mar e a rota, gritaram aos homens “torno isto obra‐de‐arte!”, e ao fazê‐lo, elas, estas palavras que seguem, foram recompensadas com a ascensão. Tornaram‐se também elas Texto.
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I – o inacabado e o incerto Os especialistas costumam colocar Vieira como expressão acabada e certa; por importância histórica, idéias e estilo artístico, imediatamente sob o conceito de Barroco, ou fazendo derivar para algo como “discurso engenhoso”. 1 A excessiva ansiedade conceitual, portanto, substitui a contento a preocupação com os escritos do autor, pois todos os estudos sobre Vieira se nutrem de uma pergunta subjacente às diferentes compreensões: o que Vieira é? Este tipo de discurso que se faz lógico, a partir dos dados provenientes dos escritos de Vieira, em qualquer temática ou questão elaborada para compreendê‐lo, acaba promovendo uma espécie de elasticidade mental que, na ordem do querer‐dizer, apenas configura as múltiplas facetas contextuais ― Companhia de Jesus, bases contra‐reformistas ―, sem se quer desconfiar que as mesmas se iniciam nos seus escritos. O franco apego ao Vieira é isto declara, por fim, a inexistência, em sua obra, do contraste entre a atividade social do jesuíta e a sua produção literária como pregador ou a sua defesa O Discurso Engenhoso é o título do consagrado livro de António José Saraiva; o capítulo referido chama‐se ʺAs quatro fontes do discurso engenhoso nos sermões do padre Antônio Vieiraʺ (São Paulo: Perspectiva, 1980).
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arraigada do chamado Quinto Império. Não há dúvida que posso denominá‐lo de artista barroco e dar‐lhe o título de grande escritor da língua portuguesa do século XVII. Ao fazer isso, porém, tenho de confessar que não coloco o discurso de Vieira numa classe ideal de escrita e nem o qualifico como artista. O que faço é enunciar um contra‐senso; pois mesmo que eu estivesse convicto sobre a definição derradeira do conceito de Barroco e convencido de ser Antônio Vieira um grande escritor, tal fé só me serviria caso não questionasse a ação simplista de promover correspondência empírica entre conceitos e fatos. Ao estabelecer identidades entre dois discursos, o de Vieira e de um contemporâneo seu, sou levado fatalmente a concluir pela superioridade de um deles. Se quiser explicar o porquê, explico‐o dizendo que não o pode ser, porquanto, na ordem estética, identidade significa repetição e a repetição anula o valor. Deduzo, então, que o valor artístico e histórico dos escritos de Vieira consiste numa experiência que se fez, de modo que, se for repetida ou se for algo que repete outra experiência discursiva, não tem qualquer valor. Logo, chego à evidência de que a importância do Livro Anteprimeiro da História do Futuro, de Vieira, não está em nenhum dos elementos resultantes de semelhanças, a ponto de parecerem idênticos aos princípios analógicos com os quais se fazem figuras discursivas epocais; consagrando‐o como apenas um documento de uma época. Se o contrário for aceito, devo retirar de imediato o título concedido a Vieira de artista da língua portuguesa ― a noção de documento é completamente distinta de uma apreensão estética do que se quer denominar de literatura. A idéia de dependência a uma época, entretanto, nem sempre é desprovida de prestígio. Pode haver discursos cuja “semelhança” indica a relação de dependência sem resultar em nulidade ou perda do valor dos discursos do jesuíta. Ou Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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seja: quando o processo criativo não é processo de cópia, mas de aprofundamento da experiência. Nesse caso, trata‐se claramente de relação histórica que foge à averiguação e só pode ser expressa através do discurso que se nega a viver, confortavelmente, na empiria. Excluído como contra‐senso o juízo do tipo o que Vieira é ― obra barroca ou quase‐barroca ―, posso recorrer à forma diversa de buscar o valor artístico e histórico do escrito do jesuíta, que é também contra‐senso; porém, demasiadamente histórico. O Livro Anteprimeiro, de Antônio Vieira, é um escrito luso‐brasileiro do século XVII, em cuja eficácia está implícito que, assim sendo, diferencia‐se de outros escritos do mesmo século e afirma a distinção do que seria pertencer a Companhia de Jesus. A partir disto, não me limito a constatar a analogia mais ou menos marcante com obras conhecidas daquela época e daquele lugar. Qualquer tentativa de pensamento calcado em analogias poderia ocultar cópia ― ausência de valor histórico na obra de Vieira. Ainda que eu insista na existência de premissas culturais comuns, os escritos de Vieira se caracterizam por algo diferente e novo na História Luso‐Brasileira. projeto
A ação artística e histórica, no caso de Vieira, é algo que pressupõe um projeto, a Clavis Prophetarum, Esperança de Portugal, História do Futuro. Conseqüentemente, o procedimento de cópia que substitui a experiência e o projeto por modelo não é artístico. Caso contrário, a escrita do jesuíta seria uma repetição morta, vazia e abandonada à teologia que se mostra, obviamente, a cada linha dos escritos. O Livro Anteprimeiro é fenômeno histórico e não fenômeno circunscrito à época. A obra traduz perfeitamente a Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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ambigüidade fundamental da arte discursiva no esforço de apreender, para além das circunstâncias de época, o significado máximo do tempo para um religioso. Ora, salvar‐se ou perder‐se depende do que se faz. Quem tem poder está acima da ambigüidade e da incerteza; a revelação é graça, a graça salvação, o poderoso é um salvado. O artista Vieira deve salvar‐se com aquilo que faz; ser capaz de intuir a revelação além do fenômeno. A época pode lhe fornecer o patrimônio; a vida pode lhe dar sustentação, os homens do poder podem lhe indicar o que deve fazer, o objetivo que deve alcançar, mas nenhum desses traços pode lhe indicar a maneira de agir, de alcançar o objetivo. Tal aspecto teórico demonstra: o escritor Vieira realiza uma experiência que demanda o mais preciso e adequado ao assunto que trata, tornando‐se com ele uma expressão que escapa das medidas comunicativas as quais todos estamos acostumados. Mas, tal posicionamento teórico torna ainda mais difícil o resultado historiográfico, ao passo que, a partir da vida una e coesa da historiografia marcada por contornos de caráter e contexto, as frases de Vieira se vêem gratificadas com certa apreensão, estabelecendo parâmetros métricos para a cultura positivista que ainda nutre os estudos dedicados ao jesuíta. Quero ler a obra de Vieira, precisamente o Livro Anteprimeiro da História do Futuro, e outros escritos através deste livro, como prosa de um tipo de mundo na angústia do termo incompleto. Nesse sentido, abandono longe uma espécie de raciocínio que ora expulsa a poética de Vieira, ora expurga o fantasma irônico que diz: não se exalte com a destruição do grande, conforme‐se com sua destruição pelo fato de que a verdade é vitoriosa e todos se exaltam com esta vitória. Que historiador há ou pode haver, por mais diligente investigador que seja dos sucessos presentes ou passados, que não escreva por informações? E que informações há de homens, que não vão envoltas em muitos erros, ou da ignorância, Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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ou da malícia? Que historiador há de tão limpo coração e tão inteiro amador da verdade, que o não incline só o respeito, a lisonja, a vingança, o ódio, o amor, ou da sua, ou da alheia nação, ou do seu ou de estranho príncipe? Todas as penas nasceram em carne e sangue, e todos na tinta de escrever misturam as cores de seu afeto. 2 sepultura
A historiografia preocupada com a pergunta o que Vieira é?— seja a escrita reconhecedora de uma compulsão biográfica do jesuíta, seja aquela que assume um fundo biográfico para o personagem, as idéias pouco teóricas sobre o que é pertencer à Companhia de Jesus — sempre pergunta: ʺquem fala?ʺ respondendo ora pelo indivíduo, ora pelo contexto e nunca pelo fundo que dissolve tanto um como outro: “humor da morte”. Sob o comando do “humor da morte”, a ironia e o fundo trágico da existência consolidam a efemeridade da vida cristã. E reconhecer esse “riso” é viver linha horizontal de uma cova, em que a significação, designação e manifestação dos discursos estão abolidas em profundidade e altura. Seu nome de uso comum é sepultura. Perante essa formatação estática, o discurso de Vieira, que ilude ao afirmar a constância biográfica, faz comparecer a ʺTábua da Graçaʺ. Essa inscrição da privação de Deus, de sua divindade, a humilização pauliniana, arruma os elementos da linguagem do cristão através da exigência que o Criador impõe à criatura e esta precisa exibi‐la discursivamente.
Daqui por diante, todos os trechos selecionados do Livro Anteprimeiro da História do Futuro, de Antônio Vieira, aparecerão citados em itálico, sem aspas, numa tentativa de incorporá‐los ao texto. Ao final deste livro serão apresentadas as edições utilizadas, e, ao mesmo tempo, por evitar referendar as páginas, tomo a iniciativa instigar a leitura desse texto. O mesmo se faz com A Apologia das Coisas Profetizadas – Adma Fadul Muhana (org. Fix. de Texto). Ao mesmo tempo que algumas máximas provenientes dos Sermões, verdadeiros lugares‐comuns da inteligência de Vieira, estão no texto como roubos declarados. 2
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Os momentos da linguagem do jesuíta, vívidos em estilhaços de espelho, devem buscar, ao mesmo tempo, a forma incompleta e a mais necessária. Tal organização elabora sempre a sensação de que as paixões e as ações cristãs consubstanciadas nos discursos estão sob o signo do é pouco, em razão da humilização de Deus. Isso acaba criando, por um lado, uma tendência a estabelecer uma correspondência à privação da divindade; o que significa tomar posse da voz imperativa ao falar da fé. Por outro lado, no âmbito da intenção e do resultado, vestir os discursos para que vivam a inadequada representação da Verdade ― dado que só ela se auto‐representa, escapando, portanto, dos próprios saberes que buscam configurá‐la. Esses três aspectos do discurso, a elevação moral daquele que se manifesta, o equívoco dos enganos designados e a analogia das significações, são as fontes tradicionais de onde partem todas as figuras da retórica. É nessa desdobra da linguagem que a ironia aparece como ponto inelástico do discurso; acontecendo como aplicação natural cristã, em sua forma sublimada, diante do Mundo. Sempre a Voz de Deus, do alto de sua Onipotência, libera valores propriamente irônicos, circunscritos à fraqueza da existência humana: o Infante D. Henrique... mereceu que o mesmo Deus com uma voz do Céu o exortasse a levar por diante o começado, com promessa de seu favor e luz dos gloriosíssimos fins, que por meio de tão dura porfia se haviam de alcançar. A voz do alto, que posso fazer corresponder ao firmamento como modelo discursivo de Vieira, sempre se retira para a sobranceira unidade. Por estar impedido o acesso direto do homem às alturas, em função do drama da culpa histórica vivido intensamente no século XVII, os escritos de Antônio Vieira devem ser compreendidos a partir da imagem da sepultura. Sua ação de escrever se torna dinâmica quando se apreende o forte afeto de sua vontade de pôr fim a toda Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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desesperança através da horizontalidade da morte que na escrita habita e se promete. vértices
O sentido da história para um cristão não geraria a procura se ele estivesse impresso nos acontecimentos. É a ausência de sentido nos acontecimentos propriamente ditos que cria a busca da predominância do sentido fora deles. Ao colocar a questão do sentido, o religioso se transporta para um vazio que só pode ser preenchido pela esperança e pela fé. Ambas carregam em si uma única essência temporal, o Futuro a ser consumado. Na perspectiva católica da história, o passado é uma preparação intencional para o futuro. Logo, a sua interpretação se torna uma profecia invertida. A formulação nominativa História do Futuro é, de fato, a única maneira de se fazer História para um cristão. O Livro Anteprimeiro daquela obra é uma antecipação de pensamento de livro, um interlúdio alegórico. Esse interlúdio, repleto de ironias sublimadas que aparecem como se fossem expressões otimistas, alimenta‐se da apóstrofe retórica que sofre a transformação cênica do discurso profético: vede como. A resultante sempre faz comparecer o que Portugal deve a si mesmo, e quando chega a ser, já não é mais Portugal, e sim o Quinto Império. Os espectros do futuro são aparições que se manifestam no reino do luto. Elas são atraídas por Vieira para funcionarem como sinais. E como dar ao homem o sofrimento que lhe cabe é base de qualquer compreensão cristã, Vieira aflige o futuro para que, ele, anuncie o término de qualquer aflição. O futuro é o elemento predominante do qual surge, no cristão, a necessidade da interpretação histórica, sendo, portanto, a experiência básica do mal, do sofrimento e da eterna procura da felicidade. Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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Vieira se envolvia nas questões políticas de seu tempo ― todos os estudiosos sabem. Contudo, ao participar do ambiente político como religioso, reconhecia por muitas vezes o fato que a aliança entre trono e altar tende a desacreditar ambos. O envolvimento da religião na política sempre expõe as premissas da fé ao quase fracasso, pois a idéia de liberdade que o cristianismo trouxe ao mundo significa estar livre da política, uma liberdade de estar e permanecer fora do domínio da sociedade secular como um todo. A vida política do jesuíta evidencia que algo corrói tanto as palavras do agir, quanto as ações transpostas em palavras. Isso significa que passava a reinar entre as preocupações humanas uma fratura profunda. A prática não tinha mais a capacidade de ser moldagem da teoria da Contra‐Reforma. Secularizando e induzindo as preocupações religiosas no seio da sociedade, abria‐se o campo das respostas para as soluções profanas. Ao se expor completamente à política de interesses mundanos, a religião Contra‐Reformada de Vieira recolhia para si a fugacidade do próprio mundo e, por isso, o jesuíta recupera o valor de fé da profecia. tardividade
O objetivo que guia Vieira não é do reino do impraticável. A fé no mundo requer o realizável, que só pode ser o homem. Há um que acontece na natureza do livro e é tão real quanto a realidade de leitura minuciosamente íntegra. Esse homem se impôs provendo‐se do acaso da leitura. Através dela, um projeto esgota inteiramente o espaço de sua alma. E foram tantas as mudanças que, se alguém tentasse pintá‐lo, dar‐lhe nome ou traçar aspectos de sua vida, após a leitura, não poderia acertar e nem responder a contento, pois é o semelhante sem semelhante (Sermão de Santo Inácio). Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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Esta nova e nunca história de Antônio Vieira – O Livro Anteprimeiro e outros escritos Marcus Alexandre Motta Tudo que quiserdes, tudo que desejardes, tudo que houverdes mister, achareis neste Santo ou neste compêndio de todos os Santos. Essa foi a razão, porque a Providência Divina quis concorressem e se ajuntassem neste grande exemplar tanta diversidade de estados, de exercícios, de fortunas. Nasceu fidalgo, foi cortesão, foi soldado, foi mendigo, foi peregrino, foi preso, foi estudante, foi graduado, foi escritor, foi Religioso, foi pregador, foi súdito, foi prelado, foi legislador, foi mestre de espírito, e até pecador foi em sua mocidade: depois arrependido, penitente e santo. Para quê? Para que todos achem tudo em S. Inácio: Omnibus omnia factus sum. O fidalgo achará em S. Inácio uma idéia de verdadeira nobreza; o cortesão, os primores da verdadeira polícia; o soldado os timbres do verdadeiro valor. O pobre achará em Santo Inácio, que o não desejar é mais certa riqueza: o peregrino que todo mundo é pátria: o perseguido que a perseguição é o caráter dos escolhidos: o preso que a verdadeira liberdade é a inocência. O estudante achará em S. Inácio o cuidado sem negligência: o letrado a ciência sem ambição: o pregador a verdade sem respeito: o escritor a utilidade sem afeite. O Religioso achará em Santo Inácio a perfeição mais alta: o súdito a obediência mais cega: o prelado a prudência mais advertida: o legislador as leis mais justas. O mestre de espírito achará em S. Inácio muito que aprender, muito que ensinar, e muito por onde crescer. Finalmente, o pecador (por mais metido que seja no mundo e nos enganos de suas vaidades) achará em S. Inácio o verdadeiro norte da salvação: achará o exemplo mais raro da conversão e mudança de vida: achará o espelho mais vivo da resoluta e constante penitência: achará o motivo mais eficaz da confiança em Deus, e na sua misericórdia, para pretender, para conseguir, para perseverar, e para subir e chegar ao mais alto cume da santidade e graça com a qual se mede a Glória.
Se não se tem mais a convicção de que os homens participam com Deus de uma razão natural, tal como no Renascimento, o mundo de Vieira reconhece que a razão é em si artifício. Dessa forma, o seu ideal cognitivo é armazenar e colecionar as vozes dos mortos, cujo “campo santo” é a imagem da Biblioteca. Santo Inácio aparece como essa Biblioteca monumental repleta de espelhos e livros, onde o que se procura acha. Ora, livros e espelhos são de fato constituídos da mesma polpa imagética. Aquela que os permite persistir incessantemente. São formas duplicadas; comentários silenciosos que se movimentam tendo outro fora de si. Sempre no súbito reflexo da Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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imaginação, outras imagens se multiplicam e abarcam o que se pode esperar ver e saber. Vieira transforma Inácio em emblema espectral. As atitudes do santo ganham caráter pessoal através dos múltiplos fragmentos apresentados. Tudo funciona por conjugação significativa. E, num desvelo digno e irônico, alcança a superioridade do fundador de sua Companhia. Ele é capaz de mortificar tudo e ser muito mais, possuidor da capacidade de superação dos estados de coisas. Os espectros advindos de Santo Inácio na forma verbal da esperança da fé — achará — convertem‐se num salmo em crescente fértil. As aparições do santo demonstram o reino do luto, pois as atitudes no mundo em nada se assemelham ao ideal do fundador edificado por Vieira. O procedimento retórico do jesuíta torna o tempo verbal da passagem um espaço de escrita, onde os acontecimentos espelhados e lidos expressam a simultaneidade residente num agora exato. O interlúdio metonímico na inversão espectral reifica por contigüidade aqueles que não são presentificações emblemáticas de Santo Inácio. Dessa forma, a plenitude do santo e o vazio daqueles que não se espelham nele, nem o fazem lido, podem ser considerados uma extensão irônica do andamento metonímico da passagem. A ironia sublimada de Vieira ― no que implica na derrota potencial da ação e seu alocamento no afeto para impedir a queda na introspecção e no acanhamento do desejo ― estrutura e solapa o próprio corpo do discurso, impedindo qualquer outra forma mental que não consagre a motivação expressa nos jesuítas. Isso se dá em razão da capacidade da ironia, praticada por Vieira, ser uma espécie de equivalente técnico para a doutrina do pecado original. O espaço metonímico da passagem citada, portanto, é um tipo de metáfora limitadora dos recursos fáceis às imagens Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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e ao tempo, como o imperativo achará ― uma metalepse restauradora que destrói o tropo metonímia por contingência irônica da Biblioteca. Eis, em Santo Inácio um equilíbrio entre a identificação a ser introjetada e a projeção do menos em relação ao santo como expulsão do pouco. Após ele, tudo pede um mais, um é, um muito que e um para. Acreditava Vieira nesse templo habitado por livros e espelhos das experiências do ter visto; todo o mundo imaginado cabia neles. No sonho e na vigília, queria prever e, prudentemente, alcançar uma inteligência que por si era perplexa, pois buscava que a sua alma fosse a imagem correspondente à tarefa jesuítica no Mundo. Esse mundo revelado ao Mundo pelos Descobrimentos, a Graça concedida a Portugal e à sua Cruz. enleio Este Mundo é um teatro; os homens as figuras que nele representam, e a história verdadeira de seus sucessos uma comédia de Deus, traçada e disposta maravilhosamente pelas idades de sua Providência. E assim como o primor e sutileza da arte cômica consiste principalmente naquela suspensão de entendimento e doce enleio dos sentidos, com que o enredo os vai levando após si, pendentes sempre de um sucesso, encobrindo‐se de indústria o fim da história, sem que se possa entender onde irá parar, senão quando se vai chegando e se descobre subitamente entre a expectação e o aplauso, assim Deus, soberano Autor e Governador do Mundo e perfeitíssimo Exemplar de toda a natureza e arte, para maior manifestação de sua glória e admiração de sua sabedoria de tal maneira nos encobre as coisas futuras, ainda quando as manda escrever primeiro pelos profetas, que nos não deixa compreender nem alcançar os segredos de seus intentos, senão quando já têm chegado ou vão chegando os fins deles, para nos ter sempre suspensos na expectação e pendentes de sua Providência. E é esta regra (com pouca exceção de casos) tão comum em Deus e seus decretos, que, ainda quando as Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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profecias são muito claras, costuma atravessar entre elas e os nossos olhos umas certas nuvens, com que sua mesma clareza se nos faz escura. Evidencia Vieira a “facticidade”. Os homens são capturas da contingência ― um contexto inalterável onde o escape inexiste. Deus é autor da Comédia, um exórdio triste num final alegre. Quando os homens aceitam suas virtudes e ações como padrão de auto‐reconhecimento, o riso da morte recita o outro lado, o drama histórico que espelha a culpa. A enteléquia dos acontecimentos humanos não se encontra terminada em si. Inexorável fatalidade, já que todo o andamento de Vieira, após a expressão sua Providência, gera a caudalosa manifestação de ininterruptas frases. Elas se fazem incompletas, no contínuo processamento de outra vaga inconclusa, até, novamente, depararem‐se com a mesma expressão ― sua Providência. A Comédia é sutil, da qual nada, ou muito pouco, a criatura compreende; entendimento quase sempre suspenso, uma vez que o que se vai chegando trai os dados anteriormente assinalados. O enredo da Comédia acontece como vento: sopra as velas pendentes de um sucesso para outro; desloca‐se a criatura para o fim e não sabe onde irá parar. Mesmo nas “tendas” do saber, ela está incapacitada de prever o que virá. Sabe que algo está por vir; sabe que tudo tem fim; sabe, até, qual será o fim; mas não sabe quando. E, por não sabê‐lo, inquire‐o. O quando, por motivo do próprio interrogatório, distancia‐se. Ameaça se aproximar em derradeiro ato. Afasta‐se, reconduzindo a si para trás, no quando do quando; ou seja, no se vai chegando. A expectação da alma descobre que o posto que não é o quando anteriormente aceito, tampouco é qualquer outro. Por fim, já sem qualquer um, encobre‐se o fim da história e a criatura descobre subitamente a história verdadeira. Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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Na Verdade do futuro, a incompletude humana obtém um só e único papel a representar: atores que não conhecem o que de fato representam, impedidos como estão de aplaudir entusiasticamente as próprias ações. Tudo que fizeram abrevia a prova do enredo de Deus. Eles próprios são vestes representativas dessa Comédia. Deus é perfeito autor e diretor. “Escritor” da eternidade, manifesta‐se completamente na ausência entre os homens. Deus não quer que a criatura acesse os conhecimentos do Seu intento futuro. Cabe, então, esperar e contar com o comentador especial de tudo que há‐de ser presente: o tempo. Ele é a projeção da criatura para além de si, e esta, a sua concretude infalível. O tempo inicia com ela, e a criatura morre por excesso de intimidade com ele. Deus, porém, ama as figuras que representam no teatro do mundo. Revela‐lhes em “cacos” o que há‐de ser presente através das próprias histórias. O fim vem chegando. E, mesmo assim, a expectação da alma se mantém pendente como velas ao sopro da Providência. Dois tempos em uma só temporalidade: o que passa como vento e aquele que sofre no vento. Assim há‐de ser a criatura e nada mais. enredo
A naturalidade de Vieira frente à natureza artística de Deus revela o quadro da ação cômica ao qual a criatura está submetida, cuja vida revela a oposição radical de parentesco. A Comédia anuncia a luta entre a humana curiosidade de futuro e o Pai. Nela existe o cerimonial de expulsão, retirando qualquer personagem que não queira se curvar aos intentos Paternos. A ação cômica conduz, destarte, a ordem social ao desenho da fé. Repele a demonstração e a defesa de versões Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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opostas da situação. Julga, proclamando o fim completo da Verdade e as correspondentes ilusões humanas, fazendo comparecer, no mesmo ponto, a retórica da Verdade e a jurisprudência de Deus na história. Há, então, algo irônico na Comédia que não equivale a rebaixamento satírico. Em Vieira a ironia não é militante como na sátira. Em sua altivez assume o conteúdo realístico e indica a total abstinência em possuir essa natureza; pois ele provém da real condição humana em desenvolver uma peça de Deus no teatro do mundo. Nesse domínio da Comédia que eleva a ironia, o realismo do mundo é a completa presença do eterno engano dramático que está constantemente próximo ― altiva condição do realismo das menores distâncias entre o Céu e a Terra. Do ponto de vista da criatura, na comédia de Deus, há moral e experiência realística da vida. Entre o drama e o teatro das representações, algo está para acontecer ou ser revelado. E aquilo que acontece e se revela é a poética da incompletude. Como a criatura pode estar justificada historicamente e, contudo, desautorizada pelas mesmas certezas conceituais de fundo; a realidade inconclusa é o inacabado da conclusão sobre o ultrapassado. Há algo mais, que não o correlativo para o passado, mas o tempo incompleto de algo novo. É o Livro Anteprimeiro a “introdução” a uma obra que jamais existiu finalizada; aquela que Vieira quis que fosse sem nunca ter sido. A existência de algo e a inexistência do mesmo me deixam à vontade para afirmar que a incompletude é um parâmetro adequado para se pensar a concretude daquilo que, por si, deveria ser inacabado. A História do Futuro, ou chamemos de Clavis Prophetarum, Esperança de Portugal e Quinto Império, só tem um Livro Anteprimeiro. Vieira apresenta aquilo que ele sabe existir tão‐somente por direito de fé e não de fato, a História do Futuro: esta nova e nunca ouvida História. Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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Esta nova e nunca história de Antônio Vieira – O Livro Anteprimeiro e outros escritos Marcus Alexandre Motta murmúrios
Nenhuma coisa se pode prometer à natureza humana mais conforme a seu maior apetite, nem mais superior a toda sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros; e isto é o que oferece a Portugal, à Europa, ao Mundo esta nova e nunca vista História. Secreta e rígida medida para a natureza humana. Capacidade em um só ponto: a promessa dos tempos futuros. Se para toda capacidade há um fenecimento, Vieira prefixa a onipotente norma do desejo; a curiosidade. Embarga o oferecer a Portugal, à Europa, ao Mundo, pondo‐o à sombra de sua promessa, esta nova e nunca vista (ouvida) História. O pronome indefinido nenhuma é o que se dilata na composição de Antônio Vieira. Despedindo‐se do porquê da capacidade humana se confundir com o apetite de futuro, cerra a porta e se coloca frente a um espelho que o aguarda em vão. Esse espelho é a escrita, que no lugar da amplificação retórica do mais, maior, nem mais, faz do drama vivido pelos homens a chama do Livro Anteprimeiro da História do Futuro. Há, entre o poder da promessa e a capacidade humana, memórias para o futuro projetadas sobre papéis. Nada se pode perder da promessa. Não há como rebaixar a fonte do prometido, a Promessa fundadora de Portugal de Cristo a Afonso Henriques ― “quero fazer em ti e em teu sangue um Império para mim”. Quando o ocaso de um tipo de mundo torna‐se visível, sendo esse o papel do tempo presente na escrita de Vieira, a luz que se dispersa gera o querer dizer sobre as coisas inesquecíveis. Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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Esta nova e nunca história de Antônio Vieira – O Livro Anteprimeiro e outros escritos Marcus Alexandre Motta nem, com
Para satisfazer, pois, à maior ânsia deste apetite e para correr a cortina aos maiores e mais ocultos segredos deste mistério, pomos hoje no teatro do Mundo esta nossa História, por isso chamada do Futuro. Não escrevemos, com Beroso, as antiguidades dos Assírios, nem, com Xenofonte, a dos persas, nem, com Heródoto, a dos Egípcios, nem, com Josefo, a dos Hebreus, nem, com Cúrcio, a dos Macedônios, nem, com Tucídedes, a dos Gregos, nem, como Lívio, a dos Romanos, nem com os escritores portugueses as nossas; mas escrevemos sem autor o que nenhum deles escreveu nem pôde escrever. Eles escreveram histórias do passado para os futuros, nós escrevemos a do futuro para os presentes. Impossível pintura parece antes dos originais retratar as cópias; mas isto é o que fará o pincel da nossa História. Fecham‐se os livros. Com eles fechados, não há autor, nem títulos. Os livros sepultam a ação da escrita e vivem naquele que os leu como espelhos das experiências. Antônio Vieira os punge. Apenas um cristão com as suas preocupações e altivez de fé é capaz de escrever uma História independente de outras: escrevemos sem autor o que nenhum deles escreveu nem pôde escrever. Só um livro, porém, é passível de estar aberto quando fechado e lacrado quando se declara; só um livro é por excelência sem autor e autoria ao mesmo tempo ― a Bíblia. É nela que se descobrem as constelações de idéias intemporais, relacionadas com as coisas do tempo, assim como as visões de arranjos figurativos às estrelas do firmamento. Os fenômenos do mundo são repartidos no tempo por aquelas constelações de idéias intemporais, e nelas, os fenômenos são salvos de sua consumação inevitável; desaparecer. Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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Antônio Vieira precisa salvar o fenômeno alargado e pertinente ao seu tempo: para satisfazer, pois, à maior ânsia deste apetite (a curiosidade). A verdade desse “absurdo humano” não entra em relação íntima com a salvação pretendida pelo jesuíta. Colocaria, então, o ser da Verdade no lugar da ânsia deste apetite? Não. O ser da Verdade se distingue do amor humano pelos futuros ― senão que vão sempre após eles, porque os amam. A estrutura da Verdade sobre o futuro requer essência que se ausente de ânsias. Se Vieira tivesse a preocupação de fazer valer qualquer ato meramente contrário aquele tipo de amor temporal, a Verdade da religião não teria permanência. Como reter a vontade humana e a permanência da Verdade numa perigosa proximidade para a fé num solo significativo e firme para a política das preocupações de Vieira? Fazer sepultar a idéia de que escreve e, nessa morte, inventar a permanência da falta de intenção na autoria, deixando marcas que demonstram que ele está a perseguir sábios. O que, então, livraria o homem da fenomenalidade do mundo através da força destituída do desenrolar dos fenômenos? A promessa de escrever o futuro a partir da sepultura do tempo, o Livro. É a promessa que pode ser um processo em ação afetiva, levantando as palavras da sepultura da realidade; o que permitiria a elas um novo direito de nomear os acontecimentos que ainda não são: e para correr a cortina aos maiores e mais ocultos segredos deste mistério, pomos hoje no teatro do Mundo esta nossa História, por isso chamada do Futuro. tipo
Aceito a fala sobre o novo, que vem à luz desalojando o velho, mesmo que o velho e o novo se confundam, quando o muito antigo ganha estatuto de novidade — como ocorre em Vieira. Admito que o indivíduo profético aviste o novo à Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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distância, na escuridão e por traços indefinidos. Como o profeta não é possuidor do porvir e não consegue fazê‐lo vigorar, ele se torna perdido para a própria realidade. Antônio Vieira, contudo, nunca se perde para a realidade de seu tempo e nunca se manteve pacífico ante os andamentos do mundo. Logo, ele não é exclusivamente profeta. Seria, então, a forma de herói? O herói é trágico por excelência. Luta pelo seu povo; esforça‐se para aniquilar o mundo que está em vias de desaparecer de maneira a tornar vigente o novo; e com isso, destruir o passado. Nesse sentido, o velho deve ser visto em toda a imperfeição; mas se o antigo é muito antigo por ser ainda novidade e perfeito, como se dá em Vieira, digo que ele é inconstituível através do trágico. Seria, então, irônico? Para o sujeito irônico a realidade perdeu todo o valor. Mostra‐se de forma incompleta; força o constrangimento e incomoda em virtude do inacabado de tudo. O sujeito irônico não detém o novo; não sabe o que vai chegar. Vieira, porém, crê e sabe da Verdade o que vai chegar. Logo, o jesuíta se torna inadequado ao parâmetro irônico. O irônico, contudo, é uma forma de profeta. O último anda de mãos dadas com o tempo e o primeiro aparta‐se das suas fileiras e se ergue contra ele. Um anda de frente para o futuro e, o outro, de costas. Para o sujeito irônico o que está por vir é oculto, mas a sua relação com a realidade assume a postura de inimigo. Se na realidade histórica o negativo é existente por direito histórico, uma profunda ironia pesa sobre o mundo do jesuíta. Antônio Vieira reivindica fazer o mesmo que João Batista, aquele que aponta com a voz e depois com o dedo. João Batista, no entanto, foi aquele que não era Aquele que devia vir e nem sabia o que devia vir, e, apesar disso, O batizou e deu aos da fé de Abraão a anulação de sua realidade através do real de sua espera. Vieira aponta com a voz e aguarda que Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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o Senhor das Promessas se torne alvo. De fato, o reino da incompletude é a determinação de sua “subjetividade”. Aceito o lugar da Comédia de Deus, posso admitir o livro Anteprimeiro da História do Futuro como se fosse um desesperado “prefácio” para o derradeiro ato da peça de Deus. Vieira não se completa através da figura do profeta, já disse, e por sua incompletude torna‐se o testemunho da redescoberta das Profecias. Vela a ironia sublimada como correspondente ao sorriso de Deus; de fato, ele expressa a possibilidade prefacial de um “herói” lutuoso na Comédia supra‐histórica. há‐de ser
Vieira solicita aos leitores viverem os originais, antevendo o que hão de obrar. Contudo, o melhor comentador das profecias é o tempo. A Promessa de Cristo ao Rei D. Afonso Henriques (“quero fazer em ti em teu sangue um Império para mim”), que ainda não era, envia Portugal ao sublime estado futuro do Quinto Império, proveniente da Profecia de Daniel. Vieira crê neste último e derradeiro Império? Pouca significância existe em delimitar o expresso pelo jesuíta como sonho ou realidade da intervenção religiosa no mundo. Se for realidade, não há como perder a validade desse bem. Se for sonho, não se perde a validade moral, pois esta se torna inatacável no sonho. Vieira aspira preencher tudo com a sua noção de futuro, o há‐de ser presente, configurando um realismo das menores distâncias entre o céu e a terra; natural espelhamento entre livros e experiências missionárias. Claro que o escrito do jesuíta é artístico, mas só o é na medida em que faz das leituras e das experiências uma tonalidade nova. Sua importância é essa, uma vez que converte a audição profética em visão tátil, ao saborear a Promessa, na qual as experiências e as leituras Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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repousam. Vieira, então, participaria da cultura do mareante e do rústico. Universo de trabalho que precisa dar ao mundo um segundo mundo e uma segunda vida em pecados declarados para fazer chover a graça e ler nas estrelas os sinais do amanhã de um ontem bastante próspero. Tal realismo, que rebaixa o céu e aproxima a fé da constante semente de campos lavrados e mares navegados, faz do tempo um hemisfério de cortes no mundo. Sempre o passado altivo e visível e o futuro invisível e inferior; e no meio de um e outro hemisfério ficam os horizontes de tempo, que são estes instantes do presente que imos vivendo onde o pretérito termina e o há‐de ser presente começa. Nesse princípio a nossa História, a qual nos irá descobrindo as novas regiões e os novos habitadores deste segundo hemisfério do tempo que são os antípodas do passado. Oh que coisas grandes e raras haverá que ver neste novo descobrimento. fossem
Dobrado de sete lâminas dizem que era aquele escudo (o escudo de Enéas de Virgílio); e também o da nossa História, para que em tudo lhe seja semelhante, é publicado em sete livros. Nele verão os capitães de Portugal sem conselho, o que hão‐de resolver; sem batalha, o que hão‐de vencer e sem resistência, o que hão‐de conquistar. Sobretudo se verão nele a si mesmos e suas valorosas ações, como em espelho, para que, com essas cópias de morte‐cor diante dos olhos, retratem por elas vivamente os originais, antevendo o que hão‐de obrar, para que obrem, e que hão‐de ser, para que o sejam. O ofício e a obrigação dos poetas é impedimento normativo das causas históricas, dizer as coisas como foram. A arte Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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poética serve para colorir o que havia de ser e afirmar como era bem que fossem e não para pintar o que ou como havia sido. A promessa de Vieira em escrever um livro santo absorve o estilo poético. Para reverter os quadros desfavoráveis e fazer valer a idealidade da leitura, a experiência missionária, não há arma mais poderosa do que o arranjo artesanal da escrita feita de arte e saber bíblico, no qual estivessem entalhados e descritos os mesmos sucessos futuros que se haviam de obrar naquela empresa. O jogo de inversões imagéticas, e as cópias da compreensão na leitura, anulam‐se por um colorido sem cor, a morte‐ cor ― termo que designa um artifício da pintura renascentista que prepara a tela com cores, degradando‐as conforme os objetivos pretendidos. A vida presente na leitura espera que Vieira seja a preparação da vida definitiva. A retidão moral depende do momento da morte representada anteriormente, o qual está sujeito à constituição de um ego volitivo que afirme a intelectiva necessidade frente aos problemas de Portugal. Os capitães de Portugal, porém, só podem contar com a imposição do laurel da liberdade. A posse daquilo que irá ser escrito por Vieira é o fim último que a Providência havia disposto para Portugal, o Quinto Império. As frases do autor são acompanhadas da fruição daquele bem, um ato perfeito de apetite intelectual da vontade do hão‐de. Antônio Vieira se põe como síntese das várias figuras “literárias” e bíblicas, acrescentando em cada uma delas a angústia temporal da escrita, o que o compele a repetir espectralmente as imagens das leituras. São João Batista, Bandarra, Daniel, São João, Isaías e o historiador dos Descobrimentos, João de Barros, apontam para a violência da imitação neste Livro Anteprimeiro. Se todo desejo admite em si a violência, e se qualquer modelo só pode tratar algo que lhe confira uma plenitude de ser ainda mais total, a violência desejante da promessa de Vieira, o Quinto Império, é essencialmente Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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mimética. Aquilo, porém, que Vieira “mimetiza” não é exatamente os modelos por ele privilegiados, mas o que os desejos modelados elegem. Antônio Vieira escolhe dois modelos básicos no Livro Anteprimeiro: o Apocalipse de São João e a Profecia de Daniel. Altivamente satisfeitos em si, tais modelos se apresentam e pedem a imitação. Há, porém, apenas um direito mimético em todos que converge para a mesma expectação da alma, o futuro. Contudo, qualquer mimesis relacionada ao desejo de totalidade conduz necessariamente ao conflito. Vieira diz que sua marca emblemática é o Profeta Isaías. Este havia feito tanto história profética, quanto profecia histórica. Ser o testemunho das profecias é a tarefa da história, portanto. O “não” dado pelos Descobrimentos no teatro do mundo é uma condenação terrível, dado que se refaz em outro “não”, agora de Vieira, que precisa novamente redescobrir Portugal ― permitindo‐me pensar que o futuro de Portugal para o jesuíta não é Portugal algum e sim o Quinto Império. Nesse aspecto, as profecias são pathos decorrentes das experiências que se revelam enquanto histórias encobertas, sinalizando algo que apenas enquanto sinal se deixa ver. A fé de Vieira no Quinto Império traduz a vivência em esperança solista que se alimenta da idéia horizontal dos Descobrimentos; pois se é do tempo em verdade a finalidade, além de todo desdobramento temporal, a realidade pode ser representada num único ato que tanto é caráter, quanto fado dos Descobrimentos ― esta nova e nunca vista história. sina
Vivei, vivei Portugueses, vós os que mereceis viver neste venturoso século! Assim Vieira apresenta os direitos e Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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deveres desse segundo povo eleito: Vós descobristes ao Mundo o que ele era, e eu vos descubro a vós o que haveis de ser. Em nada é segundo e menor este meu descobrimento, senão maior que tudo. Maior cabo, maior esperança, maior império. Aceita de antemão essa evidência confessa, imagino que o Livro Anteprimeiro seja capaz de prescrever a mesma expressão histórica do acontecimento Descobrimentos. Assim sendo, coloco no lugar do acontecimento o Livro Anteprimeiro da História do Futuro e, num jogo de espelhos, a sensibilidade imagina que os Descobrimentos são aceitos como o futuro de qualquer história, a ponto de silenciar todas as outras, como diz Vieira. Logo, redescubro que a História do Futuro consubstancia a imagem e mostra a urgência da mortificação daquele acontecimento, permitindo superação e projetando a necessidade de se igualar a este que comparece em todo o Livro Anteprimeiro. Mas se o sol de Portugal morre no extremo ocidental e nasce no Oriente, e se essa aurora se dissipou, pois foi solapada por outras nações, e se o mesmo Portugal é a parte mais ocidental da Europa, onde o sol europeu morre e recebe, através dos portugueses, outros mundos; o que vejo? Que o futuro de Portugal é o Ocidente colonial, exigindo que seu sol volte novamente a nascer. Mas se as palavras são como as estrelas, só nascem após o ocaso do sol, e supondo que essa noite de Portugal fosse a Colônia Ocidental e enquanto hemisfério fosse aquele que Vieira chama de invisível e inferior, o futuro; qual seria a maneira? Seria o ato de semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte: caia onde cair; assim como o sol semeia luz às coisas sem mesmo reter o verbo para si. Aceita tal configuração “heliotrópica”, tenho a constância das raízes do velho naturalismo português em Vieira, que espera o passar das noites para ver o movimento da vida em germinação. Mas, se também admito que o pregar há‐de ser Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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como quem semeia, e não como quem ladrilha, ou azuleja, e que todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor, e, por fim, que não fez Deus o céu em xadrez de estrelas como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras; o que encontro? O realismo das menores distâncias entre o céu e a terra no espelhamento entre escrita e experiências missionárias que afirma, independentemente de um estilo consagrado: veja o céu que ainda tem na terra quem se põe da sua parte; saiba o inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus; e saiba a mesma terra, que ainda está em estado de reverdecer, e dar muito fruto. 3 Idealizo que o Livro Anteprimeiro se capacita em configurar as expectativas irrealizadas dos Descobrimentos conforme as expectativas da esperança: ver confirmada a Missão de Portugal. Contudo, assim como os Descobrimentos geraram o apogeu e nada se foi para além dele, “ato sem história que é para tudo quanto nasce o tempo do seu nascimento” 4, suponho que o Livro Anteprimeiro anuncia um livro, gerando uma expectativa que não se confirma tal e qual o que poderia ter sido se fosse confirmado historicamente o valor do acontecimento Descobrimentos. Nesse jogo de espelhos, luz e olhos, nesse ir por diante, a incompletude da História do Futuro ― chamemos também de Clavis Prophetarum, detonada pela Inquisição ou bloqueada por ela no refúgio do Latim, escrita antes de 1649, no período do Maranhão, ou em 1663 ― expressa muito bem o recomeço da valorização dos Descobrimentos. Os Descobrimentos prometeram outra história e o Livro Anteprimeiro, um livro definitivo, que não aconteceu. Antônio VIEIRA, ʺSermão da Sexagésima, Lisboa, Capela Real, 1655ʺ. In: Sermões do Pe Antônio Vieira. v. I. op. cit. p. 17. Usamos a reflexão de Eduardo LOURENÇO de maneira restrita para a idéia dos Descobrimentos e a alargamos para traduzir o nosso pensamento quanto a história por si luso‐brasileira, repleta de historicidade de um único verbo, redescobrir. In: O Labirinto da Saudade. Lisboa: Dom Quixote, 1982. p. 18. 3 4
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Os Descobrimentos no Livro Anteprimeiro assumem a articulação entre a novidade e as fundações do antigo da fé, as profecias bíblicas que o previram. As profecias só podem ser desvendadas a partir desse fato e melhor compreendidas quando se faz outra descoberta na região da Colônia, a Missão jesuítica no Maranhão, os Antípodas de Vieira ― onde o dizer é fazer, o ouvir é ver. Se a Missão dessa segunda descoberta no anterior espaço descoberto corre o risco de se fazer incompleta em função da própria dinâmica colonial, o contraponto necessário é formulado pela anti‐história de uma Filosofia da Restauração, o Quinto Império. Em função da história‐natureza dos Descobrimentos, atos sem história, reino da incompletude, provém a sua natureza‐histórica, o Quinto Império, morte natural da própria vida missionária. Assim, o Quinto Império é a História em um só ato da Missão; filho da ação fantasmática do verbo redescobrir.
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II – termo da navegação. mar
(...) era o termo da navegação do mar Oceano junto somente à costa de África, o cabo chamado de Não, sendo mares que depois dele se seguiam, tão temerosos aos navegantes, que era provérbio entre eles (como escreve o nosso João de Barros): quem passar o Cabo de Não, ou tornará ou não. Aparecia ao longe deste o cabo Bojador, pelo muito que se metia dentro do mar, cuja passagem, tanto por fama e horror comum, como pelo desengano de muitas experiências, se reputava entre todos por empresa tão arriscada e impossível à indústria e poder humano, como se pode ver no IV capítulo da primeira Década. Mas quem ler o capítulo seguinte, verá também como um homem português, não de muito nome, chamado Gil Eanes, foi o primeiro que, dispondo‐se ousadamente ao rompimento de uma tamanha aventura, venceu felizmente o cabo em uma barca, quebrou aquele antiqüíssimo encantamento e mostrou com estranho desengano à Espanha, ao Mundo e ao mesmo Oceano que também o não navegado era navegável; o qual feito ponderando o nosso grande historiador como seu costumado juízo, diz breve e sentenciosamente: A este seu propósito se ajuntou a boa fortuna, ou por melhor dizer, a hora em que Deus tinha limitado o curso de tanto receio, como todos tinham, de passar aquele cabo Bojador.... Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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As frases de Vieira se assemelham às navegações portuguesas. O ato de costear a África se repete na escrita, margeando o continente histórico do período de Infante D. Henrique. Primeiramente nele e por ele se povoaram os desertos dos séculos... Do início dos Descobrimentos, as frases do jesuíta recuperam a ação de ruptura das incertezas, ignorâncias e medos, apresentando‐se como arte de marear. O herói épico, que envergonha os medos, acanha as ignorâncias e desagrava as incertezas. Gil Eanes, tem o nome curto, como curta é a palavra não. A relação de proporcionalidade entre a escrita do jesuíta, sua leitura e o acontecimento, traduz bem a espécie de engrandecimento retrocessivo e de intenção quase pedagógica. O herói da épica navegante comparece em todas as orações e não só na frase onde é citado. Torna‐se a potencialidade figurativa do acontecimento‐fantasma Descobrimentos. E como tal revela a ventura e ousadia do ontem de Portugal ao gerar a condição fantasmática sobre os homens da mesma pátria. Vieira, lendo João de Barros, prepara Gil Eanes para acontecer através do artifício da criação de uma cena anterior e uma imediatamente posterior, cujo cenário o espera e se destrói na medida em que passa. O momento inicial dos Descobrimentos e o personagem destacado são efeitos da quase‐causa: é Deus quem tinha limitado o curso de tanto receio. Antônio Vieira apreende o valor do acontecimento‐fantasma lendo‐o: cujo principal intento naquela empresa, como dizem todas as nossas histórias, foi o puro zelo de Fé e conversão da Gentilidade. Na experiência missionária, a épica navegante se converte amplificadamente na segunda Companhia de Jesus (nome que deve a Portugal), após a dos Apóstolos. A tempestade é maior que o mar, e tão imensa como o mundo todo, e os jesuítas creram, entenderam e Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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supuseram com evidência que o Senhor não necessita acordar, levantar, nem falar, nem mandar, nem se mostrar visível, nem correr aquela cortina [o rito da Eucaristia], que o leito da barca não tinha: mas debaixo e coberto dela sair somente fora... As incertezas do navegador e do missionário se aparentam. Na rotina de ambos, o ato de plantar pontos cartográficos e almas recoloca a ação do semear em destaque. Nos dois a ordem advém do firmamento, o céu estrelado manifesto no “Sermão da Sexagésima”. O navegador se guia pelas estrelas; o missionário as toma como chão do discurso, quando não são as estrelas as potências figurativas dos homens da Missão: Missionários e navegantes esperam delas a medida do onde se vai chegar, organizando‐as por relevo ornado através da linha mestra que ressalta o desenho do sentido em semear. A Missão amplia o acontecimento‐fantasma Descobrimentos através do seu rastro, a Colônia, deixando os missionários perante a sua ética: um extenso germinar das origens que desemboca como um rio num mar “culto” que exige a permanência da espera. Essa é a constância da relação entre o realismo e o naturalismo de que dão tamanhas provas os portugueses no curso da história. Dessa forma, experiências e livros se multiplicam e abarcam o que se pode esperar ver, porque semeiam. Não há, em Vieira, nem artifício, nem imaginação pura e sem proveito, e, nem mesmo, dados de conhecimento estranhos ao reino do sensível. O crédito da aventura vem na mão da Natureza, embora a despreze em seus pormenores; exercida no bom‐senso das experiências amadurecidas pela prática de costear livros até, “geograficamente”, localizar, supra‐ sensivelmente, a Graça. O realismo das menores distâncias entre o céu e a terra, e o correlato natural de espelhamento de livros e Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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experiências missionárias, compõe o não navegado e navegável de Antônio Vieira. Lugar de um viver mareante que ata o jesuíta a cuidados da semeadura e modera a sua fantasia; e, ainda, fornece base para a esperança, cujo sossego conta com a sublimação irônica que o futuro assinala. sulco
O caráter do destino nos Descobrimentos, para Vieira, não pode ser uma cadeia inelutável da causalidade. Em sua concepção, o essencial é a busca da dimensão eterna do acontecimento, seu sentido hiper‐histórico. Tal óptica do espelhamento entre leituras e experiências missionárias não deseja se submeter às leis da natureza; ou seja, tudo que é deve deixar de ser. Contra o sentido inerente ao processamento ininterrupto da própria vida, um outro pode testemunhar o milagre, a anti‐história ― a História do Futuro: Que dissera (Cúrsio, o historiador de Alexandre Magno), se vira as navegações dos Portugueses no mesmo Oceano...? Obrigação tinha, em boa conseqüência de lhes chamar imortais. Dessa maneira, a sensível leitura de Vieira corrobora a inevitabilidade da fortuna, os Descobrimentos. Com eles, promete a complementaridade de sua efetuação através da Promessa de Deus na fundação do reino, evidenciando‐a ao ler a Profecia de Daniel, o Quinto Império. Isso me permite pensar sobre o desencadeamento do processo dos Descobrimentos como causalidade instrumental de uma fatalidade inexorável. O acontecimento‐fantasma Descobrimentos, na escrita de Vieira, consubstancia historicamente a enteléquia do próprio fato na esfera da culpa inerente às criaturas. O ato de isolar os Descobrimentos como campo de força onde se manifesta a Graça, faz a culpa exercer poder e ao mesmo tempo se distinguir do próprio destino traçado para Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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Portugal por Deus. A postura da cultura dos Descobrimentos ainda está regida pela noção do “quase”; ou seja, as coisas só existem verdadeiramente a partir das experiências recorrentes que apontam para o desenlace futuro através da histórica naturalidade da intervenção divina. O “ter sido” manifesto que Portugal experimenta após os Descobrimentos é recuperado e requer o há‐de ser presente na escrita de Vieira. E com este há‐de ser presente, promete um futuro mais glorioso do que a glória da expansão portuguesa, o Quinto Império. Aqui, não se trata de ter as mesmas experiências desprovidas da correlata manifestação na leitura, significa, antes de tudo, a confirmação. A madre das coisas, as experiências, desengana e retira a dúvida de tudo. desvio
Os Descobrimentos não representam em Vieira uma ação ou uma paixão. Devem ser compreendidos como o resultado da ação e da paixão, um puro acontecimento em sua incompletude. Ele não pode ser inteiramente real, já que seria somente pretérito. Tampouco pode apenas ser o que foi imaginado, pois seria mera lembrança. Como compreendê‐lo? É indispensável tomá‐lo entre o acontecido e o estado de coisas que o provoca e no qual ele se efetua. É preciso aceitá‐lo como “efeito natural” da promessa, ligado à causalidade fora de si. Nesta falta de tempo e de espaço, enquanto eixo de circunscrição, redescobre‐se estados de espírito efetivos, ações realmente empreendidas e contemplações com força de efetuação. Porque não houve obra de Deus, depois do princípio e criação do Mundo, que mais assombrasse e fizesse pasmar aos homens que Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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o descobrimento do mesmo Mundo, que tantos mil anos tinha estado incógnito e ignorado. Nem que maior nem mais justo temor deva causar aos que bem ponderarem esta obra, que a consideração dos ocultos juízos de Deus, com que tantos séculos permitiu que tão grande parte do Mundo, tantas gentes e tantas almas vivessem nas trevas da infidelidade, sem amanhecerem as luzes da Fé; tão breve noite para os corpos e tão comprida noite para as almas. Dessa forma, o acontecimento‐fantasma é uma representação dos Descobrimentos. Representação em desvio, pois se distingue dos estados do acontecido e das qualidades pretéritas, dos vívidos sentimentos da lembrança e dos conceitos logísticos de eterna presença. Participa da superfície ideal, formada por espelhos e livros; e, portanto, é implicação de leitura que transcende o interior de sua época e o exterior de qualquer uma subseqüente. Como superfície, tem a propriedade topológica colocada frente a frente à profundidade refletida do passado e o motivo de olhar o fundo de sua leitura. O acontecimento‐fantasma, como espelho ou livro, em que não se sabe quem, ou o que, se encontra fora ou dentro, submete‐se à dupla causalidade fantasmática. De um lado, reverte às causas aparentes de tempo e lugar, sua profundidade; de outro, opera na superfície autônoma, sua quase‐causa, através da qual se comunica com tantos outros acontecimentos‐fantasmas ― o milagre de Ourique, por exemplo. Há, então, efeitos que diferem de sua natureza: aquilo que aconteceu. Um que é manifesto como posição depressiva natural aos Descobrimentos, quando a causa pretérita se retira em altura, deixando campo livre à superfície do há‐de vir novamente: verão muitos lugares de vários Profetas, explicados por autores que escreveram de cem anos a esta parte, depois que por meio da navegação do mar Oceano se quebrou o fabuloso encantamento dos negados Antípodas e se descobriram tantas terras e gentes Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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não só incógnitas aos Antigos, mas nem ainda presumidas ou imaginadas dele. Outra, efetuada por edipianização histórica, quando a intenção pretérita, enquanto repetição, deixa espaço para o realismo do sonho, a natural realidade do desempenho da quase‐causa, os Descobrimentos, a natureza‐história da História do Futuro. Ainda Portugal não era de todo cristão e já os Apóstolos (São Tiago, São Tomé) plantavam as balizas da Fé em seu nome e conheciam e pregavam que ele era o que havia de fazer cristão o Mundo. Lembre‐se outra vez Portugal destas obrigações, e de quanto lhe merece Cristo. Nem ativos, nem passivos, os Descobrimentos só podem ser apreendidos por Antônio Vieira como tensa serenidade e idealidade do acontecido. Por um lado, inspiram a espera desesperada; tudo se acha em vias de resultar e nada disto resulta efetivo. É ferimento primário, seu sentido desvelador de eternos reis encobertos e desejados. Por outro, revela e estende a superfície do acontecido, prendendo‐se a quase‐causa como gênese dinâmica da compulsão em repetir. Um crime perfeito contra o tempo e contra a verdade eterna do que já passou. Nesta precária violação da seqüência natural da temporalidade, apresenta‐se o esplendor real do acontecimento em sua incompletude. Assim, Vieira constrói o efeito inacabado dos Descobrimentos e pede, a si mesmo, as efetuações, como se sobrevoasse o próprio campo da história do que aconteceu, fazendo de todos os portugueses filhos da ventura e da ousadia. Se a efetuação não pode completamente se cumprir, nem mais causar produção, por ser e estar no pretérito, torna‐se necessário contra‐efetuá‐lo para devolver a Portugal o seu “único acontecimento”. Dar a ele um termo, transmutá‐lo e, com isso, tornar os portugueses senhores de suas efetuações e causas. Se os Descobrimentos podem ser chamados do futuro da História, pois silenciam todas as outras histórias, como não aceitar o fim para o novo início, a História do Futuro, sua Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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redescoberta, que por superação se iguala em esplendor e Glória. siga
Ouvirá o Mundo o que nunca viu, lerá o que nunca ouviu, admirará o que nunca leu, e pasmará assombrado do que nunca imaginou. Belo exemplo das circunstâncias exacerbadas da narrativa das viagens do acontecimento‐fantasma. Não há intimidade de leitura enquanto clara e luzente comodidade. Nem existe costume corporificado no traço dos sentidos que caminham para o assombro do que nunca se imagina. As sucessões das orações assumem as palavras, silenciando‐as no comentário. Um favor misterioso da Promessa acontece como olhar do sonho implicado na vigília dos estridentes futuros do presente. Há milagre virgem na virtude absoluta da Promessa. Antônio Vieira produz a quietude pela ressonância estridente do futuro do presente nos verbos em pretérito perfeito, como se os elegesse por extração da memória. A quietude é arrojada. Ela advém do antever a margem última e, portanto, primeira, de como Deus há de ver os homens. Vieira se livra da ficção do tempo, pois pretérito perfeito e futuro do presente se anulam no instante presente do advérbio nunca. Se as histórias dos antigos escritores, como nos diz Vieira, que são menores e antigas, sempre se lêem com gosto, como não ter confiança de que não será ingrato aos leitores este nosso trabalho, e que será tão deleitoso ao gosto e ao juízo a História do Futuro, quanto é estranho ao papel o assunto e o nome dela? O nome por Vieira dado a tal escritura se justifica, pois sendo novo e inaudito o argumento dela, também lhe era devido nome novo e não ouvido. E pergunta: Se já no Mundo houve um Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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profeta do passado, porque não haverá um historiador do futuro? Os profetas nunca deram nome de história a suas profecias, porque não guardam estilos, nem leis, não assinalam lugares e pessoas, nem seguem ordem dos casos e dos sucessos, por terem tudo visto e dito. Se as suas falas estão envolvidas por metáforas e figuras na escuridão dos enigmas, é porque seu contar são frases próprias do espírito e estilo profético. Tudo se acomoda na majestade dos mistérios, que é a notícia e inteligência dos profetas. Contudo, é de Isaías que provém a idéia de Vieira, pois, dele, São Jerônimo e Santo Agostinho disseram que mais escreveu história que profecia. Sendo, então, sua profecia o Evangelho fechado e o Evangelho é a sua profecia aberta. O jesuíta pretende se consagrar à determinação de observar e pontuar todas as leis da história; ou seja, estilo claro, de fácil percepção, na ordem das coisas vestidas de suas circunstâncias, ao distinguir tempo, lugar, assinalar províncias e cidades, nomear nações e pessoas. Logo, Vieira pode concluir que: sem ambição nem injúria de ambos os nomes chamamos a esta narração história de História do Futuro. Em virtude do acento provocativamente mundano de Vieira, Isaías assume o contorno de uma moeda. O Profeta é o cronista das excelências de Portugal. É seu precursor, apresentado para ser esquecido e recordado amplificadamente. O jesuíta o toma para superá‐lo. Nessa obsessão literal e histórica, Antônio Vieira faz progredir no território da escrita a amarração onírica: de trás para diante. A perversidade mínima da conexão onírica, na certeza interpretativa de Vieira, enriquece‐se quando toma o fosse poético para fazer acontecer o duplo acordo vivente na poética dos sonhos: a inteira centralidade na deformação do passado e a valiosa sobrevivência da incompletude histórica do acontecimento‐fantasma. As duas faces são formas de lidar Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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com o pretérito e o futuro, assumindo a dimensão reduzida dos instantes presentes da tarefa. barquinha
Sós e solitariamente entramos nela [na História do Futuro] (mais ainda que Noé no meio do dilúvio), sem companheiro nem guia, sem estrela nem farol, sem exemplar nem exemplo. O mar é imenso, as ondas confusas, as nuvens espessas, a noite escuríssima; mas esperamos no Pai dos lumes (a cuja glória e de seu Filho servimos), tirará a salvamento a frágil barquinha: ela com maior ventura que Argos, e nós com maior ousadia que Tífis. A metáfora náutica deixa de ser apenas a referência para ganhar o estatuto de cerne da construção textual. O ritmo seqüenciado é uma tônica: na insistente imagem sós e solitariamente do início, no compasso ondeado de sem/nem, na ressonância de radical exemplar/exemplo, na sonoridade anasalada de imenso, ondas confusas, nuvens, noite, no uso recorrente da preposição e artigo idênticos a, e ainda na repetição de maior/maior, da última sentença. Após esses recursos de estilo naturalista, a sensação real que predomina é a do movimento do mar. A relação proposicional se manifesta ao estabelecer proximidade entre os movimentos do mar, da vida, do sonho e da profecia. Significativamente, a sensação de movimento não foi estabelecida a partir dos verbos. Ao contrário, as ações são frágeis como os homens: entramos, esperamos, servimos, ecos prudentes do ritmo ondulante, apenas cortados pela certeza aguda do mar é, e a força da ação divina, tirará; elementos da Criação e do Criador. Antônio Vieira mostra um tipo de representação que não pode se ancorar nem na intelectualidade, nem na história. Aguda, aceita as faces de uma emblemática moeda, cuja cara é a profecia e a coroa, emblema histórico. Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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Intrincadas faces que se permutam, aquelas da Bíblia, aquelas das navegações portuguesas, as do autor e as do desejo da escrita. A representação que faz não é simples idéia, conceito, nem tampouco dados e fatos. Tais artefatos não acontecem separadamente. Formam uma unidade artificialmente edificada, onde a parte pessoal da composição interioriza o conteúdo. Dessa forma, a apresentação escrita torna o histórico um mito épico, gerando a exterioridade mais pessoal: um racionalismo simples do drama de Portugal na comédia de Deus. Na luta entre a interiorização representativa e a exterioridade pessoal, manifesta‐se o lugar propriamente principal, Deus. O Quinto Império anuncia aquilo que Ele revelou e prometeu ao Profeta Isaías, que ainda havia de criar um novo céu, e uma nova terra. Antônio Vieira, portanto, diz que esta nova terra e estes novos céus, são a terra e o céu do Mundo Novo descoberto pelos Portugueses. O autor pode, então, na medida em que cada uma dessas faces ultrapassa o estritamente necessário, manter a indivisibilidade de ambas. Assim, posso compreender os efeitos das construções parentéticas. Em cada uma delas ― (mais ainda que Noé no meio do Dilúvio), (a cuja glória e de seu Filho servimos) ― os parênteses assumem papel de espelhos poéticos, ao gosto interno dos palácios mnemônicos. De natureza deformante, refletem a memória histórica da Cristandade. Vieira expõe o limite reflexivo dos homens. Eles aparecem comparados a Noé ou servindo a Cristo. A imagem, porém, deforma‐se nos movimentos de aproximação e afastamento produzidos pelo recurso às expressões mais ainda que e a cuja glória de. A primeira dá ao texto o tom humano da solidão profética, da vida e do mar, aproximando‐os do espelho sonhado e Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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suprimindo‐os da necessária arrogância da ação cristã. A segunda afasta os homens da sua imagem particular e os submete à servidão divina. Tudo funciona poeticamente, como se Vieira, por meio desse artifício, fosse capaz de oferecer ao leitor a textura vítrea sobre a qual interagem a profundidade mnemônica da história cristã e a superfície da atualidade profética. menor
Antônio Vieira participa, no mais alto grau de elegância artística, do simples e informe realismo que busca as menores distâncias entre o firmamento e os fazeres humanos. Dessa maneira, a Promessa se torna uma categoria histórico‐ natural da Providência. Vieira exige o reconhecimento de que nada há além da intervenção do Senhor dos tempos na história humana. O tempo é o intérprete único e necessário das profecias; o tempo que passa é a grande divindade do século XVII. Essa categoria, porém, não é abstrata. Delimita‐se através da ação cotidiana e materializa a sensação do passar, que dispõe do “onde” e do “quando”. A luz que sai do sol, quanto mais distante, mais se vai enfraquecendo e diminuindo; mas o rio que nasce na fonte, quanto mais caminha e mais se aparta de seu princípio, tanto mais se engrossa, porque vai recebendo novas correntes e novas águas, com que se faz mais largo, mais profundo, mais caudaloso. Tal é a sabedoria da Igreja, entrando sempre nela as puríssimas correntes da doutrina de tantos Doutores católicos e sapientíssimos, que cada dia a aumentam com novos e excelentes escritos em uma e outra teologia, de que nosso século tem sido mais fecundo e abundante que todos até hoje. Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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A sabedoria da Igreja, no alumiar é luz e no crescer é rio; rio daquela mesma Fonte e Luz daquele mesmo Sol que é Cristo, conservando juntamente as luzes as claridades das águas, e as águas o resplendor das luzes naquela milagrosa metarmofosis que se conta no capítulo X de Ester: Pequena fonte que cresceu em rio e em luz e se converteu em sol e redundou em plúrimas águas (Ester, X. 6). Cristo, Sol com propriedade de Fonte, a Igreja, luz com propriedade de Rio, e por isso sempre mais alumiada, sempre mais vestida de resplendores. A natureza da fé se assemelha à excelência da Missão jesuítica no discurso de Vieira. O poder da Verdade desvela‐se no firmamento, cujo momento do poente refletido no Rio permite a Fonte. A sabedoria da Igreja é imagem que, diante dos olhos, exerce ação viva. A presença energética da metamorfosis entre o Sol e o Rio torna o envio enigmático do missionário um intervalo de luz na escuridão da terra. O Sol, Cristo, aparece para desaparecer; ele está na passagem de Vieira como Fonte invisível de Luz, numa espécie de eclipse que insiste em ser visto através do reflexo do Sol poente no Rio. Os missionários e toda teologia que resulta do impacto dos Descobrimentos mantém‐se sob Ele, vendo‐o no reflexo permitido. O contorno do Bem é delimitado. A relação que Vieira prepara está sob a guarda do verbo semear. Tanto o Sol, quanto o Rio e a Missão, semeiam. As palavras assinaladas pelo jesuíta, Sol, Rio, Fonte e sabedoria da Igreja não são, em si, meras figuras de linguagem; antes, são potências figurativas do respectivo emblema verbal da religião para Vieira, semear. E suas potencialidades são tantas, que a emblemática natureza de Cristo consente a eles uma originalidade única, pois o Sol não sensível é insubstituível na arte do semear. A Missão revela o “novo” no teológico, contesta saberes, impondo‐lhes limites do tempo, agarrando‐os em seus equívocos a partir da razão missionária. Espelhado no Rio, o Sol da sabedoria da Igreja, deixa‐se ver no volume das águas. A Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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Fonte e a Luz se tornam pontos de partida do seu reflexo sobre a claridade das águas. O Rio se faz mais largo, mais profundo, mais caudaloso até potencializar figurativamente o mar português. Há gesto amoroso em contemplar a metamorfose da imagem do Sol poente no Rio, que rememora a antropomórfica manifestação na segunda Companhia de Cristo; os jesuítas. As luzes perpendiculares do Sol, que se afastam em direção à morte cotidiana, refletidas na mesma posição no Rio, ao chegarem a ponto de máximo ocaso, vão levantando os raios em sentido vertical na formação da coroa. E o Rio, nesse agora, tem as águas douradas na cor do altar barroco, cujos pilares do templo da Criação, em amarras trincadas, são tão mais alto que as colunas das Igrejas. Nos últimos vestígios da Luz na horizontal, as sombras difusas da luminosidade prolongam‐se e a coroa proveniente do último vestígio do Sol se verticaliza e retrai os raios, alcançando a forma mais precisa e instantânea do Olhar. Isso se repete todos os dias. A Criação parece fazer repercutir os dias de Cristo entre os homens. E no rito da Igreja, o movimento solar da Criação, aparece em cada cerimônia do Mistério Eucarístico. Na noite que se segue, o espelho natural desse Rio, que refletiu o ocaso do Sol, é o lugar de maior luminosidade, pois as sombras noturnas circunscrevem a Fonte – ausentando‐se de nós como sol, se deixou multiplicado no mesmo Sacramento como nas estrelas. As estrelas refletem e retêm para si os radiosos dias, na espera que o Sol não sensível retorne como prometeu. Vieira acaba demonstrando que o Criador só pode ser emblematizado pelas energias manifestadas no seio da Criação; muito embora se despreze a natureza no seu pormenor. Nesse sentido, a única figura da Criação que estabelece a conjunção entre o espelho da natureza e o Criador é o missionário para Vieira. Seu há‐de ser, porém, não tem como ponto de chegada a vida missionária de Cristo, e sim, como ponto de partida, a Fonte de que fala o jesuíta. Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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lá e cá
O tempo, como o mundo, tem dois hemisférios: um superior e visível, que é o passado, outro inferior e invisível, que é o futuro. No meio de um e outro hemisfério ficam os horizontes do tempo, que são estes instantes do presente que imos vivendo, onde o passado termina e o futuro começa. Desde este ponto toma seu princípio a nossa História, a qual nos irá descobrindo as novas regiões e os novos habitadores deste segundo hemisfério do tempo, que são os antípodas do passado. Oh que coisas grandes e raras haverá que ver neste novo descobrimento! Somente o passado e o futuro subsistem no tempo enquanto espacialidade do movimento do sol. No lugar do presente, uma vela ao mar em direção ao horizonte. Nesse imos vivendo, Antônio Vieira conquista a superfície dos instantes presentes, nos quais o pretérito e o devir são insistentes términos e começos. A potência das superfícies não se faz sem a conversão do inferior invisível em superior visível. Sempre, já passado elevado e um há‐de ser presente. Eis o tempo que se faz somente na superfície do mundo. Navega Vieira na escrita como um Vasco da Gama, com uma boa dose de bom senso cosmográfico e de razão cautelosa e pedestre. Assim, no quadro mental de Antônio Vieira, o conhecimento secundariza‐se frente ao acontecimento. O primeiro funciona como espelho e moldura para maior rentabilidade do segundo. A relação entre mundo e tempo obstrui o simples estado das ações e paixões. O acontecimento‐fantasma Descobrimentos funda a linguagem contida, e por demais lógica, a partir do arbítrio da frase inicial da citação ― o tempo, como o mundo, tem dois hemisférios. O acontecimento não tem existência pura no pretérito, em função de ser o exprimível Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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do acontecido. Há independência na sua expressão, uma propriedade metafísica nesse juízo discreto do entendimento. Ele, os Descobrimentos, é adquirido pelo estado mnemônico da leitura. Enquanto sentido, significa, manifesta e designa Portugal, sem ser qualidade física do pretérito. É a própria existência de Portugal, sintetizando o que é exprimível de sua alma: (...) para que os Portugueses conheçam quanto devem a Deus, pelos escolher para instrumentos de obras tão admiráveis, e para que se não admirem quando lhes dissermos que os têm escolhido para outras maiores. Antônio Vieira escreve: desde este ponto toma seu princípio a nossa História. Sua escrita é um meio para garantir os efeitos dessa superfície que paira sobre as águas sem mais descobrir. O todo do acontecimento é percorrido pelo incessante ato de escrever, que se desloca sobre o presente enfado do sofrido ― imos vivendo. É esse conjunto de instantes que extrai do presente as singularidades, formando o acontecimento puro em sua incompletude, à maneira da locução verbal que expressa a ação durativa do espírito português, realizado na progressiva inspiração prosaicamente utilitária ― irá descobrindo. Antônio Vieira fala como se estivesse fora do espaço tão precioso à historiografia:... habitadores deste segundo hemisfério do tempo, que são os antípodas do passado. Oh que coisas grandes e raras haverá que ver neste novo descobrimento! Ele nos doa com facilidade o onde da voz escritural. Antípodas são os índios do Brasil, como o mesmo dirá no Livro Anteprimeiro, interpretando a passagem escuríssima da Profecia de Isaías. antípodas
Diz o Profeta Maior: ai da terra címbalo de asas que está além dos rios da Etiópia, que manda embaixadores por mar Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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em vasos de junco sobre as águas! Ide, anjos velozes, a uma gente revolvida e dilacerada; a um povo terrível depois do qual não há outro; a uma gente que está esperando e é pisada e a quem os rios arrebataram a terra. Erraram todos os sábios na interpretação dessa profecia, porque não tiveram notícia nem da terra, nem das gentes de que falava o Profeta. Os modernos comentadores, diz o jesuíta, entenderam a profecia na nova conversão à Fé daquelas terras e gentes também novas. Vieira aceita essa compreensão; porém, pelos sinais particulares da profecia, afirma ser o Brasil o seu onde, pois a Colônia é a terra que diretamente está além e da outra banda da Etiópia. É nessas terras onde se encontra a gente mais terrível entre todas as que têm figura humana. As razões para qualificar os brasis são as mesmas cunhadas ao longo das descrições jesuíticas da Colônia. Contudo, a generalidade dos brasis não basta a Vieira. Esta gente e esta província mostraremos agora que é a que com toda a propriedade chamamos de Maranhão, pois são as mais desconhecidas e pouco nomeadas pelos escritores. Sendo, então, a confirmação e honra deste famoso oráculo do mais ilustre profeta. São esses brasis que têm as terras roubadas pelas águas. Nessas terras de rios infinitos e mais caudalosos do Mundo, poucos lugares se tornam porto. Sempre se navega entre árvores espessíssimas de uma a outra parte, por ruas, travessas e praças de água. Aí vivem os Maranhões que andam mais com as mãos que com os pés, porque apenas dão passos que não seja com o remo na mão. Nessas terras roubadas pelos rios, os mesmos lhes restituem com abundância a terra que lhes rouba cuja colheita é muito limpa, porque caem todos na água. As tartarugas e os peixes‐boi pastam naqueles campos. São estas gentes que disse Isaías serem as arrancadas e despedaçadas: o Espírito Santo poderá recopilar em duas palavras a história e última fortuna daquela gente. Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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Quando os portugueses conquistaram as terras de Pernambuco, desenganados os Índios, após resistirem por muitos anos, alguns se sujeitando e outros com mais generosa resolução e determinados a não servir, partiram e vieram a sair às terras do Maranhão. E como soldados de longo exercício com inimigos mais poderosos, os portugueses, fizeram facilmente a seus habitadores o que nós lhe tínhamos feito a eles. Dessa peregrinação e da guerra que se seguiram, os efeitos que assinala Isaías ficaram: uma e outra gente arrancada e despedaçada. Os Maranhões enquanto inventores de sua náutica, principalmente os Igaruanas, os senhores das naus, permitem a Vieira interpretar literal e historicamente o restante da sonora profecia de Isaías. São eles que mandam seus negociantes em vasos de cascos de árvores sobre as águas; são eles que permitem ao jesuíta entender a passagem enigmática do Profeta: Vae terrae cymbalo alarum. Os Setenta Intérpretes, fala Vieira, leram a passagem como: ai da terra que tem sinos com asas. De qualquer forma e sem qualquer questão, o jesuíta toma os sinos por maracás, que são sinos entre os índios, derivando a palavra até maracatim, que nomeia as embarcações maiores desses Maranhões. Quanto às asas nenhum problema há, pois como os gentios não tecem, nem têm panos, é grande entre eles o uso de penas pela formosura das cores. E com elas vão às guerras e as amarram nas canoas com asas vermelhas dos guarás e as mesmas levavam penduradas dos gurupés e maracás das proas. São os Maranhões que ficam pontualmente além da Etiópia e perpendiculares à Linha Equinocial, fazendo repercutir, como está lido na Vulgata, gente esperando, esperando, que na letra hebréia, como dizem os especialistas, significa gente da linha de linha. E como a palavra linha se repete, como se repete esperando, Vieira pode concluir que o Profeta está Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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exortando os pregadores evangélicos a que vão como ser anjos da guarda daquela triste gente. Isso porque entre todos os brasis os Maranhões foram os últimos a quem chegaram as novas do Evangelho. Mas hoje estão ainda em pior fortuna, padecendo aquele vae do Profeta: Vae terrae cymbalo alarum; porque o estado da esperança se lhes tem trocado no de desesperação. quase‐morte
O luto é a maneira de Vieira em tentar ontologizar os restos da história dos Descobrimentos, tornando‐os presentes nas profecias, identificando os despojos para silenciá‐los e localizando os mortos para que falem. Precisa, portanto, assegurar‐se. Necessita encontrar onde está enterrado o signo que lhe permite a interpretação literal e última do sonho de intérprete; testemunha das profecias. O signo que diz ter achado exala o drama missionário, a ruína da épica dos Descobrimentos. Os Antípodas do Maranhão, enquanto signo enterrado no extremo da Colônia, sugerem pela aparência da escrita querer ser visto. Nesse querer da aparência, o desejo literal e histórico da interpretação do signo submerge na alegoria. Antônio Vieira assume a fantasmagoria dos livros e das experiências missionárias. Entrega‐se inteiramente aos recursos de leitura. Encontra‐se debaixo do Céu em aproximação radiosa, movido por trechos bíblicos, comentários teológicos e histórias, sustentados pelas neblinas da leitura: os pregadores do Evangelho, levados do vento como nuvens; e chamam‐se também pombos..., que são os dois termos que desde o princípio do Mundo andaram sempre juntos na significação do batismo. Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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O jesuíta acaba revelando a perda de segurança no rejeitado Portugal pela história, e, por isso, preenche e nega o nada no qual a pátria se representa. É, portanto, bastante convincente a obsessão em se refugiar na metamorfose, que da decadência de Portugal setecentista retira radiosos dias do há‐de ser presente; numa apropriação profética da história do acontecimento‐fantasma, navegando nos rios do Maranhão como os antigos portugueses tragaram o mar. Essa apropriação obsessiva se declara como interlúdio alegórico na recorrência constante à apóstrofe retórica: vede como... eu (Vieira) interpreto as minhas experiências e leituras, transformando‐as em cenas semelhantes aos discursos proféticos, para o futuro de nossa História. Os autores a que se refere, e são muitos, tornam‐se o coro a recitar o valor do sonho da justiça e das significações dos Descobrimentos. Como não é desprezível ao melancólico, a unidade entre sonhos e significações, os espectros profundamente significativos aparecem por sinais pretéritos e sobre o futuro. As experiências de quase‐morte (os sonhos, as profecias, as leituras, a Missão jesuítica, a travessia dos mares, a escrita) encontram a máxima significação alegórica quando a religiosidade de Vieira requer a companhia da profecia. E essa, ao falhar, pois ainda não é o tempo e por isso se distancia, requer para si a idéia apocalíptica. Como o fim tarda e não chega, embora diga estar próximo, a razão do fim faz Vieira exaltar o mundo como um todo em seu há‐de ser presente, ao mesmo tempo em que faz valer outra ação profética em literalidade e historicidade; Antípodas. dobra
No capítulo passado falamos com todo o mundo; neste só com Portugal. Naquele prometemos grandes futuros ao desejo; neste asseguramos breves desejos ao futuro. Nem todos os futuros são para desejar, porque há muitos futuros para Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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temer. Amanhã serás comigo, disse Samuel a Saul, o profeta ao rei, o morto ao vivo. Oh que temeroso futuro! Caiu Saul desmaiado e fora melhor cair em si que aos pés do Profeta. Mas era já a véspera do dia da morte, e quem busca o desengano tarde, não se desengana. Outros reis houve, que por não temer os futuros, quiseram antes ignorá‐los. (...) O maior serviço que pode fazer um vassalo ao rei, é revelar‐lhe os futuros; e se não há entre os vivos quem faça estas revelações, busque‐se entre os sepultados, e achar‐se‐á. Saul achou a Samuel morto e Baltazar a Daniel vivo, porque um matava os profetas, outro premiava as profecias. (...) E u, Portugal (com quem só falo agora), nem espero o teu agradecimento, nem temo sua ingratidão. Porque, se não conta com Daniel entre os vivos, eu me conto com Samuel entre os mortos; se nas letras que interpreto achara desgraças (bem poderá ser que as tenha, eu te dissera a má fortuna sem receio, como te digo a boa sem lisonja. Mas é tal a tua estrela (benignidade de Deus contigo, devera dizer), que tudo o que leio de ti são grandezas, tudo o que descubro melhoras, tudo que alcanço felicidades. Isto é o que deves esperar e isto o que te espera; por isso, em nome segundo e mais declarado, chamo a esta mesma escritura Esperança de Portugal, e este é o comento breve de toda a História do Futuro. Antônio Vieira procede por dobras. Dobra em breves desejos o futuro para Portugal, assim como havia desdobrado grandes futuros no início do Anteprimeiro para todo o Mundo. Envolve‐se e desenvolve um canto vivo, perpendicular, no encontro entre o futuro e o seu desejo de escritor. O ponto vivo é o eu do diálogo cristão, a esperança. Se ao se desdobrar aumenta e cresce, ao dobrar para si aquilo que foi desdobrado, diminui e entra no afundamento do mundo. Todo o amanhã tem em si todos os dias, todo o eu está repleto de terceiras pessoas. Desenvolve Vieira princípios da razão como se fossem gritos: Mas era já a véspera do dia da morte, e quem busca o Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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desengano tarde, não se desengana. A lógica não decorre do grande para o pequeno, ocorre do geral em direção ao especial: o maior serviço que pode fazer um vassalo ao rei, é revelar‐lhe os futuros. Vários fatos constatáveis se manifestam no Livro Anteprimeiro. Da História clássica, provém o dizer do satírico Juvenal Lucano, que conflui com o cessar dos oráculos da Gênese: Cessam os oráculos em Delfos, mas fez‐se silêncio, depois que os reis temeram os futuros e proibiram que os deuses falassem. Vieira se faz de elemento genético que idealiza curvaturas variáveis num ponto inelástico: Eu, Portugal (com quem só falo agora), nem espero o teu agradecimento, nem temo sua ingratidão. O acontecimento da escrita espera o acontecimento da História do Futuro: porque, se não conta com Daniel entre os vivos, eu me conto com Samuel entre os mortos... Logo, o acontecimento do profeta, ou do historiador, não é chamar o indefinido e nem conduzir ao demonstrativo, mas pessoalizar. Nesse ato, configura‐se a ação afetiva de assegurar. O eu de Vieira se assegura dos antecedentes, que são os concomitantes e, num jogo do próximo, lança âncora segura no futuro para Portugal. Seu olhar se afiança desta própria luz: mas é tal a tua estrela (benignidade de Deus contigo, devera dizer), que tudo o que leio de ti são grandezas, tudo o que descubro melhoras, tudo que alcanço felicidades. Nesse assegurar‐se instantâneo da escrita, dobra o mundo no canto do sujeito. Os dados da leitura, em Vieira, são elementos públicos privatizados. Passam rápidos no singular e saem como imediata novidade: nem espero o teu agradecimento, nem temo sua ingratidão. Mas a certa fala de Vieira provém do preexistente, dado que todo assegurar advém da garantia da Promessa: benignidade de Deus contigo, devera dizer. Tal acontecimento sobre‐histórico, que se refere a outros acontecimentos Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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enquanto atos sem história, é âncora pública que potencializa, atua e entra no porvir de um outro acontecimento numa História em um só ato missionário e sem histórias, o Quinto Império. Isto é o que deves esperar e isto o que te espera; por isso, em nome segundo e mais declarado, chamo a esta mesma escritura Esperança de Portugal, e este é o comento breve de toda a História do Futuro. O futuro e o passado são acordados nesse instante presente da esperança. As expectativas futuras do pretérito, não realizadas, e as expectativas do devir, aguardadas com temor e fé, silenciam na palavra esperança. Eis, então, a direta comunicação da experiência da escrita. As expectativas pretéritas e futuras se condensam nela, profetizando as esperanças que estão emudecidas, dando a elas o corpo da virtude e fazendo a dissolução das mesmas para cortejar o fim das aflições de esperar. desfazer
É das ações a capacidade de se romperem em processos irreversíveis e imprevisíveis. Como problema, a irreversibilidade, desfazer o que se fez, aceita apenas como solução a faculdade de perdoar. Quanto à imprevisibilidade, a caótica incerteza do futuro, a solução se encontra na faculdade de prometer e cumprir as promessas. Essas duas faculdades “são aparentadas, pois a primeira delas ― perdoar ― serve para desfazer os atos do passado, cujos pecados pendem como espada de Democles sobre cada geração; a segunda ― obrigar‐se através de promessas ― serve para criar, no futuro, que é por definição um oceano de incertezas, certas ilhas de segurança, sem as quais não
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haveria continuidade, e mesmo durabilidade de qualquer espécie, nas relações entre os homens”. 5 Antônio Vieira havia se obrigado a escrever a Clavis Prophetarum, livro sempre desejado. Assinalemos uma data para seu início, 1649. Embora haja muitas controvérsias sobre essa data, ela me permite aceitar a tarefa imposta por Vieira a si, perdoar e prometer. Perdoar a quem ou o quê? E prometer a quem ou o quê? Promete por que há uma Promessa: quero fundar em ti e no teu sangue um império para mim, disse Cristo a D. Afonso Henriques. E perdoa por ter dito São João sobre a Promessa no Apocalipse: e fez um só rebanho e um só pastor. O próprio evento do perdão inverte as Esperanças de Portugal, condicionando o medo à companhia da absurdidade entretecida pela vida. Quando reis, profetas, historiadores, teólogos e filósofos, tornam‐se contradições animadas enquanto absurdos narrativos postos em ação na escrita do Anteprimeiro. Se Vieira fosse incapaz de conservar a Promessa, sequer teria identidade religiosa e estaria condenado a errar no valor de sua fé. Ficaria acorrentado ao desamparo, desnorteado nas trevas do coração, enredado em suas contradições e equívocos. Há, então, no poder de prometer, aquilo que advém da Promessa, a luz do perdão que dissipa as trevas do desamparo e do desnorteamento humano. Mas isso é feito sobre a esfera pública de Portugal, exigindo a presença de outros, para onde a escrita de Vieira endereça as preocupações, confirmando a igualdade entre o que se promete e o que se cumpre a partir da capacidade de perdoar. Hannah ARENDT. A condição humana. Rio de Janeiro: Editora Forense‐Universitária, 1983.
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Se há queda no quase desastre da nação ― já que Vieira não teria elementos para fugir da importância consagrada narrativamente a Portugal ―, não haveria nisso um fato de consumação desejável? Isso não tornaria possível a ascensão de um estado sucessor e esplêndido que faria cessar a fragilidade de Portugal perante as exigências de Vieira, tornando todos os corpos políticos autônomos e hierarquizados segundo o que se espera de cada um deles? Mas vejo que o mesmo nome de Esperança de Portugal lhe poderá com razão suspender o gosto, assustar o desejo e embaraçar os mesmo alvoroços em que tenho metido com estas esperanças: Spes quae differtur, affligit animam (A esperança que se dilata aflige a alma, Provérbios, XIII, 12), disse a Verdade divina e o sabe e sente bem a experiência e paciência humana. Ainda que seja muito segura, muito firme e muito bem fundada a esperança, é um tormento desesperado o esperar. Mesmo as promessas dos antigos profetas, que falavam a partir das muito seguras palavras de Deus (que não pode mentir nem faltar), geravam nos judeus a situação de esperar, reesperar e, portanto, desesperar ― porque em muitas coisas das que lhes prometiam as profecias, primeiro se acabava a vida do que chegasse a esperança. Vieira promete esperanças para Portugal, mas só as garante por serem breves. Um futuro que não é aquele que há‐de vir e sim aquele futuro que já vem; este que brevemente há‐de ser presente, o neque instantia de São Paulo. Existe, então, um código moral último nas promessas e nos perdões de Vieira. Baseia‐se em experiências e leituras e é alimentado por esta antecâmara do agora de São Paulo. No agora, as experiências e as leituras não são momentos individuais; dependem inteiramente da presença de outros, sem os quais não vivem. São essas as configurações de autodomínio que justificam e determinam o comando que Vieira deseja exercer sobre o realismo natural de um desejo sonhado, no fato de um escape. O perdão e as promessas concedem a Vieira a condição de pluralidade exigida para fazer Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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acontecer. Vieira quer circunscrever o direito de falar. Promete a partir da Promessa, já que o faz por dever. E caso alguém queira contrariar o seu desejo, ficará à mercê de colocar em dúvida a própria fé. Vieira é vítima do arquétipo do Prometer e Perdoar; presa de sua própria armadilha e submerso no tempo; livre. O jesuíta indica a improbabilidade do evento, construindo a disparidade entre o que se pode esperar e aquilo que acontece ― ainda que seja muito segura, muito firme e muito bem fundada a esperança, é um tormento desesperado o esperar. A concessão ao futuro surge de maneira emocional no verbo ser no presente do subjuntivo ― seja. Na última oração ― é um tormento desesperado o esperar ―, os termos se arruínam mutuamente, criando um vínculo estreito entre a destruição e a geração de toda esperança. Onde o todo da frase termina é ali que existe início. Querer esse acontecimento é se fazer digno daquilo que acontece, ser filho do acontecido, e, por aí, redescobrir. Essa experiência, contudo, não basta. É necessário redescobrir por onde fazer acontecer. Vieira impulsiona o afeto e o faz deter‐se na substância verbal do esperar. Esse artifício estilístico se apresenta como limite do tormento e do desespero, na medida em que lhes concede novo sentido: a coragem de experimentar o tormento da fé. Enquanto a esperança ainda pode ser vivenciada como algo razoavelmente sólido, embora um tanto fugidia, o esperar é uma ação aterradoramente abstrata. E, para tal, é preciso desenvolver uma dupla qualidade: a paciência corajosa. A esperança como segunda utilidade da História do Futuro se torna a necessária condição dos tempos próximos e presentes da escrita de Vieira. Ela é a constância e consolação nos trabalhos, perigos e calamidades com que há‐de ser afligido e purificado o mundo, antes que chegue a esperada felicidade: o Quinto Império. E não há dúvida que se possa persistir, pois é Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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natural o costume da Providência Divina começar suas maravilhas por efeitos contrários, ou para a nossa fé, ou para mais exaltar sua onipotência. Ele pode mais que todos os poderes humanos, e só uma coisa não pode, que é faltar com o prometido. Essa matriz da paciência corajosa é talhada por Vieira através da conjugação entre os sentidos da esperança provenientes do Velho e do Novo Testamento. Na tradição velho‐testamentária seu sentido relaciona certeza e incerteza. A segurança do esperar independe de qualquer força humana. A esperança é busca de refúgio; um lugar para se pôr a salvo dos homens e do próprio mundo. Dessa maneira, a coragem é o seu contraponto, que do refúgio se lança ao mundo para aguardar o momento de agir. A atitude justa, na medida da coragem, pretende atingir o estado supra‐humano do permanecer. Mas o que permanece não é uma causa, mas o efeito invencível dessa fortaleza da espera, cujos pilares são a confiança e a fidelidade em crer. Esses suportes, entretanto, estão apoiados em um terreno essencialmente débil, pois são enraizados no chão da incerteza. Se Vieira pode aceitar essa associação de esperança e coragem, não admite a existência da incerteza. Caso assim o fizesse, estaria pronto a confessar que aquilo que o sustenta, a fé, é insustentável no mundo. Busca, então, o sentido no Novo Testamento, no qual a esperança se articula, num primeiro momento, com os atos de prever, temer e presumir. Assume máxima significância em São Paulo, a partir da expressão fé, esperança e amor (Coríntios, 13, 13). Na realidade, a esperança, colocada entre fé e amor, é escada entre a terra e o céu. Diante do pecado, essência humana, a fé absoluta cede lugar a seu correlato mundano: a esperança. Antídoto à vergonha que se sente após pecar, a esperança recoloca o homem em direção à fé, além de capacitá‐lo à ação no mundo, o amor. Vieira não assume o sentido passivamente. Amor, temor, glorificação, como atitudes da alma cristã, tradicionalmente Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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aparecem relacionados à escatologia. O século XVII, entretanto, não pode mais alimentar o anseio escatológico. Seu símbolo passeia como forma‐limite do drama comum de todos os homens. A questão da vida não se apóia mais no transitório contraposto ao eterno; a transitoriedade da vida é o assim deve ser. Na potencialização figurativa da escatologia, resta ao homem a naturalidade histórica, esse trágico que recita sua face oculta, a comédia. Nos instantes mais trágicos, é possível ter a apóstrofe de um sorriso mórbido. Esse sorriso é motivado pela certeza do riso final da morte. A paciência corajosa confina, de um lado, com a morte sorridente e, de outro, com a vida em lágrimas. Fronteiras tênues e admissíveis na força de um discurso. Para Vieira, a esperança não é mais uma confiança transcendental, pois o acesso ao céu está interrompido pela culpa histórica dos homens. Também inadmissível é a passividade no esperar, em função do tormento que o cobre. A matriz expressa de toda esperança é paradoxal. Paciência e coragem servem para limitar a esperança, para lhe dar forma simultaneamente divina e mundana. No entanto, esse mundanismo precisa reconhecer a superioridade no domínio do transcendente, o que impõe aos cristãos uma vivência quase periférica do próprio mundo. O amor ao mundo só pode se confessar de maneira parcial. voz e dedo
Se houve um profeta que foi mais que profeta, porque não haverá também algumas profecias que sejam mais que profecia? Assim espero eu que sejam aquelas em que se fundam as minhas esperanças e que, se nos prometem as felicidades futuras, também as hão‐de mostrar presentes. Agora as prometem com a voz, depois as mostrarão com o dedo. Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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Perdoa‐se, então, a decadência de Portugal? Força‐se uma correspondência para impedir um tormento; seja aquele dos portugueses ou do próprio Vieira? A retórica do jesuíta é tremendamente eficaz, aprisiona com facilidade. Vieira exercita‐se no domínio de cativar o leitor. Ele pretende vencer, mais do que convencer ou comover. Mas exagera na confiança, como se desejasse prover a circunspeção com a certeza cega da Promessa. Persevera na demonstração para tentar evitar o inevitável das coisas no mundo, perecer. Para que isso aconteça, Vieira precisa fazer da circunspeção um ponto cego. O ponto cego é correlativo urgente aos danos causados pela ação de partida dos portugueses na descoberta do mundo ao mundo. Encontra‐se na artisticidade da escrita de Vieira a relação entre imagem mnemônica do ato sem história e a imagem fantasmática de uma ação, em voz e dedo que apontam sem ver, cuja ambição é toda a História em um só ato. A passagem, portanto, acontece como princípio dos vencidos perdoando a si mesmo. Um direito de comutar a pena de morte em algo que a tem como mortificação: a alegoria máxima da natureza desses Descobrimentos. A atitude de Vieira é de um homem confiante na realidade e na significação de suas preocupações, ao mesmo tempo em que se torna vítima do absurdo da situação. Vieira se encontra submerso no tempo e na matéria que proverá sua escrita. Aceita o antever, uma maneira por demais aceitável da cegueira nas linhas, pois o sentido corporal da visão é substituído pela capacidade da voz em fazer ver aquilo que não é visto; porém apontado. A nossa insistência na faculdade de perdoar como correlato da situação vivida por Vieira, e pelo Portugal de suas expectativas, corresponde às próprias condições morais da religião cristã. O dever de perdoar é óbvia moral, pois “eles não sabem o que fazem”. Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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Se o pecado, ao contrário, é evento comum, pois brota da natureza factual da ação em criar constantemente novas correlações, o perdão é a necessidade que faz a vida prosseguir, liberando, firmemente, os homens daquilo que cometeram. Somente através dessa recíproca e permanente desobrigação do que fazem, os homens facultam ser agentes livres; apenas com a constante disposição de mudar de idéia e reiniciar é que podem iniciar algo novo. Antônio Vieira perdoa. Mas o faz na forma de um riso irônico: Deus não quebra as suas Promessas. Desse ponto de vista, o perdão é o oposto perfeito da vingança. Embora o perdão seja uma reação, assim como a vingança, sua capacidade é de conservar algo do caráter original da ação. Em outras palavras, o perdão é a excepcional reação que não re‐age apenas, mas atua de novo e subitamente, sem depender do ato que a provocou e de cujas decorrências alforria tanto o que se perdoa quanto o que é perdoado; reiterando‐se numa promessa. desengano
Mas perguntar‐me‐á porventura alguma emulação estrangeira (que as naturais não respondo): se o Império esperado, como diz no mesmo título, é do mundo, as esperanças por que não serão também do mundo, senão só de Portugal? A razão (perdoe o mesmo mundo) é esta: porque a melhor parte dos venturosos futuros que se esperam e a mais gloriosa deles será não somente própria da Nação portuguesa, senão singularmente sua. Portugal será o assunto, Portugal o centro, Portugal o teatro, Portugal o princípio e fim destas maravilhas; e os instrumentos prodigiosos delas os Portugueses. Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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O parágrafo é feito na medida do teatral, cujo drama absorve a leitura e indica o enredo da Comédia de Deus. Há espaço cênico de palco; lugar onde alguma coisa está para acontecer ou ser revelada. Um interlocutor é posto. Enquanto responde ao êmulo, Vieira se nega a falar aos naturais de sua pátria. O drama é potencializado basicamente por uma ironia velada. A platéia é o mundo que interage como êmulo da pergunta. Mas, a máscara dramática cabe à personalidade dos Portugueses. O que está para acontecer é algo que vai se dar ao suspeito portador do disfarce. A cegueira dos Portugueses tem referência tanto no presente, quanto no futuro, demarcado na exclusividade estilística dos futuros do presente. Assim, há tanto intimidade física com os Portugueses, quanto distância psicológica no prazer de Vieira em se colocar no lugar representativo de Deus. Se for teatral, na maneira da máscara dramática, a faculdade de perdoar e prometer aceita a arena de uma crueldade mínima. A caracterização crônica que Vieira concede a Portugal revela, na vítima, seja ele, seja a sua Pátria, o envolvimento com certos medos, esperanças e expectativas. Enquanto agir discursivo, toma medidas que conjugam a preocupação com o mal e o bem previsto. O mal acontecerá caso não haja envolvimento com o bem previsto, mas a ação discursiva acaba declarando inevitavelmente a ruína. A exaltação de Portugal é clara em demasia. Isso nos permite estabelecer a idéia de que o que está sendo representado como prestes a acontecer remete ao comportamento inconscientemente confiante do verdadeiro estado das coisas de Portugal e do próprio Vieira. Portentosas foram antigamente aquelas façanhas, ó portugueses, com que descobristes novos mares e novas terras, e destes a conhecer o mundo ao mesmo mundo. Assim como líeis então aquelas Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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vossas histórias, lede agora esta minha, que também é toda vossa. Vós descobristes ao mundo o que ele era, e eu vos descubro a vós o que haveis de ser. Em nada é segundo e menor este meu descobrimento, senão maior em tudo. Maior Gama, maior Cabo, maior Esperança, maior Império. Naqueles ditosos tempos (mas menos ditosos que os futuros) nenhuma coisa se lia no mundo senão as navegações e conquistas de Portugueses. Esta História será o silêncio de todas as histórias. Os inimigos lerão nela suas ruínas, os êmulos suas invejas e só Portugal suas glórias. Tal é a História, Portugueses, que vos apresento, e por isso na língua vossa. Os elogios são assombrosas manifestações do perdoar e do prometer. Não há nenhuma pergunta no fim do Segundo Capítulo. Vieira o fecha com certezas taxativas. Portugal foi declarado como um amanhã. Sem perguntas ou dúvidas, o questionamento sobre o que virá inexiste como sentido. Vieira obriga o leitor, até a si mesmo, a relancear o olhar para o passado do ato sem história, pois daí vem o há‐de ser presente ― todo invejoso é inimigo dos presentes, e amigo dos passados. Deve, portanto, fazer exceder a presença dos Descobrimentos, de forma a gerar a pergunta não expressa: para onde irá Portugal amanhã sem a façanha que no mar se fez? Mesmo sendo do futuro, o porvir dessa única procedência histórica é absoluto e irreversivelmente pretérito. Experiência irremediável do passado como do há‐de ser presente, ambos absolutos. O instante presente da escrita não pode muito com eles e, por isso, só promete. Se puder levar a sério esse instante presente da escrita de Vieira, a possibilidade daquela pergunta ― para onde irá Portugal amanhã sem o seu acontecimento‐fantasma? ― devo admitir um tipo de justiça que deve conduzir para além da Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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vida presente. Dessa forma, o Livro Anteprimeiro é um processamento imanente e ininterrupto da própria vida que precisa ser superada. Se se há‐de restituir o mundo à sua inteireza e natural formosura, não se poderá consertar um corpo tão grande, sem dor e sentimento dos membros, que estão fora de seu lugar. Alguns gemidos se hão‐de ouvir entre vossos aplausos, mas também estes fazem harmonia, se são dos inimigos. Para os inimigos será a dor, para os êmulos a inveja, para os amigos e companheiros o prazer e para vós, então, a glória, e entretanto as Esperanças Vieira parece requisitar aos portugueses que sejam justos com aquilo que aconteceu. Ser justo, momento espectral, momento que não pertence mais ao tempo, caso se compreenda debaixo desse nome o encadeamento das modalidades do presente (presente passado, presente atual: agora, presente futuro). Contudo, é irrefutável, em Vieira, a justiça que deseja para si e para os Portugueses, advinda das mãos de Deus. Ligados discursivamente de forma íntima ― o quanto é possível a ligação entre o destruir e o fazer ―, o perdão dado a Portugal, de não ser mais o que foi, revela o caráter do próprio feito, os Descobrimentos. As condições pessoais de Antônio Vieira levantam o que foi feito da poeira da história e perdoa em consideração ao que deixou de ser. Nesse sentido, a razão do perdoar desabrocha no labirinto do ato de amar. distinção
Vieira empenha o quem e o que ao acontecimento‐fantasma. Ele não enaltece o amor a Portugal sem a tutela familiar, os Portugueses. Se assim o faz, é para impedir a imperfeição do amor, que é uma forma de ódio quando se universaliza. Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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A natureza do amor é extramundana. Ele é antipolítico por absoluto excesso de “política”. E dessa forma, um alçapão de toda e qualquer política. Daí se desprender a evidência de que o Quinto Império é ultra‐ortodoxo, radical, inteligente e incompleto conjuntamente. Uma sublimidade em queda, que por ser histórico e profético por excelência, alimenta‐se da beleza do estado de espírito do amor extramundano. Por certo, uma maneira de odiar perfeitamente o estado do mundo. A partir dele, Portugal deixa de ser o que não é e aquilo que diz discursivamente ter sido, para ser um há‐de ser do acontecimento‐fantasma, o Quinto Império. Entre a aparência da religião e a realidade da política, o amor de Vieira pelos Portugueses, converte‐se no respeito aos sofrimentos dos negócios humanos. Posso, então, considerar a idéia da pergunta ― para onde irá Portugal amanhã sem o seu acontecimento‐fantasma? ― como um radical desejo platônico pela philia politike aristotélica; o respeito como forma de amizade que impede a intimidade e a proximidade exigidas pelo amor. Não obstante, o quem e o que do drama histórico de Portugal revelam o sujeito da ação discursiva de perdoar, os Portugueses. Para eles Vieira promete. Ao contrário do perdão, que sempre foi considerado irrealista e inadmissível na esfera pública, a força estabilizadora essencial à faculdade de prometer sempre foi conhecida na tradição ocidental. Bem, isto é um fato, seja na inviolabilidade de acordos e tratados do sistema legal romano, seja na Bíblia, na descoberta de Abraão da Aliança com Deus. O medo da imprevisibilidade é arrebatado pelo ato de prometer. Vieira promete aos Portugueses, e a sensação proveniente da promessa para os inimigos será a dor, para os êmulos a inveja, para os amigos e companheiros o prazer e p ara vós, então, a glória, e entretanto as Esperanças. Ela é maior agora e menor Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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antes. Roma e Abraão, império e religião são agora menos. O mundo é o mundo das descobertas. Maior do que já fora. E, por isso, impregna os homens de se fazerem maiores do que aquilo que o Mundo se tornou. Se a função da faculdade de prometer é aclarar o duplo obscuro dos homens, se o mundo é maior do que se imaginava como mundo, a promessa deve se ancorar na supremacia baseada no domínio de si como um ressuscitado perfeito e no governo de todos por uma força extramundana. Tal simultaneidade é uma obrigação decorrente da necessidade de manter a inteireza do mundo do mundo. Nesse devir, a propriedade temporal é furtada do presente. O devir, esse há‐de ser presente, não é capaz de suportar a distinção do pretérito e do futuro. Eis, então, o milagre que salva o mundo de sua ruína normal e natural, O Quinto Império. Em última análise, o milagre só pode ser o nascimento de um novo mundo: aquele mundo que foi descoberto ao próprio mundo, aquilo que ele era e não sabia. É nos Portugueses que se encontra a marca do redescobrir o ato sem história, que flui para a morte, mas que, por ação dos Descobrimentos, demonstra que embora os homens nasçam para morrer, eles só o são por dar começo ao tempo. E dar começo à boa nova é admitir que os atos dos portugueses permitiram o fim no início, sendo então necessário dizer que está para nascer um filho do acontecimento‐fantasma, o último e novo império num ato sem histórias redescoberto. mundo
O Mundo do nosso prometido Império não é mundo neste sentido; não prometo mundos, nem impérios titulares, nomes tão alheios da modéstia como da verdade. Bem sei que o Império da Alemanha (envelhecidas relíquias e quase Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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acabada dos Romanos) em muitos textos de um e outro direito se chama Império do Mundo; mas também se sabe que os textos podem dar títulos, mas não impérios. (...) impérios e reinos não os dá nem os defende a espada da justiça, senão a justiça da espada. A Abraão prometeu Deus as terras da Palestina, mas conquistou‐as a espada de Josué e defendeu‐as a dos seus sucessores. Estes são os instrumentos humanos de que se serve (ainda quando obra divinamente) a Providência daquele supremo que é o do Mundo e dos Exércitos. Os que querem o ruído e encher de algum modo o vazio destes grandes títulos, dizem que se estende por hipérboles ou exageração, e por aquela figura que os retóricos chamam sinédoque, em que se toma a parte pelo todo. O título desta História não fala por hipérboles nem sinédoques, não chama a um pigmeu gigante, nem a um braço homem. O mundo de que falo é o mundo, aquele mundo, e naquele sentido em que disse São João: ʺO Mundo que Deus criou, o Mundo que não o conheceuʺ, e o Mundo que o há‐de conhecer. Quando o não o conheceu, negou‐lhe o domínio: quando o conhecer, dar‐lhe há a posse... ʺ Este foi o mundo passado, e este é o mundo presente, e este será o mundo futuro; e destes três mundos unidos se formará (que assim formou Deus) um mundo inteiro. Este é o sujeito de nossa História, e este o Império que prometemos do Mundo. Tudo que abraça o mar, tudo que alumia o sol, tudo o que cobre e rodeia o céu, será sujeito a este Quinto Império, não por nome ou título fantástico, como todos os que até agora se chamaram Impérios do Mundo, senão por domínio e sujeição verdadeira. Todos os reinos se unirão em um cetro, todas as cabeças obedecerão a uma suprema cabeça, todas as coroas se rematarão em um só diadema, e esta será a peanha da Cruz de Cristo. A escrita de Vieira é inimiga do particular e, ao mesmo instante, sua salvação. Tende a mediar o particular dos Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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portugueses pela constelação da universalidade do Quinto Império, que rende justiça ao mundo como Criação de Deus. Nesse feitio, a sua aparência se concentra em grandeza, paz e união no extremo do que especificamente exprime. Os universais da passagem recebem, como numa caixa de ressonância, a diferença. O império de Vieira se distingue dos títulos inscritos nas lápides da história, ou daqueles prestes a acabar. O efeito da escrita de Vieira é um desejo de saudar e de dar saúde ao mundo do mundo em freqüente declínio. Mas só pode ser se for devastador e, daí, contar com o seu segredo, a palavra fim. A forma desse término no Terceiro Capítulo do Anteprimeiro Livro, no qual se mostra a divisão em sete livros, revela‐se eficaz pelo desvelamento mais puro do ato digno da essência da palavra cristã: prometer e perdoar. A eliminação do indizível coincide com o estilo neutro que Vieira quer fundar. Essa idéia me permite pensar na armadilha de toda política, o Quinto Império. Vieira não se encontra tão distante do divino, nem do que se pode chamar de real, pois é capaz de conduzir a Promessa por si mesma na pureza quase irônica do perdoar. Antônio Vieira renuncia, portanto, a pôr os universais como verdade metafísica, escolhendo a antecâmara do agora de São Paulo. Agora nos preparamos para isto; é o que eu aceito como contrição ― sentimento de dor profunda pelas ofensas feitas a Deus, procedendo mais do amor e da gratidão para com o Criador do que do temor de castigo. antecipação
Antônio Vieira deseja fazer tudo concordar. Bem, sua obsessão pela realidade, nas leituras e experiências missionárias nessa História do Futuro, encontra o princípio do assemelhar‐se. Esse princípio, porém, reside Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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confortavelmente na natureza do sonho. A obsessão, que aqui nada guarda de freudiano a não ser os exageros, admite a obstinação do jesuíta em fazer tudo concordar. Intempestiva, porém, a obsessão histórica caracteriza a existência do acontecimento‐fantasma enquanto sombra da memória filial de Vieira. Não há coisa alguma, portanto, de melhor expressividade das semelhanças que o sonho. Sonhar é uma forma de cegueira submissa à essencialidade do segredo histórico originário ― constituída no estado de espírito do herói lutuoso. Ao se sonhar, o que se manifesta anti‐representa as potências figurativas dos materiais empíricos apresentados como se não houvesse tal coisa, como se não nos pertencesse. E mesmo assim se vive o sonho como se fosse haver, como se fosse nosso e como nos pertencesse. A vivência onírica demonstra que a repetição jamais acontece. A sua existência rompe lançando o sonhador Vieira para frente, numa relembrança por antecipação. O como se não introduz as concordâncias hipotéticas, contrárias à realidade evidente. Na obsessão real do sonho, que sempre é um como se não que se faz do fosse perpétuo e vívido, repetido intensamente para evitar o esquecimento da Promessa numa dupla neblina que espelha as relíquias dos cuidados no qual se vive e se sonha. Antônio Vieira converte a decadência da Portugal num como se não houvera tal coisa. Isso é feito, todavia, sob a atmosfera da neblina densa, como se fosse a evaporação visível das regiões amazônicas, algo que se assemelha à imagem comum do ar condensado em pequenas gotículas no fim do dia. As visões táteis da leitura e as memórias das experiências de Antônio Vieira, transpostas na escrita, tendem a se precipitar em tudo que se revela condensado entre nuvens baixas, na aparência do lugar‐comum das descrições dos sonhos, postas no solar singelo da Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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realidade de uma narrativa possível. A solidez dessa narrativa condensada, que se evapora por desejos naturais da intervenção de Deus nos negócios dos homens, evidencia uma repetição recordativa de uma palavra que dobra tudo: a Missão; que não admite descontínuos absolutos. A continuidade, porém, é o axioma da aurora. Sua formação germina nas entranhas do escuro e nesse espaço se sonha. E quem sonha com a completude da poética da esperança, no caso Vieira com a realidade do seu testemunho e interpretação literal e histórica, tende a evitar a quebra absoluta entre o mundo noturno e diurno. Nessa disposição do jesuíta, a narrativa do sonho ao amanhecer que há‐de ser presente é fatal, pois precisa contar com a vingança do real para se desprender. Sendo assim, só na outra margem da vida, sob a luz do dia do amanhecer prometido, pode o sonho ser interpretado como recordação sobranceira. O além do sonho, portanto, é alcançável num anseio da ablução, o batismo das águas, contando com o diferente que reside no mesmo da religião. Logo, quem está num jejum de expectativas fala do sonho como se fosse a concretude da esperança, e fala na realidade do dia claro de dentro da natureza do sono, após noite que se professa. em que lugar?
Vieira chama para si a responsabilidade de recordar o futuro, invocando a assistência grave do acontecimento‐ fantasma. E como interpretar é profetizar testemunhando o que é visto, como se sente e o que acontece, a influência profética é a moeda que permuta a decadência em há‐de ser presente. Ou seja: a metamorfose obsessiva de redescobrir aonde se vai chegar, navegando sob neblinas na confiança do que Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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foi mapeado pelas leituras, requer dos instantes presentes da escrita a consciência da negação. Pois, sem esta, inexiste o convívio com o princípio de realidade da religião: deixar de ser o que é para poder ser o que nunca foi e por fim gerar um há‐de ser natural à esperança de que Deus não abandona os filhos escolhidos. Existe uma obrigação discursiva em Antônio Vieira de se identificar consigo mesmo. Sem essa obrigação imanente, sem a tensão antimimética do discurso, sua escrita não se objetivaria. Ao tentar se assemelhar a si próprio, o que é constantemente confundido pela historiografia com a idéia de uma vida una e coesa, a obra de Vieira aponta para o fato de tudo parecer apenas como se houvesse de ser assim e não pudesse ser de outro modo. Nessa tensão, a obsessão da inteligência e a vontade de tudo unir e fazer concordar revela a impropriedade de conferir a todos os acontecimentos margem de segurança. A relação que Vieira mantém entre o seu Quinto Império e a necessidade de ser novo é uma fundamental melancolia nostálgica do novo:... é uma História nova sem nenhuma novidade, e uma perpétua novidade sem nenhuma coisa de novo. O que é experimentado como utopia pela historiografia revela o patrimônio condicional que ajuda a não percepção do negativo contra o qual existe o discurso do jesuíta. Nessa negatividade absoluta, a escrita do autor exprime o inexprimível, o não. Este, tão próprio à voz imperativa de Vieira, recondiciona a natureza de qualquer história encontrar o seu telos. O seu não ao mundo legitima aquilo que ele chama de Quinto Império, o mundo assistindo ao seu aparecimento enquanto fim em si. Há, então, uma relação de efeitos recíprocos entre pátria, natureza e o eu literário de Vieira, que se encontra no declínio de um tipo de mundo tornado ideal na medida de uma Filosofia da Restauração, o Quinto Império. Vieira deseja o mundo de todos os mundos. A coincidência com a Criação é do reino da evidência: Este foi o mundo passado, e este é o mundo Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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presente, e este será o mundo futuro; e destes três mundos unidos se formará (que assim formou Deus) um mundo inteiro. Este é o sujeito de nossa História, e este o Império que prometemos do Mundo. O todo de tudo é o que sempre é. Tempo e mundo não se distinguem. E, dessa forma, apresentam‐se no não do tempo. No declínio do dia para a noite, momento e começo de um outro tempo e mundo, situa‐se a História do Futuro, o Quinto Império, a Clavis Prophetarum. Título por muitas vezes metamorfoseado, cuja origem está nas Esperanças de Portugal nos olhos de uma Colônia.
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III ‐ o que se finda no Anteprimeiro O último ato é de Deus. Na clausura do sentido que todo acontecimento da história humana contém, manifesta‐se a chave do entendimento. Sua plenitude é precisamente o espelho da alma. A cada experiência e a cada leitura, o reflexo invisível de Deus simula preencher o sentido e o esvazia. Ele não cessa de aparecer, nem diminui a sua ausência. A incompletude poética dos homens aviva a esperança no sentido de que Ele está por perto. O enredo da Comédia de Deus tece o fio que liga os fatos da história à Verdade de que o tempo é um versículo que recita a Sua demora. A eternidade é seu atributo; ilimitado em Sua mente. Nenhum estímulo é mais precioso do que este. É dessa primacial certeza religiosa que a Providência se manifesta como tecido semeado por atos humanos. O mundo requer a Sua eternidade; e a escrita dessa necessidade faz dos momentos o diálogo entre o tempo e a ultravida. A escrita não está vazia de culpa; é sempre responsável por certa dose de desfiguração de sentido, motivada pela clausura deste, que só se abre com a chave de Cristo quando retornar ― escrever prescreve essa deformação da espera. Vieira escreve apoiado sobre o instante presente e autêntico, sua autoria. Nessa autenticidade, prolonga‐se o mundo incerto. O choque entre o que foi Portugal e as expectativas de futuro promissor são evidências do desespero que o Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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envolve. Silenciá‐lo é sua tarefa de testemunho das profecias. Nesse arranjo do silêncio, o otimismo se agarra às franjas das frases. Em cada instante deve parar e recomeçar, pois a Verdade foge constantemente das intenções dos sentidos dados a ler. futuro
As frases de Vieira convertem, portanto, os acontecimentos do recente passado de Portugal, os Descobrimentos, no pretérito perfeito da fundação do Reino, e todos movidos por instantes presentes da escrita expectante, pós‐Restauração ― numa esperança restauradora que não se pode manter indeclarável. A orientação para o futuro especifica e destrói o campo experimental da velha Europa. No lugar deste, a ênfase no mundo do mundo, que por sua novidade constitui o imprevisível início, retomado por vias de desapego ao próprio. Esse é mais do que era e se sonhou e, portanto, os homens deverão ser mais do que são; serão, por Providência divina, menor em sua condição humana e maior em espiritualidade. Assim também essa irmã menor, a América e seus odores. O amor extramundano ao mundo esclarece a naturalidade da sua fé, o realismo de escutar a si mesmo. Nesse sentimento, porém, nenhum nascer do sol, mesmo em rios do Maranhão, é de fato senhorial. Pelo contrário, cada aurora aparece de maneira tímida como esperança de que as coisas podem melhorar. No pouco lustre da mais possante luz, iluminando mais uma vez os muitos pecados do mundo, reside a majestade comovente da escrita de Vieira. Escreve como interpreta o que leu. Lê como vive, jesuiticamente. Vive como escreve e como lê. O entendimento literal e histórico que o jesuíta busca fazer valer na escrita evidencia a conquista das superfícies espelhadas. E, como tal, Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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reconhece já na primeira vez a citação familiar do jamais visto, o Quinto Império. noite
Deus criou, porém, a noite para o descanso e a tentação. O jesuíta a tem por relíquias dos cuidados, pois nela se armazenam os sonhos e se formam os espelhos da aurora. E é nesse ambiente da noite que o espelho da alma reflete o sentimento de que o homem é reflexo e vaidade, e, por isso, a superfície vítrea e a noite alarmam Vieira. Toda a noite tem o seu lugar. Para Vieira é Portugal, que deu à Europa uma nova manhã e um novo entardecer. Mas, para Portugal, a noite é a Colônia. Nela, recita‐se a voz de sua semelhante diferença. Ela guarda a precária referência do signo da derradeira promessa, os Antípodas, o que permite ao jesuíta tomá‐la como ponto‐Pai. manhã
Lá em Lisboa, numa certa manhã, as Esperanças de Portugal evaporam as nuvens da desesperança, termina o “ter sido”. Um Rei superungido de História e Profecia, mortificado, abre a porta e constrói os muros para a Conversão Universal. O Vice‐Cristo assume o seu Reino e a sua Monarquia Universal abraçará o que está debaixo do Céu. O realismo das menores distâncias entre o Céu e a Terra encontra o seu momento de completude, que espelha experiências e leituras vividas. Nesse dia, qualificado por São Paulo como “um dos maiores, e mais notáveis dias que nunca teve o mundo”, acabam‐se os trabalhos cotidianos e regulares da vida humana e começam as felicidades. E o dia não mais passará; e o Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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espírito das águas sob a Lei da Graça fará terminar os profetas. Nesse agora, Deus aprisiona o Diabo e faz abundar a Graça. Ela fará derramar e chover o espírito da profecia sobre toda a carne, e que os homens e mulheres, velhos e moços, todos hão‐de profetizar e viver como ressuscitados. O mundo do mundo redescobre que tudo que no agora se sucede já estava dito antes, tudo que agora se vê, já estava ouvido. E ao longe, no horizonte, vêm ao encontro dos ressuscitados as Dez Tribos perdidas de Israel, que não foram e não puderam ser cúmplices na morte de Cristo, porque no ano de 34 já estavam perdidas. Assim, há‐de se levantar a terra mais que em um monte e esse tão grande como ela, porque há‐de haver uma só Monarquia que há‐de ser universal de todo o mundo que ela só não reconheça superior e todos os reconheçam ela. Os outros reinos, monarquias e impérios não perderão suas jurisdições, mas estarão submetidos à superioridade dessa Monarquia Universal, pois é nova sujeição que dantes não tinha. No agora da duração, o temporal e o espiritual se encontram, e se dará a verdadeira felicidade, a Paz Universal. Com o tempo plenificado na superfície que espelha o céu e a terra, sem a medida natural de sua duração, dar‐se‐á o derradeiro combate. Vencido por Cristo, suas tropas serão guiadas a outro estado mais perfeito, completo e consumado. Logo, se se admite consolação no acabar, nenhuma outra pode haver maior que acabar quando acaba tudo. estrela
O absoluto otimismo de Vieira é acompanhado pelo desespero radical silenciado. Se há natureza real da Promessa, há a realidade natural nas chaves do sentido. Se tudo poderá ser visto por ser já ouvido, e tudo que sucede já foi escrito, Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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tudo se dobra na alma da escrita do missionário. E, num sentido de empréstimo empírico, podemos admitir que o sol se configura da mesma maneira que a Monarquia Universal, o seu Vice‐Cristo português e a escrita de Vieira. A escrita de Vieira pede o amanhecer, e só retém as últimas luzes do entardecer para logo se deter na sua constância. O complemento de sua incompletude acontece pelo que é visto e ouvido a cada pronúncia e recupera aquilo que sucede na leitura pelo que já foi de fato lido. E, como tal, potencializa a mesma figuração da noite, desejando reter a luz do sol pela via indireta das palavras‐estrela para anunciar a nova manhã do Grande Dia. É nesse ambiente das linhas à luz do dia, ou sob a luz movente da candeia, sempre no noturno do sentido, que o homem Vieira se confunde, gradualmente, com a forma de seu destino. O acontecimento‐fantasma Descobrimentos é sua larga circunstância. Mais do que um intérprete da literalidade e da historicidade das leituras e experiências, mais do que um “perdoador” compulsivo que promete e se vinga do estado do mundo pela Promessa, Vieira é encarcerado ao projeto de redescobrir as chaves do profeta. Do seu incansável labirinto procura a fronteira da superfície espelhada para nela sonhar e regressar à recordação por repetição antecipada do futuro. filho
O complemento não pode vir dele, e nenhum saber pode acalentar uma completude, apenas Deus pode fazer o preenchimento da falta. O livro santo, que Vieira promete, pede e exige do leitor, ventura e ousadia, na fantástica descoberta do mundo ao mundo, jamais poderia ser terminado. Se os Descobrimentos calaram todas as outras histórias e, se essa Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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façanha eterniza os portugueses, sua superação só pode vir de outro acontecimento que o completa como o filho ao Pai, o Quinto Império, pois este, ao se igualar, supera‐o. O Quinto Império, para acontecer, precisa dos homens e, ao mesmo tempo, os dispensa. Deus, onipotente, sempre aguarda o desenlace da Comédia, uma vez que em nada precisa dos homens. Eles valem por aceitação incondicional de Seu enredo que, ao validar os próprios atos, devem assumir juízo de oferecer os ganhos a Ele. Nesse drama natural da esperança, a coragem aceita a profecia última e única do retorno de Cristo e, no direito contratual que Ele prometeu, os homens aguardam as felicidades. Tudo passa a ser, nesse palco teatral do drama humano, prefácio à justiça que nunca deixa de ser profética. Sob a atenção de Deus, as múltiplas lágrimas dos homens aceitam as curiosidades para refrear o desespero; mas Vieira sabe que, no mundano, os portugueses deram as almas e madeiras. Logo, há um saldo de Portugal na contabilidade de Deus. E se Ele não pode nem mentir, nem faltar, a paga há‐de ser presente e a Justiça jamais faltará. Daí, o alçapão de toda política, a violência desejante do missionário que do não dos Descobrimentos extrai o seu filho não, O Quinto Império. voz e olhos
As Esperanças de Portugal de Vieira são os horizontes do “ter sido” deixado pelo acontecimento‐fantasma Descobrimentos, complemento ilusório da poética incompleta em História e quase‐livro. E nesse inacabado, só um lugar tem voz. Nesse lugar a semelhança fala sua diferença, toda história tem o seu rastro e toda profecia corre para o mar tentando atravessá‐lo; a Colônia. Na dobra e desdobra do extremo interior desse espaço, protegido pela autonomia externa da Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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relação Metrópole‐Colônia, as denúncias se dirigem a um quem, que se alimenta através de um sentimento altivo, que perdoa e promete ao que se filia. O olhar de Vieira se torna o espetáculo teatral da crueldade mínima, anunciando sempre o que deve Portugal a si mesmo e apontando para um futuro que é outro Portugal, já que Portugal como Portugal não é nenhum Portugal, e sim o Quinto Império. Vieira fez a História de Portugal receber a marca de sua precária referência e futuro, os Antípodas da Colônia. A dor do jesuíta pelos Maranhões reivindica um prazer para o olho que vê as situações da pátria, que sem ele parece inexistir, convertendo o olhar numa operação construtiva sob ruínas entre o coletivo dos portugueses da ventura e ousadia e o Eu fundador do Reino, Cristo. Esse olhar de Vieira está animado por um mínimo infinitesimal da idéia de vingança para perdoar, numa aptidão para apreender a relação sutil entre o signo gravado no corpo missionário em áreas coloniais e a voz que sai do rosto do destino histórico na fundação do reino, a Missão. Dessa relação própria aos domínios do código da História, a dor de Vieira extrai a mais‐valia do seu olhar, demarcando a representação territorial num sistema de dívidas solucionadas pelo preparo de que tudo há‐de terminar. Eis, então, o teatro da crueldade mínima contrária ao estado das coisas: a voz articulada à promessa, a mão gráfica das denúncias e do perdão e o olhar apreciador da dissolução de toda esperança, cansada de tanto esperar. Nessa ação conata feita de ruínas, tudo parece e deve ser aceito como ativo, agindo ou reagindo, organizado na superfície vítrea pela voz da Aliança entre Deus e Portugal. Apaixonada filiação ao acontecimento‐fantasma, que silencia a reação, ao olhar a dissolução da atividade e da Aliança e, portanto, desemboca num afeto incorruptível. Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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ironia
O afeto de Vieira é a tentativa de impedir a derrota potencial da ação, pois o risco é a introspecção e o acanhamento histórico. E esse afeto só encontra campo de sigilo na ironia sublimada. É ela que acontece por projeção, que recorda repetindo a antecipação do futuro, sombreando a possibilidade de mudança, de metamorfose, envolvida na travessia de qualquer mar, sonho, interpretação ou desejo de totalidade: História do Futuro. A arte de Vieira assume a negatividade através da medição jesuítica entre o abismo da práxis e o desejo de felicidade de todos que confessam crer na promessa do retorno de Cristo e se preparam para tal, resolvendo as divergências. Assim, no pólo extremo da Colônia, ou sob o peso do processo inquisitorial, o missionário Antônio Vieira não deseja, como um burguês, que a sua arte seja voluptuosa e a vida ascética. Mas sim que a arte seja ascética e a vida voluptuosa de fé. Eis, então, a sua tristeza pela irrealização do desejo, expressa como conteúdo metafísico imanente à política e encanto erótico da crença impregnada na forma de escrever. Sentir a aproximação do firmamento em direção a Terra, em seu silêncio, é um privilégio raro da fé. Mas esse mesmo dado não pode ser comercializado. O belo firmamento em aproximação radiosa, o Quinto Império, em nuvens que o escondem, permanece uma alegoria desse para lá das evidências mundanas, apesar da mediação social da política. Essa alegoria considera o estado de reconciliação que há‐de ser alcançado e se degrada em meio à emergência das expectativas que mascara, e se justifica no estado irreconciliável entre os homens. A reserva de velada ironia, O Quinto Império, que se eleva à própria atividade da escrita, cuja intenção é de fato pedagógica, constitui a onipotência fictícia do narrador Vieira, Publicações Dialogarts 2008 – ISBN 978‐85‐86837‐XX‐X
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que se associa tanto à pretensão do real metamorfoseado em um como se não, quanto à medida sugerida pelo sentido reforçado de tristeza: oh, se isso acontecesse!
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