Estação Literária.pdf

May 29, 2017 | Autor: Maria De Oliveira | Categoria: Feminist Literary Theory and Gender Studies, Virginia Woolf Studies
Share Embed


Descrição do Produto

Revista Estação Literária. Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Londrina: Londrina. Vol. 9 (jan–jun). on-line :http://www.uel.br/pos/letras/EL/, 2012. 290 f. Publicação Semestral Desde: Março 2008

ISSN: 1983-1048 Revista Acadêmica de Estudos Literários e Culturais CDU 82(05)

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

CORPO EDITORIAL PARECERISTAS DESTA EDIÇÃO Ana Aparecida Arguelho, Andrea Cesco, Cristiano de Sales, Danglei de Castro Pereira, Edgar Cézar Nolasco, Igor Rossoni, Luciana Brito, Luciana Namorato, Luiz Carlos Santos Simon, Marcio Scheel, Marcos Scheffel, Mario Higa, Marta Dantas, Mirhiane de Abreu, Raquel Illescas Bueno, Regina Correa Aquino, Rita das Graças Félix, Rosana Cristina Zanelato Santos, Sérgio Paulo Adolfo, Silvio Ruíz Paradiso, Susanna Busato, Susylene Dias de Araújo, Thomas Bonnici, Vera Helena Gomes Wielewicki. PARECERISTAS CONVIDADOS Alamir Aquino Corrêa, Érica Fernandes Alves, Luiz Roberto Velloso Cairo, Luzia Aparecida Berloffa Tofalini, Maria do Perpétuo Socorro, Marisa Correa Silva, Máximo Lamela Adó, Otávio Guimarães Tavares. EDITORES E REVISORES Ana Claudia Pantoja, Ana Paula Sversuti Gongora Bortolotto, Cassiano Motta Fernandes, Cátia Cristina Sanzovo Jota, Cínthia Renata Gatto Silva, Cleia da Rocha, Érica Antonia Caetano, Felipe Grüne Ewald, Frederico Faustino, Gabriel Victor Rocha Pinezi, José Sérgio Custódio, Luciane dos Santos, Luis Eduardo Veloso Garcia, Manoela Fernanda Silva de Matos, Priscila Rosa Martins, Renata Beloni de Arruda Fernandes, Ricardo Gomes da Silva, Willian André.n a EDITOR RESPONSÁVEL Felipe Grüne Ewald COORDENAÇÃO Priscila Rosa Martins APRESENTAÇÃO Cátia Cristina Sanzovo Jota DIAGRAMAÇÃO Willian André Ricardo Gomes da Silva

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

APRESENTAÇÃO É com imenso prazer que anunciamos a chegada do volume 9 da Revista Estação Literária. Nesta edição, os leitores poderão contemplar artigos relacionados às temáticas desenvolvidas nos últimos 25 anos de literatura e crítica. Segundo Beatriz Resende, a multiplicidade é uma das características mais marcantes do período em questão, isto é, “a heterogeneidade em convívio”. Para a estudiosa, esse aspecto aparece na linguagem, na estrutura dos textos, na relação entre autor e leitor e até mesmo na forma de veiculação dessa literatura, uma vez que estamos em plena era da comunicação informatizada, na qual o papel já não é o principal suporte para a disseminação das obras. Os tons e temas também são múltiplos, e multifacetadas são, inclusive, as opiniões sobre o que é literatura. E é nesse sentido que convidamos os leitores a apreciar os estudos aqui publicados: nosso volume 9 apresenta vinte artigos, entre os quais encontramos discussões sobre cultura e literatura na pós-modernidade, a paródia e o questionamento social no romance contemporâneo. Veremos uma abordagem de algumas questões de metaliteratura na obra de Paulo Henriques Britto, e temos também o resgate sincrônico da escrita de Virginia Woolf e Machado de Assis. Os estudos sobre poesia também se fazem presente em artigos sobre Ivan Junqueira, Ferreira Gullar, Glauco Mattoso e Maria Lúcia Del Farra. É também com grande satisfação que apresentamos uma seção nova da revista: O espaço de criação. Nela, autores poderão expor seus trabalhos criativos inéditos. Nesta primeira publicação, selecionamos contos, poemas e fotografias. Não poderíamos deixar de prestar nossa homenagem aos pareceristas que nos acompanham e auxiliam em todas as publicações. Registramos nosso agradecimento especial ao Professor Lui Guerra, que recentemente faleceu deixando esposa e dois filhos. O Professor atuava principalmente em países lusófonos, divulgando a Literatura Brasileira, com ênfase na poesia produzida na segunda metade do século XX. Uma de suas últimas atividades acadêmicas foi fornecer à Revista Estação Literária um parecer, que foi concedido com grande gentileza e celeridade. Desejamos a todos uma boa leitura.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

SUMÁRIO 25 anos de literatura e crítica O POETA AO TELESCÓPIO: IMAGENS CÓSMICAS NA POESIA DE FERREIRA GULLAR 7 Marcelo Ferraz de Paula (USP) RELICÁRIO DE LEMBRANÇAS 22 Ivo Falcão da Silva (UFBA) OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO 37 Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP) UM SINAL AINDA QUE NO VAZIO: A SUBJETIVIDADE E O MÍNIMO QUE É MAIS EM VERÃO EM BOTAFOGO, DE THIAGO CAMELO

54 Larissa Andrioli (UFJF) PEDRA E GRAFIA: BREVE GENEALOGIA DA CULTURA CRÍTICA NA LEITURA DE POESIA CONTEMPORÂNEA

68 Sandro Ornellas (UFBA) UM GRITO DE DESESPERO: DIÁLOGOS PARA UMA FILOSOFIA DA MORTE EM IVAN JUNQUEIRA E EMIL CIORAN

81 Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO

95 Audrey Castañón de Mattos (FCL-UNESP) A NEGAÇÃO DO MUNDO: A PALAVRA PROIBIDA 111 João Luiz Peçanha Couto (USP) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST 122 Rubens da Cunha (UFSC) SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO 139 Raquel Parrine (USP)

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

PLATA QUEMADA: LEITURAS, TRANSGRESSÕES E TRANSFIGURAÇÕES 155 Eduardo Fava Rubio (USP) EXPERIÊNCIA, INÉRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO 168 Laura de Assis Souza (UFJF) VISÃO RELIGIOSA DE ORDEM E DE JUSTIÇA EM CIDADE DE DEUS, DE PAULO LINS 181 Rafael Magno de Paula Costa (UEL) AS

REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NA LITERATURA DIDÁTICA E NOS ESCRITOS LITERÁRIOS

INFANTIS: UMA ANÁLISE EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE RACIAL

193 Andréia Ramos Budaruiche (UFOP) THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA 204 Maria Aparecida de Oliveira (UNESP) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO 220 Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) PARÓDIA E QUESTIONAMENTO SOCIAL EM NÉLIDA PIÑON E LYA LUFT 238 Carlos Magno Gomes (UFS) A CONTEMPORANEIDADE DO OULIPO 250 Jacques Fux (UNICAMP); Darlan Roberto dos Santos (FASAR/CL) O

NARRADOR

DE

MEMÓRIAS

PÓSTUMAS

DE

BRÁS CUBAS

COMPLEMENTARES

264 Felipe Oliveira de Paula (UFMG) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO 273 Valeria Rosito (UFRRJ)

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

EM

DUAS

VERSÕES

25 ANOS DE LITERATURA E CRÍTICA

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

O POETA AO TELESCÓPIO: IMAGENS CÓSMICAS NA POESIA DE FERREIRA GULLAR Marcelo Ferraz de Paula (USP)1

Resumo: As imagens do cosmos têm tido papel destacado na produção mais recente do poeta Ferreira Gullar. Este artigo se propõe a fazer um itinerário crítico do assombro do sujeito gullariano diante dos grandes espaços celestiais, partindo das ocorrências esparsas, mas incisivas, de suas primeiras obras, até a posição central ocupada pela inquietação cósmica nos seus últimos livros publicados. Palavras-chave: Ferreira Gullar; Lírica Contemporânea; Cosmos; Imagem Poética.

“E penso: quantas manhãs virão ainda na história da Terra?” (Ferreira Gullar)

As imagens relacionadas ao cosmos vêm chamando a atenção dos críticos da obra do poeta maranhense Ferreira Gullar. A presença dos grandes espaços celestes tem se destacado como um dos pólos de força dos últimos livros do autor. David Arrigucci Jr. chama atenção, em análise de Muitas Vozes (1999), para uma “solidão cósmica” erguida na angústia de quem encara o canto como um “inaudível ruído em meio a vastidão do universo” (Arrigucci Jr. 1999: 11). Já Alfredo Bosi atesta a inquietação do sujeito que, consternado, aprende que “os astros moram e demoram lá no alto e não escutam os gritos desse bicho da terra tão pequeno” (Bosi 2004: 179). Os dois críticos apresentam nestas leituras, ambas anteriores à publicação do último livro de poemas de Gullar, os termos gerais daquilo que em Em alguma parte alguma (2010) alcançaria um coroamento definitivo, a ponto de uma de suas partes2 estar inteiramente dedicada às especulações do sujeito em torno da imensidão aviltante do

Doutorando na área de Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa, na Universidade de São Paulo. [email protected]. 2 Trata-se da segunda parte do livro, que vai do poema “Universo” a “O louva-deus”. 1

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Marcelo Ferraz de Paula (USP) O POETA AO TELESCÓPIO: IMAGENS CÓSMICAS NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

universo, do silêncio aflitivo dos astros, enfim, da inexorável órbita celeste sempre indiferente aos dramas do indivíduo e da própria história humana. Há, entretanto, uma aparente contradição que os críticos mencionados, pela própria natureza introdutória destes estudos, não tentaram solucionar. Afinal, como uma poética marcada por uma postura visceralmente materialista, centrada estilisticamente em objetos do cotidiano e alheia a qualquer espécie de transcendência, desembocaria na contemplação do infinito, com grandes doses de inquietação metafísica? A indagação estaria apenas precariamente resolvida se tomássemos como explicação a abertura que a poesia de Gullar realiza após o retorno do exílio, nos anos 1980, momento em que há, de fato, uma intensificação de temas existenciais em sua poesia. De acordo com esta visão, o poeta, afetado por alguma decepção política ou metamorfoseado numa nova visão de mundo, teria se isolado dos temas mais imediatamente “engajados”. Assim, o interesse do autor na contemplação dos astros confirmaria uma postura evasiva, como que expurgando, ao léu, os fantasmas do fracasso ideológico. Não é, definitivamente, isto que observamos na poesia de Gullar. Num enfrentamento mais detido do conjunto de sua produção artística, veremos que a inclinação à reflexão inspirada pelas grandes dimensões cósmicas não é tão recente como é o abandono da matéria política mais imediata, isto é, da poesia que se pretende instrumento de mobilização política e que flerta de algum modo com a revolução social. Mesmo num livro como Dentro da Noite Veloz (1974), que mantém vários traços da perspectiva de arte empenhada que o autor adotou e formulou3 nos anos de militância cepecista, encontraremos poemas que se inserem na temática que pretendemos aqui examinar. Dentro da Noite Veloz marca uma importante guinada na obra de Gullar, a ponto de ser apreciado como aquele que inaugurou a maturidade criativa do poeta (Lafetá 2004) na medida em que ali surge consolidada uma linguagem poética bastante própria (a disposição visual dos versos, o predomínio do verso livre carregado de aliterações e paranomásias, os cortes e jogos de vozes, a disposição discursiva que mimetisa o ritmo frenético das grandes cidades). Também neste livro, molda-se os contornos de um eu bastante coerente, movido por um temperamento lírico gradativamente reforçado nos poemas que compõe a coletânea, nos quais predomina um horizonte ético confiante no papel mobilizador da poesia e disposto a denunciar as mazelas sociais de nosso país. Pois mesmo nesta série de poemas marcada pelo tom combativo, encontraremos uma sintomática dispersão:

Nos referimos aos livros teóricos Cultura posta em questão e Vanguarda e Subdesenvolvimento, que Gullar escreveu no período em que fora presidente dos Centro Populares de Cultura, da UNE, que, dentre outras questões bastante polêmicas, defendia a arte popular, decretava a arte participativa como única saída válida para o intelectual brasileiro, além de reduzir o julgamento de uma obra de arte pela adequação de seu conteúdo a uma proposta didaticamente revolucionária.

3

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

8

Marcelo Ferraz de Paula (USP) O POETA AO TELESCÓPIO: IMAGENS CÓSMICAS NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

Vendo a noite

Júpiter, Saturno. De dentro de meu corpo estou vendo o universo noturno. Velhas explosões de gás que meu corpo não ouve: vejo a noite que houve e não existe mais – a mesma, veloz, em Tróia, no rosto de Heitor – hoje na pele de meu rosto no Arpoador. (Gullar 2009: 193)

Disposto dentro do livro de 1974, que reúne poemas escritos desde 1962 e marcam uma postura de denúncia, vociferam contra a fome nordestina, desmascaram a violência do golpe militar brasileiro, cantam a morte de Che Guevara e fazem juras de amor à Revolução Cubana, o poeta para e olha o céu, numa atitude meditativa que se tornará frequente nas obras posteriores. A contemplação do céu noturno é o mote inicial para que o sujeito inicie uma reflexão de teor existencial. O encontro quase epifânico com o infinito astronômico anima perguntas bastante contundentes, permitindo que o materialismo questionador do sujeito se irmane com uma postura metafísica; nas palavras de Antonio Carlos Secchin: “se Gullar pensa com o corpo, pois dele provém, no contato com os outros, a fonte de alegria, é igualmente na matéria que se inscreve a inquietação da finitude” (Secchin apud Gullar 2010: 17). Contemplando estrelas longínquas, corpos inalcançáveis, explosões ao mesmo tempo colossais e alheias à marcha da história humana, diminuída, se comparada ao plano cósmico, a ninharias e vaidades, o poeta reformula, de maneira original e sugestiva, algumas perguntas elementares: qual o lugar do sujeito no universo? qual o alcance e a relevância dos nossos atos, limitados espacial e temporalmente, frente ao infinito cósmico? qual a importância da jornada humana se ela é apenas um átimo no fluxo inabalável do universo em expansão? Júpiter, Saturno, velhas explosões de gás, tudo é observado de dentro do próprio corpo do sujeito, conforme a citação de Secchin, expressa literalmente no segundo verso do poema. O universo celeste como representação concreta do infinito, do eterno, contrasta com o indivíduo humano, limitado pela fronteira inevitável da morte, desamparado diante da imensidão que o rodeia e que em muito o ultrapassa. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

9

Marcelo Ferraz de Paula (USP) O POETA AO TELESCÓPIO: IMAGENS CÓSMICAS NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

Há, contudo, na formulação linguística do poema uma aproximação entre este universo que é contemplado e a interioridade do universo-corpo que o observa. Neste sentido, temos uma espécie de cumplicidade tensa entre o observador que, de dentro de seu próprio corpo, acompanha o cair do noite “que não ouve” e as reminiscências de uma outra noite “que houve” – a equivalência sonora das palavras contrasta com a oposição temporal, passado e presente, que exprimem no discurso. Assim o sujeito descobre que o corpo faz parte do universo, constituindo-o, e a subjetividade deste eu é desproporcionalmente análoga ao cosmo, com suas explosões, belezas inacessíveis, movimentos arbitrários. Desajuste ontológico que o autor depois cantará de maneira mais explícita no Poema Sujo: meu corpo de 1,70m que é meu tamanho no mundo meu corpo feito de água e cinza que me faz olhar Andrômeda, Sírius, Mercúrio e me sentir misturado a toda essa massa de hidrogênio e hélio que se desintegra e reintegra sem saber pra quê (Gullar 2009: 239)

Nota-se como a matéria biológica/natural do sujeito interage com a irracionalidade caótica do universo, ainda que caiba só ao sujeito – como veremos melhor em seguida – a árdua, mas redentora missão de, dentro de uma precariedade inerente, conferir sentido ao cosmo. Já a reflexão central presente em “Vendo a noite” brota do leve roçar de duas noites – a noite astronômica, resultante do indiferente movimento dos astros, e a noite histórica, “a mesma de Tróia”. A noite cósmica é medida pelo eterno repetir-se: o sol que sempre se renova, idêntico; enquanto a noite humana é única, um brilho fugaz que, por breve que seja, atinge o grau mais elevado e trágico da beleza. Cumpre, porém, assinalar que “esta noite que houve e não existe mais – a mesma, veloz, em Tróia” pode renascer através da consciência do sujeito que rememora e, por um instante, liga a Grécia antiga ao Rio de Janeiro no presente da enunciação, sinalizado textualmente pela indicação espacial, o Arpoador, bem como cria uma identificação do poeta com Heitor, ligados pelos dramas plenamente humanos. Por fim, o poema ainda nos brinda com a imagem da “noite veloz”. Não é por acaso que parte do título do livro aparece luzidia nesse poema de fundo mais meditativo, ligando-o ao outro poema homônimo – “Dentro da noite veloz” –, talvez momento maior do livro e que, na homenagem contida a Che Guevara, explora tanto o contexto político da ditadura brasileira, como o contexto íntimo do autor. Outras manifestações do fascínio pelo cosmo nesta parte, digamos, intermediária da poesia de Gullar4, podem ser observadas nas enumerações que, ao Segundo esta divisão, pensaríamos a obra do poeta em três momentos: o do experimentalismo presente em A luta corporal (1953), nos poemas concretos e neoconcretos e, de maneira inversa, no pragmatismo didático dos versos de cordel; depois o momento denominado por Lafetá, e aceito por 4

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

10

Marcelo Ferraz de Paula (USP) O POETA AO TELESCÓPIO: IMAGENS CÓSMICAS NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

sobrepor sincronicamente diversos espaços, passam, em algum momento, por uma perspectiva mais ambrangente, de natureza cósmica, como podemos vicejar no poema “A Casa”, também de Dentro da noite veloz: (no nosso desamparo de São Luís do Maranhão na Camboa dentro do sistema solar entre constelações que da janela víamos num relance) (Gullar 2009: 219)

Este mesmo expediente discursivo é retomado no livro de 2010, com uma variante no poema “Registro”: À janela de meu apartamento à rua Duvivier 49 (sistema solar, planeta Terra, Via Láctea) (Gullar 2010: 93)

Alcides Villaça é quem melhor analisa este procedimento de sincronização na obra do poeta maranhense. Como bem ilustram as passagens mencionadas, a utilização do expediente visa imprimir no corpo poético um efeito de alternância brusca do ponto de vista, relativizando a cadeia narrativa e seus efeitos emotivos ao mesmo tempo em que exprime uma ânsia do sujeito em olhar de fora a cena que elabora no texto. Assim: A sincronização, ou necessidade dela, parece nascer como efeito de uma recusa, que recai, desde os primeiros poemas de Gullar, sobre a mobilidade fragmentária do mundo (...) O poeta anseia dizer tudo, adotar pontos de vista diferentes, mas simultâneos (Villaça 1984: 135).

As variações deste recurso estão nas enumerações agudas que passam pelo cenário mais imediato (o quarto onde o poeta escreve, uma rua da cidade, um estabelecimento comercial), fogem para uma perspectiva mais abrangente (o bairro, o estado, às vezes um olhar aéreo que possibilita ver as ramificações do organismo urbano, ao passo em que perde a dimensão dos afetos ali vividos), chegando, enfim, a construções e identificações mais abstratas como a de país, de continente (a América Latina é um constructo recorrente nestas enumerações), muitas vezes boa parte da crítica posterior, de “memorialismo engajado”, que alcançaria a maturidade expressiva do poeta, indo de Dentro da noite veloz até Barulhos; e por fim o distanciamento do poeta das questões mais abertamente sociais e o aprofundamento da reflexão existencial e metafísica comprovado por Muitas Vozes e mantido em Em alguma parte alguma.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

11

Marcelo Ferraz de Paula (USP) O POETA AO TELESCÓPIO: IMAGENS CÓSMICAS NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

chegando até ao vazio do cosmo, cuja mudez infinita relativiza iluminando – ou ilumina relativizando – o caráter decisivo das pequenas lutas dos homens na marcha cotidiana. Resulta dessas ocorrências nossa sugestão de que a presença do cosmo na obra de Gullar ocupa posição mais destacada do que a de um tema recorrente; ela assume um caráter estrutural. A consciência científica dos efeitos dos astros na vida terrena estão disseminados a todo momento: os muitos dias e noites que se roçam implacavelmente no Poema Sujo seguem implicitamente a rotação da Terra; o calor de São Luís é anunciadamente o calor de uma cidade tropical vertida próxima à linha do Equador. Dessa mesma forma é desencantada a descrição do corpo humano, que por conta da descrição visceral está mais próxima a um manual de anatomia do que ao corpo sacro do olhar religioso, assim como há também o apodrecer das frutas, alegoria concretizada em imagens perturbadoramente corrosivas, ácidas, fétidas – isso para ficarmos apenas em marcos da poética de Gullar. A poesia de Gullar sofre continuamente os efeitos de uma natureza imensurável, agindo sem trégua na vida dos seres humanos em suas lutas diárias, em caminhadas por cidades constringidas pela exuberância do cosmos. Outra marca da poesia de Ferreira Gullar é a presença de certo discurso científico manejado com competência para definir os fenômenos naturais e físicos explorados na obra. O poeta sabe expor com exatidão conceitual o processo de surgimento de uma estrela entre nebulosas, o comportamento da matéria no vácuo, o viajar da luz até chegar a Terra e outros eventos revelados com minúcia teórica, inclusive com domínio da nomenclatura especializada, proposta pela pesquisa astronômica. Esta “cartografia celeste” é, evidentemente, posta em questão nos poemas, que certamente não se propõe a informar sobre o funcionamento do universo, mas sim partir das explicações cientificamente aceitas para sentir esta cosmogonia desencantada de maneira pessoal e comovente. Gullar, neste sentido, aproxima-se de um Augusto dos Anjos5. Sem alcançar, claro, o radicalismo do léxico deste outro poeta nordestino, Gullar também faz uma apropriação estética da linguagem hermética dos conceitos astronômicos, físicos, biológicos, médicos, etc. No que diz respeito a isto, ambos estão inseridos na grande linhagem da poesia moderna, tal como estudada por Hugo Friedrich (1978). Segundo o estudioso, a poesia moderna assume para si a função de re-encantar o mundo após o avanço da ciência, que culminou nos abusos positivistas. Mas este retorno se dá não necessariamente pelo regresso do dogma – embora certa parte da modernidade poética tenha resgatado aspectos místicos e espiritualistas – mas pelo poder da palavra poética, seus ritmos e imagens. Em suma, notamos que apesar da consciência científica apurada, o poeta maranhense sabe que o sol que ilumina a São Luís da infância não é “o mesmo sol de Uma outra aproximação entre os poetas, com intuito bastante diferente deste, é feita no ensaio “Dois pobres, duas medidas” (Lafetá 2004), que por sua vez parte de uma análise que Gullar faz da obra do próprio Augusto dos Anjos. 5

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

12

Marcelo Ferraz de Paula (USP) O POETA AO TELESCÓPIO: IMAGENS CÓSMICAS NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

Laplace”, nem a explicação biologicista da putrefação dá conta do mistério por trás das transformações processadas na pêra que descansa sobre a mesa, diante do mar. E mesmo nos “poemas cósmicos” propriamente ditos, a simples existência do infinito é ocasionalmente atenuada por índices semânticos de incerteza ao estatuto de verdade dos fenômenos: “Se é fato que toda a massa do sol” (“Pergunta e Resposta”), “Dizem que todo este nosso planeta” (“A estrela”) – grifos nossos. Após a publicação de Barulhos (1987), Ferreira Gullar permanece um longo período sem publicar livros inéditos de poesia. Este silêncio é rompido com Muitas Vozes (1999), livro que confirma o refinamento da poesia do autor, alcançando uma síntese bastante fecunda da clareza de expressão e densidade lírica com a busca pelos objetos do cotidiano, com uma linguagem afim do ritmo falado, impuro, que o autor tratou de apurar desde os anos 60. O livro confirma o distanciamento do autor da temática social mais rasteira, trazendo uma vigorosa reflexão existencial, aberta à metafísica – sem, contudo, encerrar-se em divagações etéreas. A morte ocupa suas melhores páginas e recebe atenção constante do poeta. É a dor causada pela morte de amigos e familiares, o sentimento de impotência frente ao passar incessante do tempo, nos levando sempre ao fim inevitável e, enfim, a presença da “indesejada” rondando a velhice do poeta. Por isso, ao menos num primeiro momento, as imagens do cosmo cumprem a função de corroborar a finitude da matéria humana. Esta presença, como já sugerimos mais atrás, está próxima dos poemas em que o sujeito contempla partes de seu corpo e vislumbra em seu mecanicismo visceral os segredos da máquina biológica que pode, subitamente, pifar (embora seja este mesmo corpo que lhe permita os prazeres mais “intensos e sacanas”). Esta dupla consciência resulta num complexo processo de identificação na qual o sujeito ao mesmo tempo em que não se identifica plenamente com os ossos que compõe seu corpo, com os intestinos e músculos que sustentam o sopro de vida, sabe também que este corpo finito é o seu modo de estar no mundo e que sem ele não há nada. Este jogo de identificação e recusa é que aproxima o embate da consciência com o universo-corpo e com o universo astronômico, aflorando do univeso-texto. Para facilitarmos a compreensão deste profundo drama filosófico, citamos a interpretação que Alfredo Bosi faz deste importantíssimo viés da poética de Gullar: Trata-se aqui de um verdadeiro exercício de percepção, que seria cartesiano (eu não sou o mundo, porque penso) se não fosse pascalino. O homem é apenas um caniço, o mais frágil da natureza, mas, diferentemente desta, é um caniço pensante. Por um momento sou apenas aquela rude pedra iluminada pelo sol que meu olhar está alcançando; mas não o sou sempre nem absolutamente: quase sou, e seria “se não fôra saber que a vejo”. O olhar que aproxima, a ponto de parecer fundir as identidades do eu e da pedra, fará, em outro momento, as vezes da consciência vigilante de Pascal, a qual sabe de si, o que não acontece com a natureza. E o eu se move, no poema, entre o ser (quase) inconsciente, confudido com as coisas, e o nada pulsante e consciente que delas sabe distinguir-se. O eu entre a coisa e a consciência: o eu entre o seres e o nada (Bosi 2004: 181). Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

13

Marcelo Ferraz de Paula (USP) O POETA AO TELESCÓPIO: IMAGENS CÓSMICAS NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

O intrincado movimento metafísico observado por Bosi nos “poemas cósmicos” de Muitas Vozes ganharia uma simplicidade límpida e bela no livro seguinte, onde este confuso processo de percepção pascalina ganha forma literária para descrever a sensação de ser a consciência do mundo, como mostra o poema “Universo”: E assim, assustado e mudo, bem menor que um ínfimo grão de poeira, contudo, sou capaz de apreender, no meu íntimo, essas incontáveis galáxias, esses espaços sem fim, essa treva e explosões de lava. Como tudo isso cabe em mim? O fato é que qualquer vasta nuvem prenhe de sóis já mortos ou futuros não possui consciência, esse obscuro fenômeno surgido aqui na Via Láctea, ou melhor, na Terra, e talvez somente nela, não se sabe por que, mas que permite ao cosmos perceber-se a si mesmo, e ter olhos para ver. (Gullar 2010: 80-81)

A responsabilidade de ser “o olho do universo”, sem que isso signifique estar à altura do universo que só lhe cabe observar, sendo dele a consciência passageira e finita, é em boa medida similar ao processo de identificação/negação do sujeito em relação ao próprio corpo. Recordemos algumas das representações do corpo na poesia de Gullar, primeiro no poema “Tato”: Tato Na poltrona da sala as mãos sob a nuca sinto nos dedos a dureza do osso da cabeça a seda dos cabelos que são meus A morte é uma certeza invencível mas o tato me dá Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

14

Marcelo Ferraz de Paula (USP) O POETA AO TELESCÓPIO: IMAGENS CÓSMICAS NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

a consciente realidade de minha presença no mundo (Gullar 2009: 472).

Agora no trecho do poema “Quem sou eu?”: Quem sou eu dentro da minha boca? Quem sou eu nos meus dentes detrás dos dentes na língua que se move presa no fundo da garganta? Que nome tenho na escuridão do esôfago? no estômago na química dos intestinos? (…) (Gullar 2009: 354).

Ou ainda no desfecho do belíssimo “Teu corpo”: Tocas o joelho: tu és esse osso. Olhas a mão: tu és essa mão. A forma sentada de bruços na mesa és tu. Quem se senta és tu, quem se move (leva o cigarro à boca, traga, bate a cinza) és tu. Mas quem morre? Quem diz ao teu corpo – morre – quem diz a ele – envelhece – se não desejas, se queres continuar vivo e jovem por infinitas manhãs? (Gullar 2009: 383).

Nos dois últimos livros do autor, Muitas Vozes (1999) e Em Alguma parte Alguma (2010), as imagens do cosmo tornam-se cada vez mais detalhadas. Com efeito, deixam de ser lances desconcertantes de um multi-perspectivismo – a ferida do eterno e do infinito sentida na efêmera e finita condição humana – para se converterem num mote prioritário para a reflexão poética. Uma primeira ocorrência que examinaremos é a do movimento dramático do sujeito que ao vagar pela Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

15

Marcelo Ferraz de Paula (USP) O POETA AO TELESCÓPIO: IMAGENS CÓSMICAS NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

contemplação dos astros depara-se com a insignificância do homem, de seus feitos e suas dores, experimentando um sentimento de impotência e desamparo. Ao sofrer o efeito desta experiência, o sujeito elabora um segundo movimento, oposto ao primeiro, de retorno à vida cotidiana, onde redescobre os afetos e refunda com um materialismo congênere – ainda que sem superar a consciência pertubadora da finitude – o sentido de valorização da vida. Grosso modo, esta é a estrutura geral dos “poemas cósmicos” de Gullar; cumpre agora apreciar como ele ganha forma e força expressiva em cada caso específico. Comecemos por um poema presente em Muitas Vozes: Pergunta e resposta Se é fato que toda a massa do sistema solar (somando a de Saturno e Marte e Terra e Vênus e Urano e Mercúrio e Plutão, mais os satélites, mais os asteróides, mais) equivale apenas a 2% da massa total do Sol e que o Sol não é mais que um mínimo ponto de luz na estonteante tessitura de gás e poeira da Via Láctea e que a Via Láctea é apenas uma entre bilhões de galáxias que à velocidade de 300 mil km por segundo voam e explodem na noite então pergunto: o que faz aí meu poema com seu inaudível ruído? E respondo: Inaudível para quem esteja na galáxia NGC 5128 ou na constelação de Virgo ou mesmo em Ganimedes onde felizmente não estás, Cláudia Ahimsa, poeta e musa do planeta Terra (Gullar 2009: 459). Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

16

Marcelo Ferraz de Paula (USP) O POETA AO TELESCÓPIO: IMAGENS CÓSMICAS NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

Na primeira parte do poema temos um único longo período no qual a quebra dos versos gera um efeito visual e rítmico, reforçando o sentido. Ou seja, os cortes dos versos são oportunamente tecidos de modo que a sintaxe só se torne inteligível ao completar-se pelo verso seguinte: “gás e poeira da Via/ Láctea e que a Via/ Láctea é apenas uma”. O rompimento da expressão “Via Láctea”, quebrado seguidamente no trecho transcrito, cria um complemento ao seu significado – o caminho do leite, que “escorre” verso a verso no poema. Visto no sentido geral desta primeira parte, sugere também uma sensação de movimento, como se a leitura fosse regida por uma energia orbital, uma rotação entre os corpos celestes reforçadas nas palavras enfileiradas em fragmentária sinergia. No mais, há uma gradação de elementos que parte inicialmente da massa do sistema solar (marcada pelos planetas, asteróides, satélites), chega ao sol, centro do sistema e que o supera enormemente, mas que, por sua vez, é apenas um ponto de luz da unidade maior que o integra, a galáxia, também parte ínfima se vista como uma dentre tantas outras que formam o universo. Essa gradação tende ao infinito e sua simples evocação gera uma sensação de abalo à vida humana e ao próprio canto poético que dela emana. A cada elemento a rede comparativa alcança dimensões mais largas, abstratas, por isso difíceis de serem mensuradas pelos referenciais que estamos habituados a usar. É no meio deste quadro grandioso e inalcançável que o poeta se indaga sobre o alcance do poema, gerando uma formulação paradoxal: “inaudível ruído”. O questionamento central é destacado pelo recuo dos versos, separando o impacto da dúvida (pessoal) do quadro astronômico pincelado até então. O poema não pode ser ouvido, por ser “inaudível”, mas existe sonoramente por ser “ruído”, um complexo jogo que é, ao mesmo tempo, indagação sobre a finitude da poesia e destaque da resistência algo trágica do canto. A resposta ao dilema sobre o porquê escrever exige do sujeito uma alteração do ponto de vista, ou melhor dizendo, uma restituição do ponto de vista inicial. Pois, ao admirar o universo, a posição do poeta e inerte em um ponto fixo de apoio – a cidade onde mora ou, em última instância, o planeta Terra – é abalado: a meditação à qual se entrega convida o sujeito a se ver de um outro ponto, a se deslocar da vida cotidiana, com hábitos e sentidos prévios. Visto de outro ponto do universo (de Virgo, Ganimedes ou da Galáxia NGC 5128), a vida humana perde em urgência e intensidade, pois é colocada numa perspectiva astronômica, onde seus efeitos são abrandados ao extremo, tornando-se, em última instância, irrelevantes numa visão cósmica. A estrutura narcísica é abalada. O sujeito se reconhece pequeno, insignificante em relação ao tamanho do universo que, neste ponto da reflexão, parece não depender do homem para existir. Não há o conforto religioso de nos imaginarmos no centro de tudo, ou a esperança kantiana de ver nas leis da física astronômica os indícios de uma ordem que rege a tudo. Pelo olhar materialista do sujeito, estamos ontologicamente condenados à morte; a vida humana é somente um breve clarão perdido na eternidade do universo e o sujeito mostra-se torturado pela certeza de que este universo, por hora contemplado, seguirá existindo para além de tudo que podemos ponderar e suportar.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

17

Marcelo Ferraz de Paula (USP) O POETA AO TELESCÓPIO: IMAGENS CÓSMICAS NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

No entanto, o movimento seguinte devolve o eu-lírico ao ponto inicial, o chão seguro onde pode vislumbrar algum sentido para a existência. Este chão é o da afetividade, do contato humano, da solidariedade com outros seres. Neste poema o sentido é revigorado pela paixão. É Claudia Ahimsa – namorada do poeta, que ele conheceu, segundo depoimentos do poeta, num momento de grande tristeza, após a morte da esposa, do filho e de amigos, e que lhe devolveu o desejo de viver – que justificará a importância do ato de escrever. A experiência amorosa restitui o poder da palavra poética e fundamenta a beleza do humano, arrancando de sua condição efêmera, finita, ínfima em comparação ao universo, alguma beleza que a torna legítima e, mais que isso, especial. Uma estrutura bastante semelhante a esta retornará em Em alguma parte alguma. No poema “A estrela”, o poeta novamente utiliza a comparação com o tempo cósmico para lançar uma nova luz sobre a vida e sua dissolução inevitável. A diferença é que não é mais a mulher amada que alivia o peso do infinito a ecoar no drama do sujeito, mas sim a ternura e plasticidade simplória de um gato: A estrela Gatinho, meu amigo, fazes ideia do que seja uma estrela? Dizem que todo este nosso imenso planeta coberto de oceanos e montanhas é menos que um grão de poeira se comparado a uma delas Estrelas são explosões nucleares em cadeia numa sucessão que dura bilhões de anos O mesmo que a eternidade Não obstante, Gatinho, confesso que pouco me importa quanto dura uma estrela Importa-me quanto duras tu, querido amigo, e esses teus olhos azul-safira com que me fitas (Gullar 2010: 89).

Um terceiro caso deste jogo de olhares pode ser recolhido de “Poema”, de Dentro da noite veloz:

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

18

Marcelo Ferraz de Paula (USP) O POETA AO TELESCÓPIO: IMAGENS CÓSMICAS NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

Poema Se morro o universo se apaga como se apagam as coisas deste quarto se apago a lâmpada: os sapatos-da-ásia, as camisas e guerras na cadeira, paletódos-andes, bilhões de quatrilhões de seres e de sóis morrem comigo. Ou não: o sol voltará a marcar este mesmo ponto do assoalho onde esteve meu pé; deste quarto ouvirás o barulho dos ônibus na rua; uma nova cidade surgirá de dentro desta como a árvore da árvore. Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens a mesma história que eu leio, comovido (Gullar 2009: 217).

Em comparação com os poemas “Pergunta e resposta” e “A estrela”, temos neste último uma primeira diferença que salta de imediato aos olhos: as perspectivas adotadas pelo sujeito estão invertidas. Aqui não é o choque diante do cosmo que está em primeiro plano. Na estrofe primeira o poeta reúne índices de uma imagem narcísica do mundo: a morte do sujeito equivaleria ao fim de tudo, impera a concepção individual de que “se morro o universo se apaga” e por maior e mais imponentes que sejam, os “bilhões de quatrilhões de sóis” ruiriam junto ao homem que morre. A quebra desta perspectiva é realizada na segunda estrofe, quando a reflexão do eu-lírico esbarra no materialismo pragmático de quem acredita que, morto o sujeito, a realidade se mantém indiscriminadamente, sem nenhum rastro de transcendência ou compensação. Assim, como num espelho inverso da primeira estrofe, “o sol voltará a marcar este mesmo ponto do assoalho”, “uma nova cidade surgirá dentro desta”, numa eterna e mecânica reconstituição dos dias. No fim, o poema oferece um desfecho dialético que resultaria numa síntese tensa das duas prerrogativas, a única certeza aceita irrefutavelmente: a de que a contemplação estética – o sujeito fala de uma história, possivelmente um romance ou gênero literário similar – marca a experiência íntima irrepetível naquele tempo-espaço Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

19

Marcelo Ferraz de Paula (USP) O POETA AO TELESCÓPIO: IMAGENS CÓSMICAS NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

demarcado, cumprindo a função que nos outros poemas compete à musa ou ao gato, sendo, portanto, o elo que destaca a existência humana da eternidade deformadora do universo, aquilo que confere validade ao humano, ou seja, paradoxalmente esta que é nossa grande sina: a mortalidade. A mulher amada, o gato de estimação, a emoção estética, ou ainda, como no poema “Galáxia”: “Vi pouco do universo: afora a asa/ de luz e pó da Via Láctea, o que conheço/ são as manhãs que invadem minha casa”. O que parece é haver um habilidoso jogo em que o poeta passa pelo infinito apenas para retornar ao ambiente prosaico e urbano, onde pode atualizar as possibilidades estéticas e afetivas do cotidiano. Da contemplação do céu noturno, pela ótica questionadora de um telescópio, o sujeito retorna, transformado, do impacto da cena grandiosa do universo para oferecer à experiência do leitor uma validade que, oposta aos padrões de repetição e consumo descartável imperantes em nosso tempo, exige novos sentidos e nos convida a gritar – um grito humano, vigoroso e tragicamente imperceptível – diante do silêncio do cosmo. É neste espaço de resgate da reflexão e de negação ativa do processo de reificação que a poesia de Gullar alcança o fundo histórico e social que parecia sufocado pelo refluxo ideológico dos anos 90. Olhar os astros, questionarmos-nos a partir do silêncio que emana do universo: O mesmo espantoso silêncio da Via Láctea feito um ectoplasma sobre a minha cabeça: nada indica que um ano novo começa. (Gullar 2009: 379)

É esta uma das lições que sugere os “poemas cósmicos” de Ferreira Gullar: o caniço de Pascal que ao se deparar com este silêncio descobre uma dupla condição humana: solto no cosmo, vagando na órbita de um astro qualquer, mas ao mesmo tempo inscrito numa história que protagoniza e onde se recompõe, pequenino, como parte pensante, que ama, cria e contempla – e ao contemplar, constroi – a si mesmo e ao mundo.

THE POET IN THE TELESCOPE: COSMIC IMAGES IN THE POETRY BY FERREIRA GULLAR Abstract: The cosmic images have a great importance in the later poetry by Ferreira Gullar. This work makes an itinerary of the images of celestial space, from the earliest Gullar's books, to the central position of these images in the later production of the poet. Keywords: Ferreira Gullar; Contemporary Lyrical; Cosmos; Poetic Image. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

20

Marcelo Ferraz de Paula (USP) O POETA AO TELESCÓPIO: IMAGENS CÓSMICAS NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

REFERÊNCIAS

ARRIGUCCI JR., David. O Silêncio e Muitas Vozes. Folha de São Paulo. 12 de jun. 1999. Caderno de Resenhas. BOSI, Alfredo. Roteiro do poeta Ferreira Gullar. In. Céu Inferno. São Paulo: Duas Cidades, 2004. FRIEDRICH, H. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978. GULLAR, Ferreira. Toda Poesia. 18 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. ______. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. LAFETÁ, J. L. Traduzir-se. In: A Dimensão da noite. São Paulo, Duas Cidades, 2004. VILLAÇA, Alcides. A poesia de Ferreira Gullar. Tese de Doutoramento. FFLCH-USP. São Paulo, 1984.

ARTIGO RECEBIDO EM 14/02/2012 E APROVADO EM 08/03/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

21

RELICÁRIO DE LEMBRANÇAS Ivo Falcão da Silva (UFBA)1

Resumo: o presente trabalho objetiva discutir acerca dos traços memorialísticos, constantes na seção de textos líricos Viveiro, do Livro de Auras (1994) da escritora paulistana Maria Lúcia Dal Farra. Nesses poemas, percebem-se as recordações de elementos vários: gatos, cantares e pessoas, percebidos mediante travessias vivenciadas pelo eu poético. Palavras-chave: Maria Lúcia Dal Farra; Lírica; Memória.

Em nossa memória se depositam, por extratos sucessivos, mil estilhaços de imagens. (César Guimarães)

O indivíduo enquanto sujeito em constante travessia, no périplo da convivência com o ambiente social, vai mantendo contato com outros seres, experiências e objetos que são anexados à vivência deste mesmo ser. São instantes flagrados e lembranças construídas que servem como ponte de ligadura daquilo vivido e construído no presente e passado. A primeira parte do Livro de Auras, denominada Viveiro, executa um percurso exemplar ao trazer diversas percepções que foram tratadas como importantes para o sujeito poético. São diversos itens que compõem esse espesso viveiro - telas de pintura, o alçar de mãos da dançarina de flamenco, personagens da literatura, tais como os shakespeareanos, Hamlet e Ofélia. Neste capítulo nos deteremos na leitura e análise desta parte do livro. Os postulados de Hegel (1980) acerca da poesia lírica são elucidativos para, inicialmente, pensarmos esta seleção de objetos e imagens referenciadas. Na esteira de uma lírica tradicional, o filósofo alemão pondera que o lirismo apresenta como traços fundamentais a subjetividade e as percepções individuais do poeta diante da matéria a ser tratada. A exteriorização das experiências singularizadas no sujeito adquire projeção justamente através da poesia. É como se o eco de um determinado momento significativo, o contato com uma pessoa ou mesmo com os elementos

Ivo Falcão da Silva é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura do Instituto de Letras da Universidade Federal. Na sua pesquisa, desenvolve investigações sobre a lírica e a produção crítica da escritora Maria Lúcia Dal Farra. E-mail: [email protected]. 1

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Ivo Falcão da Silva (UFBA) RELICÁRIO DE LEMBRANÇAS

circundantes sirvam como motivadores para a impressão recebida, tendo a sua expressão por meio do lirismo. Na poesia de Maria Lúcia Dal Farra, especificamente nas experiências “capturadas” que constituem a seção Viveiro, a escritora se apropria destes elementos significativos e os transforma em poesia. Em verdade, podemos perceber que cada item “possuído” não foi feito aleatoriamente, vincula-se ao cruzamento da vivência com a ficção, o pacto do homem com a linguagem. Este aspecto pode ser relacionado com os estudos sobre a poesia moderna, em que a linguagem, nesse momento, assume destaque, nos fazendo compreender que, através dela, a poesia não é somente exposição de uma personalidade (ou subjetividade), adquire o que podemos chamar de - caráter de ficcionalização – configurando de certa maneira, uma “dramaticidade agressiva”, utilizando-nos do termo de Hugo Friedrich (1978). Assim sendo, trataríamos a poesia de Dal Farra também como uma operacionalização da língua, uma inteligência que poetiza, ao utilizar-se de materiais diversos para a composição dos seus poemas. Exemplo disso que falamos diz respeito às poesias referentes aos gatos. Somente nesta parte do livro, três poesias apresentam no seu título o nome – gato, a saber: Gato, Os gatos, Gatos. O eu poético traz à cena, na sua lírica, sua relação com o animal, dita como importante, organizando-os de acordo com os fluxos memoriais, espaço em que a ficção do sujeito projeta-se, isso tudo mediado pela linguagem2. Este felino pode ser lido, neste momento, também, como signo do feminino: aquele que traz o enigmático no seu ser, em busca por uma decifração. Nesta mesma busca, parece que o eu lírico inscreve-se, justamente, como o decifrador desse signo feminino, que é muitas vezes apresentado como ambíguo e nebuloso. Nesta investida, variadas perspectivas são lançadas acerca do mesmo tema sem respostas definitivas, instaurando conseguintemente a reflexão, a dúvida e o deslocamento. Assim, o exercício com as reminiscências exerce uma tripla função nesse caso: recuperar uma experiência dita como fundamental para o sujeito, trabalhar essa mesma experimentação com os fluxos de recordação e (re) configurá-la por meio da literatura. Nesse limiar, a poesia O Gato segue a descrição do contato entre o eu lírico com o felino. O animal é representado pela antítese de agilidade e preguiça, aspectos que, mesmo em contraposição, descrevem como é o comportamento cotidiano e misterioso do gato: como podem ser vistos nos seguintes versos: “Uma palavra para o gato: ágil/ Também unha, preguiça, pupila.” (Dal Farra 2002:18) Além disso, o felino é tão importante para o sujeito, que este se entrelaça nos seus pensamentos, Não podemos deixar passar incólume a relação intertextual que se estabelece entre os poemas de Maria Lúcia Dal Farra, relacionada aos gatos, com as peças líricas de mesma temática em Baudelaire. Afinal, o poeta d’As flores do mal lê o felino com as suas características peculiares, muito próximas do que Dal Farra executa nos poemas relativos os gatos. Veja-se um trecho de Os Gatos de Charles Baudelaire: “Os amantes febris e os sábios solitários/ Amam de modo igual, na idade da razão,/ Os doces e orgulhosos gatos da mansão,/ Que como eles têm frio e cismam sedentários.” BAUDELAIRE, Charles. O Gato. In: As flores do mal. Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 2

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

23

Ivo Falcão da Silva (UFBA) RELICÁRIO DE LEMBRANÇAS

nos vãos da memória afetiva e, poetizar sobre isso significa a possibilidade de compreender as tramas emaranhadas do eu lírico com a simbologia do animal. Essa necessidade de compreensão é tão latente que na poesia Gato, uma retomada da figura do animal ao longo dos tempos é feita. Lido através dos anos que vêm permeando o convívio humano, este percorre civilizações antigas, como os egípcios, e seu ato comum de cavar a terra é tratado como a tentativa de invocar os antepassados que jazem na terra – “Teimosos/ (no entanto)/ ainda cavam a terra/ a invocar a voz dos fósseis” (Dal Farra 2002: 37). Este animal se apresenta como construção de experiências que passam por tempos imemoriais, nesta poesia. Já em Gato, relaciona-se a linhagem em que o animal está inserido - a dos felinos associando-se às peculiaridades inerentes ao mesmo animal. Afinal, aqui, o gato é um viveiro de alheios. Nesses três poemas, a simbologia múltipla que o gato possui adquire diferentes modulações. Este animal guarda em si a contradição de representar em civilizações a fortuna e, em outras, o agouro emblemático do mal. O sujeito poético que se apresenta, expõe a sua íntima relação com o bicho, busca adentrar no íntimo desses felinos, no anseio em dar sentido a sua relação com eles, mesmo sendo, às vezes, paradoxal. A memória do que se viveu vai passando por um acerto de contas vivificado na escrita lírica. Adriana Sacramento (2009) já nos fornece, no seu estudo sobre a produção de Maria Lúcia Dal Farra, um panorama da sua estética e afirma: “na poética de Dal Farra, encontramos uma total elasticidade do seu corpo. Ele se espraia pelo ambiente e sua estética parece seguir esta mesma torrente” (Sacramento 2009: 4). Consonante a isso, tal corpo espraiado, ao percorrer fluído o interstício das lembranças, traz para si em Viveiro, personagens clássicos e arquetípicos da literatura, como as personagens da tragédia de Shakespeare incorporadas neste livro. Na tragédia supracitada, Hamlet, personagem movido pela angústia e a dúvida geradas pelo impasse existencial de vingar a morte do seu pai, percorre uma via crucis para sanar o que havia de podre no reino da Dinamarca. Para honrar seu pai, Hamlet vai se desagregando das relações: rompe com as pessoas mais próximas, dentre elas, a mãe, Gertrudes (cuja união com Cláudio não lhe agradava) e Ofélia, que guardava o seu amor para o príncipe da Dinamarca. Em verdade, o personagem coloca-se como um ator que constantemente metamorfoseia-se para enunciar o seu pensamento - mascara-se para encenar o seu próprio drama. Nas poesias intituladas respectivamente Hamlet e Ofélia, a leitura de Dal Farra perpassa um olhar lírico sobre os trágicos shakespeareanos. Em Hamlet, o eu lírico enuncia a trajetória vivida pelo personagem - a sua desventura que compreende desde o encontro com o fantasma do seu pai até a sua derradeira morte, veja-se o poema: Dúbio (em armadura) Um fantasma subjuga sua alma E cavalga-a para a justiça. Pobre do meu príncipe! Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

24

Ivo Falcão da Silva (UFBA) RELICÁRIO DE LEMBRANÇAS

Louco ator confuso foi Contra a própria gente: Com único golpe Demente torna a aurora do seu dia, desditosa quem lhe deu vida. Mazelas que por honra herda, Mesmo acertando erra! Neblina, lucidez, queda. Mortos estão todos. Orfã a Dinamarca. (Dal Farra 2002: 29)

Além disso, Hamlet de Shakespeare, ao ser considerado uma das mais importantes obras da literatura, teve ao longo dos tempos diferentes leituras sobre ela. Anatol Rosenfeld (1969) no seu texto Shakespeare e o pensamento renascentista, por exemplo, coloca questões importantes acerca do respectivo drama, considerando que “a dúvida e o ceticismo são fatores primordiais no tecido de Hamlet” (Rosenfeld 1969: 131) e chega a ser “ no fundo, uma peça de dúvida atroz acerca de todos os valores e também acerca do que acontece após a morte”( Rosenfeld 1969: 132). Esta reflexão de Rosenfeld, apesar de estar direcionada à obra do escritor inglês, nos serve para compreender tanto o processo de apropriação feito por Dal Farra como a poesia propriamente dita. Compartilhando a mesma página do Livro de Auras se encontra a poesia Ofélia: fato que pode ser lido como uma união simbólica dos personagens, pois, na malha poética construída por Maria Lúcia Dal Farra em Livro de Auras, parece que o amor entre as personagens em alguma esfera se concretizará, nem que seja ali, em verso, nos poemas. Ofélia se apresenta na tragédia de Shakespeare, inicialmente, como filha e irmã devotada e, subsequentemente, como já fora dito, como a enamorada de Hamlet (este que, por sinal, já vivia as suas agruras). A donzela é atingida pelo que Rosenfeld chamou de “mal de substancialidade maciça que se alastra” (Rosenfeld 1969: 134). Tal alastramento atinge Ofélia que enlouquece e posteriormente morre afogada, ao lado, somente, de seu canto elegíaco. Acresce-se a isso o fato de que Ofélia representa uma personagem que, progressivamente, vai anunciando através do seu discurso a sua compreensão do drama Hamletiano, expondo, em muitas vezes, o obscurecido na fala do personagem central. Na poesia de Dal Farra, Ofélia, trazida à superfície da memória, é relida justamente no instante da sua morte, observe-se: “Sobre o travesseiro negro dos cabelos/ (moldura de luto)/ aninhas molhada tua beleza finda./ Batismo compassivo é este/ que te devolve à fluidez do mundo” (Dal Farra 2002:30). A Ofélia de Dal Farra é vista também como aquela que se encontra à espera do amado, numa Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

25

Ivo Falcão da Silva (UFBA) RELICÁRIO DE LEMBRANÇAS

espécie de exílio, e a morte não finda esse amor não concretizado em vida, pois, nos últimos versos do poema lê-se, “No florete e na taça pões vida:/ ilha,//onde o aguardas para o exílio.” (Dal Farra 2002: 30) Hamlet e Ofélia do Livro de Auras expõem traços de dramaticidade na lírica de Maria Lúcia Dal Farra, que se apropria de personagens clássicos da literatura para que estes sejam relidos. A memória recupera as percepções tidas no momento da leitura da peça dramática e as sensações deixadas deste momento transmutam-se em peças líricas. O eu poético apresenta-se como uma espécie de leitor dessas obras, colocando na poesia aquilo que a memória reteve acerca da peça. Isso vai de encontro ao que Jorge Luís Borges disse: “el libro es uma extensión de la memória y de la imaginación”3. (Borges 2006: 09) Marcel Proust (1991), em seu livro Sobre a leitura, nos passa dados relevantes sobre a importância que as leituras feitas pelo sujeito trazem para a formação e arcabouço literário deste mesmo indivíduo. Numa discussão que mescla ficção e teoria, Proust suscita a familiar relação que é estabelecida no ato de ler: a identificação com personagens e a anexação dessa experiência na vida do leitor. Além disso, o autor pondera sobre como as lembranças do homem podem vir carregadas desse contato com a ficção. A seção Viveiro que nos detemos a estudar nesse momento se compara ao quarto – metáfora que Proust utiliza para caracterizar o processo da escrita e leitura. O autor assim enuncia: “para mim, não me sinto viver e pensar senão num quarto onde tudo é a criação e a linguagem de vidas profundamente diferentes das minhas [...] onde minha imaginação se exalte e sinta mergulhada no seio do não-eu” (Proust 1991: 19). O quarto que representa o íntimo e particular só adquire sentido quando é associado ao que é comum ao Outro, isto tudo amalgamado pela imaginação. De forma análoga se apresentam tais poesias (de Viveiro), na dose que compreende o íntimo de um quarto mais a ação interventora da imaginação. Seguindo esta mesma metáfora, Proust (1991) nos diz: Os quartos guardam um perfume de ambiente fechado que o ar de fora vem lavar, mas não apaga, e que as narinas aspiram cem vezes para conduzi-lo à imaginação, que se encanta, que o faz posar como um modelo para tentar recriá-lo em si mesma com tudo que ele contém de pensamentos e de lembrança. (Proust 1991: 19)

Mas não é somente a impressão das leituras de textos literários que permanecem na memória; podemos amplificar isso para as artes de um modo geral. A expressão do corpo e da voz - a dança e o canto - são tomados liricamente por Dal Farra. Neste eixo do livro, dois poemas referenciam a relação de canto, lírica e memória. O primeiro deles, intitulado Canto extremo, possui na sua elaboração uma série de figuras de linguagem que intentam construir a sensação que o sujeito poético 3

Tradução: O livro é uma extensão da memória e da imaginação.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

26

Ivo Falcão da Silva (UFBA) RELICÁRIO DE LEMBRANÇAS

obteve no instante em que ouviu a voz em cantoria. A mesma voz que permaneceu em acordes contínuos na memória possuiu, em determinados momentos, a suavidade de ribeiras, em outros, a aspereza de corcéis e navalhas. A cantoria pareceu tão intensa que até a natureza em solene simpatia4 se viu contagiada por ela laranjas e melancias despertaram sumos e aromas: tudo isso se encaminhando para perceber esta voz ecoada como arte e inspiração. Leia-se: Na sua voz há ribeiras e navalhas onde vibra a lua salinas à beira da estrada corcéis que se adentram pela mata. [...] A laranja desprende o sumo a alma da melancia desperta a água fervilha invocando os vapores de antanho Tudo nesse delgado canal se acha em seu estro. (Dal Farra 2002: 36)

A voz da cantora lírica Maria Callas5, célebre representante da ópera no século XX, também foi ficcionalizada e integrou esse viveiro de experiências. O poema Callas em escala ascendente é uma ode para a respectiva intérprete, cuja voz é para o eu poético - incisiva forte e marcante: “Foguete é tua voz em busca do buraco negro/ (olho terceiro)/ turbina que se aquece entre coração e cérebro/ e desenha ogivas de ignoradas paragens” (Dal Farra, 2002: 27). A permanência do canto que outrora fora escutado adquire sentido na escrita poética – o instante que a memória flagrou é retomado para dar novos significados para as experiências vividas. Efetua-se, neste poema, o que podemos chamar de uma releitura6, seguindo a concepção de Ecléa Bosi sobre esta questão, isto é, a voz em canto é lida sob outra ótica por Maria Lúcia Dal Farra, uma concepção literária, poética. Ela nos concede, neste estudo, que a memória ficcionaliza ou disfarça as experiências primeiras em relação ao objeto lido, trazendo, com isso, novos significados para a mesma malha textual. A voz de Callas é relida e, sendo assim, apresenta: “como se o objeto fosse visto sob um ângulo diferente e iluminado de outra forma: a distribuição nova das sombras e da luz muda a tal ponto os valores das partes que, embora as Northop Frye (1973), em Crítica histórica, Teoria dos modos, expõe que a solene simpatia é a incitação dos elementos naturais em relação a uma determinada ação, podendo se relacionar também com aspectos ritualísticos. Apropriamo-nos do conceito para esta manifestação mística de frutos que se manifestam a partir do canto pungente enunciado no poema. 5 Maria Callas representou em concertos, na sua carreira como cantora lírica, diversas óperas assumindo o papel feminino. 6 Ampliamos o conceito de releitura para os objetos artísticos de modo geral, pois Bosi se concentra ao tratar deste tema, acerca da releitura feita com o objeto literário. (Bosi 1994: 441) 4

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

27

Ivo Falcão da Silva (UFBA) RELICÁRIO DE LEMBRANÇAS

reconhecendo, não podemos dizer que elas tenham permanecido o que eram antes” (Halbwachs apud Bosi 1994: 57). Já em Dança Flamenca, seguindo esta mesma torrente de significantes apresentada, o corpo em movimento de uma dançarina é poetizado por Dal Farra. O eriçar das mãos em sintonia com os passos ritmados da música (possivelmente espanhola) vão se cruzando à profusão lírica que o corpo (em arte e dança) proporciona. O instante que marca para o sujeito poético a coreografia em desenvolvimento é o intervalo do alçar e cravar de mãos, na clássica evolução coreográfica da respectiva dança. O flamenco, bailado de profunda expressividade, tem acoplado a sua apresentação marcas cênicas que podem ser vistas tanto no olhar de quem dança, como na gesticulação do braço que se lança ao alto e desce convicto próximo ao corpo. Veja-se: De início o corpo se iça para o alto linha traçando o prumo que os braços (uma vez alçados) se incumbem de sondar ativando a arquitetura em que a alma trabalhará. Depois (diante do ar paralisado) os dedos desatam o movimento - e catedral (indecisa entre gótico e mourisco) Se constrói. (Dal Farra 2002: 19)

As imagens poéticas parecem surgir em sucessivos quadros erigidos pelo fluxo de memória. Estes mesmos quadros não são construções estáveis, elas passam por borrões e vão sendo elaboradas, lidas e relidas de acordo com as experimentações do indivíduo. O sujeito estético se apresenta como um leitor, mas não é somente do campo literário que este mesmo sujeito configura-se como tal – penetra por diferentes linguagens e encena-se na escrita lírica como ledor de diferentes obras de arte, seja a dança, o canto ou a expressão pictórica. Proust, ao discutir a relação entre passado e presente, além das interferências que o contato com um objeto ou expressão pode trazer para o indivíduo, apresenta esta equação como uma epifania, ou, nas suas palavras, como a “impressão de sonho que se tem em Veneza na Piazzeta, diante das suas colunas cinza e rosa” (Proust 1991: 50). Esta metáfora que Marcel Proust introduz na sua reflexão, associada a construções arquitetônicas da Piazzeta na Veneza, vai ser fundamental para compreender a sua acepção de temporalidades, que se apresenta como uma espécie de camadas interpostas e relacionadas, cujas partes compreendem presente e passado. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

28

Ivo Falcão da Silva (UFBA) RELICÁRIO DE LEMBRANÇAS

Ao dizer-se deparado com as colunas cinza e rosa em Veneza, Proust afirma sentir a mesma impressão que teve ao ler a Divina Comédia e Shakespeare, ou seja - de no presente sentir-se imbuído, também, de correntes do passado. Esses fluxos pretéritos vêm como um enxame de abelhas ao redor do objeto presente, grafando na experiência atual, marcas do experimentado que a memória evoca. Vejamos o exposto por Proust (1991): Em torno, os dias atuais, os dias que vivemos circulam, agitam-se zumbindo em volta das colunas, mas aí, bruscamente, param, fogem como abelhas espantadas; porque elas não estão no presente, estes altos e finos enclaves do passado, mas num outro tempo no qual é proibido ao presente penetrar. (Proust 1991: 50)

No eterno presente da lírica, os recursos memorialísticos vêm agregar experimentações tidas em tempos corridos, não obstante, fundamentais. Os instantes flagrados em Viveiro surgem assim: com as cores vivas atuais, mas com pinceladas em sépia, ou: “exaltando-o um pouco como, sem surpresa, um espectro de um tempo sepultado; no entanto, ali, no meio de nós, próximo, tangível, palpável, imóvel, ao sol.” (Proust 1991: 51)

Objetos, espaço – recordação I Objetos Ecléia Bosi (1994) dedica uma parte do seu livro, Memória e sociedade, ao estudo da importância que os objetos que nos circundam têm para a constituição do sujeito. Objetos esses que nos acompanham e adquirem um sentido muito peculiar no momento que são retomados. Eles adquirem a forma e a textura que o tempo grafa, nos fazendo, através deles, retomar experiências passadas. Violette Morin (1994) chama esses objetos de objetos biográficos, pois, “envelhecem com seu possuidor e se incorporam à sua vida” (Morin apud Gonçalves Filho 1981: 111), constituindo uma ponte metafórica entre a experiência atual e as lembranças. Nesse panorama é que, em Viveiro, objetos tratados como fundamentais para o sujeito estético são transformados em peças líricas. É a possibilidade de eternizá-los através da poesia e, também, de construir significados acerca do experimentado. Um desses itens é a partitura - centro temático da poesia com o mesmo título. Essas folhas que guardam as cifras de uma música podem marcar de maneira fundamental instantes de compartilhamento ao redor de uma canção entoada, em que os membros da família se reuniam para ouvir e deleitar-se com os acordes. São as mesmas folhas da partitura que sofrem a ação do tempo, amarelam, trazem rabiscos e rasgos que inscrevem particularidades ao objeto e, quando tomados, recuperam sensações pretéritas. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

29

Ivo Falcão da Silva (UFBA) RELICÁRIO DE LEMBRANÇAS

Na poesia supracitada, Partitura, a natureza é como uma grande orquestra a engendrar-se cotidianamente. O contato com a partitura foi constituído em comparação com o ambiente natural que, tal como a música, apresenta-se com sintonia e ritmo. O objeto pensado aqui como biográfico trouxe a possibilidade de reelaboração da experiência, fugindo de uma descrição do objeto propriamente dito. O que importou, em verdade, foi a sensação experimentada no contato com este elemento significativo e a resposta que foi dada através da poesia - com a ação interventora da memória. O mesmo pode ser pensado em relação à árvore: justamente no que tange as relações entre: objeto, lembrança e sujeito. Quando esta se localiza no quintal, ou mesmo, em frente à casa, apresenta-se como um “objeto” constituinte à vida daquele que experimenta o contato de observar o vegetal diariamente. Não é estranho que no tronco de muitas árvores estejam lá talhados nomes de casais, datas comemorativas e momentos importantes. É um objeto tratado como tendido à posteridade. Na poesia, Árvore, são retomados os momentos de desfrute embaixo da sombra desta planta. Com a sua impavidez, concedeu instantes de deleite. Observe-se: Só debaixo dela vê-se o céu povoado. A seus pés, as delícias dele: a sombra – a alegoria aérea que a terra (distraída) Concede. (Dal Farra 2002: 41)

Atentamos em que, simbolicamente, a árvore é comparada ao homem: esta passa por ciclos similares com a dos humanos, tais como o nascimento e a morte. Plínio, o Velho (2009)7 já dizia que nas árvores se encontram até mesmo os males que o corpo humano padece - as suas doenças, além da sede e da fome, anseios inatos do ser humano. Nota-se, portanto, que não é em vão que o homem mantém uma relação próxima com esta planta, são as tramas simbólicas que nos cercam e que a poesia expressa com tamanha profundidade. Acrescemos que, nessa mesma linha de leitura está a poesia Choupo - uma árvore sustentada sob o signo da memória, na renovação cíclica dos dias. Paul Valéry é esclarecedor em relação à pulsão existente na criação literária, no que diz respeito a possuir um objeto e tratá-lo como seu, tamanha a identificação gerada entre este elemento e o sujeito. No seu texto Situação de Baudelaire expõe: O homem pode vir a se apropriar daquilo que parece ser feito tão exatamente para ele que, embora sabendo não ser assim, considera como feito por ele... Ele Cf. A publicação que consta os postulados de Plínio, o Velho é Naturalis Historia (História Natural) publicada entre os anos 77-79 de nossa era comum. Utilizamos nesse trabalho a tradução comentada de Caio Plínio, disponível na internet.

7

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

30

Ivo Falcão da Silva (UFBA) RELICÁRIO DE LEMBRANÇAS

tende irresistivelmente a apoderar-se do que convém estreitamente a sua pessoa; e a própria linguagem confunde sob o nome de bem a noção do que está adaptado a alguém, satisfazendo-o inteiramente, com a da propriedade desse alguém... (Valery 1991: 186)

Os objetos são anexados à existência do sujeito por ele se sentir inebriado diante do mesmo - um magnetismo parece unir o homem aquele objeto. Na parte Viveiro, verifica-se a apropriação de obras de arte, como a pintura, por exemplo. Segue-se o fluxo de possessão que Valéry fala, pois, mesmo o objeto artístico não sendo propriedade do ser, este, diante da simpatia instaurada, volta-se para o mesmo objeto e o introduz na sua experiência que, nos poemas, são recuperados pela lembrança da imagem internalizada. É o caso da tela La siesta de Vincent Van Gogh, relida por Maria Lucia Dal Farra no seu poema com o mesmo título. Esta concepção estética de comunicar o discurso lírico e pictórico, vale frisar, será vastamente utilizada pela escritora no seu segundo livro– o Livro de Possuídos (2002)8. Em Livro de Auras isso acontece de modo esparso, verificado na poesia supracitada e no poema João e Joan que referencia obras de arte do pintor Joan Miró. Na pintura de Gogh, um homem com o chapéu sobre os olhos parece descansar em um monte de feno, introspectivo, acompanhado de sua mulher, ambos em trajes camponeses. No entanto, na poesia, nota-se que a construção imagética lírica sugere a antecipação dos fatos que culminaram na sesta do casal, em meio ao feno. O eu lírico apresenta a cena mediado pelo amor caritativo de homem e mulher que, após o trabalho de ceifar, mostram-se cansados, um parece suster o outro. Leiase: Ela descansa sobre o mole feno depois de havê-lo ceifado. labor e repouso se entrelaçam no seu sono e o sol é mais denso porque desentrança do devaneio o dourado (entre fios de cabelo e de feno) todinho apurado. A seu lado (absorto de contemplá-la e extático) ele baixa o chapéu sobre o rosto: tamanha luz entrava-lhe os olhos Nessa sua segunda publicação, Maria Lúcia Dal Farra dedicará dois eixos do seu livro- o Livro de Possuídos- para estabelecer a interseção da poesia com a pintura. Serão apropriadas 66 telas dos pintores Van Gogh e Gustav Klimt que darão título aos dois eixos desse livro. Um estudo sobre isso foi feito por mim na pesquisa em iniciação científica intitulada: Interlocuções discursivas na lírica de Maria Lúcia Dal Farra em 2008 e, também, no artigo publicado na revista de Literatura e cultura: Verbo 21, com o nome – Sob o signo da posse, em 2009. 8

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

31

Ivo Falcão da Silva (UFBA) RELICÁRIO DE LEMBRANÇAS

e ele pode (apenas em resguardo) partilhar com ela nada além que o zeloso ócio (Dal Farra 2002: 20)

Pode-se pensar, desta maneira, o modo como a memória reteve a pintura – ou seja, expõe-se, no texto literário, a leitura tida no contato com a pintura. Obviamente, os fluxos de reminiscências vêm acompanhados de um olhar subjetivo marcado pelas experiências tidas pelo indivíduo. A leitura da tela mescla-se, no texto poético apresentado, com a memória de experimentações que surgem à superfície memorial através do contato com o objeto artístico, no caso, aqui, a pintura La siesta. Parece que, “cada uma dessas coisas preciosas tem sua individualidade, seu nome, suas qualidades, seu poder. Os tecidos bordados com faces, olhos figuras animais e humanas, [...]. Tudo fala, o teto, o fogo, as esculturas, as pinturas” (Bosi 1999: 442). A mobilidade na qual os indivíduos estão inseridos na contemporaneidade, em constante estado de mudança, existe algo que, ao menos na velhice, queremos que permaneça na sua imobilidade: os objetos que estão ao nosso redor. Admiramos esse conjunto organizado de uma forma pessoal e expressiva. Essa é a maneira que os elementos são tratados em Viveiro, pois: “mais que um sentimento estético ou de utilidade, os objetos nos dão um assentimento à nossa posição no mundo, a nossa identidade (Bosi 1994: 442).

II Espaço Os primeiros traçados que a memória inscreve no indivíduo encaminham, na maioria das vezes, para os feitos da infância, sejam eles: o contato com os pais ou as típicas incursões pelos corredores da casa e vielas do bairro. O ambiente familiar, a casa, a comunidade e o corpo constituem algumas das atmosferas principais que delineiam a formação identitária dos indivíduos, quando nos enveredamos pelas lembranças. No viveiro construído por Maria Lúcia Dal Farra, espaço vário, notou-se que são múltiplos aspectos que constituem o que chamamos neste capítulo de Relicário de lembranças. Nesse eixo, o ambiente de convívio do sujeito estético é, também, matéria para a subjetividade lírica. Na seara do espaço, trataremos a concepção do eu lírico como estruturado em círculos excêntricos que partem da mesa de jantar, passam pela sala, a casa, até chegar ao espaço da rua - o circundante de modo geral, mediado pelo corpo do sujeito que atravessa por essas instâncias. Segundo Gonçalves Filho, em linha reta a Ecléa Bosi, no seu texto: Olhar e memória, a relação entre espaço e recordação se dá como pedaços de cidade em constante elaboração e pondera, “[...] a morfologia da cidade, dos minúsculos objetos aos grandes bairros, foi subjetivamente diferenciada: as experiências, os afetos Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

32

Ivo Falcão da Silva (UFBA) RELICÁRIO DE LEMBRANÇAS

imanizam os lugares, demarcando núcleos em torno dos quais vão gravitar as lembranças”. (Gonçalves Filho 1988:112) A casa é uma imagem recorrente na poesia Dalfarriana, um espaço de acolhimento e de construção do indivíduo, que pode ser visto tanto no Livro de Auras quanto no Livro de Possuídos9, nos fazendo notar, assim, que o lar tem uma significância fundamental para a poética da escritora, como diz Bosi, “há sempre uma casa privilegiada que podemos descrever bem” (Bosi 1994: 357). A poesia Casa, por exemplo, apresenta o ambiente familiar, configurando-se a partir da existência de uma mesa, que sendo tratada como centro da casa, adquire projeção fundamental para a convivência tida outrora, em tempos retomados pela memória, corporificados na lírica. Leia-se: Redonda, uma mesa cogita sua memória de árvore enquanto o nó central se amplia [...] Do chão o assoalho estremece e revive (através da cera recém-acumulada) os momentos íntimos das coisas da casa no seu tempo de floresta. (Dal Farra 2004: 17)

Esta mesa se metamorfoseia, no poema, em uma árvore, um grande arbusto que em guinada vertical amplia-se ao ponto de sua copa acolher todo aquele espaço familiar. Árvore e casa são signos compatíveis – é como se o ambiente doméstico apresentasse-se para o eu lírico com a mesma estrutura de uma árvore, ou seja, com troncos e raízes estáveis e fortificadas. Desta maneira, no tocante à casa como signo memorial, a mesa adquire importância fundamental para a família e o indivíduo. Este móvel é onde jazem os instantes de compartilhamento, afetos e conversas que, quando retomada nas lembranças do homem, vêm impregnados dessas experiências passadas e revividas no presente. Além disso, “a mesa da família possui um lado onde é bom comer, o lado fasto onde senta-se mamãe e é agradável estar”. (Bosi 1994: 357) Na poesia Parca doméstica, o objeto apreendido é um jarro com sua flor, localizado, justamente, ao centro da mesa, sob uma toalha de crochê. A singeleza de uma simples imagem desencadeia uma série de sensações lançadas pelo eu poético. Essa “pequena descoberta”, como enunciado no poema, faz a madeira do assoalho estremecer, tamanha representatividade desta construção imagística. A memória Veja-se o poema Fazenda na Alta Áustria: “Agora/ a casa nasce tal qual a árvore, -/ raízes profundas,/ entranhada no chão./ O parentesco entre ambas/ é germinal: suas paredes são troncos, suas janelas espelho”. (Dal Farra 2002: 132) 9

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

33

Ivo Falcão da Silva (UFBA) RELICÁRIO DE LEMBRANÇAS

recupera esses pequenos lances vividos, com aura aparentemente despretensiosa que, no entanto, ao serem recuperados e trabalhados pelo sujeito, adquirem importância simbólica significativa. Um simples jarro acompanhado de uma flor pode remeter desde um cuidado com a esfera doméstica até um código da família 10. A casa, desta forma, é o centro de onde partem as percepções de espaço nos meandros da memória, em se tratando da lírica de Maria Lúcia Dal Farra. Isso se coaduna com a perspectiva de Ecléa Bosi (1994), quando a autora analisa a relação entre casa e memória, expondo: A casa é o centro geométrico do mundo, a cidade cresce a partir dela, em todas as direções. Fixamos a casa com as dimensões que ela teve para nós [...]. O espaço da primeira infância pode não transpor os limites da casa materna, do quintal, do espaço da rua, de bairro. Seu espaço nos parece enorme, cheio de possibilidades de aventura. (Bosi 1994: 104)

Essa casa se expande e a trama do espaço com a memória também se amplia nas poesias de Viveiro. O espaço externo vai demarcando a sua significância para o eu lírico. As imagens do nordeste são escolhidas pela memória como aquelas importantes para este mesmo sujeito lírico que se apresenta11. Verão nordestino é caso exemplar do que falamos; poesia cuja construção parte do olhar lançado para as terras do nordeste, com seu calor característico e com as suas também típicas pucumãs que se enredam pelas paredes das casas. Essas especificidades do espaço demarcam um duplo movimento: homem que age no espaço e o espaço que age no homem. Aqui, neste estudo, nos interessamos mais pela ação que o ambiente ocasiona no indivíduo. O sujeito recebe múltiplas influências do ambiente e das pessoas que o compõem, mas, nas reminiscências, esta mesma localidade vem, muitas vezes, efabulada e construída sob a subjetividade deste mesmo sujeito. A equação ambiente, memória e sujeito - via Halbwachs apud Seeman (1990) é pensada como “realidade que dura”, ou seja, deixa marcas quando elaborada pelo homem. Além disso, para o sociólogo, uma das maneiras de se resgatar o passado é através do meio material que cerca o indivíduo. “O nosso espaço é aquele que ocupamos, por onde passamos ao qual temos acesso e que fixa as nossas construções e pensamentos do passado para que reapareça esta ou aquela categoria de lembranças” (Seeman 2010: 05). Assim, o meio natural não é configurado como inerte, exerce influências no sujeito que constantemente o elabora.

Retomo, aqui, o que Zélia Gattai pensou sobre os detalhes (singulares) que cada núcleo familiar possui. Um gesto, um toque, um objeto estrategicamente arrumado - isso tudo remete para o que ela chamou de Códigos de Família, título, aliás, do seu livro. (Gattai 2010) 11 É válido referenciar nesse momento que, mesmo Maria Lúcia Dal Farra sendo paulistana de Botucatu, o nordeste adquire importância para a sua subjetividade, pois foi a terra que já a acolhe por algumas décadas, desde a sua chegada em Sergipe, quando se casa com o também escritor e nordestino, Francisco Dantas. 10

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

34

Ivo Falcão da Silva (UFBA) RELICÁRIO DE LEMBRANÇAS

É o mesmo sujeito que é demarcado, também, como uma instância de reminiscências. O corpo configura-se como uma cartografia espacial, isto é, as suas marcas, contornos e linhas delineiam um campo de coexistência entre a experiência e a memória: ponto central de onde partem essas experimentações do espaço já referidas. A arte divinatória da quiromancia é utilizada por Dal Farra para elaborar o mapa de lembranças que o corpo reserva – partindo das mãos, com as suas digitais e traçados particulares, na busca em remontar o experimentado. É como se a palma das mãos, retomando o mito do Rei Midas, fosse capaz de eternizar casa coisa que é tocada e um destino, ali, já estivesse traçado para o indivíduo. O poema Quiromancia apresenta o corpo como o depósito de nossos contatos, um mapa que está desenhado nele o que se viveu e realizou. Assim, as mãos, na poesia, adquirem formatação de signo da memória, vejamos os versos a seguir: “No centro da tua palma nasce uma chama./ É a alma do que tocaste/ (...)/ Caverna resguardada é tua mão/ - baú/ donde retiro o que tu és/ nessa mania de te fundires com o mundo”. (Dal Farra 2002: 33). O corpo delineia-se como uma criptografia a ser desvendada pelo homem, e, nesse processo de descoberta, a memória exerce um papel de construtor de vívidos e novos significados. Nota-se, portanto, que a categoria de lembranças relacionada ao espaço em Livro de Auras é aquela que circunscreve, como já fora dito, o movimento do lar até os arredores da casa, perpassando pela sensorialidade do corpóreo - a experiência que deixa vincos na memória e, quando significadas na poesia, expõe uma possibilidade de lançar um novo olhar acerca dessa mesma experiência.

RELIQUARY OF REMEMBRANCE Abstract: The current work aims at discussing the memorialistic traits contained in the section of lyrical texts Viveiro, in the Livro de Auras (1994), written by Maria Lúcia Dal Farra. In these poems, the remembrance of various elements is established: cats, canticles and people who are perceived through crossings experienced by the poetical self. Keywords: Maria Lúcia Dal Farra; Lyric; Memory.

REFERÊNCIAS

BORGES, Jorge Luis. Borges oral. In: Obra completa. Madrid: Alianza, 2006. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

35

Ivo Falcão da Silva (UFBA) RELICÁRIO DE LEMBRANÇAS

DAL FARRA, Maria Lúcia. In: Entrevista a Lívio Oliveira. Disponível em: http://www.substantivoplural.com. br. Acesso em: 20 ago. 2008. ______. Inquilina do Intervalo. 1ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2005. ______. Livro de Auras. 2ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2002. ______. Livro de Possuídos. 1ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2002. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978. FRYE, Northop. Crítica histórica: Teoria dos modos. In: Anatomia da crítica. São Paulo, Cultrix, 1973. GONÇALVES FILHO, José Moura. Olhar e memória. In: NOVAES, Adauto (Org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 112. HEGEL. A poesia lírica. In: Estética. Lisboa: Guimarães editores, 1980. pp. 215-274. PROUST, Marcel. Sobre a leitura. 2ª ed. Tradução: Carlos Vogt. São Paulo: Pontes, 1991. ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto. São Paulo: Perspectiva, 1969. p. 123-145. SACRAMENTO, Adriana. Corpos que se alimentam: a constituição do feminino em Cora Coralina, Maria Lúcia Dal Farra e Laura Esquivel. Disponível em: http://www.onda.eti.br/revista intercambio. Acesso em: 11 out. 2009. SEEMAN, Jörn. O espaço da memória e a memória do espaço. Algumas reflexões sobre a visão espacial nas pesquisas sociais e históricas. Disponível em: http://www.dialnet.unirioja.com.br. Acesso em: 14 abr. 2010. VALÉRY, Paul. Questões de poesia. In: ______. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1991. p. 177-186.

ARTIGO RECEBIDO EM 01/03/2012 E APROVADO EM 04/04/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

36

OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP)1

Resumo: Pretendemos observar o desenvolvimento dos sonetos na obra de Glauco Mattoso, como não apenas uma forma mnemônica que lhe contribui a produzir em sua segunda fase – cega – mas também como parte do projeto poético, presente desde os primeiros escritos. Para isso, trazemos como corpus de investigação seis poemas metalinguísticos, nos quais o poeta esboça relação com a tradição, repensando e recriando a forma clássica, não almejando negá-la ou substituí-la, característica que o coloca junto aos poetas neobarrocos contemporâneos. Palavras-chave: Glauco Mattoso; Soneto; Estética Neobarroca; Metalinguagem.

Introdução Dos movimentos diversos da poesia contemporânea, não nos escapa aos olhos certa produção que lança mão do trabalho com o verso livre ao recuperar o uso do soneto, e ainda, apresenta como traço predominante o erótico e o escatológico, numa poesia que dialoga constantemente com um grupo seleto de poetas de nossa tradição, como Gregório de Mattos a Haroldo de Campos. Falamos aqui da poesia de Glauco Mattoso, autor que já construiu certa fortuna literária, mas ainda causa furor por onde passa: seja pelos temas provocantes, pelas provocações aos pares, ou ainda pela fama, já comprovada, de ser o poeta com maior número de sonetos produzidos em língua portuguesa. Dentre todas as características destacadas, instiga-nos a última, dada a importância do soneto como configuração chave para a poética de Glauco. Na denominada primeira fase, a “visual”, ele já se faz presente, ainda que pouco utilizado, dividindo espaço com a poesia concreta, os quadrinhos, entre outras formas poéticas. Mas é na “fase cega” que tal forma tornar-se-á dominante na produção do autor. Pretendemos neste texto, pela análise de alguns poemas metalinguísticos de Glauco Mattoso, apontar a recorrência dos sonetos na referida obra, principalmente da segunda fase, não apenas como composição mnemônica, e sim apropriação 1

Mestranda em Letras da UNESP– SJRP, bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP) OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO

ressignificada, visto que o poeta já demonstrava grande domínio da palavra e alta consciência sobre o ato poético, fato corrobora sua nova postura frente a escrita como um ato significativo. Aspiramos também observar se a recorrência do uso dos sonetos poderia, por vezes, esgotar a poesia mattosiana em repetições vazias, uma vez que a produção se estende por milhares de versos. Para tanto, utilizaremos principalmente o material disponível no sitio pessoal do autor2, que inclui grande parte dos poemas, alguns deles acompanhados por notas valiosas, além de entrevistas e críticas sobre o poeta. Sendo os últimos relevantes por trazerem apontamentos chave à apreciação da obra mattosiana, os quais muitas vezes também se colocam questionadores, como nós, do demasiado uso da forma clássica. Pelo autor assumir influência direta do espírito barroco, além de observarmos claramente este diálogo, teceremos ainda considerações sobre os poemas mattosianos no que condiz ao traço neobarroco, partindo dos dizeres de Chiampi (1994), Calabresi (1999) e Claudio Daniel (2006). Assumimos a tarefa como relevante para a análise por julgarmos que a apropriação que o poeta faz do soneto, neste diálogo com a tradição, metamorfoseando a forma símbolo da poesia em língua portuguesa, possa ser mais uma das características que o aproxima, ou talvez o inclua, naquela categoria.

A menos valia do ouro O primeiro poema que selecionamos data da fase visual do poeta, escrito no ano de 1979. Naquele momento, já praticava tanto a poesia visual – de aspiração concreta – como também se embrenhava pelo caminho do soneto. 7 CHAVE DE OURO [1979] ência agem agem ência

erso el eva agens ão om ás uz i ia erso el eva ajens ão om ás uz i ia

ência agem agem ência

erso el eva agens ão on ás uz i ia erso el eva agens ão om az us i ia

ima ala ote onde ama eito ima ino eu ão ama ia Apesar de disponibilizar inúmeros materiais no sítio pessoal, o organizador da produção mattosiana não teve o cuidado de registrar as referências completas dos textos, o que dificultou o trabalho de indicação bibliográfica desta pesquisa. Isto ocorre também por grande parte dos materiais que aqui utilizamos ter sido retirada de periódicos impressos, tornando difícil o contato, por questão da disponibilidade física da fortuna. 2

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

38

Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP) OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO

ão ala ão onde ão ão eito ão ote ão ece eito eito ino eu onde ece ia ão ão ão ão ão ao (Mattoso 2011a) NOTA: Segundo palavras do autor em MEMÓRIAS DE UM PUETEIRO, o poema "foi composto só com as rimas dos seguintes sonetos: 'Arte moderna' de Lisindo Coppoli,'Paixão e arte' de Jorge de Lima, 'Há cavalos noturnos' do mesmo Jorge, 'Voz interior' de Bastos Tigre, XIV de 'Cavaleiro ferido' de Alphonsus de Guimaraens e 'Vinte séculos de revolução' do ainda Jorge. Os seis sonetos diferem quanto à rima do primeiro verso, mas todos têm o último verso terminado em 'ão' o que faz de minha chave de ouro uma verdadeira gargalhada com aquele ditongo que Napoleão Mendes de Almeida considera 'o maior, o mais belo idiotismo prosódico de nossa língua, e tão nosso, tão local, tão arraigadamente étnico, que lábios estrangeiros dificilmente logram emiti-lo em sua pura e clara eustomia...' Com efeito, é o maior idiotismo. E haja eustomia!" (NOTA, 2011a)

“Chave de ouro” (Mattoso 2011a) é um árido poema de Mattoso que apresenta o impasse frente o emprego da rima no verso, principalmente pelo aparecimento em excesso das rimas em “ão”, que além de empobrecerem a sonoridade do soneto, são as mais recorrentes em língua portuguesa, e culmina por estender-se a certa exaustão semântica. Sobre o uso, o poeta, retomando em nota as palavras de Napoleão Mendes de Almeida – que também aborda o tema – descreve-o como “idiotismo prosódico” (NOTA, 2011a). Esses “idiotismos” se fazem presentes justamente pelo epíteto “chave de ouro”, termo que designa a quarta estrofe do soneto em que se apresenta o desfecho, conclusão a cerca do tema tratado. Compor o segundo terceto apenas com as rimas em ão, desloca a grandiloquência do termo para outro tipo de gran finale, agora prosódico, proporcionado pela abundância desta sonoridade na língua. Por meio de rimas de versos que ainda constam como paradigma dos clássicos sonetos brasileiros, Glauco propõe uma composição por colagens. Dentre todos os poemas utilizados, merecem destaque os de Jorge de Lima, já que constituem cerca da metade desse corpus. “Paixão e arte”, por exemplo, agrega a abordagem romântica de um fazer literário guiado pelo sentimento, alcançado apenas na difícil e sofrida luta com as palavras. A dramaticidade para o ato da escrita, evocada pelo intertexto, é altamente ironizada por Mattoso no trabalho de síntese: o poema se faz de sobras, dos sopros finais dos versos alheios, para assim exaltar a condição do soneto como forma poética trabalhada nos mais altos níveis da razão, atingindo isso com um poema que é quase o oposto. Quase, pois o diálogo que traça com o que recolhe, e a devida perspicácia ao congregar as rimas em “ão” dos sonetos recortados, todas no segundo terceto, realizando a real chave de ouro, eleva o vazio da não utilização das palavras nos versos, sinalizando a importância de uma forma, que há muito vazia, pede cuidado. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

39

Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP) OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO

Mesmo motivados pelo sentimento, delineando uma aparente lírica, o poema não pode, como o próprio poeta diz, cair no idiotismo do mero encaixe de palavras semelhantes. O ouro se perde neste ato, tanto dos clássicos reduzidos a meros recortes, como nas rimas, que enfraquecem o valor da cadeia prosódica para o desenvolvimento do soneto. O uso desmensurado de um recurso poético comum remete à ideia de uma forma mecânica, realizada na repetição de certas estruturas rítmicas, levando ao esvaziamento do conteúdo artístico bem como ao desencantamento da palavra poética. Contudo, o aspecto admitido como possível falência da poesia, no que ela tem de mais singular, é armadilha que o próprio poeta se arrisca a cair na produção da segunda fase. Após longo período distante da poesia, em momento de adaptação à nova condição física, Glauco Mattoso retoma o trabalho em 1999. Por escrever sonetos em larga medida, torna-se o maior sonetista em língua portuguesa, com mais de cinco mil criações neste formato. A partir dos dados apresentados, buscamos observar se o cunho crítico e consciente sobre o ato da escrita, característico da primeira fase da poesia mattosiana, não se perdeu em meio às láureas desses versejar tão fluente. Para isso, selecionamos poemas das duas fases, cega e visual, de cunho metalinguístico, a fim de que encontremos no exercício comparativo traços que permitam constatar, ou não, características de uma poética e não uma mera repetição vazia, que procura se encontrar na pluralidade da forma tão singular do soneto.

Será o soneto a “chave de ouro”? A poesia de Glauco Mattoso, marcadamente satírica, entrelaça o escatológico e o irônico aos princípios estilísticos de Camões, mas não apenas. Também traça explícito diálogo com poetas como Lope de Vega, Marques de Sade, Gongora, Gregório de Matos, o último uma grande referência do poeta, presente inclusive em seu nome3. Suas referências não se esgotam nos clássicos. Exemplo é o soneto 39, “Concreto” (Mattoso 2011a), de 1999, em que o poeta tenta, de certa maneira, justificar a escolha pelo soneto num momento em que as formas mais revolucionárias da poesia moderna ainda são usadas, como a proposta verbivocovisual de James Joyce, largamente utilizada pelos poetas do Movimento Concreto de 1958. 39 CONCRETO [1999] Poemas verbivocovisuais não são meu forte, exceto como fã. Já fiz alguns, mas foram mais no afã Glauco Mattoso é epíteto de José Ferreira da Silva, sendo uma composição feita a partir da palavra glaucoma, doença que levou o poeta à cegueira, e Gregório de Matos, grande influência para Mattoso, como grande poeta satírico brasileiro; segundo o sítio pessoal do autor. 3

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

40

Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP) OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO

de pôr p'ra fora a fútil voz mordaz. Vanguardas entusiasmam um rapaz que o Santo Gral vê numa busca vã de decifrar Noigandres de manhã e à noite navegar naus virtuais. Não digo que renego meu paideuma, mas amadureci, perdi a visão. Prefiro me afastar dessa celeuma. Quanto aos poemas, faço-me ermitão: versejo na clausura (Santa fleuma!) o pé, tema palpável, meu tesão. (Mattoso 2011a) NOTA 1: Ver os sonetos 92, 148, 240, 282, 399, 409, 416, 517/524, 533, 546, 808, 858 e 874.

A relação direta tratada com o grupo de Haroldo, Augusto e Décio, será uma das faces do concreto que o título anuncia. O eu lírico afirma ter retornado à forma num “afã” do momento juvenil de desabafo, para expor sua “fútil voz mordaz”. A juventude mencionada é tanto a do próprio autor como também da poesia de Glauco, já que é na fase visual que se aventura pelos escritos de cunho concreto, produzindo obras como Jornal Do Brabil (1977-1981). Esta, mesmo não perdurando na fase madura, é registro de um “paideuma”, marca do caminho pela escrita que não é esquecida ou negada. Outra manifestação do concreto no poema se faz por aquilo que o poeta, nessa diferente fase da vida, consegue apreender do mundo à sua volta. A relação com as coisas passa a ser pelo material, o sentido do tato, da audição, paladar e olfato, e não mais pelo olhar, excluindo a poesia visual do campo de produção. A obra tomara o tátil e o auditivo como marcas, salientando as imagens do palpável bem como a sonoridade dos versos. Não à toa Glauco elege o soneto como a forma poética da “fase cega”. Este, pela alta musicalidade e cadência rítmica, permitirá a resistência das palavras encadeadas na memória, que esperam por ganhar a perenidade no papel ou nas telas do computador. Amadurece o poeta então por perder a visão e reconhecer o palpável nos, e dos sonetos. A admiração pelas “Vanguardas” na juventude, a eterna busca pelo novo, passa a ser considerada uma “busca vã”, e assim se afasta dessa celeuma e também das pessoas, tornando-se “ermitão”. Nesta introspecção o poeta retoma diferentes fontes, já que é após passar pelas grandes vanguardas do século XX, finda a busca ao encontrar o “Santo Gral” na poética dos antigos. Esse percurso pela tradição, selecionando o que dela lhe convém, sem contudo, negar o que dela perdura mas não o agrada, se agrega como característica à veia barroca do poeta. Sua escolha pelo jogo lúdico dos versos e sua obscenidade Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

41

Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP) OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO

pelo uso de determinadas palavras, unem-se ao trabalho engenhoso com a linguagem. Essas características provocam o distanciamento entre o poeta e as vanguardas, a arte do novo, retomando o barroco numa diferente leitura, e com isso a produção mattosiana aproxima-se do que hoje certos teóricos chamam neobarroco. Claudio Daniel, em apresentação da arte neobarroca, traça comentários sobre o abandono da concepção de arte como ruptura, como sendo característico dessa corrente. Segundo o autor, o neobarroco não se preocupa “em ser novidade. Ele se apropria de fórmulas anteriores, remodelando-as, como argila, para compor o seu discurso” (Daniel 2004: 18). A perda da visão possibilitou um distinto modo de visualização do mundo e da arte para Glauco, que por fim o liberta. Liberdade à escrita por meio do soneto, encontrada na manipulação da linguagem, no jogo entre as palavras como uma complexa construção, e não no envolvimento do poeta com as crises da arte. Ao encontrar seu lugar de escrita na reclusão, encontra também o prazer na poesia, representado pela imagem do “pé”, outro concreto dos versos mattosianos. Posicionar-se entre os demais poetas de sua época, ainda na intenção de reafirmar suas próprias escolhas, é também tema do poema 43, “Vanguardista” (Mattoso 2011a), datado também de 1999. #43 VANGUARDISTA [1999] Vanguarda é classicismo, e a prova disso está nos manifestos: em que pese o mau comportamento, viram tese, tratados como o texto mais castiço. Não nego que elas prestam bom serviço, mostrando algo de novo que se preze. O mal é quando espalham catequese, querendo impor que o resto está cediço. Aqui nem há razão p'ra que me queixe: Quer seja ou não vanguarda ou velha guarda, não deixo de vender meu mixo peixe. Não viso academia, chá nem farda; só peço a cada membro que me deixe lamber seu pé com minha língua barda... (Mattoso 2011a) NOTA: Ver os sonetos 787 e 826.

Aqui, a vanguarda não é versada com tanta admiração e solenidade como vimos anteriormente. O adjetivo “clássico”, acompanhando pejorativamente o termo “Vanguarda”, aponta como característico da estética do novo aquilo que

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

42

Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP) OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO

primeiramente é tomado como “mal comportamento” e, logo torna-se tese, uma conduta à ser seguida. O problema determinado no poema está na atitude dos vanguardistas, que tentam colocar o novo como “catequese, querendo impor que o resto está cediço.”. A postura frente à vanguarda, que no caso anterior era de admiração, descrita como “paideuma” para o poeta, se perde. Isso se deve também à expansão do grupo atingido. Não são apenas os concretos agora, mas uma gama de movimentos que se fazem dominadores e ditatoriais sob roupagem diversa à do Moderno, avesso a inovações. Como meio de delimitar seu lugar, o eu lírico afirma não deixar de “vender meu mixo peixe”, demonstrando haver espaço também para sua poesia, a qual bebe dos antigos sem necessariamente romper na forma, como podemos observar no poema acima. Ao mesmo tempo, não deixa seu cunho irônico de lado, afirmando não visar “academia, chá nem farda”, pedindo aqueles que compõem essas categorias apenas o deixarem “lamber seu pé com minha língua barda...”. Na crítica observada, o poeta traz mais uma vez o pé como prazer palpável da linguagem, que neste caso se refere ao que realmente deseja da academia e mesmo das vanguardas. O prazer obtido por meio do pé, nitidamente de cunho sexual, como vemos no duplo sentido da palavra membro no décimo terceiro verso, “só peço a cada membro que me deixe”, liga-se também ao prazer que o poeta busca extrair da produção literária daqueles que o confrontam, por meio da figura da “língua barda”. Com seus espinhos, essa língua passa pelos membros, pelos poemas que eles compõem, por suas linguagens, alcançando prazeres, mas também deixando sua marca por meio de seus escritos espinhosos. O pé, sendo o objeto de desejo da língua e correlato ao prazer, se faz presente no soneto em diversas palavras, como resíduo sonoro, salientado nas tônicas dos versos: “pese” (v.2), “prestam” (v.5), “preze” (v.6), “peixe” (v.11) e “peço” (v.13). Essa cadeia prosódica indica a presença do pé também naquilo que se refere à vanguarda, reforça a presença do prazer encontrado nos vários tipos de produção, bem como naqueles que a realizam. Esta posição do sujeito na busca pelo prazer do texto e pelo texto vai ao encontro das relações com o prazer que Barthes aponta em O prazer do texto (1987): “Se leio com prazer esta frase, esta história ou esta palavra, é porque foram escritas no prazer (este prazer não está em contradição com as queixas do escritor).” (p.8). A decisão de se afastar de polêmicas dedicando-se apenas ao prazer encontrado no soneto, também é uma ação significativa. O poeta, que se coloca fora da pregação e discussões da vanguarda, não a abandona por completo, já que também rompe com seus antecessores ao inovar, retomando formas clássicas de composição. Fugir da arte do novo, neste caso, acaba por se tornar uma atitude ambígua. Antonio Candido, em seu “Textos de intervenção”, já analisa o movimento realizado pelas vanguardas como impositor. O crítico entende que “nós estamos condenados à vanguarda no sentido que somos obrigados a viver numa experimentação permanente. [...] Isso é feito exatamente para que se obliterem as Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

43

Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP) OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO

noções, porque são manifestações do contra” (Candido 2002: 369-370). O novo perde seu caráter de choque e se torna regra, ação a qual o poeta busca romper. Dentre as várias manifestações de Glauco na procura de uma arte que caminhe além de seus contemporâneos, o poeta produz seu soneto número 9, “Censurado” (Mattoso 2011a). 9 CENSURADO [1999] Sabendo que a censura não me trava, pediram-me um soneto sem calão p'ra pôr na antologia de salão que o tal do [censurado] organizava. Queriam até tônica na oitava, mas nada de recurso ao palavrão. Usei o ingrediente mais à mão, porém sem [censurado] não passava. Desisto. Quanto mais remendos meto, mais roto vai ficando o [censurado]. Poema não é texto de panfleto p'ra ter que se estampar todo truncado! Pois esta [censurado] de soneto que vá p'ra [censurado] [censurado]! (Mattoso 2011a)

Notamos nesse poema que mesmo o eu lírico tendo encontrado sua liberdade na composição rígida do soneto e em seus temas controversos, percebe que ainda existem certas “travas”, as travas sociais, que interferem em sua produção. Isto, contudo, não o impedirá de confrontá-las nos desenlaces da linguagem, fazendo da luta seu artifício. Não se trata aqui de um período de ditadura, mas sim de outra força mais velada de restrição, aquela exercida pelos próprios pares do meio literário. Impossível não negar a semelhança entre os organizadores da “antologia” do soneto “Censurado”, que tentam direcionar o processo criativo, e aqueles “catequéticos” do poema “Vanguardista”, que queriam impor uma determinada forma de composição poética, já que o poema retoma os obstáculos da escrita produzidos por meios externos, a tentativa de dominação por padrões e estilos. O pedido, por “um soneto sem calão/ p’ra por na antologia de salão”, determina uma obra que foge à essência da marca criativa do poeta, a qual se dá justamente no trabalho da linguagem, por vezes baixa, no soneto. Como podemos observar, as travas apresentadas para a produção, todavia, não serão suficientes para impedir o poeta de manifestar sua insatisfação, pois ele consegue tornar presente a força dos termos indesejáveis no poema ao ocupar os espaços a eles destinado pela palavra, entre chaves, “[censurado]”. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

44

Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP) OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO

A repetição do termo censurado acaba por substituir tanto as possíveis obscenidades que o poeta utilizaria como também o nome do censor, colocando-as, desse modo, no mesmo nível semântico. As chaves intensificam as quebras que a palavra “[censurado]” sugere visualmente ao texto, além de marcar pontos de fissura da obra. Ao dizer, “Desisto. Quanto mais remendos meto,/ mais roto vai ficando o [censurado]”, o poeta indica a linguagem obscena como parte fundamental de sua criação, que não atinge seu ápice quando substituída por eufemismos ou mesmo pelo termo “[censurado]”. Como Baudelaire se utiliza da figura do esgrimista, o confronto com a linguagem na criação literária, o eu lírico presente aqui também assume um confronto semelhante, uma vez que a linguagem imposta não lhe é familiar. A cada momento que o termo “[censurado]” se faz necessário, sentimos o oponente tocando o poeta e já o colocando numa complicada posição na luta. “O duelo em que todo o artista se envolve e no qual ‘antes de ser vencido, solta um grito de terror’ está compreendido na moldura de um idílio; sua violência passa a segundo plano, e permite seu charme aparecer.” (Benjamin 1989: 68). O grito de dor, do qual Benjamin fala, é materializado pela expressão “Desisto.”, manifesta nos versos "Desisto. Quanto mais remendos meto,/mais roto vai ficando o [censurado].”, bem como o charme ao qual o autor faz referência, ato em que o poeta coloca-se abaixo da grandiosidade da palavra poética, aqui se faz na presença que a ausência evoca pela linguagem censurada. A poesia de Glauco Mattoso se constrói como a de qualquer outro poeta, pela linguagem, e a luta que observamos no poema não é com qualquer palavra que lhe possibilite uma “tônica na oitava”, mas com uma palavra que não seja um “palavrão”. A circunstância que o eu lírico esboça no soneto é gerada num estado particular de produção, direcionado a uma “antologia de salão”. Epistemologicamente, o tipo de coletânea proposta por uma antologia carrega uma imagem do que venha a ser o poeta e o poema em seu tempo. Ela busca assim ser o retrato da época, e como objeto histórico artificial nesse caso em particular, uma vez que a escolha se faz de um período ainda em desenvolvimento, acaba por criar, e não refletir o, e sobre o seu tempo. Mattoso não se mostra consciente apenas das falsas aparências que uma antologia pode criar, mas também dos diversos rótulos que sua poesia, ou ele mesmo como poeta, pode receber; o que direcionariam uma leitura por vezes errônea de sua obra. A fim de reagir contra determinados estereótipos e ainda utilizando-os como meio de subversão, o poeta compõe o soneto 429, “Precípuo” (Mattoso 2011b). 429 PRECIPUO [2000] Poetas não escrevem por dinheiro. Actrizes sempre teem a mesma cara. Modelo é meretriz mas não declara. Rockeiro sem chulé não é rockeiro.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

45

Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP) OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO

Jeitinho é profissão do brasileiro. Jeton é gorgetinha em língua clara. Juiz não diz-que-diz: profere, exara. Barata é voto nullo em gallinheiro. As coisas teem que ser como ellas são, e não como alguns querem que ellas sejam, sinão não tinha graça nem tesão. Dos cegos só se espera que não vejam. Do Glauco todos fazem gozação. Enquanto alguém padece, outros festejam. (Mattoso 2011b)4

A justaposição de figuras adversas que podemos observar, como o juiz e o roqueiro, e ainda o poeta, o poema e a meretriz, desloca o poeta do imaginário popular, o qual habita as torres de marfim, para o mesmo patamar dos demais. Dessa forma, eleva as tipificações mencionadas, inclusive aquelas nas quais o próprio autor se encaixa, cego e homossexual, num processo de reordenação dos conceitos. Ao ouvir o mesmo soneto musicado, percebemos que os deslocamentos de sentido, entre o senso comum e a realidade particular de cada grupo, continuam em foco. Isso se dá a partir do choque criado entre o encaixe de dois ritmos distintos logo nos primeiros segundos da música. Primeiramente, o ritmo clássico inicia a composição, e com ele somos remetidos aos poetas da era Greco-latina, que tinham sua poesia condicionada por um grupo de normas retiradas em essência das poéticas de Aristóteles e Horácio. Logo em seguida, somos surpreendidos pelo gênero brega, ritmo indubitavelmente brasileiro que foge de padrões ou regras, típico do popular, que tem como característica “Melodias de fácil assimilação e encadeamentos harmônicos óbvios”. (Adolfo 1997: 60). A aproximação das duas formas de composição, com a predominância da segunda, a qual realmente embala o poema, reforça a quebra de tipificações, fortalecendo o efeito irônico contido nas afirmações sobre o Poeta, a atriz, a modelo, o que ocasiona o necessário desmascaramento. As duas primeiras estrofes são compostas por sintagmas simples, discurso direto, nas quais se repete o uso do verbo “ser” qualificando categoricamente os sujeitos. Ambos os quartetos foram elaborados em paralelo, sendo a não utilização do verbo ser nos terceiros versos um reforço ao traço deste discurso corrente sobre os grandes estereótipos, o que não acontece a seguir. Discorre-se na segunda parte sobre a permanência das tipificações, afirmandose ser necessário que permaneçam, pois caso contrário “não tinha graça nem tesão”. Entretanto, a “graça” não se apresenta nas categorias em si, mas sim em suas constantes fraturas, como observamos tanto no poema como na produção musicada. Para análise, recorremos tanto ao material escrito disponível no site do poeta como também à sua versão recriada no álbum Melopéia: sonetos musicados (2001), por considerarmos relevante a trilha que acompanha o cantar dos versos. 4

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

46

Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP) OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO

A última estrofe corrobora essa ideia, pois ao dizer “Enquanto alguém padece, outros festejam.” declara-se como mote do soneto o poetizar sobre o padecimento. Como último poema desta seleção, escolhemos o soneto 764 “Da rima rara” de 2003. Vinte e quatro anos depois de “Chave de ouro”, Glauco retoma o tema da rima e seu uso, mas aqui voltado à própria seara. 764 DA RIMA RARA [7/8/2003] Sem rima para um "árico", colérico, um árido poeta, nada lírico, usou seu melhor método, do empírico estoque de seu estro disentérico. Seguindo no soneto o molde ibérico, tentou dar um efeito algo satírico, na falta de motivo a um panegírico e cético que estava do esotérico. Saiu-lhe um sonetão todo gongórico, repleto de chavões, num tom telúrico, tendente a humor hermético e alegórico. "Quisera ser pintor!", disse. "O purpúrico rimou! Sangrou qualquer período histórico!" Desiste, e está mais ácido e mais... úrico. (Mattoso 2011c) NOTA: Ver os sonetos 233 e 246. Neste caso o "barrockismo" se denota pelo esgotamento da rima proparoxítona e da variação vocálica. Ver também o soneto 88. Quanto ao humor, ver o soneto 182. Citando Góngora,ver os sonetos 242 e 722.

O poema acima é uma clara alusão ao soneto de Gregório de Matos, “Neste mundo é mais rico o que mais rapa” (Matos, 1991: 46). Tanto Matos quanto Mattoso utiliza-se do jogo entre as rimas, que iniciam o poema abertas e finalizam-no fechadas, provocando efeito jocoso. O tom brincalhão se juntará à ironia empregada na história narrada. Esta, uma das poucas criações em que não vemos a primeira pessoa empregada, é, contudo, muito semelhante ao percurso de Glauco Mattoso como escritor, exposta por um sujeito velho e sábio. O “árido poeta, nada lírico” é, segundo o poema, aquele que aspira à imagem de poeta ícone de sua geração, com uma clara alusão a Baudelaire no trecho “ ‘Quisera ser pintor!’ ”. Já o segundo, o do momento presente, aparece nas ponderações de alguém que possui uma visão do todo, consciente do percurso que se está cumprindo, e que percebe o verdadeiro lugar da poesia do jovem. Ao concluir sua descrição da busca pela rima rara, afirma que aquele de outrora “Desiste, e está mais ácido e mais... úrico”. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

47

Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP) OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO

Diferentemente do poema de Gregório de Matos, “Da rima rara” faz sua composição com rimas nas proparoxítonas, que, segundo nota que acompanha o soneto, provoca o esgotamento da rima e da “variação vocálica” (NOTA, 2001b). A escolha pela proparoxítona e não a paroxítona como Matos, faz com que Mattoso se une e separa de seu mestre nesta obra, pois torna presente a tradição pelo intertexto, não a nega nem rompe com ela, mas a transforma; deixando sua marca. Ao encontrar esta “rima rara” – “O purpúrico/ rimou!” o esperançoso poeta da juventude encontra outra raridade: sua poesia. Ela não está na mera repetição de fragmentos prosódicos, semelhantes ao que buscava o “árido poeta nada lírico”, mas sim no que se encontrou pela busca, um “sonetão, todo gongórico,/ repleto de chavões,”, que tende ao “humor hermético e alegórico” com “algo de satírico”. Glauco Mattoso congrega as características de seu fazer poético neste soneto, fazendo das rimas, resíduos dos versos e da tradição, uma nova composição.

Observações acerca das particularidades sonetosas mattosianas Olhar a poesia de Glauco e ver (vislumbrar) seus mais de cinco mil sonetos, como mencionamos no início de nosso texto, causa não só espanto como questionamento. A fala do poeta Fabiano Calixto, retirada do sítio do poeta revela bem esta condição: Para Glauco, os temas tratados (os mais variados possíveis, diga-se) funcionam como alicerces de seu mote, que é, na verdade, o próprio soneto. Tendo o soneto como motivo, o mundo circundante apenas se encaixa dentro da forma. Nesse "maquinário sonetista", podemos imaginar o imenso risco que o autor corre. (Calixto 2011)

Não podemos atribuir a passagem da poesia de Glauco Mattoso, da primeira à segunda fase, provocada somente pela alteração de sua condição física. Não há dúvidas de que a cegueira marca de maneira acentuada sua poesia, mas resumi-la ao traço mnemônico do soneto seria ignorar os aspectos que sua linguagem e suas influências já apontavam, como observamos no poema “Chave de ouro”. Por meio do ínfimo recorte da produção mattosiana que realizamos para o presente trabalho, constatamos que também por parte do poeta há o receio de ter sua poesia fadada apenas à forma. A recorrente manifestação de preocupação quanto a estar produzindo um poema oco, composto por palavras meramente dispostas conforme a regra exige, é um aspecto que não se pode por de lado. Mas, dentro desse panorama, a repetição da forma não atua apenas como fraqueza de Glauco. Quando Fabiano Calixto se refere ao soneto dizendo “A pergunta é: ainda se segura? Respondê-la não é tão fácil.” (2011) anuncia espaço para um novo olhar à produção do poeta.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

48

Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP) OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO

Calabresi, (1999) em seus estudos sobre o barroco no cinema, dedica um dos capítulos a observar a repetição como aspecto marcante da estética neobarroca. Nesse texto, não restringe suas ponderações apenas ao cinema, voltando-se a todo o momento à poesia, música e outras artes, indicando que as características que se ressaltam em um tipo específico de produção artística não se restringem somente a elas. Pensando então o “maquinário sonetista” (Calixto 2011) de Glauco como uma intensa repetição da forma, podemos relacioná-la à “estética neobarroca” que traça Calabresi: En conclusión, de la larga y quizá incauta excursión en el ejemplo del telefilm, parecen emerger tres elementos fundamentales de la que he llamado “estética de la repetición”, a su parte de la estética neobarroca: la variación organizada, el policentrismo y la irregularidad regulada, el ritmo frenético. Podríamos decir que los tres están motivados: desde el punto de vista histórico, son las naturales consecuencias de la acumulación del recinto de los objetos culturales; desde el punto de vista filosófico son el punto de llegada de algunas necesidades ideológicas; desde el punto de vista formal son componentes de un “universal” barroco (Calabresi 1999: 92).

Nesse fragmento, dois pontos hão de corresponder diretamente à incessante produção de sonetos de Glauco: o policentrismo e o ritmo frenético. Ao primeiro, atribuímos o desenvolvimento das temáticas dos poemas. Mesmo que por todos perpasse o erotismo, na figura do pé, temos vários núcleos na poética de Mattoso, como a própria metalinguagem selecionada para este trabalho, os de feição lírica, aqueles que retratam a tortura e a opressão, os de cunho homossexual, entre outros. Ao ritmo frenético podemos destacar a recorrência de sonetos de estrutura semelhante quando tratam de um mesmo tema, o que por vezes os críticos destacam como sendo seu esvaziamento criativo. Além desses pontos, não podemos deixar de assinalar que, como Calabresi registra, todos eles estão ligados a um universal barroco, transitório. O “barrokismo”, conceito em que o poeta encaixa sua produção, é criado por Mattoso por este não conseguir visualizar sua obra a partir dos aspectos do neobarroco comumente mencionados por teóricos ou demais poetas. O que Calabresi apresenta para a estética neobarroca não é um conceito reformulado, mas sim a recorrência de traços tipicamente barrocos em toda sua multiplicidade. E mesmo negando a relação direta com o neobarroco, a obra de Mattoso acaba por dialogar inevitavelmente com diversos traços trazidos por essa corrente. Não dizemos com isso que ele se limita a tal epíteto, contudo certas reflexões a cerca das particularidades dessa corrente vão ao encontro também da poesia de Glauco. O quesito novidade, o qual exploramos por meio do poema “Concreto”, acrescentando também os comentários do poeta e teórico do neobarroco Cláudio Daniel, é uma das fraturas fundamentais características dessa estética. Octavio Paz desenvolve em Signos em rotação a relação entre imitação e novidade, a partir de Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

49

Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP) OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO

produções que pouco antecedem as de Mattoso. Seus comentários, entretanto, já preveem características que muito dialogam com a postura do poeta brasileiro, no que concerne a reutilização da forma soneto não como uma simples “cópia” dos antigos, já que: Para os antigos a imitação não só era um procedimento legítimo como um dever; com tudo, a imitação não impediu o surgimento de obras novas e realmente originais. [...] Se os artistas contemporâneos aspiram ser originais, únicos e novos, deveriam começar por colocar entre parênteses as ideias de originalidade [...] (Paz 1972: 135).

Desse modo, toda a defesa do uso do soneto que Glauco faz, apontando como a fase madura aquela em que perde a visão e se lança livremente ao sonetar, o dirige ao distanciamento das artes de vanguarda, aproximando-o justamente por isso dos neobarrocos. Ao dar outro significado à composição clássica, Glauco acompanha o movimento de retorno à tradição descrito por Claudio Daniel como “uma resposta à modernidade” (Daniel 2004, p.18). E esta característica da obra do poeta só nos foi possível alcançar a partir da grande quantidade de sonetos produzidos, principalmente pelos que versam sobre o próprio fazer, detalhando a mudança da fase visual para a cega como processo de amadurecimento, além de assinalar incessantemente que as transformações bem como a recusa por um fazer preso às novidades, sobretudo da forma, são atos altamente conscientes da sua escrita. Nisso reside o último ponto do neobarroco que notamos como pertinente em nossa análise, visto que ele fortalece o “maquinário sonetista” de Glauco como algo mais que apenas facilidade. Irlemar Chiampi (1994), professora e grande estudiosa do neobarroco na literatura latino-americana, no artigo “La literatura neobarroca ante la crisis de lo moderno” comenta sobre a autoconsciência como outro traço marcante dos neobarrocos, dizendo: Y, finalmente, el paradigma estético de la obra neobarroca es identificado por su autoconciencia poética, en calidad de superficie que exhibe su «gramática», que inscribe su pertenencia a la literatura (a un género, a un tipo de discurso); es tautológico, por sus gramas sintagmáticos, cuyos «indicadores hacen referencia al código formal que la genera». (Chiampi, 1994: 8).

Portanto, se voltarmos aos aspectos observados na poesia de Mattoso - a grande recorrência dos sonetos; a crítica que por várias vezes o poeta faz ao “sonetar” simples ou produzido sem uma linguagem própria; o prazer presente no texto e mais ainda na realização dos versos; o jogo entre os estereótipos fazendo da poesia um grande espaço de desmascaramento e a constante afirmação de suas especificidades – eles bem denotam a “autoconsciencia poética” na qual “exhibe su ‘gramatica’”, fazendo deste aspecto marca fundamental do “sonetar”.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

50

Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP) OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO

Os mais de cinco mil sonetos são produções autoconscientes e com isso não podemos afirmar que seu versar é aleatório. Glauco faz do soneto sua voz, uma voz por vezes incômoda que se acomoda no socialmente aceito para ser antissocial. Com isso não tentamos delimitar uma justificativa para sua obra, mas certamente outro olhar, que procura – nesse estranho comportamento do autor contemporâneo – as nuances de uma arte camaleônica que desaparece aos nossos olhos, integrando-se organicamente ao meio poético.

Considerações finais A poesia de Glauco Mattoso desperta e continuará despertando curiosidade por sua extensão, tema e forma. O trabalho poético do autor não rompe com tradições, não se mostra disfórico com a produção literária contemporânea, mas ganha identidade própria possivelmente por encobrir um embate direto e com isso ganhar seu lugar. O que pretendíamos aqui é lançar uma possibilidade de análise para esta obra que não se fizesse simplista, ou melhor, que desse atenção a esta “simplicidade”, que aparentemente possa ser a recorrência do uso do soneto, como meio para algo muito mais complexo e que retrata as mudanças quase imperceptíveis de um tempo que se mostra ligeiro para aqueles que o vivem e completamente lento para os que o observam. Cremos também que as relações com o barroco traçadas por Glauco e outros poetas esteja como um desses meios silenciosos de mudança, pelas particularidades que mostram como uma estética que se difere por não se diferir, ou ao menos não assumir representar como essencial a diferença com seus demais. Esperamos assim gerar mais discussões sobre as questões da estética contemporânea, e mais ainda da poesia de Glauco Mattoso, que possui muito, realmente muito, o que se explorar.

THE SONNETS IN THE GLAUCO MATTOSO’S WRITING Abstract: In this work, we intend to observe the development of the sonnets in Glauco Mattoso’s writing, not only as a mnemonic form, which contributed to his second stage writings – the blindness stage – but also as a characteristic of his literary project, present since his first writings. Thus, we have chosen six metalinguistic sonnets in which the poet draws a relationship with the literary tradition, in an innovative movement but, however, without ruptures, a characteristic that aligns his work to the other Neo-Baroque contemporaneous writers. Keywords: Glauco Mattoso; Sonnet; Neo-Baroque aesthetics; Metalanguage.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

51

Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP)

52

OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO

REFERÊNCIAS

ADOLFO, A. Composição: uma discussão sobre o processo criativo brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1997. AYALA, W. (Org.) Gregório de Matos Antologia poética. São Paulo: Ediouro, 1991. p.46. BARTHES, R. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1987. BENJAMIN, W. Charles Baudelaire : um lírico no auge do capitalismo. Trad: José Martins Barbosa; Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989. CALABRESI, O. La era neobarroca. Trad. Ana Giordano. 3.ed. Madrid: Catedra, 1999. CALIXTO, F. Para Glauco, os temas tratados. In: O poeta: Algumas opiniões sobre a poesia de Glauco Mattoso. Disponível em: http://glaucomattoso.sites.uol.com.br/opoeta.htm. Acesso em: 05/09/11. CANDIDO, A. O tempo do contra. In:______. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades, 2002. p. 369-379. CHIAMPI, I. La literatura neobarroca ante la crisis de lo moderno. In: Criterios. Revista de teoría de la literatura y las artes, estética y culturología. La Habana, nº 32, 1994, pp. 171-183 DANIEL, C. A escritura como tatuagem. In: ______. (Org) Jardim de camaleões. São Paulo: Iluminuras, 2004. p. 17-21. MATOS, G. Neste mundo é mais rico o que mais rapa. In: AYALA, W. (Org.) Gregório de Matos Antologia poética. São Paulo: Ediouro, 1991. p.46. MATTOSO, G. Precípuo. [Compositor]. In: FALCÃO. et. al. Melopéia sonetos musicados. São Paulo Rotten Records, 2001. 1 CD (68min). Faixa 16 (3 min 22 s). ______. 7 Chave de ouro. In: Sonetos de 0 à 100.1999. Disponível em: http://sonetodos.sites.uol.com.br/ATE0100.htm. Acesso em 04/07/11. (a) ______. 9 Censurado. In: Sonetos de 0 à 100.1999. Disponível http://sonetodos.sites.uol.com.br/ATE0100.htm. Acesso em 04/07/11. (a)

em:

______. 39 Concreto. In: Sonetos de 0 à 100.1999. Disponível http://sonetodos.sites.uol.com.br/ATE0100.htm. Acesso em 04/07/11. (a)

em:

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Winnie Wouters Fernandes Monteiro (UNESP/SJRP)

53

OS SONETOS NA OBRA DE GLAUCO MATTOSO

______. 43 Vanguardista. In: Sonetos de 0 à 100.1999. Disponível em: http://sonetodos.sites.uol.com.br/ATE0100.htm. Acesso em 04/07/11. (a) ______. Precípuo. In: Sonetos de 401 à 500. 2000. Disponível http://sonetodos.sites.uol.com.br/ATE0500.htm. Acesso em: 04/07/11 (b)

em:

______. 746 Da rima rara. In: Sonetos de 401 à 500. 2000. Disponível em: http://sonetodos.sites.uol.com.br/ATE0800.htm. Acesso em: 04/07/11 (c) NOTA. In: MATTOSO, G. de 0 à 100.1999. Disponível http://sonetodos.sites.uol.com.br/ATE0100.htm. Acesso em 04/07/11. (a)

em:

______. In: Sonetos de 401 à 500. 2000. Disponível http://sonetodos.sites.uol.com.br/ATE0500.htm. Acesso em: 04/07/11 (b)

em:

PAZ, O. Signos em Rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1972.

ARTIGO RECEBIDO EM 01/03/2012 E APROVADO EM 21/03/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

UM SINAL AINDA QUE NO VAZIO: A SUBJETIVIDADE E O MÍNIMO QUE É MAIS EM VERÃO EM BOTAFOGO, DE THIAGO CAMELO Larissa Andrioli (UFJF)1

Resumo: O presente artigo se propõe a apontar inicialmente os traços de uma nova subjetividade masculina na contemporaneidade. Primeiramente, expomos algumas reflexões e suposições acerca do estado da literatura atual, para, então, nos dedicarmos à leitura de uma obra específica, Verão em Botafogo, de Thiago Camelo. Esse artigo é um esboço inicial de um estudo maior e mais complexo sobre as mudanças na expressão masculina que afloraram na contemporaneidade. Palavras-chave: Subjetividade; Delicadeza; Thiago Camelo; Verão em Botafogo.

É, pode ser que a maré não vire Pode ser do vento vir contra o cais E se já não sinto os teus sinais Pode ser da vida acostumar Será, morena? (Los Hermanos – “Dois Barcos”)

Uma característica que salta aos olhos de quem lê e estuda literatura contemporânea é a multiplicidade da produção atual. Seja na poesia, seja na prosa, o que vemos hoje é uma diversidade significativa de linhas criativas na literatura brasileira. Essa questão é apontada em diversos estudos sobre a escrita Aluna do 7º período de Letras e bolsista de Iniciação Científica no projeto Prática política e poética – lugares da crítica hoje: permanência e superação do olhar modernista, sob orientação da Profª. Drª. Terezinha Maria Scher Pereira na Universidade Federal de Juiz de Fora. Contato: [email protected]. 1

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Larissa Andrioli (UFJF) UM SINAL AINDA QUE NO VAZIO: A SUBJETIVIDADE E O MÍNIMO QUE É MAIS EM VERÃO EM BOTAFOGO, DE THIAGO CAMELO

contemporânea, como nos livros Contemporâneos, de Beatriz Resende (2008), e Ficção brasileira contemporânea, de Karl Erik Schollhammer (2009), e parece ser, afinal, a grande marca da literatura contemporânea: uma produção interligada mais pela diversidade que pela semelhança do que produz. Ainda assim, é possível enxergar, aqui e ali, algumas linhas em que se agrupam autores de agora. Schollhammer fala numa literatura que tem urgência: esta seria a expressão de uma dificuldade em lidar com o mais próximo, fazendo com que o escritor contemporâneo só consiga a aceitar sua realidade ao olhá-la pela margem, nunca capturada diretamente (Schollhammer 2009: 11). Isso criaria uma demanda que seria expressa não só na retomada das formas já conhecidas de realismo, como também na maneira de lidar com a memória histórica e a realidade pessoal e coletiva. A partir disso, podemos esboçar algumas das linhas autorais contemporâneas. Começo pela escrita da violência, que me parece ser a mais forte representante dessa demanda de realismo. É muito bem marcada na prosa, em que conta com representantes como Marcelino Freire e a literatura marginal, que emerge com Ferréz, além daqueles que perpetuam o brutalismo de Rubem Fonseca (que ainda produz), como Ana Paula Maia e Patrícia Melo. Também é possível reconhecer a existência de uma linha ainda pouco analisada, mas que parece estar começando a se tornar objeto de atenção: a metaficcional. Alguns pesquisadores começam agora a mapear essa produção e é possível apontar já alguns autores que parecem ter uma preferência por fazer literatura sobre literatura, como Antônio Xerxenesky, Joca Reiners Terron e o já veterano Sérgio Sant’Anna. Os impulsos para a produção cada vez maior de textos que refletem sobre o ato de escrever e outras coisas que o circundam são ainda pouco estudados, mas começam a surgir apontamentos sobre o tema. Um outro viés, e é ele que aqui me interessa mais, é a escrita subjetiva e delicada, que vem ganhando força nos últimos anos, tanto na prosa quanto na poesia. Vencedor do Jabuti de 2009, O filho eterno, de Cristovão Tezza, é um dos grandes expoentes dessa vertente. O livro “é uma ficção que se apropria da experiência de vida” (Schollhammer 2009: 105). O mesmo crítico ressalta que há, tanto na literatura quanto na crítica contemporânea, uma revalorização “[d]a experiência pessoal e sensível como filtro de compreensão do real” (Schollhammer 2009: 106-107). Nessa mesma linha de uma maior sensibilidade na escrita, é possível citar também autores como Michel Laub, Carol Bensimon e Daniel Galera. Esses dois últimos interessam mais por trazerem um importante elemento para a análise que proporei: a melancolia. Recorrente na escrita dos dois, a melancolia parece preencher cada linha de seus livros, como é possível perceber em Sinuca embaixo d’água (Bensimon 2009), uma história cuja protagonista nunca aparece, senão pela visão de outras pessoas, visto que morreu num acidente. A narrativa gira em torno das pessoas que a cercavam e que agora só têm como vínculo entre si as lembranças sobre ela. O tom de perda que rege o livro faz com que ele seja dominado pela melancolia que domina, também, a vida das personagens que retrata. Algo parecido ocorre em Mãos de cavalo, de Galera (2006). Alternando entre presente e passado do Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

55

Larissa Andrioli (UFJF) UM SINAL AINDA QUE NO VAZIO: A SUBJETIVIDADE E O MÍNIMO QUE É MAIS EM VERÃO EM BOTAFOGO, DE THIAGO CAMELO

protagonista, relata uma busca de identidade marcada por lacunas e arrependimentos da adolescência que criaram um adulto amargo e, sobretudo, melancólico. A recorrência à experiência pessoal, à perda, à melancolia e à amargura não são traços que aparecem somente na prosa contemporânea; também na poesia é possível achar alguns representantes dessa expressão. Na mesma linha de Tezza, Fabrício Carpinejar publicou um livro de poemas em que trata da sua relação com seus filhos, um criado com ele, outro longe dele. O tom pessoal, chegando ao confessional, aproxima-se de O filho eterno não só pela temática da relação familiar, mas também por apresentar um pai que revê sua postura diante dos filhos, de forma sincera e arrependida pelas lacunas em seu papel como pai. Outros autores que podem ser vistos como representantes dessa emergente expressão subjetiva são Thiago Camelo, que lançou Verão em Botafogo em 2010, livro que relata sua experiência diante da separação, e Everton Behenck, que, em seu Os dentes da delicadeza (2010), apoia-se no comum e no cotidiano para impregnar de emoção com um apelo real e necessário, que foge da pieguice. Trataremos aqui, portanto, da poesia estritamente contemporânea. Uma opinião que soa como habitual hoje em dia é a de que, após o fim das vaguardas, a poesia brasileira teria empobrecido. Apesar de uma vitalidade quantitativa, teríamos também uma série de fatores paradoxais a isso: a mercantilização dos espaços de discussão, o espírito do auto-elogio, a midiatização da subjetividade, os meios de autopublicação e uma ausência de projeto A relativa falta de clareza de rumos da poética se refletiria na efervescência de tentativas de organizar o sentido de um contemporâneo carente de traços de sua própria identidade (Siscar 2006: 1863). Mas mesmo essa vitalidade do processo cultural carrega traços de melancolia. Lamenta-se um “neoconformismo político-literário” de uma geração que é regida pela apatia (Hollanda 1998:16 apud Siscar 2006: 1864), encarada como uma fase de transição e desencantos (Cavalcanti 2006 apud Siscar 2006: 1864). Mas o desinteresse pela poesia atual vem mesmo da incapacidade de lidar com os problemas do presente, o que acaba levando a uma canonização pouco crítica de poetas do passado, em detrimento dos atuais. Muito desse descaso tem a ver também com uma dita falta de ambição da poesia atual. O discurso acerca do descompasso entre a poesia e as grandes questões faz parte do discurso da modernidade. A questão aqui não é a existência ou não da crise, visto que, independentemente disso, o discurso da crise existe. Nesse contexto, preocupa-me o problema das mudanças discursivas e a emergência de novas possibilidades enunciativas. Na literatura contemporânea, vemos surgir a experimentação de novas subjetividades. A literatura, por esse lado, pode se permitir acolher manifestações vivenciadas de afeto que exprimem desejos e valores mais ligados à vida e à biografia do autor, bem como a existência de uma nova dicção literária que encaminha o discurso poético em direção a um minimalismo e a uma experimentação mais intimista.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

56

Larissa Andrioli (UFJF) UM SINAL AINDA QUE NO VAZIO: A SUBJETIVIDADE E O MÍNIMO QUE É MAIS EM VERÃO EM BOTAFOGO, DE THIAGO CAMELO

Em leituras recentes foi possível notar certo elo entre escritores diante da existência dessa melancolia e de uma carregada subjetividade masculina que incomodou por aparecer ligada ao cotidiano e à simplicidade da linguagem, recorrendo, sempre, ao que há de mais poético nas menores construções frasais. Dessa forma, aparecendo repetidas vezes, a questão foi se tornando algo cada vez mais sólido e não somente uma particularidade de um ou outro autor. Uma questão que parece pertinente aqui é a existência dos meios de autopublicação, como os blogs. É interessante que parta desse ponto as grandes críticas à qualidade literária de hoje, pois que deixa-se de olhar para o que está sendo produzido para focar somente em como esse material é articulado. O ceticismo com que se encara a literatura de hoje é impressionante. O site da Revista Época chegou a publicar uma matéria comparando nossa produção com a portuguesa, perguntando ao leitor por que a literatura lusa era tão melhor que a nossa. Ora, esse discurso da crise literária brasileira tem sido muito vendido, mas pouco estudado a fundo. É possível ouvir acusações de que a literatura não mais cria o novo, que usa somente da reescrita do que já foi publicado, que recusa as grandes questões da humanidade, que agora se atém ao banal, que não mais tem cuidado com a linguagem. Mas o que mais se vê nas discussões sobre literatura contemporânea é a relação que se produz entre a avaliação da “situação da poesia brasileira” e o discurso da crise. Como afirma Siscar: A suspeita sobre o esgotamento das possibilidades do literário não é exclusiva de nosso tempo [...] o discurso da crise, ou seja, do descompasso entre a poesia e as grandes questões da realidade, é um fenômeno da modernidade [...]. Eu diria que a poesia moderna surge desse sentimento de crise, afirmando-se a partir da crise, como discurso da crise, ou seja, como sentimento do colapso de seu lugar. (Siscar 2006: 65).

A partir dos sintomas de crise, haveria uma impossibilidade de definir os traços definitivos da produção atual? O certo é que se produz muito e que essa diversidade convive bem, seja num mesmo espaço virtual ou físico. Siscar vai contrapor à crise a ideia da cisma: “Pode-se reconhecer na poesia brasileira, nos seus melhores momentos, algo como uma cisma, uma hesitação desconfiada, uma atenção preocupada com relação àquilo que se apresenta como referência traumática ao passado imediato” (Siscar 2008: 47). É, portanto, de se pensar que haja naturalmente um estranhamento entre nós, que estamos vivendo sob o signo de nossa contemporaneidade, e tudo aquilo que nos aparece agora como produção literária. Presenciamos o surgimento de diferentes formas expressivas como o nascimento de um monstro, posicionamo-nos diante do novo julgando-o errado. A leitura de literatura, no entanto, exige um afastamento. O que nos causa espanto hoje pode ser, amanhã, recorrente o suficiente para não chamar mais a atenção. Esse afastamento não deve, de forma alguma, ser traduzido como apatia diante da obra; pelo contrário, a boa literatura opera transformações no leitor e ele deve estar aberto a isso. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

57

Larissa Andrioli (UFJF) UM SINAL AINDA QUE NO VAZIO: A SUBJETIVIDADE E O MÍNIMO QUE É MAIS EM VERÃO EM BOTAFOGO, DE THIAGO CAMELO

Entretanto, a leitura não deve ser feita fixando as obras a determinados momentos históricos nem deve ser justificada por fatos reais – a literatura, ainda que seja inspirada pela realidade, vai além disso, porque sua representação passa também por uma modificação. A verossimilhança não é a realidade. Uma paisagem ou uma cidade verossímeis continuam sendo criadas; nada faz com que sejam reais; são apenas representações, são apenas cópias. É evidente que as mudanças citadas inicialmente não provocaram transformações no discurso da prosa somente. A poesia, já citada ao falarmos em Siscar, vive um momento ainda mais tenso. Como criar uma obra poética que sobreviva à efervescência das publicações digitais e ao peso da tradição? Tampouco podemos assumir que a constante mudança das relações interpessoais não acabe por afetar a poesia, principalmente a poesia que versa sobre o sujeito e suas relações com o outro e consigo mesmo. Essas mudanças fazem parte de um rearranjo das identidades na contemporaneidade. A identidade só pode ser um problema quando está em crise, ou seja, quando algo que se supõe fixo é deslocado pela experiência da incerteza. As crises de identidade são características da modernidade tardia e sua centralidade nos debates só faz sentido quando pensada no contexto dos processos sociais que são característicos da vida contemporânea (Giddens 1990 apud Woodward 2000: 20). A crise ultrapassa o sujeito em si e abrange a sociedade em geral. Diante dessas mudanças sociais que provocam essa transformação identitária, a relação entre os sujeitos também foi transformada. Para afastar os estímulos vindos da velocidade da sociedade moderna, o homem se viu na obrigação de criar um falso individualismo, uma atitude blasé (Harvey 2010: 34). Além disso, é possível notar que a sociedade capitalista passou por uma profunda mudança na estrutura do sentimento. Houve uma significativa mudança na sensibilidade, nas práticas e nas formações discursivas do período pós-moderno, distinguindo-o de um período precedente. Apesar de abrir aqui a possibilidade de abordar diversos autores, o foco desse artigo será Thiago Camelo, que vem despontando na cena contemporânea como um expoente da linha poética que aqui será abordada. A escolha do autor se deu por este apresentar características interessantes para este trabalho e que serão desenvolvidas no decorrer deste. Dediquemo-nos, portanto, ao objeto escolhido. Verão em Botafogo (2010) é um livro sobre um coração partido. Mas não só. É também sobre como uma pessoa pode se fortalecer com o abandono e com ela operar uma transformação em seu mundo a partir da decepção amorosa. Transformação essa que pode ser definitiva em muitos sentidos: pode afastá-la para sempre de algo ou alguém, mas também pode fazer com que ela ressignifique uma série de elementos do seu mundo, às vezes fazendo, inclusive, com que o relacionamento que falhou tenha uma segunda chance. Thiago Camelo prima pelo pouco. E não falo aqui de falta de qualidade ou de profundidade. Seus versos são uma busca incessante da menor unidade poética carregada com o maior significado possível. Assim, podemos notar que sua poesia Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

58

Larissa Andrioli (UFJF) UM SINAL AINDA QUE NO VAZIO: A SUBJETIVIDADE E O MÍNIMO QUE É MAIS EM VERÃO EM BOTAFOGO, DE THIAGO CAMELO

parte sempre do mais cotidiano e tenta ser cada vez menor em tamanho (e maior em poesia). Ora, e por que nos parece interessante dedicar-se ao estudo dessa questão? Como já dissemos, há outras diversas mudanças de rumo na literatura brasileira contemporânea, mas essa em específico nos chama a atenção por mostrar uma mudança muito significativa na postura masculina diante da questão da melancolia, da perda e do amor. Único livro que Thiago tem publicado, Verão em Botafogo, começou a tomar forma num blog após uma separação. A editora conheceu seu trabalho, interessou-se e resolveu bancar o projeto. O resultado foi um livro carregado de sentimento e que acompanha uma trajetória subjetiva que tentaremos aqui analisar. Esse livro chama a atenção por trazer em si algo que chamaremos aqui de escrita da subjetividade, um traço não muito presente na figura literária masculina (obviamente guardando algumas exceções). O primeiro poema do livro, chamado “Reza-sal”, indica no primeiro verso a matéria do livro: a perda. esqueci o jeito da sua voz faço moinho venta mais seca a tristeza da praia de botafogo cuida de todas as lágrimas (Camelo 2010: 9).

Vemos também como para o sujeito poético o ambiente em que ele está absorve seu estado de espírito e mesmo o apoia, cuidando do que precisa de cuidado. É possível enxergar, portanto, uma cumplicidade entre ambiente e sujeito, numa possível retomada dos princípios Românticos, diferentemente de um outro tipo de produção contemporânea, que coloca o redor como alheio ao que se passa com o enunciador. meus pés encontram o chão e faz sentido eu, porto seu você, porto meu a vida não é uma abstração se estamos perdidos e juntos (Camelo 2010: 10)

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

59

Larissa Andrioli (UFJF) UM SINAL AINDA QUE NO VAZIO: A SUBJETIVIDADE E O MÍNIMO QUE É MAIS EM VERÃO EM BOTAFOGO, DE THIAGO CAMELO

O eu-poético é atingido pela compreensão do equívoco da separação. É possível ver que há, na visão do enunciador, uma identificação e uma confiança enormes na figura do outro. A relação parece ter sido baseada não em abstrações, mas em momentos sólidos. Em “Juntos”, vemos uma demonstração do que falei anteriormente sobre a tentativa de Thiago em carregar de sentido a palavra poética: dobra o horizonte pra mim (Camelo 2010: 11)

O verbo, aqui, possui duplo sentido: ao mesmo tempo em que pode significar multiplicação, também pode fala em divisão. Assim, vemos como cada sentimento na poesia de Thiago é depurado até restar às vezes um único verso que guarda em si outros sentimentos e palavras. Um pouco à frente no livro, o poeta volta na questão da identificação com o outro. palavras são grãos ajustam-se ao passo no espaço que nos afasta vamos ficando bem pequenos sumimos até toda frase lembrar nós (Camelo 2010: 13)

Ora, ao afirmar que as palavras ajustam-se ao passo, o eu-poético está afirmando o caráter adaptativo da linguagem. No caso, na vida a dois toda frase lembra “nós” porque a linguagem se adaptou, e cada um deles também se adaptou individualmente, para aos poucos perder sua total individualidade, confundindo-se um no outro. Em “Novembro em Botafogo”, o poeta vai falar sobre como o desejo convive com a rotina. cuidar dos dentes pra tomar café postura firme pra saber curvar dia cedo madrugada boa lembrar: distraído encontrar você sonhar Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

60

Larissa Andrioli (UFJF) UM SINAL AINDA QUE NO VAZIO: A SUBJETIVIDADE E O MÍNIMO QUE É MAIS EM VERÃO EM BOTAFOGO, DE THIAGO CAMELO

mas ser (Camelo 2010: 15)

Ao mesmo tempo em que pensa sobre atos simples do cotidiano, o eu-poético manifesta um desejo de encontrar a pessoa ausente, mas reafirma que, ainda que sonhando com um possível reencontro, não se pode esquecer de viver a vida real e cotidiana, como também aparece no poema “Reza-tempo”: atravesso rua planejo sonhos (Camelo 2010: 21)

No poema seguinte, “Terra (II)”, o poeta trata de como também seu corpo reflete a perda: já sabem de tudo mas sinto dos joelhos que doem à postura que me entrega (Camelo 2010: 16)

O eu-poético mostra, diante da ausência do outro, subordinação, humilhação e derrota, além de uma postura cabisbaixa, que faz com que todos percebam o que lhe ocorreu. No poema intitulado “Contudo, tento”, o poeta vai falar sobre sua poética do menos. o que falo é menor palavras são peso só quero tirar o peso dizer com o olhar o que se força com o olhar tudo é força deus, você – e eu sabemos que não existe verdade por que culpar por tentar ser? deus, você e eu ainda sem respostas Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

61

Larissa Andrioli (UFJF) UM SINAL AINDA QUE NO VAZIO: A SUBJETIVIDADE E O MÍNIMO QUE É MAIS EM VERÃO EM BOTAFOGO, DE THIAGO CAMELO

(Camelo 2010: 17)

Aqui, vemos como se estrutura a construção poética pautada no mínimo. A ideia é traduzir, no menor número de palavras, a força do olhar e a maior carga significativa possível. Há uma referência ao peso das palavras como uma forma de dizer que a linguagem, ao tentar traduzir os sentimentos, não é mais que um peso desnecessário. Passemos para o próximo poema, intitulado “Caixas”: a maioria dos risos dela é imaginação mas lembro de verdade dos dias em que ela riu quando eu disse quê? é coisa que só eu vou entender (Camelo 2010: 18)

É interessante como o poeta fala sobre algo já conhecido: a partir de uma perda, a tendência humana é inventar memórias sobre a pessoa ausente para preencher lacunas existentes no imaginário sobre aquela pessoa. Isso faz com que a lembrança de alguém perdido seja constituída basicamente de memórias inventadas. Por isso mesmo somente o eu-poético pode compreender o que refere no poema: faz parte de um universo íntimo, constituído por uma mistura entre memórias pessoais e memórias inventadas após a perda amorosa. Um pouco à frente no livro, nos deparamos com um poema que traz novamente a confusão de identidades provocada pela vida a dois; o que volta em outro poema mais próximo do fim do livro: se eu escrevesse sobre mim e você sobre você você escreveria sobre mim e eu sobre você (Camelo 2010: 34) nada ou certo tanto faz num talvez tão claro que dá vontade de tocar sonho coisas entre nossos espaços Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

62

Larissa Andrioli (UFJF) UM SINAL AINDA QUE NO VAZIO: A SUBJETIVIDADE E O MÍNIMO QUE É MAIS EM VERÃO EM BOTAFOGO, DE THIAGO CAMELO

aproximam o redor você e eu – mesmo sós nós (Camelo 2010: 46)

Está presente no poema também a ideia de que haveria uma conexão, um encaixe entre os amantes que apagaria as diferenças entre eles. No poema intitulado “Dia”, o poeta propõe uma reflexão: o mal da vida é não ser o que se é sem despedida (Camelo 2010: 38)

No poema, há um questionamento sobre o hábito humano de somente enxergar a vida em sua plenitude após perder algo. Aqui, o poeta se acusa de somente ver o que era bom em sua vida após a despedida da companheira. Encontramos também outro poema que versa sobre o cotidiano: sono a dois. dorme por mim na tv: bobagem amanhã, conto o que vi pra você que acorda em sonho vida a dois a gente e a liberdade de ser futuro quando chegar, conta do sonho pra mim (Camelo 2010: 44)

O cotidiano é visto aqui como a possibilidade de estender os laços da relação, visto que, na liberdade, enxergam a possibilidade de continuarem unidos. Ainda na temática do cotidiano, mas já pensando na perda, temos em “Inverno no Jardim Botânico” o eu-poético que se mostra, diante da perda, disposto a se agarrar a objetos que antes não faziam parte de seu cotidiano e que agora chegam mesmo a constituir parte dele: muita saudade flor lilás, ladeira, frio e vazio tudo o que não existia agora sou eu (Camelo 2010: 45)

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

63

Larissa Andrioli (UFJF) UM SINAL AINDA QUE NO VAZIO: A SUBJETIVIDADE E O MÍNIMO QUE É MAIS EM VERÃO EM BOTAFOGO, DE THIAGO CAMELO

Ao se terminar de ler o livro vislumbra-se uma resolução para a desilusão amorosa do eu-poético. Em “Agora”, ele faz um convite, demonstrando novamente uma sujeição ao outro, entregando-se para ser mudado: faz de mim aquilo que você gostava (Camelo 2010: 48)

Depois, em “Amor (II)”, desabafa sobre a complexidade de tentar reatar o relacionamento: tanto nó pra desatar e conseguir chegar (Camelo 2010: 49)

Mas continua a convidar um interlocutor para uma resolução, afirmando que nada que não diga respeito a eles deve se manter sólido, somente eles e o que deve ser superado importam agora: vamos uma distância um estranhamento uma ausência um deslocamento o resto se desfaz no que não é de nós (Camelo 2010: 49)

No penúltimo poema do livro, o poeta expressa por fim sua concepção de mundo, baseada na existência do ser amado, que, ainda que suposto em sonho, acolhe o eu-poético no vazio – o que ocorre de forma parecida na mulher inventada de Everton: se você não existisse mesmo assim seria ainda que no vazio teria qualquer sinal seu: um aviso de que a vida é feliz mesmo supondo você Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

64

Larissa Andrioli (UFJF) UM SINAL AINDA QUE NO VAZIO: A SUBJETIVIDADE E O MÍNIMO QUE É MAIS EM VERÃO EM BOTAFOGO, DE THIAGO CAMELO

num sonho ou no caminho de volta pra casa pensar acolhe (Camelo 2010: 51)

Finalmente encerrando o livro, há um poema de uma delicadeza ímpar, que fala sobre o reencontro com a pessoa perdida, que mostra uma insegurança causada pelo estranhamento mencionado no poema anterior, ainda que aparentemente disposta a um entendimento, o que pode ser visto pelos traços cada vez mais reconhecidos pelo eu-poético. A unidade dos dois é novamente exposta, dessa vez na semelhança das mãos. traços cada vez mais definidos toda gesto e voz segura e desprotegida riso num soluço de choro dedos grossos, mãos pequenas como as minhas (Camelo 2010: 52)

Assim, podemos notar em Thiago Camelo uma expressão poética atípica na figura masculina contemporânea. Essa escrita da delicadeza tem, no entanto, se mostrado mais presente na contemporaneidade, parecendo-me, portanto, que deva ser mais profundamente estudada. O que se trouxe aqui foi uma breve representação que aborda somente um dos escritores que demonstram a inclinação subjetiva, sendo, portanto, óbvio que deve e irá ser aprimorada tanto em quantidade de objetos quanto em profundidade de análise. Parece ser evidente, entretanto, que algo vem acontecendo na sociedade contemporânea para que sejam tantos os autores que, em meio à ebulição da literatura marginal e recheada de sangue e à tendência de se debruçar sobre a própria escrita, resolvam se voltar para o interior melancólico e complexo do ser humano. Talvez constitua um protesto, uma resistência à banalização pessoal e ao excesso de informação contemporâneos que impedem que nos aprofundemos uns nos outros. Talvez não. Em todo caso, investiguemos.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

65

Larissa Andrioli (UFJF) UM SINAL AINDA QUE NO VAZIO: A SUBJETIVIDADE E O MÍNIMO QUE É MAIS EM VERÃO EM BOTAFOGO, DE THIAGO CAMELO

EVEN IN THE EMPTINESS SOMETHING YOURS: SUBJECTIVITY AND THE MINIMAL THAT BECOMES MORE IN VERÃO EM BOTAFOGO, BY THIAGO CAMELO Abstract: The present article aims to start a study about a new male subjectivity in the present days. First, it presents some reflections and ideas about the current literature and then it is dedicated to the reading of a specific book, Verão em Botafogo, by Thiago Camelo. This article – that will be developed in the future – is an initial sketch of a bigger and more complex study about the contemporary changes in male expression. Keywords: Subjectivity; Tenderness; Thiago Camelo; Verão em Botafogo.

REFERÊNCIAS

BEHENCK, Everton. Os dentes da delicadeza. Porto Alegre: Não Editora, 2010. BENSIMON, Carol. Sinuca embaixo d’água. São Paulo: Companhia das Letras, CAMELO, Thiago. Verão em Botafogo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010. GALERA, Daniel. Mãos de cavalo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. HARVEY, David. A condição pós-moderna - uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2010. RESENDE, Beatriz. Contemporâneos. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008. SISCAR, Marcos. As desilusões da crítica de poesia. In: Congresso Internacional da ABRALIC, 10., 2006. Anais. Disponível em: , 2006. Acesso em: 18 set. 2011 _______. Poetas à beira de uma crise de versos. In: PEDROSA,Célia; ALVES, Ida (Org.). Subjetividades em devir. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. TEZZA, Cristovão. O filho eterno. Rio de Janeiro: Record, 2009. VENTICINQUE, Danilo; GIRON, Luís Antônio. Os donos do português. Disponível em: Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

66

Larissa Andrioli (UFJF) UM SINAL AINDA QUE NO VAZIO: A SUBJETIVIDADE E O MÍNIMO QUE É MAIS EM VERÃO EM BOTAFOGO, DE THIAGO CAMELO

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeus da (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.

ARTIGO RECEBIDO EM 01/03/2012 E APROVADO EM 19/03/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

67

PEDRA E GRAFIA: BREVE GENEALOGIA DA CULTURA CRÍTICA NA LEITURA DE POESIA CONTEMPORÂNEA Sandro Ornellas (UFBA)1

Resumo: Mapeamento comparado entre a poesia contemporânea brasileira e portuguesa, tomando os anos 1970 como ponto de viragem e algumas reflexões críticas de Cacaso e Joaquim Manuel Magalhães como parâmetros genealógicos que sugerem certos deslocamentos na leitura crítica e na produção lírica desde então. Por outro lado, mais do que se restringir à poesia, o artigo pretende tomá-la como base de apoio para uma reflexão sobre a virada na cultura estética e crítica dos últimos 40 anos, quando a própria produção cultural contemporânea passa a trazer embutida em si a memória da cultura estética da modernidade sob diversas formas. Palavras-chave: poesia brasileira contemporânea; poesia portuguesa contemporânea; literatura comparada; cultura crítica.

faz tanto tempo aquele tempo acabou e se passou passou daqui pra melhor (Torquato Neto) caminhar no deserto, reencontrar a magia das palavras e usá-las com maior ou menor inocência, como se a usássemos pela primeira vez, como se acabássemos de as desenterrar das areias. (Al Berto)

1 Professor de Literatura no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia, Doutor. E-mail: [email protected].

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Sandro Ornellas (UFBA) PEDRA E GRAFIA: BREVE GENEALOGIA DA CULTURA CRÍTICA NA LEITURA DE POESIA

69

CONTEMPORÂNEA

1. Quando estudamos a poesia dos anos 1970 do Brasil e de Portugal, dois personagens despontam como figuras tutelares, não apenas na produção poética dos seus respectivos países, mas também na discussão e polêmicas literárias e culturais de ambos. Refiro-me aos poetas e críticos Cacaso, no Brasil, e Joaquim Manuel Magalhães, em Portugal. A participação deles na vida literária de seus países emerge se notarmos o quanto suas propostas e intervenções marcaram época e ainda ecoam fortemente na atualidade, passados quase 40 anos. No Brasil, Cacaso aparece como o crítico da Geração Marginal dos anos 1970 – que, além do Rio de Janeiro, teve direta ou indiretamente manifestações semelhantes na Bahia, Paraná, Sergipe, São Paulo e Distrito Federal. Em Portugal, Joaquim Manuel Magalhães surge com o Grupo Cartucho e se destaca como o polêmico articulista de uma poética dos anos 1970, cujas intervenções encontram-se reunidas na publicação de 1981: Dois crepúsculos. Mas é principalmente a contemporaneidade de muitas das suas propostas críticas que se sublinha quando lemos mais detidamente seus escritos críticos em consonância com a poesia desde então escrita. Cacaso entra em produtiva tensão com as neovanguardas brasileiras dos anos 1950 e 1960 ao tentar compreender uma poesia mais voltada para a experiência cultural e cotidiana das novas gerações, para uma “pesquisa do convívio social brasileiro” (Cacaso 1997: 328), para uma “combinação de experimento e naturalidade” (Cacaso 1997: 41), que ele encontrará nos mestres modernistas sob a forma de uma “incorporação poética do coloquial como fator de inovação e ruptura com o discurso nobre acadêmico” (Cacaso 1997: 46). Por mais que não se possa considerar a produção dos anos 1970 como de ruptura e transgressão, mas de deslocamento e revisitação, tal atitude fará Cacaso estudar o que chamou de “lição dos mestres”, presente em Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, em artigos que, se não eram polêmicos, evidenciavam seu parti pris contra o puro experimentalismo oswaldiano, predominante nas décadas anteriores à sua. A experiência versus o experimentalismo e a rua versus a biblioteca, conforme esquema montado por Silviano Santiago em seu artigo “O assassinato de Mallarmé” (Santiago 2000), irão remodelar inclusive a recepção do próprio Oswald de Andrade na década de 1970, que deixará de ser arauto vanguardista para ser o catalisador do poema-piada e da alegoria jocoso-urbana do cotidiano brasileiro sob o signo da ditadura militar. “Lição dos mestres” é o nome de um capítulo dedicado a esses modernistas na coletânea póstuma de ensaios de Cacaso, Não quero prosa (1997). Já em Portugal, Joaquim Manuel Magalhães volta-se também contra o experimentalismo poético, que nos anos 1960 se expande pelo mundo2, e contra toda Nos anos 1950 e 1960, o viés neovanguardista, experimental e abstrato em matéria de escrita literária expandiu-se fortemente por inúmeros países. Decorrência da escolarização e institucionalização dos procedimentos técnicos e disruptores das vanguardas históricas, como Peter Bürger (1993) chama as do início do século. São exemplos disso o grupo brasileiro Noigandres, os franceses do Oulipo e do Nouveau Roman e o realismo maravilhoso latino-americano. 2

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Sandro Ornellas (UFBA) PEDRA E GRAFIA: BREVE GENEALOGIA DA CULTURA CRÍTICA NA LEITURA DE POESIA

70

CONTEMPORÂNEA

forma de abstração, impessoalidade e fragmentação formal em poesia. Numa espécie de cruzada crítica contra muitas das tendências neomodernistas então consideradas inovadoras, o crítico saudará nos anos 1970 lusitanos um retorno ao real e às histórias. As expressões “regresso às histórias” e “volta ao real” estão em um famoso poema de Magalhães, “Princípio”, publicado em Os dias, pequenos charcos (1981b), uma espécie de declaração de princípios, diferente do neo-realismo português de matriz socialista dos anos 1940 e 1950, declaração de uma volta à representação, à referência de uma possível realidade prévia à escrita e à recuperação de formas de narratividade poética. Como o próprio poeta-crítico escreverá em seu segundo livro de ensaios Um pouco da morte, “a poesia é uma queda na linguagem de certas formas emocionais da sabedoria. (...) Essa mimésis (sic) precisa para existir de deixar cair o que sabe na rede disponível que pode objectar para os outros o encontro íntimo com a descoberta” (Magalhães 1989: 226). Mesmo antes, já em Dois crepúsculos, saudando a poesia dos anos 1970, afirma que haveria “um ímpeto renovado de se contar (...) um discurso cuja tensão é menos verbal do que explicitamente emocional” (Magalhães 1981a: 258). Assim, Magalhães irá empreender o trabalho crítico de atualização de figuras modernistas espremidas entre o mito espetacularizado de Fernando Pessoa, o engajamento neo-realista contra o salazarismo e o abstracionismo vanguardista: Jorge de Sena, Vitorino Nemésio e Rui Cinatti são três desses nomes. Essa revalorização se dará, segundo Magalhães, como política de valorização também da poesia como “único espaço onde se pode esperar-se uma relativa grandeza em qualquer zona da nossa cultura” (Magalhães 1989: 203), única tradição efetivamente forte em Portugal em relação às outras artes, à ciência e à filosofia. Ou seja, há aparentemente um projeto identitário-cultural nesse investimento de Joaquim Manuel Magalhães sobre uma poesia mais referencializada, projeto que ele compartilhará também com outros poetas. Notamos que as propostas dos dois poetas-críticos não vêm no vácuo de desejos pessoais, mas da leitura atenta da produção contemporânea à sua. No Brasil, a poesia de Francisco Alvim, para quem Cacaso dedicava no momento da sua morte um longo ensaio, Mário Jorge, Ana Cristina César, Paulo Leminski, Waly Salomão e Chacal, por exemplo, têm vários elementos que podem ser vinculados à crítica de Cacaso. Na verdade, Cacaso pode ser lido como um sistematizador de uma poética complexa, variada e dispersa3. Suas intervenções ecoam até o presente de certa

3 Foi publicado em 2010, pela Editora José Olympio, uma antologia organizada por Ítalo Moriconi, intitulada Destino: poesia, justamente sobre a poesia dos anos 1970, composta de poemas de Cacaso, Paulo Leminski, Ana Cristina César, Waly Salomão e Torquato Neto. Todos já mortos. De onde se entende a exclusão dos cariocas, paulistas e brasilienses Chico Alvim, Chacal, Glauco Mattoso, Nicolas Behr, Geraldo Carneiro e Eudoro Augusto, mas não se entende, por exemplo, a exclusão do sergipano Mário Jorge. Na verdade, os poetas dos anos 1970 no Brasil passam por um verdadeiro momento de canonização, com a publicação das seus poemas completas e de estudos universitários exclusivamente dedicados a eles. O mesmo valendo para vários prosadores também. Afirmo – portanto – que estamos, na primeira década do século XXI para os anos 1970 como o pós-guerra estava para os modernismos do começo do século XX. Mas só daqui há alguns anos veremos como ficará esse cânone dos anos

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Sandro Ornellas (UFBA) PEDRA E GRAFIA: BREVE GENEALOGIA DA CULTURA CRÍTICA NA LEITURA DE POESIA

71

CONTEMPORÂNEA

forma, se pensarmos na produção mais antiga de Paulo Henriques Brito e no mais recente livro de Carlito Azevedo, Monodrama (2009) – nomeadamente dois dos principais nomes da poesia brasileira surgidos nos anos 1980 e 1990, respectivamente. A poesia de ambos empreende a busca bastante produtiva de síntese entre um sublime simbólico e uma alegoria dessublimada do cotidiano, sintaxe labiríntica e prosaísmo narrativo4. No século XXI, leio a poesia de Kátia Borges como também fortemente marcada por esse deslocamento que a crítica de Cacaso sintomatiza: cotidiano e experiência, cultura pop, uma dicção mesclada entre o coloquialismo dessublimado e o sentimento sublime e um marcado estilo narrativo. Do seu segundo livro, Uma balada para Janis (2009), destaco a passagem: Tão pouco, este meu suado salário, pelo qual agradeço, cada centavo, cada moeda de dez, cada níquel que sobra no bolso. [...] Tão pouco, este meu talento, pelo qual agradeço, estas mãos, que aprenderam cedo a ganhar o pão. E esta língua, que não sabe de línguas, mas fala de amor. [...] (Borges 2009: 14)

Guardadas as devidas diferenças, isso é analogamente próximo ao que se passou em Portugal. As intervenções de Magalhães são fundamentais também para se compreender e sistematizar poéticas tão diversas e complexas quanto as de João Miguel Fernandes Jorge e Al Berto, dentre outros. Ao lermos a poesia de Adília Lopes, já nos anos 1980, o que salta aos olhos é também todo o hábil jogo que a poeta faz entre autoficções poéticas, de um lado, e de forte narratividade e experiências culturais, do outro5. Já no século XXI, lê-se em um dos nomes mais representativos e polêmicos da poesia portuguesa atual, o de Manuel de Freitas, a sombra evidente de Joaquim Manuel Magalhães. Escreve Manuel em um poema do livro Beau séjour (2003): [...] Não gosto de lhe chamar destino mas houve uma espécie de sorte nesse azar imenso (estar vivo 1970, mas é certo que muitos dos desníveis de representatividade entre os diversos estados brasileiros continuarão. 4 A dialética do sublime e da dessublimação na modernidade e contemporaneidade é destacada em vários ensaios por Ítalo Moriconi, dentre os quais sublinho “Quatro (2+2) notas sobre o sublime e a dessublimação” (1998a), “Sublime da estética, corpo da cultura” (1998b) e “Pós-modernismo e volta do sublime na poesia brasileira” (1998c). 5 Sua Antologia brasileira da 7Letras/Cosac Naify, de 2002, inclusive, foi organizada e editada no Brasil por Carlito Azevedo.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Sandro Ornellas (UFBA) PEDRA E GRAFIA: BREVE GENEALOGIA DA CULTURA CRÍTICA NA LEITURA DE POESIA

72

CONTEMPORÂNEA

numa cidade indizivelmente bronca): Dois crepúsculos que a penosa biblioteca do liceu me fez seguir durante meses, deixando que a cicuta e o assombro se conformassem a ‘sons e sentidos’ que não eram, nem poderia ser, os meus [...] (Freitas 2003: 50).

A poética proposta por Magalhães, citado por Barrento, que deseja “Voltar junto dos outros, voltar / ao coração, voltar à ordem / das mágoas por uma linguagem / limpa, um equilíbrio do que se diz / ao que se sente” (Barrento 2000), baliza completamente as páginas da poesia de Manuel de Freitas. Poeta sem qualidades é o provocativo nome de uma antologia por ele organizada e prefaciada em tom de manifesto, em irônica provocação contra os “ourives de bairro, artesãos tardomallarmeanos, culturalizadores do poema digestivo, parafraseadores de luxo, limadores das arestas que a vida deveras tem” (Freitas 2002: 11)6. Em ambos os poetas-críticos, em suas intervenções, projetos e também nas avaliações mais contemporâneas da poesia que têm sido feita recentemente no Brasil e em Portugal (Amaral 1991; Moriconi 1998c e 2002; Barrento 2000; Martelo 2004 e 2007; Pedrosa, Camargo 2006; Pedrosa, Alves 2008), nota-se uma virada para a representação da experiência e para a discursividade do texto, em contraste com uma representação abstrata – ou mesmo uma antirrepresentação – e a fragmentação discursiva das experiências vanguardistas, uma virada para o cotidiano e para o mundo, ao contrário da ideia de progresso formal das neovanguardas dos anos 1950 e 1960, uma virada para a vida e, sobretudo uma vontade de comunicabilidade, ao invés do elogio do silêncio e da incomunicabilidade de muitos modernismos. Em contraste com o modernismo canônico nos anos 1940 e 1950 (Moriconi 2002: 66-70), que dará combustível às neovanguardas dos anos 1950 e 1960, de perfil metaliterário, lúdico, antipoético, de quebra de gêneros e das alegorias da incomunicabilidade, os dois poetas-críticos voltam a buscar o leitor (Martelo 2004: 256-8), procuram-no nas linhas e entrelinhas dos poemas, no discurso produtor das múltiplas subjetividades. Nisso, tanto Cacaso quanto Joaquim Manuel Magalhães estão absolutamente sincronizados com a emergência entre fins dos anos 1960 e início dos anos 1980 do que o crítico alemão Andreas Huyssen chamará de O grande divisor (1997) entre a tradição literária do alto modernismo e novas tendências culturais do pósmodernismo.

Da bibliografia sobre as diatribes da década de 1970 até a antologia Poetas sem qualidade, destaco os artigos de Rosa Maria Martelo “Reencontrar o leitor: alguns lugares da poesia contemporânea” (Martelo 2004: 237-59), “Tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961” (Martelo 2007: 09-51), e os artigos de Ida Alves “Os poetas sem qualidade na poesia portuguesa recente” (Pedrosa, Camargo 2006: 217-227) e “O conflito de opiniões na poesia portuguesa: o esterco lírico e o grito do anjo” (Pedrosa, Alves 2008: 118-136).

6

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Sandro Ornellas (UFBA) PEDRA E GRAFIA: BREVE GENEALOGIA DA CULTURA CRÍTICA NA LEITURA DE POESIA

73

CONTEMPORÂNEA

2. Algumas categorias pelas quais se caracterizou a grande tradição da literatura moderna, tais como vanguarda, negatividade crítica, ruptura, fragmentação, despersonalização, símbolo, dissonância e choque, pareceram aos poucos dividir espaço crítico com as categorias de pós-vanguarda, narratividade, subjetivação discursiva, pop, alegoria, experiência histórico-cultural. É justamente esse deslocamento que são flagrados nas leituras das reflexões de Cacaso e Magalhães em proximidade com poetas que começaram a criar depois dos anos 1970. De uma ênfase na experiência da linguagem, que vai estar na base criativa de centenas de originalíssimos criadores, parecemos nos deslocar paulatinamente, mas não homogênea nem uniformemente, para uma ênfase na comunicação da experiência cultural na literatura. Desde os poetas-críticos, que aqui são tomados como modelos, percebemos formas estratégicas de figuração para criar espaços de comunicabilidade com os leitores. Vejamos um exemplo de Cacaso em “Hora do recreio”: O coração em frangalhos o poeta é levado a optar entre dois amores. As duas não pode ser pois ambas não deixariam uma só é impossível pois há os olhos da outra e nenhuma é um verso que não é deste poema. Por hoje basta. Amanhã volto a pensar neste problema (Moriconi 2002: 63).

E outro exemplo, sem título, do Joaquim Manuel Magalhães poeta: Sentamo-nos à beira de água. Meditamos com as mãos molhadas como a morte chega e nos toma para formas que não conheceremos nunca. Estamos com o corpo cansado, com os olhos postos na água passando, algumas flores movendo-se. (...) Somos tão rápidos que vai mais lenta a água do que nós para onde será vapor, coisa ínfima, espaço só olhado por deus (Magalhães 1974: 53).

Para além do tom mais modernista-coloquial em Cacaso e mais clássicoreflexivo em Magalhães, vemos ambos elaborar alegorias poéticas sobre conceitos tradicionais – o impasse amoroso e a brevidade da vida –, formados por uma espécie de decoro de verossimilhança, na qual sujeitos, espaços e tempos são representados com unidade, discursividade e legibilidade. Tudo muito bem delineado e ajustado de

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Sandro Ornellas (UFBA) PEDRA E GRAFIA: BREVE GENEALOGIA DA CULTURA CRÍTICA NA LEITURA DE POESIA

74

CONTEMPORÂNEA

forma a recusar o tipo de textualidade do alto modernismo, calcada geralmente em modelos de grande densidade simbólica, fragmentação e opacidade linguística. A genealogia da cena contemporânea de poesia indica os anos 1970 como um momento em que a contemporaneidade estética formula práticas que até hoje atuam e modulam fortemente perspectivas. Localizar dos discursos de Cacaso e Magalhães nos anos 1970 é buscar possíveis começos, bem como tratar os neomodernismos dos anos 1950 e 1960 como manifestações já históricas, institucionalizadas escolar e culturalmente. Um ciclo já relativamente encerrado no que respeita aos seus programas, proposições, polêmicas e procedimentos. A década de 1970 também possibilita pensar ambos os países dentro da grande onda histórica que tomou conta de boa parte do mundo com as sociedades massificadas de consumo e de tecnologia de informação. Essa genealogia flagra entre os fins dos anos 1960 e o início dos anos 1980 o momento em que se organiza uma teoria das vanguardas (Bürger 1993 [1973]), organiza-se uma leitura estruturada da lírica moderna (Friedrich 1978 [1968]), começa a se tornar cotidiana uma nova sociedade, baseada na propaganda de massa, em novas mídias, no pop e no consumo (Jameson 1997), inicia-se uma efetiva política de alfabetização em massa tanto em Portugal quanto no Brasil (Santos 1996: 17-8; Santiago 2004: 129), por exemplo. Daí que muitas das propostas de Cacaso e Joaquim Manuel Magalhães continuam vivíssimas e em franca, e talvez majoritária, visibilidade no que respeita não apenas à poesia, mesmo que haja resíduos vanguardistas em produções poéticas e críticas contemporâneas que ainda operam pelo olhar da total autonomia da linguagem artística. Nessas metamorfoses, novas sensibilidades parecem dar ao conceito de representação um incremento, ganhando também o âmbito da poesia. Um novo boom da poesia acontece no Brasil e em Portugal desde os anos 1990, com novas editoras e vários jovens poetas se lançando, publicando livros independentes e renovando a palavra poética escrita. Tudo isso se radicalizou no século XXI, com as novas tecnologias de comunicação e a internet. A poesia na rede criou grupos de discussão, novos poetas, modas, leitores e leituras, menos ou mais presos aos cânones de interpretação histórico-escolares. A poesia contemporânea – tomada a partir dos olhares, que aqui se querem paradigmáticos, de Cacaso e Magalhães – parece quer voltar a correr mais próxima da sociedade e da experiência histórico-cultural. Daí que buscar constituir um pouco dessa memória se mostra necessário no mapeamento da cultura contemporânea. Essa nova poesia parece buscar o leitor através de outros pactos de leitura e da reutilização da alegoria como forma de contrato interpretativo da realidade. A alegoria – através das figuras e imagens dos próprios contextos – faz da poesia um documento que constrói novas formas de experiência histórico-cultural, e dos poetas verdadeiros pensadores da cultura. Vejamos exemplos disso em dois jovens poetas, um português e um brasileiro, Gonçalo M. Tavares e Dirceu Villa. Ambos usam a figuração para formular traços de uma cultura contemporânea cuja memória se apresenta por construir e, ao mesmo Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Sandro Ornellas (UFBA) PEDRA E GRAFIA: BREVE GENEALOGIA DA CULTURA CRÍTICA NA LEITURA DE POESIA

75

CONTEMPORÂNEA

tempo, já arruinada. Cacos da memória cultural, que também é memória da própria poesia e da sua tradição. O primeiro costuma fazer dos seus poemas espaços para alguma imagem meditativa ou para alguma breve narração construída em versos elípticos, como em “Alexandria” (2005): Na mesa de Alexandria seis homens Mastigavam. A mulher trazia os líquidos numa jarra inclinada, E a criança deslocava à vontade Para a cidade mais próxima. Havia um certo alvoroço estético. A criança chorava e apontava para o Mapa, a Mulher defendia a qualidade do vinho frente aos Forasteiros, e a parede havia sido classificada como vertical Há quinhentos anos, [...] E tudo isto se passou em Alexandria Numa mesa (Tavares 2005: 104).

O segundo constrói alegorias de uma experiência da cultura ocidental transformada nas ruínas da vivência cotidiana, como no poema “Camões” (2008): Camões está diante de mim na Biblioteca Municipal: é de metal como os ditadores e cego como os visionários. Um aperto de mãos e, no bronze, a brusca rugosidade da mão de soldado – um bom camarada, de fato –; [...] E o livro que leva não é Os Lusíadas, mas os Sonetos, porque o principal, enfim, ele diz: sempre a beleza. [...] Poucas palavras, nos despedimos, preciso almoçar. Um cavalheiro, e de fato, não é de metal, ao menos, não sua mente: límpida água (Villa 2008: 40).

Os poemas aqui citados abrangem o período dos últimos quarenta anos de poesia no Brasil e em Portugal. Exemplos, mas não exemplos quaisquer, pois legíveis,

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Sandro Ornellas (UFBA) PEDRA E GRAFIA: BREVE GENEALOGIA DA CULTURA CRÍTICA NA LEITURA DE POESIA

76

CONTEMPORÂNEA

parafraseáveis e poderosamente poéticos, de poetas e poéticas exemplares desse arco histórico dos dois lados do Atlântico.

3. Daí que é lugar comum hoje se afirmar que a poesia é lida – sobretudo, se não exclusivamente – pelos próprios poetas. Que assim seja, tal assertiva só justifica a percepção de que são os próprios poetas que guardam a memória, pela leitura, da poesia produzida ao longo dos anos, ao longo da história. A história da poesia é formada por inúmeras e diversificadas linhas e tradições, às quais os poetas se filiam ou recusam a depender de como leem os próprios poetas. E o lugar para se conhecer os poetas e os poemas que são lidos, e como eles são lidos, não é necessariamente nas suas entrevistas, diários ou aventuras críticas, mas nos seus textos poéticos. É nos poemas que está a memória da própria poesia, é neles que se guarda, se revisa e se reelabora palavras, versos, ritmos, formas, signos, imagens canônicas ou não, préfabricadas ou surpreendentes à história – pouco importa. É por meio dessas operações de escrita-e-leitura que os poetas se agrupam em famílias coerentes ou contraditórias, harmoniosas ou tensas. E a poesia se faz, assim, um lugar privilegiado para se estudar a história e a memória cultural. Sobre essa memória, assim como ler é reescrever o já lido, escrever é ler o já escrito. É o que – sobre as categorias de leitura e escritura que dominam salas de aula desde aproximadamente os anos 1960 – asseveram diversos autores. Enquanto o crítico Roland Barthes afirma que “quanto mais plural é o texto, menos está escrito antes que o leia” (Barthes 1992: 43), a poeta Fiama Hasse Pais Brandão escreve no poema “O texto de João Zorro” (2006) que Levando ao limite, homenagem, o gesto da escrita, posso atribuir os [meus textos a joao zorro. Existimos sobre o anterior. O movimento da escrita e da [leitura exerce-se a partir da menor mutabilidade aparente da pedra e da maior mutabilidade da grafia. O progresso dos textos é epigráfico. Lápide e versão, indistintamente (Brandão 2006: 173).

Escrever a própria poesia – grafia e versão –, portanto, seria ler a poesia alheia do passado – pedra e lápide – e a contemporânea; ler obliquamente, levado pelo desafio da emulação, da laudatória, da paródia, do pastiche, do diálogo e do intertexto e pela imaginação – realista ou não. Arte e engenho. E ler a poesia alheia seria ler uma poderosa máquina de inscrição da memória cultural: nações, raças, sujeitos, sexualidades, regionalidades e afecções diversas são tópicos permanentes da tradição lírica, aos quais são somados outros, próprios de cada tempo histórico. Ler a poesia alheia e passada também seria ler os suportes mesmos de impressão dessa memória poética, no limite, os corpos individuais, históricos e/ou políticos que os sujeitos vestem com seus discursos. Escrever poesia, dessa forma, seria discutir esses Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Sandro Ornellas (UFBA) PEDRA E GRAFIA: BREVE GENEALOGIA DA CULTURA CRÍTICA NA LEITURA DE POESIA

77

CONTEMPORÂNEA

corpos, submetê-los à leitura alheia, presente e futura, entre o canto público da epicidade e a experiência fingidamente privada do lírico, entre a tradição trágica e a tradução dramática, entre o eu e o outro – esses seriam alguns dos “nós” da poesia no espaço curvo da história. Se a poesia é uma escrita e simultaneamente um saber de si, ela – por esse saber – se dobra no espaço público do mesmo como uma escrita e um saber do outro. O regresso da alegoria – “dizer o outro”, etimologicamente – na poesia é sintoma forte dessa memória. Por isso Rosa Martelo prefere para a poesia contemporânea o termo “deslocamento” a “ruptura” (2007: 42), pois é uma memória da própria modernidade que regressa com a alegoria, a memória de uma outra modernidade, presente já em Baudelaire, que, como afirma Alfonso Berardinelli, “ainda escreve ensaios em versos: ainda há mais energia prosaica, descritiva e discursiva nas Fleurs du mal do que nos Petits poèmes em prose” (Berardinelli 2007: 177), procedimento que depois será retirado de cena, até do próprio Baudelaire, por leituras como a de Hugo Friedrich e a concepção valéryana de poesia pura. Mesmo a memória da poesia anterior à modernidade baudelairiana regressa, pois devemos lembrar que a presença do impulso alegórico no poeta do spleen por Benjamin queria ressaltar justamente a presença da experiência e da memória histórico-cultural em conjunto com uma vivência moderna, alienadora, impactante e fugaz. A alegoria é essa memória, é a estampa dessa presença, é sua inscrição material, simultaneamente pedra e grafia; e também epígrafe, pois “o progresso dos textos é epigráfico”, segundo Fiama Brandão (2006). É o que reconhecem Torquato e Al Berto, nas epígrafes a este texto. Pensar essa questão na contemporaneidade, naquilo que esta possui de mais singular, pode por fim se apresentar como um problema central a se investigar em matéria de poesia e poemas, mas com um enfoque diverso das noções de “memória lírica” e “memória pós-lírica”, presentes na poesia moderna (Britto 1998). A memória genealógica da poesia contemporânea não é necessariamente buscada no intertexto explícito do poema, mas no que sua malha imagética e procedimentos formais utilizados possuem de articulações possíveis com outros (con)textos poéticos – lápide e versão. Não é possível nem necessário se recontar uma história das relações, influências e leituras que poetas fazem ou fizeram de outros poetas e poemas, mas montar laços e vínculos entre poetas e poemas que criem redes familiares de poetas, em que a leitura de um ilumine e revise a leitura de outro, e ambos auxiliem na reformulação dessas memórias poéticas e dessa memória (ou esquecimento) recente das relações luso-brasileiras a partir da experiência do presente, das imagens culturais que são elaboradas, e não proveniente da experiência simplesmente autorizada pelo passado.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Sandro Ornellas (UFBA) PEDRA E GRAFIA: BREVE GENEALOGIA DA CULTURA CRÍTICA NA LEITURA DE POESIA

78

CONTEMPORÂNEA

STONE AND SPELLING: A BRIEF GENEALOGY OF THE CONTEMPORARY POETRY REVIEW Abstract: This paper aims the comparative mapping between Brazilian contemporary poetry and Portuguese contemporary poetry, assuming the 70's as the turning point for both of them. It also takes on the assumption that Cacaso’s and Joaquim Manuel Magalhães’ works are the genealogical parameters for the the displacements in reading review and in poetry since then. This text identifies Cacaso’s and Magalhães’s contribution as a support for changes in the aesthetical and critical culture in the last 40 years, when the contemporary cultural production itself carries the aesthetic modernity remembrance, in many different ways Keywords: contemporary Brazilian poetry; contemporary Portuguese poetry; comparative literature; critical culture.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Fernando Pinto do. Mosaico fluido: modernidade e pós-modernidade na poesia portuguesa mais recente. Lisboa: Assírio e Alvim, 1991. AZEVEDO, Carlitos. Monodrama. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. BARRENTO, João. Um quarto de século de poesia portuguesa. In: Semear, Revista da Cátedra Padre Antonio Vieira de Estudos Portugueses. n. 4, Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2000. Disponível em: . BARTHES, Roland. S/Z. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. BERARDINELLI, Alfonso. Poesia e gênero lírico: vicissitudes pós-modernas. In: ______. Da poesia à prosa. São Paulo: Cosac Naify, 2007. BORGES, Kátia. Uma balada para Janis. Salvador: P 55, 2009. BRANDÃO, Fiama Hasse Pais. Obra breve: poesia reunida. Lisboa: Assírio e Alvim, 2006. BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e memória. In: PEDROSA, Célia; MATOS, Claudia; NASCIMENTO, Evando (Org.) Poesia hoje. Niterói: EDUFF, 1998. BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Lisboa: Veja, 1993. CACASO. Não quero prosa. Rio de Janeiro: EDUFRJ; Campinas: EDUNICAMP, 1997. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Sandro Ornellas (UFBA) PEDRA E GRAFIA: BREVE GENEALOGIA DA CULTURA CRÍTICA NA LEITURA DE POESIA

79

CONTEMPORÂNEA

FREITAS, Manuel de (Org.). Poetas sem qualidades. Lisboa: Averno, 2002. ______. Beau séjour. Lisboa: Assírio e Alvim, 2003. FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978. HUYSSEN, Andreas. Memórias do modernismo. Rio de Janeiro: EDUFRJ, 1997. JAMESON. Fredric. Pós-modernismo ou a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997. LOPES, Adília. Antologia. São Paulo: 7Letras/Cosac Naify, 2002 MAGALHÃES, Joaquim Manuel. Consequência do lugar. Lisboa: Moraees Editores, 1974. ______. Dois crepúsculos: sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas. Lisboa: A regra do jogo, 1981a. ______. Os dias, pequenos charcos. Lisboa: Editorial Presença, 1981b. ______. Um pouco da morte. Lisboa: Editorial Presença, 1989. MARTELO, Rosa Maria. Em parte incerta. Estudos de poesia portuguesa moderna e contemporânea. Porto: Campo das Letras, 2004. ______. Vidro do mesmo vidro. Tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961. Porto: Campo das Letras, 2007. MORICONI, Italo. Como e por que ler a poesia brasileira do século XX. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. ______. Destino: Poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. ______. Pós-modernismo e a volta do sublime na poesia brasileira. In: PEDROSA, C.; MATOS, C.; NASCIMENTO, E. (Org.) Poesia hoje. Niterói: EDUFF, 1998c. ______. Quatro (2 + 2) notas sobre sublime e dessublimação. Revista Brasileira de Literatura Comparada. N. 04, Florianópolis: ABRALIC, 1998a. ______. Sublime da estética, corpo da cultura. In: ANDRADE, A. L.; CARMARGO, M. L. de B.; ANTELO, R.; ALMEIDA. T. V. de (Org.). Declínio da arte, ascensão da cultura. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1998b. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Sandro Ornellas (UFBA) PEDRA E GRAFIA: BREVE GENEALOGIA DA CULTURA CRÍTICA NA LEITURA DE POESIA

80

CONTEMPORÂNEA

PEDROSA, Célia; CAMARGO, Maria Lúcia de Barros (Org.). Poéticas do olhar e outras leituras de poesia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. ______; ALVES, Ida (Org.). Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. SANTIAGO. Silviano. Uma literatura nos trópicos. 2 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. ______. O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: EDUFMG, 2004. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. São Paulo: Cortez, 1996. TAVARES, Gonçalo M. 1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. VILLA, Dirceu. Icterofagia. São Paulo: Hedra, 2008.

ARTIGO RECEBIDO EM 29/02/2012 E APROVADO EM 25/03/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

UM GRITO DE DESESPERO: DIÁLOGOS PARA UMA FILOSOFIA DA MORTE EM IVAN JUNQUEIRA E EMIL CIORAN Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS)1

Resumo: Este artigo pretende estabelecer uma aproximação entre o pessimismo filosófico de Emil Cioran e a obra A sagração dos ossos (1994), de Ivan Junqueira. Busca-se investigar na obra do poeta um espaço propício para uma filosofia da morte e do morrer a partir da experiência de vida como agonia prolongada, que atravessa o pensamento do filósofo romeno. Neste sentido, à luz de uma filosofia pessimista é possível tomar a poesia de Ivan Junqueira como uma celebração e caminhar para a morte. Palavras-chave: Morte; Desespero; Poesia; Filosofia.

Pode um encontro entre filosofia e literatura ser, aparentemente, tão antigo quanto à existência destes campos? Até que ponto filósofos valeram-se da literatura para filosofar, e até que ponto poetas valeram-se de temas filosóficos para a criação literária? Dos diálogos entre os discursos às hierarquizações dos campos, dos pontos de encontro aos de diferenças, de Platão a Mário de Andrade (Nunes 2010), de Blanchot a Derrida, de Schopenhauer a Yukio Mishima, de Cioran a Ivan Junqueira tem-se um diálogo onde um campo fecunda no outro, como bem mapeado pelo crítico Benedito Nunes (2010). Se desde o nascimento da filosofia ocidental a questão do mito possibilitou a problemática filosofia/literatura, se Nietzsche ou Jean-Paul Sartre põem em xeque os limites dos campos, podemos aqui buscar um espaço para que estas áreas tenham contato, “hibridizá-las, torná-las uma a extensão da outra, sem que seus lugares respectivos de produção se percam” (Nascimento 2004: 51). Se é próprio da filosofia estabelecer tal diálogo (Pareyson 2005), ambas – filosofia e literatura – podem ser reconhecidas como artefatos da linguagem. Confluências. É possível, então, um encontro entre o filósofo romeno Emil Cioran e o poeta contemporâneo Ivan Junqueira? Se, por um lado, Cioran flerta com a literatura em 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Email: [email protected].

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) UM GRITO DE DESESPERO: DIÁLOGOS PARA UMA FILOSOFIA DA MORTE EM IVAN JUNQUEIRA E

82

EMIL CIORAN

sua escritura, levando os campos ao limite – e isso se evidencia quando o filósofo dá um “adeus à filosofia” (Cioran 1989: 54) e aos sistemas –, por outro, a obra de Ivan Junqueira torna-se propícia para um mapeamento de temas filosóficos. Emil Cioran é considerado hoje o mais pessimista dos filósofos, partindo sua filosofia da dor da existência e da ausência de sentido no mundo. Tomaremos aqui a primeira obra do filósofo, escrita em romeno e depois traduzida para o francês, Sur les cimes du désespoir (1990), onde destacam-se quatro grandes temas: desespero, agonia, tristeza e sofrimento. É então, nos cumes do desespero, que a vida se revela angustiante e miserável; um caminhar para a morte, pura e sublime. Esses temas que sobressaem nos Cimes podem ser mapeados também na poesia de Ivan Junqueira em Sagração dos Ossos (1994), propondo uma filosofia da morte, pois discorrer sobre os sentidos da morte permite-nos pensar a vida; morte que é imanente à vida, que atesta o drama da finitude. Se a morte é propriamente “a musa da filosofia” (Schopenhauer 2000: 59), ou “filosofar é aprender a morrer” (Montaigne 2010: 59), na literatura ela tem lugar privilegiado, já que a linguagem ganha vida na morte (Blanchot 1997); uma potência de morte. Portanto, das aproximações do filósofo pessimista com o poeta carioca resulta numa queda para o abismo, onde cada passo na vida leva a outro para a morte.

1. Êxtase da morte: algumas problematizações Descobri-me profundamente imerso num desejo de morte. Era na morte que eu havia encontrado meu real objetivo na vida. (Yukio Mishima)

Muitos foram os filósofos que se ocuparam do filosofar a morte, bem como muitos foram os poetas que a cantaram. Problema filosófico, gênio inspirador, temida e adorada, nem sempre a morte teve seu devido lugar no seio da sociedade, pois cada geração atribuiu-lhe particularidades e modos distintos de experiência (cf. “Sobre a Experiência”, Montaigne 2010: 508). Intenta-se não percorrer um curso da morte, mas chegar à tese de que a morte põe em xeque a existência. Mas como problematizá-la e adorá-la, com poetas e filósofos, se não amá-la? Seguindo com Emil Cioran é possível não amá-la, pois a morte causa sempre temor, essa terrível certeza grave e sinistra, mas sim admirá-la. Um exercício de admiração (Cioran 2011). Assim também é a poética junqueiriana: um exercício de admiração da morte. Morte que é tema privilegiado na obra de Junqueira, d’Os Mortos (1964) à Rainha Arcaica (1980), desaguando na Sagração, fazendo de sua poesia evento tão visceral quanto à morte. A presença da morte diante do homem, este animal jogado na vida (Artaud 1985) como uma pedra em direção à morte, causa uma intensidade dramática vista por dois pontos conceituais: ansiedade e temor. Infiltrada na vida, as pulsões da ansiedade de morte levam ao suicídio como incapacidade de ajustar-se no mundo, muito facilmente engendrando a angústia, autodestruição (cf. Pinguet 1987), mal de Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) UM GRITO DE DESESPERO: DIÁLOGOS PARA UMA FILOSOFIA DA MORTE EM IVAN JUNQUEIRA E

83

EMIL CIORAN

viver (Thomas 1983). Já o temor resulta numa ação de temer a morte e os mortos (temor aos mortos, cf. especialmente: Vovelle 1996; Elias 2001), isto porque a morte é sempre triunfante, não há como fugir de seu fantasma. Temer a morte é sempre partir rumo a um conforto, a um porto seguro, a um consolo. Sintomáticas são as primeiras linhas do Livro Tibetano dos Mortos (1972: 9), segundo as quais “o homem contemporâneo procura na ciência e na tecnologia a mesma segurança que o primitivo tentou encontrar nos rituais, e que os nossos antepassados mais recentes buscaram na fé religiosa”. Assim, “representar a morte não é apenas vivê-la em imagens, em nossos sonhos, obsessões, impulsos, para desejá-la ou temê-la; é também materializá-la em frases, formas, cores, sentidos”2 (Thomas 1983: 186). Ao acolhermos a concepção de Louis-Vincent Thomas (1983) de materializar a morte, podemos tratá-la como imanente à vida, onde morte e vida se mesclam. Mas, neste movimento, estaríamos atestando a morte do homem em vida ou um estar a morrer? O pensador do Renascimento Michel de Montaigne (2010) responde: A contínua obra de vossa vida é construir a morte. Estais na morte enquanto estais em vida, pois estais depois da morte quando não mais estais em vida. Ou, se assim o preferis, estais morto depois da vida, mas durante a vida estais morrendo e a morte toca bem mais brutalmente o moribundo que o morto, e mais viva e mais essencialmente (Montaigne 2010: 78).

Estar a morrer, na via do pensamento de Montaigne, tem duas concepções em si antagônicas: a primeira, a morte para os que estão vivos – os de boa saúde e os idosos, para Montaigne – é menos nociva e leve; a outra, a morte para os moribundos é dolorosa, demorada e brutal. Certo que Montaigne está, digamos, en flattant la mort, “habitua-se tanto a ela que a morte torna-se um pedaço da sua vida” (Auerbach 2007: 57). Se a vida é movimento para a morte, quando esta se deita sobre a vida, pensar com Montaigne é experiência do abraçar a morte, tocar sua mão, ver seu rosto, experiência do sofrer, “aprender a sofrer o que não se pode evitar” (Montaigne 2010: 545). Em suma, seus ensaios são, como quer Auerbach (2007), uma espécie de elixir da vida e também da morte. De uma aproximação de Michel de Montaigne com Emil Cioran resulta uma escritura que é expressão do corpo, que se aproxima do literário, que abandona sistemas. Cioran, não adequando seu pensamento a um sistema, afasta-se da filosofia, pondo sua escritura nos limítrofes dos gêneros: uma escritura feita de “sangue, lágrimas e poesia” (Corsi 2011). Pessimista e niilista, o último dos metafísicos (Guedes 2011), grande estudioso de filósofos como Nietzsche, Schopenhauer e Kierkegaard, Cioran levou às últimas consequências a tese da existência como dolorosa, onde viver é uma enfermidade. Escreveu para sobreviver, Representarse la muerte no es sólo vivirla en imagen, en nuestros sueños, obsesiones, impulsos, para desearla o temerla; és también materializarla en frases, en formas, en colores, en sonidos”. As traduções feitas neste artigo foram feitas pelo próprio autor, não implicando uma tradução técnica. 2

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) UM GRITO DE DESESPERO: DIÁLOGOS PARA UMA FILOSOFIA DA MORTE EM IVAN JUNQUEIRA E

84

EMIL CIORAN

resultando da escritura um alívio, pois “escrever é desfazer-se de seus remorsos e rancores, vomitar seus segredos. O escritor é um desequilibrado que utiliza essas ficções que são as palavras para se curar” (Cioran 2011: 152). Se, de um lado, Montaigne escrevia para si uma obra que não teria leitores, obra de tamanha transparência de si; de outro, Cioran conferia, na escrita, um “combate com os outros e consigo mesmo” (Cioran 2011: 152). E, deste combate, Cioran dá seu primeiro grito agônico: Sur les cimes du désespoir, obra escrita aos vinte e dois anos. Acometido por insônia e ideia de suicídio, a primeira obra de Emil Cioran é a mais brutal, marcada ferozmente pelo sofrimento e pela ideia de morte, “o livro mais pessimista e agonizante de que temos notícia” (Redyson 2011: 59). Obra síntese do seu pensamento (Pecoraro 2004), sua revolta contra o mundo. Como mencionado, quatro temas compõem os Cimes de forma extrema: agonia, desespero, sofrimento e tristeza. As primeiras linhas já demarcam suas inquietações ao perguntar por que não nos encerramos em nós mesmos, alertando que a morte nos arranca dos cumes da vida medíocre e deficiente. A primeira tese lançada por Cioran é que só “se compreende a morte quem sente a vida como uma agonia prolongada”3 (Cioran 1990: 28). Aqueles que gozam de boa saúde não possuem a experiência de agonia nem a sensação da morte, pois “só os verdadeiros enfermos são capazes de uma seriedade autêntica”4 (Cioran 1990: 30). Isto é, só na enfermidade, existencialmente falando, para se compreender a morte; só descendo às profundezas da fatalidade da existência para sentir a morte. Por doença, Cioran entende que não seja “ausência de saúde, mas uma realidade tão positiva e tão durável quanto a saúde” (Cioran 2011: 24). Nesse sentido, objetiva tese que muito se aproxima das experiências de Montaigne (2010: 74): “creio que tenho bem mais dificuldade em digerir essa aceitação de morrer quando estou com saúde”. Embora Montaigne refira-se a uma doença mais crônica, como Cioran, também vê a morte na enfermidade: “quando sou atacado por minha doença, considero-a um remédio” (Montaigne 2010: 551). Igualmente podemos aproximar da tese cioraniana o pensamento de Arthur Schopenhauer constante do livro quarto do expressivo Mundo como Vontade e como Representação (2005), mantendo, claro, suas distinções do pensamento de Cioran. Assim, de acordo com Schopenhauer (2005: 403): “Ao mesmo tempo, contudo, é bastante digno de nota que [...] os sofrimentos e aflições da vida podem tão facilmente aumentar em tal intensidade que a morte mesma, de cuja toda a vida consiste, é desejável e o homem voluntariamente a abraça”. Comparando a vida com uma bola de sabão, em que a certeza de estouro triunfa, a morte vence, de acordo com Schopenhauer, pois o homem é Vontade e fenômeno dessa Vontade, o animal mais necessitado dos animais, “querer concreto e necessidade absoluta” (Schopenhauer 2005: 402), mas, na ausência do objeto do querer e da necessidade – o que, para seu pensamento, querer é a base da necessidade, logo sofrimento –, o homem é tomado pelo vazio e pelo tédio, desaguando no desespero cioraniano.

3 4

“L’on ne comprend la mort q’uen ressentant la vie comme une agonie prolongée”. “Seuls les vrais souffrants sont capables d’um sérieux authentique”.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) UM GRITO DE DESESPERO: DIÁLOGOS PARA UMA FILOSOFIA DA MORTE EM IVAN JUNQUEIRA E

85

EMIL CIORAN

A agonia desvenda o aspecto demoníaco da vida, levando o homem à “grande purificação que é a visão da morte”5 (Cioran 1990: 20). É como um banho de chamas que queima por dentro: fogo purificador capaz de anular a existência. Luta entre vida e morte onde se vive a segunda de forma dolorosa, mas consciente. Eis o método da agonia: Fundamentalmente, agonizar significa ser martirizado na fronteira entre vida e morte. Sendo a morte imanente à vida, esta última se converte, quase em sua totalidade, em uma agonia. [...] A agonia verdadeira nos faz alcançar o nada através da morte; a sensação de esgotamento nos consome imediatamente e a morte obtém a vitória6 (Cioran 1990: 22).

O desespero é revelador, mais ainda: “um grito de desespero é mais revelador”7 (Cioran 1990: 27). Assim como só é possível sentir a morte descendo às enfermidades, é preciso descer à profundidade do desespero, e nada mais propício que estar insone, pois é a insônia que faz “esquecer os dramas da vida, suas complicações, suas obsessões”8 (Cioran 1990: 92), engendrando, assim, um sentimento de agonia e desespero. Nos cumes do desespero, nada pode dormir. Entre agonia e desespero nada pode consolar o homem, porque, no entremeio, infiltra-se a solidão, “um sofrimento prolongado”9 (Cioran 1990: 19); isto porque o sofrimento é um estado de solidão. As pesadas linhas do seu pensamento mostram que o sofrimento é um dos pilares da existência, já que “viver é sofrer e sofrer é encontrar-se num mundo em estado de putrefação” (Redyson 2011: 62). As portas do Éden parecem estar trancadas para o homem e, por não conseguir achar a chave, cai no sofrimento, pois “todo verdadeiro sofrimento é um abismo”10 (Cioran 1990: 60). Não há como abrir as portas do paraíso, a não ser pela destruição. Deste modo, sugere-se que a saída para Cioran é destruir o mundo, queimá-lo. Igualmente é a tese do personagem Mizoguchi, do Templo do Pavilhão Dourado (1988), de Yukio Mishima que, impossibilitado de abrir as portas, decide incendiar o mundo, o mesmo fogo purificador cioraniano, e dissipar-se no nada. Nadificar-se também é a máxima de Cioran: “quereria eu explodir, afundar, me decompor”11 (Cioran 1990: 63). Depois de destruir o mundo, isto é, depois de acabar com as formas de existência, quem destruir agora se não a nós mesmos? “Quando o mundo inteiro for derrubado diante

“La grande purification qu’est la vision de la mort”. “Fondamentalement, agoniser signifie subir le supplice à la frontière entre la vie et la mort. La mort étant immanente à la vie, celle-ci devient, dans as quasi-totalité, une agonie. [...] L’agonie véritable vous fait rejoindre le néant par la mort; la sensation d’épuisement vous consume alors immédiatement et la mort remporte la victoire”. 7 “Un cri de désespoir est bien plus révélateur”. 8 “Oublier le drame de la vie, ses complications, ses obsessions”. 9 “Souffrance prolongée”. 10 “Toute vraie souffrance en est un”. 11 “Je voudrais exploser, couler, me décomposer” 5 6

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) UM GRITO DE DESESPERO: DIÁLOGOS PARA UMA FILOSOFIA DA MORTE EM IVAN JUNQUEIRA E

86

EMIL CIORAN

dos vossos olhos, nós também nos derrubaremos irremediavelmente”12 (Cioran 1990: 97). Há tristeza maior que esta? A tristeza, esse último tema que lhe atravessa a obra, é mais sombria, e Cioran fará a distinção entre tristeza e melancolia, tristeza e dor. Frente à melancolia, ela é mais profunda porque é maior sua interiorização em determinado espaço-tempo, já que a melancolia é mais passível num dado instante; frente à dor, a tristeza é a que permite o homem refletir. Embora díspares, tristeza e dor levam o homem à morte, assim como tristeza e sofrimento revelam a sua existência. Eis a conclusão de Cioran para sua filosofia da morte depois de refletida a doença e o vazio da vida: “eterna é a miséria da humanidade”13 (Cioran 1990: 100). Êxtase da morte! Sur les cimes du désespoir é um caderno de admiração da morte e síntese do seu pensamento, por onde irão desaguar em outras obras as concepções: (i) de vida como ausente de um objetivo, criada pelo delírio, uma “impaciência de decair, de prostituir as solidões virginais da alma pelo diálogo” (Cioran 1989: 25), levando às últimas consequências a máxima schopenhaueriana de que “toda vida é sofrimento” (Schopenhauer 2005: 400), pois nada adianta dar um “objetivo preciso à vida: ela perde instantaneamente seu atrativo” (Cioran 1989: 18); (ii) de homem, distinguindo-os em dois tipos, antípodas um do outro: o que possui o sentimento de morte, isto é, a abraça voluntariamente, e o que não tem, embora “os dois morrem, mas um ignora a sua morte, o outro a sabe, um morre apenas um instante, o outro não pára de morrer” (Cioran 1989: 19). Mesmo que a morte triunfe para ambos, o homem enfermo, o homem decaído, “recomeça a cada dia, apesar de tudo o que sabe” (Cioran 1989: 51). Essa é a suma da filosofia negativa de Emil Cioran, pensamento em chamas, uma queda na lama noturna.

2. A poesia incendiária de Ivan Junqueira Dor, perda, angústia, agonia, sofrimento, remorso, lágrimas, sangue, ossos, covas, gritos, corvos e moribundos, tudo fundido numa poética que podemos chamar de negativa: um amálgama de cinzas. Herdeiro de Augusto dos Anjos e Arthur Rimbaud, exímio tradutor de Baudelaire, T. S. Eliot e Dylan Thomas, Ivan Junqueira fez de sua obra um caminhar para a morte, uma urgência pelo pior, um esboço em decomposição. Uma poesia “arquitetada”, assim como a poesia de João Cabral de Melo Neto – honrosamente Ivan Junqueira ocupou a cadeira de João Cabral na Academia Brasileira de Letras –, mas que, frente à tradição, soube construir suas rupturas (Ivo 2009). Em suma, uma poesia inquieta e questionadora, pois: O poeta não busca a fixidez de um modelo enclausurado na perpetuação de uma voz definitiva, mas exatamente o que dali emana como seiva errante e

“Lorsque le monde entier s’est effondré sous vous yeux, vous vous effondrez vous-même irrémédiablement”. 13 “Éternelle est la misère de l’humanité”. 12

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) UM GRITO DE DESESPERO: DIÁLOGOS PARA UMA FILOSOFIA DA MORTE EM IVAN JUNQUEIRA E

87

EMIL CIORAN

impura a corroer o inamovível desejo de certezas em que nos abrigamos para a esquivança das questões primordiais (Secchin 1994: 16).

Certo que, no tocante à morte, nos abrigamos em certezas, como aponta Secchin, para fugir da morte, afastando-a da vida. A poesia de Ivan Junqueira é seiva errante que circula pela vida, mas para aproximá-la da morte – há aqui o ponto de “afinidade” entre Junqueira e Cioran no tocante ao modo de estabelecer a vida como estar na morte. Ao levarmos ao limite a máxima cioraniana de que sem sofrimento não há existência, podemos dizer que – em A sagração dos Ossos – o sofrimento vaza pelas frestas, introduzindo uma nota sombria, abrindo um abismo. Na primeira estrofe do primeiro poema do livro, insufla o peso da ausência: “Onde estão os que partiram/desta vida, desvalidos?” (Junqueira 1994: 29). Após a partida, o que resta se não o silêncio de um profundo nada? Silêncio primordial, o nada pleno de significados! (discussão filosófica do nada, cf. especialmente: Eckhart 2004; Heidegger 1979; 1993). Como que uma queda no abismo, que somos nós, afinal, no terreno do sofrimento? O homem, no campo do sofrimento, está inteiramente ligado à morte, o “homem é a partir de sua morte [...] por um vínculo de que ele é juiz”14 (Blanchot 2011: 100). Assim, questiona o eu lírico: “havia em nós/algo de mórbido” (Junqueira 1994: 39); é, a partir da morbidez, revelado o homem décadent, tão despedaçado quanto incapaz de suportar a própria imagem, como no poema “Espelho”: O duro espelho me reflete: olhos míopes que pouco enxergam, lábios que muita vez se cerram, rugas que me entalham a testa .............................................. Algo de mim: remorsos, répteis, algum antigo e inútil verso, a alma de um rei que, sem remédio, se consumia na quimera ............................................. Todo esse lodo e essa miséria... E deles sequer um reflexo, como se o espelho, mais que o inferno, lhes recusasse alívio ou crédito. (Junqueira 1994: 62-63).

No poema – composto de quadras e versos octossílabos – a imagem refletida do “duro espelho” é um reflexo deformado da existência trágica. O eu lírico constantemente se vê, mas a imagem lhe é turva, ondulada, como se houvesse uma

14

Grifo do autor.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) UM GRITO DE DESESPERO: DIÁLOGOS PARA UMA FILOSOFIA DA MORTE EM IVAN JUNQUEIRA E

88

EMIL CIORAN

névoa, um eu decaído, como se enfermo, que experimenta sua dolorosa visão de si15. Na primeira estrofe, os olhos míopes, lábios cerrados e rugas na testa parecem estabelecer uma aproximação à ideia de velhice, esculpindo a duração da vida, os infortúnios das forças enfraquecidas pela ação do tempo – no ensaio “Sobre a Idade”, Montaigne (2010: 194-195) diz que morrer de velhice “é a morte mais rara, singular e extraordinária” que existe. Na estrofe seguinte, os pronomes indefinidos “algo” e “algum” nos fazem cair em um labirinto de dúvidas e lamentos, onde o final é o miserabilismo da existência. Sem remédio, o indefinido que sobressai do labirinto é algo “morto em mim, a parte morta de mim mesmo16” (Cioran 1990: 39). No primeiro verso da última estrofe temos a qualidade única do ser humano que é a de conhecer e experimentar a miséria, além de desprezar-se, pois “somente o ser humano é capaz de tanto desprezo de si mesmo”17 (Cioran 1990: 99). O espelho é retomado no final do poema como pior dos objetos, “mais que o inferno”, por refletir a crueldade humana. Incapaz de transmitir “alívio”, como fugir, então, do que se vê diante de si? Se é possível a fuga18, que outros mundos possíveis encontraríamos? O poema “Espelho” pode ser tomado como um mergulho intimista, uma queda na angústia, visão do desespero. Outro sintomático poema de Sagração é intitulado “Morte” e, talvez, o mais expressivo do livro: A morte é um cavalo seco que pasta sobre o penedo; ninguém o doma ou esporeia nem à boca lhe põe freios. ........................................ A morte escoiceia a esmo, sem arreios ou ginetes; não tem começo nem termo: é abrupta, estúpida e vesga, mas te embala desde o berço, quando a vida, ainda sem peso, nada mais é que um bosquejo que a mão do acaso tateia. ........................................ A morte é estrito desejo: deita-se lânguida e bêbeda à lenta espera daquele Diante da dolorosa visão de nós mesmos, parece lícito lembrarmos uma frase antológica de uma cena do filme O sangue de um poeta (1930), de Jean Cocteau que diz: “os espelhos deveriam pensar mais antes de refletir as imagens”. 16 “Je regrette ce que est mort en moi, la partie morte de moi-même”. 17 “Seul l’homme est capable de tant de mépris de soi” (grifo do autor). 18 Sobre a fuga diante do espelho, convém citar o único curta-metragem de Samuel Beckett dirigido por Alan Schneider, Film (1965), em que o personagem se esquiva da câmera e cobre o espelho diante de si com um pano preto para escapar da agonia da percepção. 15

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) UM GRITO DE DESESPERO: DIÁLOGOS PARA UMA FILOSOFIA DA MORTE EM IVAN JUNQUEIRA E

89

EMIL CIORAN

que a leve, sôfrego, ao êxtase. (Junqueira 1994: 65-67).

A metáfora é predominante em todo o poema. Já na primeira estrofe, a morte é cavalo seco que ninguém doma nem lhe põe freios. Morte indomável, pois é pedaço da vida, como diria Montaigne, cavalga na vida porque é triunfante, como diria Emil Cioran, pura perfeição (Cioran 2004), ou, como nas palavras de Schopenhauer (2005: 425): “algo incluído e pertencente à vida” pela afirmação da Vontade de vida. A certeza da morte transborda na estrofe seguinte, “não tem começo nem termo”, ou seja, fluxo: um córrego pelas ruas da vida. No último verso da segunda estrofe a morte é tomada como “abrupta, estúpida e vesga”, adjetivos que falam do temor da morte inerente ao homem – para Cioran, “ter medo é pensar continuamente em si mesmo” (Cioran 1989: 81). Se é de forma abrupta que a morte invade nossa vida, medo e desespero se encontram como linhas no horizonte19. O encadeamento, ou enjambement, para a terceira estrofe destaca, através da conjunção coordenativa adversativa mas, a condição antagônica da morte de ser tanto dolorosa quanto acolhedora – a partir desta estrofe observamos o par antagônico morte/vida, pois uma está na outra, a morte ocupa a vida e todas as suas estruturas. A vida, assim, “nada mais é que um bosquejo” – concordaria Cioran com a ideia de a vida ser um rascunho incerto e mal desenhado que a mão do acaso tateia e aponta o caminho; para onde? Para a morte? Mão que tateia e não protege20. Na última estrofe, “a morte é estrito desejo”, tanto desejo da morte quanto desejo de morte, se levarmos às últimas consequências o pensamento cioraniano, porque se a morte seduz a vida, então a desejamos. Os últimos versos tecem a imagem da morte à espera de quem a leve ao êxtase, “êxtase das profundidades últimas da vida”21 (Cioran 1990: 42). Desesperado êxtase. Assim, ao que parece, a poesia em Sagração é grito de desespero, louco, agônico, que concentra em si todo o sofrimento do mundo, como quem busca “em agonia/o sentido da fáustica e sombria/ angústia de que o ser jamais se cura” (Junqueira 1994: 75): mar de chamas, calor interior, banho de fogo que “queima, inquieta, enlouquece” (Junqueira 1994: 49). Um incêndio que deixa tudo em ruínas, onde a beleza mesmo das chamas é “oferecer a ilusão de uma morte pura e sublime”22 (Cioran 1990: 95): poesia incendiária, como se pode ver no poema “Mater dolorosa”:

Para exemplificar o modo abrupto como a morte invade a vida, nada mais visceral que o filme Gritos e Sussurros (1972), de Ingmar Bergman, onde a morte é a mediação de três solitárias irmãs mergulhadas no abismo da vida. 20 Sobre tatear e apontar para o incerto, exemplificamos com a emblemática cena da mão de concreto e sem o dedo indicador do filme Paisagem na Neblina (1988), de Theo Angelopoulos, que é retirada do oceano e desaparece no azul do céu. 21 “L’extase des fondations ultimes de la vie”. 22 “La beauté des flammes donne l’illusion d’une mort pure et sublime”. 19

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) UM GRITO DE DESESPERO: DIÁLOGOS PARA UMA FILOSOFIA DA MORTE EM IVAN JUNQUEIRA E

90

EMIL CIORAN

Entre os túmulos e os dobres é que vens, lenta e lutuosa, nas mãos o cântaro e a rosa que, defunta, já não colhes. São teus olhos duas covas, como as dos crânios, inóspitas, mas eis que delas escorre o que a morte não encobre: essas lágrimas que boiam à tona do que, sem bordas, foi outrora a tua história e agora é o pó dos espólios. Úmido é o húmus da morgue e do catre em que te encolhes, como se o frio, em teus ossos, queimasse mais que uma forja. Muda e estóica até na cólera, resta a cinza de teus fogos. E o que de mim ainda sobra busca a tumba de teu colo. (Junqueira 1994: 97-98).

Este poema, como se dedicado a Augusto dos Anjos, é um hino à morte carregado de dor. Na primeira quadra, além das aliterações de s e rimas interpoladas que sugerem certa ondulação na sonoridade, há elementos fúnebres como túmulos, dobres, cântaro – a rosa no entremeio parece ser uma referência a Baudelaire. Além de influência surrealista nos versos “são teus olhos duas covas”, “lágrimas que boiam”, “pó dos espólios”, a identificação do eu lírico com o moribundo aproxima-se de uma espécie de desejo fúnebre na quarta estrofe, quando o húmus derrama-se por todos os lados; a morte, então, surge na imensidão do céu noturno. A tragédia do homem, encolhido no catre, é sentir a vida como um ponto de interrogação, por isso a tristeza, para a filosofia do pessimismo, ser o sentimento que permite fazer dessa interrogação uma reflexão: “a tristeza e o sofrimento nos revelam a existência”23 (Cioran 1990: 108). Na última estrofe, conclui-se o espaço de devastação, restando “a cinza de teus fogos”. Não é a vida um espaço de ruínas? Aqui onde tudo é cinza e pó, a morte figura na vida – de acordo com Cioran (1991: 23), a morte “se espalha tanto, ocupa tanto lugar, que não sei onde morrer”24. Assim, pode-se concluir que “Mater dolorosa” abre-se para os túmulos da vida, e mais: é uma poesia-decomposição.

23 24

“La tristesse et la souffrance nous révèlent l’existence”. Grifo do autor.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) UM GRITO DE DESESPERO: DIÁLOGOS PARA UMA FILOSOFIA DA MORTE EM IVAN JUNQUEIRA E

91

EMIL CIORAN

A morte, portanto, é o ponto de encontro entre o poeta Ivan Junqueira e o filósofo Emil Cioran; o tema da morte e suas consequências existenciais levam tal encontro a uma relação quase direta. Certo de que há pontos de diferenciação entre ambos – o niilismo, por exemplo –, da aproximação de Junqueira com Cioran resulta um lugar privilegiado onde pode-se observar com maior nitidez a concepção da morte. Ambos, assim, partilham em suas páginas a tese de que a “morte é um estado de perfeição” (Cioran 2004: 35). Pensar a morte, tanto para Junqueira quanto para Cioran, é introduzir no pensamento a “desintegração supremamente duvidosa do não certo” (Blanchot 2011: 99). A tese de Blanchot é eficaz neste ponto para uni-los, pois, segundo o ensaísta, fugir da morte é dissimular-se em face dela, mas a fuga resulta também em dissimular-se nela – o que ele chama de profundidade de dissimulação. Como não há saída para a morte, a obra de Ivan Junqueira e Emil Cioran apontam direções para a morte, fazendo vida/morte conviverem, havendo aí uma “afinidade” entre o poeta e o filósofo, onde para ambos a existência torna-se incompreensível sem a morte, sofrimento, tristeza, angústia, dor e agonia.

Considerações finais Morrendo nos convertemos em donos do mundo. Morrer a cada dia é, para o pessimista, inventar novas razões de existir a cada dia. Deste modo, os caminhos até então propostos para uma filosofia da morte foram: (i) pensar a morte filosoficamente para questionar a existência; (ii) pensar a experiência da morte como estrutura mesma da vida. Foi possível, a partir de problematizações filosóficas, ver a vida como mal gosto onde nada está resolvido, um “plágio” (Cioran 2004: 34), e o homem um ser que não deveria ter nascido, um animal metafísico que abriga uma podridão no interior da existência – nos aforismos “História e Eternidade” e “As Forças do Mal”, Cioran coloca o homem como o ser “desgraçado” (Cioran 1990: 119). Viver é uma enfermidade e o desejo de morte nasce durante os mal-estares imprecisos, teses do pensamento “niilista” de Emil Cioran, odium fati de uma hiena pessimista (Piva 2002). Da aproximação de Ivan Junqueira com o pensamento do filósofo romeno resultou o encontro de dois nomes que mesclaram vida e morte, que derramaram em suas páginas problematizações da morte, propiciando pensar poesia e filosofia como morte contínua. É pela experiência da morte, portanto, que há uma presença decisiva da obra de Cioran na poética de Junqueira, assim unindo-os. Dois autores contemporâneos que estão em torno da filosofia da morte, estabelecendo diálogo e escrevendo para morrer.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) UM GRITO DE DESESPERO: DIÁLOGOS PARA UMA FILOSOFIA DA MORTE EM IVAN JUNQUEIRA E

92

EMIL CIORAN

A CLAMOR OF DESPAIR: DIALOGUES FOR A PHILOSOPHY OF DEATH BETWEEN IVAN JUNQUEIRA AND EMIL CIORAN Abstract: This article intends to establish a connection between the philosophical pessimism of Emil Cioran and the work of Ivan Junqueira, A sagração dos ossos (1994). The aim is to investigate in the work of the poet a propitious space for a philosophy of death and dying, departing from the experience of life as prolonged agony, a position that crosses the thought of the Romanian philosopher. In this respect, it is possible to take, under the light of a pessimistic philosophy the poetry of Ivan Junqueira as a celebration and a walk to death. Keywords: Death; Despair; Poetry; Philosophy.

REFERÊNCIAS ARTAUD, Antonin. A arte e a morte. Trad. Aníbal Fernandes. Lisboa: Hiena, 1985. AUERBACH, Erich. O escritor Montaigne. In: Ensaios de literatura ocidental: filologia e crítica. Trad. Samuel Titan Jr. e José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Ed.34, 2007, pp. 145-166. BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. ______. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011 . CIORAN, Emil. Breviário da decomposição. 2ª Ed. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. ______. Sur le cimes du désespoir. Trad. André Vornic. Paris: L’Herne, 1990. ______. Silogismos da amargura. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. ______. Desgarradura. Barcelona: Tusquets, 2004. ______. Exercícios de admiração: ensaios e perfis. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. CORSI, Edson Manzan. A poesia em Cioran. In: REDYSON, Deyve (org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011, pp. 91-100.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) UM GRITO DE DESESPERO: DIÁLOGOS PARA UMA FILOSOFIA DA MORTE EM IVAN JUNQUEIRA E

93

EMIL CIORAN

ECKHART, Mestre. Sobre o desprendimento e outros textos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos: seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. GUEDES, Wagner Alves. Emil Cioran: o último dos metafísicos. In: REDYSON, Deyve (org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011, pp.101-116. HEIDEGGER, Martin. Escritos e Conferências. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os Pensadores). ______. Ser e Tempo. 2 vols. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: 1993. IVO, Ledo. O ajudante de mentiroso. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/Educam, 2009. JUNQUEIRA, Ivan. A sagração dos ossos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. LIVRO TIBETANO DOS MORTOS – Bardo Todol. Trad. Julia Santiago Noll. Rio de Janeiro: Ed. Cátedra, 1972. MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios: uma seleção. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. NASCIMENTO, Evando. Literatura e Filosofia: ensaio de reflexão. In: ______ (org). Literatura e Filosofia: diálogos. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2004. NUNES, Benedito. Poesia e Filosofia: uma transa. In: Ensaios Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2010. PAREYSON, Luigi. Verdade e interpretação. Tradução de Maria Helena Nery Garcez e Sandra N. Abdo. São Paulo: Martins Fontes, 2005. PECORARO, Rossano. Cioran: a filosofia em chamas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. PINGUET, Maurice. A morte voluntária no Japão. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. PIVA, Paulo Jonas de Lima. Odium Fati. Emil Cioran, a hiena pessimista. In: Cadernos Nietzsche, nº 13, 2002, pp. 67-88. REDYSON, Deyve. O interesse pelo pior. O conceito de péssimo na metafísica de Cioran. In: REDYSON, Deyve (org). Emil Cioran e a filosofia negativa: homenagem ao centenário de nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) UM GRITO DE DESESPERO: DIÁLOGOS PARA UMA FILOSOFIA DA MORTE EM IVAN JUNQUEIRA E

94

EMIL CIORAN

SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor, metafísica da morte. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ______. O Mundo como Vontade e como Representação. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005. SECCHIN, Antonio Carlos. O exato exaspero. In: JUNQUEIRA, Ivan. A sagração dos ossos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, pp. 15-22. THOMAS, Louis-Vincent. Antropologia de la muerte. México: Fondo de Cultura Econômica, 1983. VOVELLE, Michel. A história dos homens no espelho da morte. In: BRAET, H; VERBEKE, W. A morte na Idade Média. São Paulo: EdUSP, 1996.

ARTIGO RECEBIDO EM 26/02/2012 E APROVADO EM 07/03/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO Audrey Castañón de Mattos (FCL-UNESP)1

RESUMO: Partindo da constatação de que a narrativa do romance baseia-se nas lembranças de sua narradora, as quais se ancoram não nos acontecimentos, mas na forma como ela se sentia em relação a eles e, tendo em vista a concepção freudiana que relaciona a memória ao inconsciente e atribui ao material mnêmico a capacidade de mudança contínua, empreendemos a interpretação do conteúdo latente de suas lembranças, por meio da análise de seu conteúdo manifesto, para trazer à luz a forma como o olhar da narradora alinhavou os retalhos da memória, como ela os selecionou e coseu, dando origem à teia textual que, em última análise, é a (re)escrita de si mesma. PALAVRAS-CHAVE: Teolinda Gersão; Narrativa psicológica; Memória em Freud.

Introdução Quando se diz, de um romance, que ele narra a história de determinado personagem, é mais comum associá-lo a uma narrativa de fatos, aventuras e desventuras (que são encarados como mais que formadores, mas como a própria vida do personagem), de que pensar que uma narrativa desse tipo possa se constituir, em primeiro plano, de rememorações de sensações vivenciadas e relacionadas ao estar no mundo e que os acontecimentos – constituintes, por excelência, da ação no romance – figurem como espécie de pano de fundo, abordados

1 Estudante de pós-graduação, Programa de pós-graduação em Estudos literários, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara – UNESP. Mestranda. E-mail: [email protected].

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Audrey Castañón de Mattos (FCL-Unesp) A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO

com parcimônia e selecionados dentre aqueles que contribuíram para a constituição do personagem enquanto sujeito. É esse o caso do romance em apreço que, a rigor, não se pode sintetizar em termos de enredo. Seguindo o caminho da prosa contemporânea em geral – e da portuguesa particularmente a partir das primeiras publicações de José Cardoso Pires – A árvore das palavras, de Teolinda Gersão caracteriza-se por aquilo que Marlise Vaz Bridi Ambrogi (1981: 51) chamou de estreiteza da fábula e que entendemos como o abandono do enredo recheado de peripécias2 para priorizar uma visão mais íntima e mais humanizadora dos personagens e suas formas de relação com o Outro. Estruturalmente, A árvore das palavras é um trabalho complexo. A escolha dos tempos verbais é um aspecto a ser destacado, na medida em que gera incerteza em relação ao espaço temporal de onde a narradora se manifesta. Isso porque, embora o pretérito imperfeito seja predominante, a ele se alternam, frequente e imprevistamente, o presente do indicativo e o pretérito perfeito, estratégia que produz a sensação de concomitância entre os acontecimentos narrados e o ato de leitura, um efeito de presente. Tal efeito, porém, é o resultado do caráter regressivo das rememorações da personagem narradora, sobre o qual falaremos adiante. A despeito dessa aparência enganadora, o texto é pródigo em evidências de sua natureza anamnésica: Mas, como eu disse, não se precisava de olhos para ver, porque mesmo de olhos fechados se via, através das pálpebras inundadas de luz – a rede de arame do galinheiro ao fundo, o muro, o telhado da casa, as janelas, a porta escura, sempre aberta, a varanda, em cima, onde ao cair da tarde Laureano se iria sentar bebendo cerveja. [...] (Gersão 2008: 8).

Discorrendo sobre o “caráter visual” da recordação da infância e da fantasia, Adélia Bezerra de Meneses (1995) nos mostra que, em termos aristotélicos, a fantasia é a faculdade que permite que uma imagem se produza em nós e a imaginação “um movimento produzido pela sensação em ato” (Aristóteles3 apud Meneses 1995: 135). Sendo a visão o “sentido por excelência”, a palavra imaginação (em grego, phantasia) deriva de luz (em grego, phaos), já que sem luz não se pode ver. Ao mesmo tempo em que remete ao espaço físico da infância da personagem, o fragmento destacado sintetiza metaforicamente o trabalho da própria memória: a referência à luz que permite “ver sem olhos” encontra eco no texto de Aristóteles mencionado acima. Além disso, a nítida descrição que a personagem faz do espaço nos dá conta daquilo que Freud chamou de “vividez sensorial”, uma qualidade que

Além do conceito aristotélico da palavra, segundo o qual a peripécia “é uma viravolta das ações em sentido contrário” (Poética, XI), utilizamo-la aqui também em seu sentido familiar, conforme nos dá o dicionário Aurélio, de (2) imprevisto, incidente, aventura. (Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.11a). 3 Sobre a Alma, III 3, 428a. 2

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

96

Audrey Castañón de Mattos (FCL-Unesp) A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO

as recordações mais primitivas da infância conservam até idade avançada, “mesmo nas pessoas cuja memória não é normalmente do tipo visual” (Freud 1996b: 576). Partindo da constatação de que a narrativa do romance baseia-se nas lembranças de sua narradora e, tendo em vista a concepção freudiana que relaciona a memória ao inconsciente e atribui ao material mnêmico a capacidade de mudança contínua (Garcia-Roza 2004) empreendemos a análise de como os elementos que participam da constituição do sujeito são processados por essa memória para constituir o discurso do romance, o qual entendemos como um trabalho, empreendido pela narradora, de escritura do eu.

Retalhos da memória: o discurso do eu O romance é organizado em três partes. Inicialmente tem-se a personagem Gita, narradora autodiegética4, que se reporta a um tempo feliz, em que se sentia em comunhão com o universo e ligava-se a Laureano, seu pai, por sentimentos de amor e cumplicidade profundos. Em contrapartida, mantinha com a mãe, Amélia, uma relação distanciada estabelecida desde os primeiros meses de vida, quando Lóia foi contratada como sua ama de leite. Os afetos que deveriam ser da mãe foram direcionados para a figura dessa outra personagem. As lembranças relativas à mãe ligam-na, invariavelmente, amarga e assustadora, ao seu quarto de costura e ao som quase ininterrupto da máquina de costurar: “Amélia vive no quarto da costura, curvada sobre a máquina que tem escrito no dorso: P f a f f, em grandes letras separadas” ou “Lá está, lá está de novo o zumbido da máquina.” (Gersão 2008: 19; 22). Dessa forma, Gita não tem lembrança de carinhos trocados com a mãe nem da presença dela nos passeios que fazia com o pai. Nesse tomo a narradora-personagem opta pelo tom confessional, dirigindo-se a Laureano na maior parte do tempo, embora resvalando, não raras vezes, para o tom objetivo, quando Laureano aparece referenciado em terceira pessoa. No segundo momento da narrativa há a intrusão inesperada de um narrador heterodiegético com focalização interna variável5 entre os pontos de vista de Amélia e de Laureano. Fica-se sabendo que Amélia, aos dezenove anos, respondera a um anúncio de jornal em que Laureano procurava uma esposa. Com problemas em seu relacionamento amoroso e profundamente infeliz onde morava – seus pais haviam falecido e ela vivia como criada em casa da madrinha – Amélia passa a se corresponder com Laureano, casa-se com ele por meio de uma procuração e parte de Lisboa com destino a Lourenço Marques, em Moçambique, para viver com o marido. Lá, entretanto, vive uma vida de profundas frustrações em razão da situação O termo é de Gerard Genette (1995) e diz respeito ao grau de presença do narrador na história. No caso do narrador autodiegético, sua participação equivale à do protagonista. 5 A focalização interna diz respeito ao ponto de vista sob o qual a narrativa é apresentada; pode ser o de um único personagem ou alternar-se entre dois ou mais, nesse caso tem-se a focalização interna variável. O termo heterodiegético refere-se ao narrador ausente da história. (Genette 1995). 4

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

97

Audrey Castañón de Mattos (FCL-Unesp) A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO

financeira pouco privilegiada de Laureano, que a levam a abandonar a casa, deixando para trás o marido e a filha, então adolescente. Essa segunda parte concorre grandemente para a complexidade estrutural da narrativa. É inegável que é nesse momento que se tem acesso a informações cuja importância relaciona-se não só ao entendimento da personalidade de Amélia, mas, principalmente, ao processo de constituição de Gita, sua filha, enquanto sujeito. Ainda assim, o surgimento de um narrador de fora da diegese e que aparentemente não possui ligação com qualquer dos personagens, empresta-lhe a aparência de um apêndice quase desconectado do todo da narrativa. Quem é esse narrador e por que, na economia do romance, a opção por tal forma de narrar, preterindo as vozes da própria Amélia e de Laureano? São questões a que só pudemos responder após cuidadosa análise do trabalho, a que se entrega a narradora, de refazimento de sua trajetória por meio da rememoração. Nesse processo há a reconstrução intencional da imagem da mãe, razão que nos leva a crer que é dela, Gita, a identidade do narrador aparentemente alheio à diegese. Na parte final Gita reassume sua posição autodiegética, dessa vez com foco no período de sua adolescência, quando a ausência de Lóia, que havia falecido, e a de Amélia se fazem sentir na casa, cujo abandono reflete o estado de espírito de Laureano, que não se recuperara da partida da esposa. Em meio a essa situação Gita vivencia o primeiro amor e Moçambique entra na guerra colonial – “Então, de repente, rebentou a guerra” (Gersão 2008: 193). Sua passagem para a vida adulta é marcada pela dor: há o rompimento amoroso e tanto o contexto doméstico quanto o do país parecem empurrá-la para longe – estudar em Lisboa, viver em casa do irmão de seu pai. “(Não tenho alternativa, penso. Mas essa frase não digo)”. Decisão amarga que traduz em termos de perda: “(E é um ponto final numa conversa. Porque agora os caminhos se afastam. Depois de termos, desde sempre, partilhado quase tudo.)” (Gersão 2008: 220; 223). Nesse sentido, Gita não pode ser entendida como uma protagonista no sentido usual do termo, pois que não protagoniza nenhuma ação; efetivamente, narra suas impressões em relação ao entorno e aos acontecimentos cotidianos os quais, alinhavados, compõem sua história, isto é, sua trajetória não é descrita por acontecimentos, mas pela forma como eles se concatenam segundo seu olhar. A trajetória refeita (alinhavada) por um olhar que se representa por palavras traduz-se, então, em discurso. Gita parece ter consciência desse fato, pois desde criança entende o mundo em termos de palavras: “[...] Ou sentava-me debaixo da árvore do quintal e falava com o vento e as folhas. A árvore abanava os ramos e eu pensava: a árvore das palavras. Às vezes essa árvore reaparecia nos sonhos: Crescia à beira de um rio e tinha ramos que chegavam ao céu” (Gersão 2008: 35). Wilson Camilo Chaves (2005: 43), em sua análise da tese lacaniana sobre a constituição do sujeito afirma que, para Lacan, a “razão de ser da constituição do sujeito” está em sua relação consigo mesmo; o sujeito não é “um efeito da Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

98

Audrey Castañón de Mattos (FCL-Unesp) A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO

exterioridade” sobre si, mas, pelo contrário, sua constituição se dará “por uma alteridade que o penetra”. Assim, percebemos na narrativa de Gita a expressão de sua relação com o mundo e consigo mesma; expressão essa que se realiza por meio da verbalização dos processos participantes de sua constituição enquanto sujeito: “Respiro devagar, estou unida ao mundo pela boca. O hálito é um sopro, o sopro do vento. Partilho-o com o vasto horizonte em volta, faço parte dele como ele de mim” (Gersão 2008: 48). Pelo excerto é possível verificar o caráter de regressão6 das memórias da personagem, pois transforma em imagem, para então verbalizar, os vestígios de seu narcisismo primário – “estou unida ao mundo pela boca” – vestígios que se manifestam sob a forma de “sentimento oceânico”, uma sensação que Freud (1996d: 74) descreve como “um vínculo indissolúvel, de ser uno com o mundo externo como um todo”, igualmente transformado em imagem – “o vasto horizonte”; seu hálito transformado em “sopro do vento” – e comunicado em discurso. Nessa etapa de suas recordações a narradora revisita os processos de formação de seu próprio ego. Identificamos aqui a fase em que Freud (1996d: 77) aponta existir um “sentimento primitivo”, quando, originalmente, o ego inclui tudo, para depois separar de si mesmo um mundo externo. Reconhecido esse mundo externo o ego reconhece também os perigos que o ameaçam a partir dele. As rememorações de Gita na parte inicial do romance levam-na a uma época anterior a essa divisão, marcada pelo sentimento de segurança e pela ligação com o pai: Viver é muito fácil, porque meço a partir de ti o norte e o sul. Basta que existas para que os meridianos se arrumem e os oceanos não transbordem. Estás sentado na cadeira-à-aviador e eu ando em volta [...] posso mesmo voltar-te as costas e partir noutra direção, sei que não vou perder-me, porque tu estarás sempre sentado, a ler o jornal, ao fim da tarde. [...] Um homem bom é uma luz na janela. As coisas ganham limite e solidez, brilho e cor; e eu caminho dançando entre elas. É porque estou segura que ganho a liberdade de dançar, é porque não tenho medo que improviso, é porque ignoro a rotina que me entrego ao fulgor. [...] (Gersão 2008: 26).

Em oposição, a relação com a mãe se dá em termos de distanciamento. Amélia não suporta os negros, diz que não se pode confiar neles, odeia o lugar onde vivem e é alheia à filha e ao marido. Não deseja integrar-se ao local onde constituiu sua família e atribui ao país e aos nativos a razão de todos os males, acreditando serem eles capazes de lhes fazer mal por meio de feitiços. Amélia nunca deixava tesouras cruzadas ou abertas: podiam desmanchar a vida, cortando o fio, dizia. E tinha medo de feitiços, de ossos cosidos na bainha de vestidos, sementes de cajueiro escondidas no seio, montinhos de carvão

6 No sentido freudiano a regressão se constitui de pensamentos – ligados intimamente a lembranças que foram suprimidas ou permaneceram inconscientes – transformados em imagens. (Freud 1996b).

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

99

Audrey Castañón de Mattos (FCL-Unesp) A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO

diante das portas, cabeças de galinha enterradas, facas espetadas no chão (Gersão 2008: 35).

Freud (1976), para quem aquilo que consideramos estranho nos é, na realidade, familiar, explica o temor ao mau-olhado e a crença na onipotência dos pensamentos como exteriorização de uma potencialidade do indivíduo de provocar o mesmo mal que teme. Segundo ele, quando identificamos no outro atributos que consideramos “não atraentes”, estamos prontos a acreditar “que a sua inveja se eleva a um grau de intensidade maior do que o habitual, e que essa intensidade a converterá em ação efetiva”; do mesmo modo, a crença em “poderes mágicos cuidadosamente graduados” que atribuímos a várias pessoas e coisas externas como forma de nos desviar das “proibições manifestas da realidade” assenta-se nos resquícios que conservamos de nossa antiga concepção animista do universo (Freud 1976: 109-10). De acordo com as lembranças da narradora, Amélia “tem olhos claros, esverdeados, que mudam um pouco conforme a luz do dia, e pinta o cabelo de loiro cendrado” e “persiste na convicção de que os loiros estão no ponto mais alto da hierarquia das raças e de que os escuros portugueses estão no fundo da escala, logo a seguir a indianos e negros” (Gersão 2008: 60-1). Embora a narradora não faça a associação que nós, à luz da concepção freudiana, estamos fazendo, é digno de nota que tais aspectos da personalidade de Amélia ressaltem em suas recordações. Entre as lembranças infantis não há rememoração de uma história de Amélia, ao contrário de Laureano, de cuja vida Gita conhecia detalhes desde os tempos em que ele ainda vivia em Portugal. Por outro lado, a personagem recorda com exatidão tanto os preconceitos quanto as superstições e fobias da mãe, de onde inferimos que, numa instância inconsciente, Gita os tenha relacionado, assim erigindo para si a personalidade da mãe. A memória que resgata da mãe em relação a si é a de como sua aversão ao país e seu povo se estende a ela, Gita, e a Laureano: “Mas havia pessoas, dizia ela olhando-nos com raiva, que se tornavam iguais aos negros, como se fossem também daqui. Filhos do mato como eles. Só lhes faltava estenderem a esteira e dormirem na palhota” (Gersão 2008:59). Em tal contexto de antagonismo com a mãe, de um lado, e por comungar com o pai o sentimento de pertencimento a Lourenço Marques, Gita encontrará seu reflexo numa imagem repudiada por Amélia, na menina Orquídea, filha da negra Lóia, sua ama de leite. Eu olhava Orquídea, na claridade frouxa, como se olhasse um espelho. Do meu tamanho, em tudo igual a mim. [...] O dia inteiro eu era sua irmã. [...] Até que vou ter com Lóia: Quero o cabelo como Orquídea. Penteado em trancinhas em volta da cabeça. [...] o resultado é deslumbrante: fico exactamente igual a Orquídea. Sacudo a cabeça, trémula de riso: as trancinhas abanam, mas continuam no ar, balançam como antenas de insectos, não duas, mas dez,

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

100

Audrey Castañón de Mattos (FCL-Unesp) A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO

espalhadas em volta. Abraço a minha imagem, que por toda parte me segue, e que é Orquídea. Mas Amélia não gosta de me ver. Tira isso depressa da cabeça, diz abrindo a porta do quarto da costura (Gersão 2008: 17, grifos nossos).

A identificação, que pode ser entendida como a presença do outro no próprio sujeito, causa deslumbramento uma vez que possibilita o sentimento de exterioridade que comandará, posteriormente, a sua relação com toda a “exterioridade real” (Chaves 2005: 40). Entendemos que o reconhecimento da exterioridade, ou o seu sentimento, possibilita também o reconhecimento das diferenças e uma quebra, ou minimização, da identificação inicial. Assim, flagramos na relação entre Gita e Orquídea, já adolescentes, a admissão da diferença manifestada em espécie de incômodo que concorre para a delimitação do eu tanto em relação ao outro quanto ao entorno em geral; embora não se manifeste diretamente a Orquídea, percebemos, na situação mostrada no excerto abaixo, o enfraquecimento desse laço e a modificação da forma como Gita compartilha os costumes do povo moçambicano: Uma vez por mês, ela [Orquídea] vem almoçar ao domingo com a Ló. Depois da partida de Amélia. Deixa eu levar este, diz abrindo o meu guarda-fato e experimentando no espelho saias e vestidos. No mês seguinte o tecido desbotou, a saia tem rasgões, o fecho éclair está partido, porque entretanto ela os emprestou alegremente a todas as amigas. No entanto Orquídea não aceita que não se empreste. É esse o uso e é assim que vivem: as coisas circulam, roupa, frigideiras, panelas, nunca estão por muito tempo na mesma casa, andam sempre de mão em mão (Gersão 2008: 196).

Com a partida de Amélia uma nova fase se inicia, profundamente marcada pelo torpor de Laureano. Se antes ele representava o esteio, tanto para a menina quanto para a casa, – “podiam cair as paredes, rebentar as janelas, ele voltava a pôr tudo no lugar” (Gersão 2008: 178) – agora se assemelha a “um pássaro que caiu no chão, [...] que nunca mais pode voar” (Gersão 2008: 179). Nessa situação a ausência de Amélia passa a ser uma presença permanentemente sentida, embora, para a narradora, a mãe passe por um processo de apagamento. Três anos após sua partida ela “tinha deixado de ser uma imagem nítida. Era um vulto em fuga, que depois não podia voltar atrás” (Gersão 2008: 177). É a partir dos pertences que abandonara que Gita se entregará ao processo de reconstrução de sua imagem. Quase não levou nada, além de alguma roupa [...]. Fui eu que esvaziei os armários e as gavetas [...] li cartas e papéis, encontrei fotografias. Penso que foi

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

101

Audrey Castañón de Mattos (FCL-Unesp) A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO

para mim que ela deixou essas coisas. Para que um dia pudesse compor a sua imagem, como as peças de um puzzle. [...] (Mas agora Amélia é uma imagem quase doce. Ou sou eu que a vejo de outro modo. Peguei no que restava dela – fotografias, papéis, recortes de jornais, recordações – e juntei-os todos, reinventei-os todos, até surgir, com nitidez, uma figura. Um rosto diante dos meus olhos, que olha para mim, por sua vez. Com grandes olhos tristes. [...]) (Gersão 2008: 177; 206, grifos nossos).

As quinquilharias que Amélia colecionava – recortes de jornais, anúncios em idiomas estrangeiros dos quais não entendia sequer uma palavra, cartas e fotografias – fornecem a Gita material para inseri-la num contexto maior do que o quarto de costura e além do papel de sua mãe. Ela admite em Amélia um passado constituinte de sua identidade – “[...] Era uma tristeza maior do que nós e mais antiga. Trouxe-a quando chegou, levou-a quando partiu [...]” (Gersão 2008: 206) – e o reconstrói com base nas informações que colheu e em sua própria intuição – a própria narradora confessa que juntou os pertences da mãe e os reinventou até que formassem uma imagem nítida. Tal imagem que, obviamente, não é meramente física, carrega uma história que possibilita à narradora perceber Amélia como sujeito constituído por uma narrativa. Há outros indícios que corroboram nossa suposição em relação ao narrador da segunda parte do romance, como o excerto a seguir, no qual se diz de Amélia que ela “não podia voltar atrás” (frase que já surpreendemos na fala de Gita, em momento da terceira fase do romance e mencionamos acima): “[Amélia] Olhou outra vez os coqueiros, lá em baixo. Talvez tudo fosse um equívoco, mas não podia voltar atrás. Era como se do outro lado, de onde viera, o mundo tivesse acabado. De certo modo era isso: Não podia voltar atrás” (Gersão 2008: 98). Colocada à distância da mãe consegue dirigir-lhe um olhar mais compreensivo, ainda que não se sinta, com isso, próxima a ela. A opção por narrar em terceira pessoa denota justamente esse afastamento, ao mesmo tempo em que demonstra que a narrativa da mãe é fundamental na escrita de sua própria história, daí estar intercalada às recordações da infância e da adolescência, momentos em que se escreve a si mesma. As recordações da adolescência dão conta do sentimento de exterioridade já desenvolvido na personagem. Sua relação com o mundo passa, agora, por um forte sentimento do eu enquanto ser individual, não mais uma extensão do entorno – “E havia aquela sensação de existir, de existir com força [...]” (Gersão 2008: 159). Nessa fase, o enfraquecimento do sentimento de ilimitabilidade, descrito por Freud (1996d: 77) como “sentimento oceânico”, ao lado do sentimento do ego como “algo autônomo e unitário, distintamente demarcado de tudo o mais” (Freud 1996d: 75) reconduz o estar no mundo da personagem; sua relação com o exterior se modifica na mesma medida em que passa a entender-se como ser uno – o mundo externo, antes abarcador e protetor, passa a ser visto, em certa medida, como ameaçador:

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

102

Audrey Castañón de Mattos (FCL-Unesp) A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO

Tínhamos medo de que o mundo, ou a vida, acabassem. Porque tudo acontecia bruscamente, o cair da noite, o amadurecer dos frutos, a morte ou a partida das pessoas. É verdade que tínhamos medo. Embora o corpo cantasse que não era mortal. Mas havia, sim, havia por vezes nas coisas um anúncio de morte. Uma parte de nós acabava de repente – a vida era uma árvore crescendo e, lá onde os ramos se apartavam, havia um tempo que chegava ao fim (Gersão 2008: 159, grifo nosso).

Se compararmos o excerto acima às recordações infantis, flagraremos uma atitude oposta em relação à mesma constatação da efemeridade da vida que se evidencia nos movimentos bruscos da natureza: “Então a noite descia, como cerveja preta entornada pelo céu. Ou como uma pálpebra caindo. Porque era rápido o crepúsculo, a bem dizer não havia crepúsculo, como não havia transição entre as coisas: era a treva, ou a luz” (Gersão 2008: 8). O sentimento da Gita criança, nesse sentido, se opõe fortemente ao da mãe, na qual, como adulta, supõe-se o sentimento de delimitação do ego já instalado: E logo ali a casa se dividia em duas, a Casa Branca e a Casa Preta. A Casa Branca era a de Amélia, a Casa Preta a de Lóia. O quintal era em redor da Casa Preta. Eu pertencia à Casa Preta e ao quintal. É preciso cuidado, dizia Amélia. Estar atento. Tudo parece bem à superfície, mas a cidade está podre e cheia de contágios. Ela foi construída sobre pântanos. Quando alguém adoecia ela pensava sempre em febres antigas, que periodicamente voltavam e deixavam as pessoas olheirentas e débeis, como sugadas por espíritos malignos. O pântano, ou a memória do pântano, que nunca conhecera porque tinha sido extinto há quase um século, parecia assediá-la ainda, em visões de pesadelo. Como se estivesse ali muito perto a água apodrecida das lânguas. [...] Na Casa Preta não havia medo dos mosquitos, nem se receava, a bem dizer, coisa nenhuma. [...] Todas as coisas, no quintal, dançavam, as folhas, a terra, as manchas de sol, os ramos, as árvores, as sombras. Dançavam e não tinham limite, nada tinha limite, nem mesmo o corpo, que crescia em todas as direcções e era grande como o mundo. [...] (Gersão 2008: 9; 13, grifo nosso).

No processo de escrita do eu, a narradora depara lembranças de situações que estão no cerne de sua constituição como sujeito. Destacamos a seguir duas cenas que pretendemos analisar sob o ponto de vista da sexualidade – à luz da teoria freudiana da forma feminina do complexo de Édipo (Freud 1996d). A primeira delas remete a uma rotina entre a personagem e seu pai ocorrida todas as noites antes da menina adormecer. O pai dava corda a uma caixa de música sobre a qual dançava um gato vestido de maneira invulgar, com “um gibão de cetim e uma camisa de folhos com jabot de renda e acima da cabeça um arco de flores que se mantém no ar enquanto ele dança, com sapatos azuis de salto alto” (Gersão 2008: Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

103

Audrey Castañón de Mattos (FCL-Unesp) A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO

11). Consideramos a cena importante porque, a partir de alguns detalhes rememorados pela narradora inferimos que sua idade, à época, girava em torno dos quatro anos. Conta ela que o gato a intrigava e fascinava e que lhe suscitava perguntas como “por que razão se veste assim e usa aqueles sapatos?” (Gersão 2008: 11), que nunca eram feitas porque ela adormecia antes que o gato acabasse a dança. O fascínio diante do gato, a natureza das perguntas (por quê?), o adormecimento precoce, dão-nos indícios de que tais lembranças remetem a uma tenra idade. Tal aspecto, a idade, nos é fundamental para compreender a natureza da cena seguinte – transcrita abaixo – sob o ponto de vista da relação edipiana entre a filha e o pai, cujo período Freud (1996e: 233) localiza a partir dos quatro ou cinco anos: Em troca deste gato e da sua música jogarei um jogo contigo. Assim, quando chegas à tarde, e chamas [...] só o silêncio responde [...] porque eu [...] transformei-me num animal pequeno, escondido em passos furtivos atrás do guarda-louça. E tu deixaste de ser tu, és agora um animal grande chegando, fatalmente chegando, cada vez mais perto. Sinto-te caminhar, invisível, por entre os móveis da entrada, empurrando a porta da sala, farejando o ar, à procura, por debaixo das mesas e por detrás das cortinas, enquanto eu quase desapareço na sombra, com o coração a bater cada vez mais. Sabendo que nada me dará tanto prazer como esse instante de quase terror em que me encontras, quando ainda não és tu, nem és sequer um homem, mas o desconhecido, o animal, o monstro, entrando de repente em casa e violando a sua ordem antiga. Ser encontrada é uma morte, um júbilo, o passar de um limite. Por isso eu grito, de terror, de gozo e de espanto. E então tu pegas em mim e eu sei que estou à tua mercê e que, como um animal vencedor, me poderás levar contigo, para o outro lado da floresta. Sim, esse instante é uma pequena morte jubilosa. Triunfas sobre mim e, como se me devorasses, eu desapareço nos teus braços. Mas de repente continuo viva, como se voltasse à tona de água, do outro lado de uma onda gigantesca. E agora és de novo tu, de novo um homem, o homem amado desta casa. Vejo o teu rosto, o teu corpo, os teus olhos sobretudo, e não sei como foi possível ter estado alguma vez no teu lugar o animal. Ou o mal. Porque agora me és familiar como o vento ou a chuva (Gersão 2008: 12).

Tal recordação parece-nos inserir-se muito apropriadamente no campo daquelas lembranças a que Freud (1996a) chamou encobridoras, lembranças infantis que não refletem com exatidão como foram nossos primeiros anos; pelo contrário, dão conta de como esses anos nos pareceram em períodos posteriores nos quais foram despertadas. Assim, Freud pontua que tais imagens mnêmicas, aparentemente irrelevantes e inocentes, não emergem, como se costuma dizer, mas são formadas na época de seu despertar e questiona se realmente temos alguma lembrança proveniente de nossa infância ou apenas relativa a ela. “Uma recordação como essa, cujo valor reside no fato de representar na memória impressões e pensamentos de uma data posterior cujo conteúdo está ligado Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

104

Audrey Castañón de Mattos (FCL-Unesp) A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO

a ela por elos simbólicos ou semelhantes, pode perfeitamente ser chamada de ‘lembrança encobridora’” (Freud 1996a: 298). Desse modo, é comum que a lembrança encobridora, por seu aspecto inocente, seja o disfarce de um desejo “grosseiro” que foi recalcado. Não podendo atingir a esfera consciente devido à censura imposta pela resistência do sistema psíquico, resvala para uma lembrança infantil. Em outros casos, a lembrança infantil é prenhe de aspectos agradáveis; nesse caso, pode ter sido formada numa época posterior em que a situação era oposta, isto é, a pessoa que recorda vivia momentos difíceis ou de algum modo desagradáveis. Porque não temos a oportunidade de inquirir a personagem no divã, não podemos, como Freud, determinar a “data de fabricação” da lembrança encobridora. Podemos, entretanto, supor que ela se tenha formado à época em que começou a florescer em Gita um interesse especial pelo sexo oposto. Analisemos este fragmento retirado de suas lembranças adolescentes: O primeiro amante era o sol, andando em volta do corpo deitado, lambendo-o com a sua língua de lume, batendo-lhe ao de leve com a sua cauda, farejandoo com o seu focinho de luz – via-se isso através das pálpebras, sem abrir os olhos, enquanto o corpo amolecia e se sentia mais forte o cheiro do vento – e agora o sol começava a apoderar-se de todo o corpo, avançava sobre ele com pés cautelosos, como um animal bravio, e a gente entregava-se, rendida, e o sol entrava pela pele, pelos ouvidos, pelas narinas, pela boca, e havia finalmente o momento em que se abandonava de toda a resistência e se afastavam também as pernas e se recebia o sol no meio do corpo – o sol, sim, o sol era o primeiro amante (Gersão 2008: 157).

É notável a semelhança, na recordação do jogo infantil e no excerto acima, da analogia que liga tanto o pai quanto o sol – aqui associado à imagem do amante – ao animal que fareja e se apodera do corpo que não oferece resistência. Novamente encontramos a menção ao enxergar sem precisar abrir os olhos, indiciando o caráter reminiscente da cena. Há ainda esta outra passagem: “Ou o mar, o mar era o primeiro amante. Quando se ficava deitada na areia, quieta, quase sem respirar, tensa de expectativa, e ele subia desde longe, sem ruído, e rebentava de súbito sobre nós, inundando-nos com a sua baba de espuma” (Gersão 2008: 157), em que novamente flagramos semelhanças com a recordação infantil: a tensão da espera nos dois casos e o aproximar-se furtivo, tanto do pai que procura a menina escondida, quanto do mar, que “rebenta súbito sobre nós”, e que, assim como aquele, triunfa sobre a garota que desaparece em seus braços. Não há evidências no texto de que a personagem tenha tomado consciência do caráter encobridor de sua lembrança infantil, muito embora a constatação do complexo de Édipo lhe tenha chegado à instância consciente por ocasião de um passeio com o namorado, no momento em que se dá conta de que frequentavam juntos os mesmos lugares a que Laureano costumava levá-la:

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

105

Audrey Castañón de Mattos (FCL-Unesp) A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO

O primeiro amante era o pai, ocorre-me de repente. Sempre o pai. Mas isso num tempo irreal, impossível, nos desejos e sonhos da infância. Que um dia ficou perdida para trás. Algures, no fundo de um armário, um gato-caixa-demúsica tem a corda quebrada. Jamais dançará outra vez (Gersão 2008: 197).

É interessante notar como se explicita, no fragmento acima, a relação entre o gato da caixa da música e o sentimento devotado ao pai; a vividez sensorial com que sua imagem foi resgatada na recordação da infância – a descrição nítida da roupa, dos sapatos, do arco de flores – nos dá indícios para enxergar a preservação desse detalhe inocente como evidência do vínculo associativo que mantém com o conteúdo recalcado, no caso, o desejo pelo pai, impressão realmente significativa que, na reprodução mnêmica, foi deslocada, uma vez que sua reprodução direta é impedida pela resistência do sistema psíquico (Freud 1996c: 59).

Alinhavos da memória: considerações finais Pelo que temos visto até agora das recordações da personagem-narradora podemos incluir A árvore das palavras no rol das narrativas psicológicas, fortemente marcada pelo exame do interior da própria narradora e pela sua tentativa de fazer o mesmo com a mãe, ao reinventar sua narrativa pessoal por meio dos pertences deixados para trás. A rememoração, entretanto, não é feita de um lugar que se pode, enquanto leitor, delimitar, seja no espaço ou no tempo. Não é possível precisar se são memórias da maturidade ou ocorridas às vésperas da partida para Lisboa, quando seu olhar sobre a cidade de Lourenço Marques reveste-se de um sentimento de despedida; ou ainda, se suas lembranças são despertadas por um retorno à terra onde nasceu e cresceu. Aliás, a despeito do anúncio da partida da narradora para Lisboa, ao final do romance, não é possível sequer precisar, por meio de suas lembranças, se ela afinal saiu de Lourenço Marques, porque sua rememoração (e o romance, por extensão) finaliza na última noite na cidade, a poucas horas do embarque para Lisboa. Outro aspecto concorre para a complexidade da narrativa de Gita: estabelecer para quem ela narra. Não há nenhuma declaração sua, ou qualquer outro indício textual, de que suas memórias estejam sendo redigidas. Daí, inferimos que a narrativa seja um mergulho individual da narradora em direção a seu interior, talvez movido por uma saudade – da juventude ou da África – que, entretanto, lhe possibilita reconstruir-se, por meio do discurso, enquanto sujeito. A narrativa, apoiada numa aparente linearidade, é composta de retalhos cuja mera justaposição não lhes emprestaria ordenação. As lacunas, entretanto, são preenchidas pela verbalização das sensações, do sentimento da narradora frente aos pequenos acontecimentos como as idas ao cinema com o pai, os piqueniques com os vizinhos aos domingos (nos quais era patente a ausência da mãe) ou pequenos gestos de Lóia, a mãe adotada, na lida doméstica – o seu jeito de regar as plantas Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

106

Audrey Castañón de Mattos (FCL-Unesp) A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO

ressuscitando-as do calor abrasador, de rir e esfregar a roupa limpa novamente porque as galinhas “cagavam alegremente sobre ela” (Gersão 2008: 9). As memórias da personagem ancoram-se, como já adiantamos no início deste trabalho, não nos acontecimentos, mas na forma como ela se sentia em relação a eles. Nosso intuito foi o de interpretar não seu conteúdo manifesto, verbalizado pela narradora, mas o seu conteúdo latente, à luz da concepção freudiana de memória e de inconsciente. Pensamos com Daisy Wajnberg (1997: 100), para quem, no âmbito da análise psicanalítica, a fala é “o texto erigido sobre um outro texto, uma tradução de um suposto texto de partida”. Nesse sentido, tomamos a “fala” da narradora e procuramos sua origem, isto é, aquilo que é da alçada do inconsciente e que determina o sujeito. Assim, o que procuramos foi trazer à luz a forma como o olhar da narradora alinhavou os retalhos da memória, como ela os selecionou e coseu, dando origem à teia textual que, em última análise, é a (re)escrita de si mesma. A tarefa de análise de cenas do romance pelo viés da psicanálise, sobre a qual nos debruçamos no início desse trabalho, pode ser entendida, de certa forma, como o nosso próprio alinhavar do discurso da narrativa. Refizemos a trajetória já reconstruída pela narradora para encontrá-la, na infância, em estado de êxtase em relação à vida e à realidade circundante, vivendo a ambiguidade de uma divisão tácita do lugar onde vivia – Casa branca e Casa preta (microcosmo do próprio Moçambique) e declarando abertamente pertencer à segunda, como se a divisão não a afetasse de forma alguma, assim como aparentemente não lhe afeta a indiferença da mãe. Entretanto, através da análise de suas lembranças identificamos o caráter encobridor de várias delas – analisamos unicamente aquela que se refere ao complexo de Édipo, mas um olhar mais detido revelou-nos a possibilidade de que as lembranças relacionadas ao espaço também pudessem ser dessa ordem, formadas em fase posterior quando já era capaz de dirigir ao entorno um olhar politizado que flagrava a pobreza, a injustiça e as desigualdades características de Lourenço Marques: Chegou entretanto a época das chuvas e como sempre a cidade ficou partida ao meio, foi bênção de um lado e maldição do outro: a chuva lavava os prédios e as ruas, regava os jardins e fazia nascer flores na cidade dos brancos, e abria feridas profundas na cidade dos negros, convertida em pântano. As areias tinham-se tornado em lama, as fossas transbordavam de dejectos, água suja invadia as casas, água putrefacta, juncada de detritos (Gersão 2008: 183). Repare-se que a divisão de que antes se comprazia – “Eu pertencia à Casa Preta e ao quintal” (Gersão 2008: 9) – agora é alvo de um olhar crítico e magoado. A mesma revisão ocorre em relação à Amélia. Se as recordações da infância mostram os esforços da criança em nada assimilar do que dizia a mãe, oferecendo-lhe uma resistência ostensiva, na adolescência surpreendemos um olhar concessivo. É o caso Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

107

Audrey Castañón de Mattos (FCL-Unesp) A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO

do medo que Amélia sentia de doenças do pântano; alvo do desdém da criança, encontra uma brecha para aninhar-se entre as conjeturas da adolescente. Quando avalia as desgraças trazidas pelas chuvas à cidade dos negros, as doenças advindas da sujeira, do lixo, moscas, mosquitos e parasitas, a lembrança da mãe lhe vem à mente junto com a possibilidade de ela ter estado certa: “(Amélia e o seu medo do pântano, ocorre-me. Teria, portanto, razão?)” (Gersão 2008: 183). No exercício anamnésico a que a narradora se entrega evidencia-se o estranhamento freudiano – aquele diante do que é, na realidade, familiar. Assim, a oposição à mãe leva-a a uma identificação com o mundo dos negros, lugar em que Amélia é estrangeira, manifestando, portanto, seu estranhamento em relação a ela. Mais tarde essa identificação também se tornará estranhamento, quando a narradora manifestará inquietude e mesmo incômodo em relação ao universo cultural que antes encarava com a sensação de pertencimento. Nesse processo de autoconhecimento a figura de Amélia também passará por uma revisão, ela será reinventada e inserida em uma narrativa que se traduz em um esforço da narradora em compreendê-la a ela e às suas atitudes. Tal esforço, entretanto, não será suficiente para dissipar o estranhamento já instalado, sentimento que será levado ao extremo quando se estabelece como mera observadora ao narrar-lhe a trajetória. A iminente partida para a casa dos tios em Lisboa conscientiza-a da sua condição de estrangeira. Não se perdendo de vista que toda a narrativa se sustenta em rememorações, é possível afirmar que as lembranças adolescentes marcadas pelo estranhamento da cultura moçambicana tenham se formado à época em que se deu conta de que, sendo filha de portugueses, seria, todavia, estrangeira em Portugal: “A prima de África, que viveu outras coisas e vem de lugares onde se fala uma língua mestiçada, em que a gramática rebenta porque o pensamento acontece de outro modo e tem de ser livre de acontecer, que sabem eles disso [...]” (Gersão 2008: 222); percepção que se estendeu para o fato de tampouco ser moçambicana – a própria decisão de partir, tomada em vista de não encontrar alternativa, é indicativa de que a personagem já não encontra seu lugar no mundo. A prostração de Laureano é, em grande parte, sustentadora de seu mal-estar existencial. Desestabilizada por um brusco e injusto rompimento amoroso, não encontra o esteio antes garantido no lar e na figura do pai. O país em guerra, o melhor amigo partindo para a universidade, Gita sente-se empurrar para longe, embora saiba que não estará melhor em Lisboa – “A vida estreita e pasmada, a falta de ar e de espaço no país-casa-das-primas. Seja como for, não tenho alternativa. Não tenho alternativa” (Gersão 2008: 220). A tomada de consciência da fase edipiana carrega um pouco da certeza de que já não há nada que admirar ou desejar no pai. O gato-caixa-de-música que jamais voltará a dançar encerra a imagem de Laureano alheio a tudo, até mesmo a ela. A imagem da infância, da segurança sentida ao vê-lo sentado lendo o jornal – “Estás sentado na cadeira-à-aviador e eu ando em volta [...] posso mesmo voltar-te as costas e partir noutra direção, sei que não vou perder-me, porque tu estarás sempre sentado, a ler o jornal, ao fim da tarde. [...]” (Gersão 2008: 26) é substituída por outra, Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

108

Audrey Castañón de Mattos (FCL-Unesp) A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO

que o insere, juntamente com tudo à sua volta, no território do estranho: “Mas já ele deixou cair o jornal, com aquele seu ar perdido e ausente, e dormita, sem tirar os óculos, sentado na cadeira-à-aviador, a boca entreaberta, a cabeça voltada para o tecto. É uma tarde de domingo, uma tarde morta de domingo” (Gersão 2008: 219, grifo nosso).

THE WRITING OF THE SELF THROUGH MEMORY: A PSYCHOANALYTIC STUDY OF THE NOVEL A ÁRVORE DAS PALAVRAS, BY TEOLINDA GERSÃO Abstract: Taking into consideration that the underpinning of the narrative in the novel are the memories of its protagonist which are affected not by the events, but by the way she feels about them, and considering the Freudian conception that memory is related to the unconscious, attributing to the mnemonic material its continuous capacity for changing, we analyze the latent content of the memories of the protagonist through the analysis of its manifest content to bring to light the way the look of the protagonist has sketched the memory patches, selected them, and woven them, originating in this way the textual web which, in general terms, is the (re)writing of herself. Keywords: Teolinda Gersão; Psychological narrative; Memory in Freud.

REFERÊNCIAS

AMBROGI, M. V. B. A sugestão metafórica na obra ficcional de José Cardoso Pires. 1981. 165 f. Tese doutorado (Literatura Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, 1981. ARISTÓTELES. Arte poética. In: ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. Tradução direta do grego e do latim de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2005. CHAVES, W. C. A determinação do sujeito em Lacan: da reintrodução na psiquiatria à subversão do sujeito. São Carlos: Edufscar, 2005. p. 38-63. FREUD, S. O estranho. In: ______. Uma criança é espancada; sobre o ensino da psicanálise nas universidades e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. ______. Lembranças encobridoras. In: ______. Primeiras publicações psicanalíticas (18931899). Rio de Janeiro: Imago, 1996a, v. 3, p. 285-304. (Edição standard brasileira da obras psicológicas completas de Sigmund Freud). Traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

109

Audrey Castañón de Mattos (FCL-Unesp) A ESCRITA DO EU POR MEIO DA MEMÓRIA: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DO ROMANCE A ÁRVORE DAS PALAVRAS, DE TEOLINDA GERSÃO

______. A psicologia dos processos oníricos. In: ______. A interpretação dos sonhos II e Sobre os sonhos (1900-1901). Rio de Janeiro: Imago, 1996b, v. 5, cap. 7, p. 564-579. (Edição standard brasileira da obras psicológicas completas de Sigmund Freud). Traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. ______. Lembranças da infância e lembranças encobridoras. In: ______. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901). Rio de Janeiro: Imago, 1996c, v. 6, cap. 4, p. 5966. (Edição standard brasileira da obras psicológicas completas de Sigmund Freud). Traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. ______. O mal-estar na civilização. In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago, 1996d, v. 21, p. 67-148. (Edição standard brasileira da obras psicológicas completas de Sigmund Freud). Traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. ______. Sexualidade feminina. In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago, 1996e, v. 21, p. 231-251. (Edição standard brasileira da obras psicológicas completas de Sigmund Freud). Traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. GARCIA-ROZA, L. A. Impressão, traço e texto. In: ______. Introdução à metapsicologia freudiana. A interpretação do sonho. 7. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 44-67. GENETTE, G. Discurso da narrativa. Tradução de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega, 1995. GERSÃO T. A árvore das palavras. 6. ed. Lisboa: Sextante, 2008. MENESES, A. B. Memória e ficção I (Aristóteles, Freud e a memória). In: ______. Do poder da palavra. Ensaios de literatura e psicanálise. São Paulo: Duas cidades, 1995. p. 131-141. PERIPÉCIA. In: FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio. Versão 5.11a. [s.l.]: Positivo editora, 2004. WAJNBERG, D. A teoria da memória em Freud. In: ______. Jardim de arabescos. Uma leitura das Mil e uma noites. Rio de Janeiro: Imago, 1997. p. 97-108.

ARTIGO RECEBIDO EM 26/02/2012 E APROVADO EM 31/03/2012. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

110

A NEGAÇÃO DO MUNDO: A PALAVRA PROIBIDA João Luiz Peçanha Couto (USP)1

Resumo: O presente artigo pretende, por meio da análise do ensaio “A literatura e o direito à morte”, de Maurice Blanchot, investigar a palavra e a linguagem literárias como súmulas da negação do real e da vida, e da afirmação da morte e do embate como sentidos da literatura, na direção contrária da postulada pelos defensores da representação como único mote para o exercício literário. Palavras-chave: Morte; Narrativa; Palavra literária.

Qual é mesmo a palavra secreta? [...] Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a verdade. (Clarice Lispector)

Leslie Hill, professor da Universidade de Warwick, estudou o trabalho do filósofo francês Maurice Blanchot em seu livro Blanchot: extreme contemporary, de 1997. Segundo ele, Blanchot argumenta que a literatura não se dedica a produzir sentido no mundo; em vez disso, busca suprimir a palavra comum e substituí-la por sua absoluta ausência – ausência identificada com a escrita literária (Hill 1997: 107). Ao contrário de Sartre, que admitia uma função moral e positiva para a literatura, de reconstrução utópica do mundo por meio da arte, Blanchot assinala seu viés desestabilizador, de dúvida e negação do mundo. Essa contradição entre o engajamento sartreano e a inoperância atribuída por Blanchot à literatura foi o motor para que este último escrevesse o ensaio "A literatura e o direito à morte”, que ora comentamos.

1 Mestre em Estudos Comparados de Literaturas em Língua Portuguesa – FFLCH/USP. E-mail: [email protected].

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

João Luiz Peçanha Couto (USP) A NEGAÇÃO DO MUNDO: A PALAVRA PROIBIDA

Nesse ensaio, constante do volume “A parte do fogo” (1949), Maurice Blanchot delineou pela primeira vez conceitos que, mais tarde, investigaria mais detidamente. O francês parte de um discurso filosófico hegemônico, centrado sobretudo no pensamento hegeliano, para traçar seu próprio percurso de análise da literatura (Vasconcelos 2002: 146), afirmado tanto como processo isolado em si quanto considerada sua inserção no mundo. O ensaio permite questionar a relação entre escritor, obra, linguagem, palavras e coisas; nele igualmente estão presentes: a morte na literatura, uma releitura do surrealismo, a questão da morte do autor, seu resgate de Hegel e seu embate com Sartre – constituindo, nesse caso, o enfrentamento da noção de escritor engagé. Primeiramente, Blanchot afirma que a literatura se inicia no momento mesmo em que ela se torna uma questão – sua própria questão. A pergunta que daí emerge só é respondida pelo e no fazer literário, pois é nesse fazer – nela, literatura – que “repousa silenciosamente a mesma indagação, endereçada à linguagem, por trás do homem que escreve e lê, pela linguagem que se tornou literatura” (Blanchot 1997: 291). Nesses dois termos, tidos como essenciais à literatura – a linguagem e o homem que a produz – repousa o potencial volitivo daquela pergunta misteriosa, e, quem sabe, sua resposta inaudível, inarticulável. Assim, aquele que escreve e aquele que lê são dissolvidos em favor da emergência da experiência da literatura, região que desabilita aquele aparente binômio excludente. Se a morte do autor é aqui anunciada, é depreciada a noção do escritor apartado do mundo, morador de um único plano reservado às almas “iluminadas”, capazes de produzir literatura. Em vez disso, afirma que aquele que a produziu desaparece para dar lugar à linguagem. Blanchot apresenta o surrealismo como movimento exemplar desse questionamento sobre a arte, por desestabilizar o caráter sublime da literatura e esvaziá-la de si mesma, tornando-a tão-somente “a revelação desse dentro vazio, que inteira se abre à sua parte de nada, que realize sua própria irrealidade” (Blanchot 1997: 292). Tal movimento negativo e destitutivo dá-lhe “a condição de ser isolada em estado puro” e atribui-lhe maior “ambição criadora” quando a concilia com um nada e retira-lhe o poder de afirmação ou autenticação do mundo. O movimento surrealista evoca a revelação deste “dentro vazio”, explicitando a ruína da literatura, a negação do seu status de afirmação das coisas, como sua potência; seu distanciamento de uma afirmação totalizante, sua afirmação; seu silêncio, seu poder. Sua nulidade, por colocá-la como ato bruto, dá-lhe autonomia, tira-a de um centro afirmador, marginaliza-a e a desatrela de verdades positivantes (ou afirmativas). Os surrealistas contribuíram com produções literárias, baseadas num tudo abolidor do racional limitante. Aqueles autores traziam o atrevimento de uma certa indiferença em fazer com que suas obras correspondessem a uma demanda do público ou da crítica, gerando uma arte desabridamente ligada à ideia inventiva de liberdade.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

112

João Luiz Peçanha Couto (USP) A NEGAÇÃO DO MUNDO: A PALAVRA PROIBIDA

O paradoxo de Hegel O ensaio empreende o resgate do pensamento hegeliano para explicitar o paradoxo de todo ato de escrita literária: o escritor só pode ser considerado escritor quando há uma obra que o autentique. No entanto, se a obra ainda não foi terminada, isto é, se aquele trabalho que autenticará seu executor ainda não está finalizado, o executor não existe e, portanto, não há escritor; e, se o escritor inexiste, tal obra nunca existirá: “Ele só existe a partir da obra; mas, então, como pode a obra existir?” (Blanchot 1997: 293). Aparentemente, por circularidade a literatura morreria, mas, salvação dos perdidos, é a operação no mundo, o ato que o levará até a realidade efetiva – é o ato da escrita que o tornará escritor. Contudo, o ato futuro desautoriza sua realização. Assim, se o escritor antevê a obra, consegue vislumbrá-la esplendorosa e perfeita, quais razões ele teria para transformar aquilo, pura graça enquanto projeto, se “essa presença é o essencial da obra (as palavras aqui sendo consideradas acessórias), por que ele a realizaria mais que isso?” (Blanchot 1997: 294). Outra possibilidade, mais exequível: o escritor, ciente de que sua obra só será obra se realizada, decidirá escrever a partir de um nada, pois o tudo embutido naquele projeto literário não merece ser desapropriado de sua perfeição de origem. Nesse sentido, Hegel observa que as circunstâncias da escrita devem-se irmanar com o talento do escritor, dissolvendo o binômio autor-obra: “ele é o seu autor – ou, mais exatamente, graças a ela que ele é autor: é dela que tira sua existência, ele a fez e ela o faz” (Blanchot 1997: 295). Contudo, no momento mesmo em que a obra se torna pública, o escritor vê que o interesse do público por ela não é o mesmo que o movimento único que o pôs em ato de escrita. Esse movimento transforma a obra, pois a faz perder aquelas motivações que a fizeram ser criada e a torna outra coisa que não a obra. Ela desaparece quando passa a pertencer a outrem, apropriação de leituras diversas, memoriais de vida outros: [...] o escritor gostaria de proteger a perfeição da Coisa escrita mantendo-a o mais afastada possível da vida exterior. A obra é o que ele fez, não é esse livro comprado, lido, triturado, exaltado ou esmagado pela cotação do mundo. [...] Por que torná-la pública? Por quê, se é preciso preservar nela o esplendor do puro eu, fazê-la passar ao exterior, realizá-la, em palavras que são as de todo mundo? (Blanchot 1997: 296).

O autor então se suprime, pois só o que conta na obra é aquele que, lendo-a, a (re) cria, “a consciência e a substância viva da coisa escrita” (Blanchot 1997: 296). Ao autor resta “escrever para o leitor e se confundir com ele” (Blanchot 1997: 296), mas nesse gesto igualmente surge erro de estratégia: entendida a literatura como o desejo e o exercício da alteridade, ao leitor não interessa um livro escrito por ele, pois deseja que a obra o faça vislumbrar “algo desconhecido, uma realidade diferente, um espírito separado que possa transformá-lo e que ele possa transformar em si” (Blanchot 1997: 296-297). Se um autor escreve para um público, em verdade quem escreve é aquele público – e se aquele que lê é quem no fundo escreve, a leitura se Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

113

João Luiz Peçanha Couto (USP) A NEGAÇÃO DO MUNDO: A PALAVRA PROIBIDA

desapropria de si mesma, torna-se aparência e se revela nula: o autor sucumbe. Blanchot traz os termos noite e dia para afirmar esse embate entre o que está no dentro privado do escritor e transborda para o exterior público. É nesse esmaecimento do autor na obra, nessa confusão necessária entre o criado e seu criador que a literatura se consagra. E por isso assoma a escrita automática da primeira metade do século XX, cristalizada no movimento surrealista, como modelar desse salto no abismo de possibilidades, dessa colcha de hesitações, chamada de pura ventura por Hegel. Para Blanchot, portanto, a obra é construída também – e sobretudo – fora do escritor. É vão pensar que as operações literárias não sejam absorvidas pelo céu de contingências do mundo público, pelo contato daquela obra com outros olhares que não o seu. O pensador francês resgata o que Hegel chamaria de a própria Coisa, operação identificada com o leitor, ponte entre a impossibilidade da obra e o movimento da obra em direção ao mundo: Todavia, sua experiência não é nula: escrevendo, ele próprio se experimentou como um nada no trabalho e, depois de ter escrito, faz a experiência de sua obra como algo que desaparece. A obra desaparece, mas o fato de desaparecer se mantém, aparece como essencial, como o movimento que permite à obra realizar-se entrando no curso da história, realizar-se desaparecendo. (Blanchot 1997: 297).

O esforço de presença do mundo na obra é o que a mantém, mesmo sabendose de antemão que esse esforço é impossibilidade em si mesmo: “a meta não é o que o escritor faz, mas a verdade do que faz”. Nesse sentido, a obra resume aquele movimento de dispersão de sua origem em direção à sua verdadeira existência. O nulo e o nada sobrevêm como a verdade de toda obra. Desassistida por um autor que deixou de sê-lo, resta a ela sobreviver dos cacos de memória de que foi gerada e entregar-se ao fundo de tudo isso, à sua real meta: a experiência da apropriação daquela realidade de nada pelo leitor. Sua verdade: nascida de um caldo primordial de experiências inalcançáveis em sua perfeição, a ela resta o castigo de sua experimentação em outrem. Em outro texto (“A leitura de Kafka”) do mesmo livro A parte do fogo, Blanchot comenta que Kafka, ao pedir ao amigo Max Brod que queimasse seus originais, buscava o fundo desse anonimato, essa ausência absoluta; mas, ironia ou não, o fato de seu amigo não ter atendido a seu pedido tornou o autor de A metamorfose a um só tempo glorioso e desgraçado: [...] quando vemos esta obra, principalmente silenciosa, invadida pela tagarelice dos comentários, esses livros impublicáveis sendo objeto de infindáveis publicações, essa criação atemporal convertida numa glosa da história, perguntamo-nos se o próprio Kafka não teria previsto um tão grande desastre em tão grande triunfo (Blanchot 1997: 9).

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

114

João Luiz Peçanha Couto (USP) A NEGAÇÃO DO MUNDO: A PALAVRA PROIBIDA

Essa indiscrição entregou-o ao público, e o enigma, que antes se mostrava indecifrável, trama-se como reprodutível e contingencial porque tornado real, produto, livro. Nessa operação de tornar a intenção de apenas escrever o mundo no próprio mundo, de mergulhar aquela obra essencial no que é contingencial, uma parte daquilo que era todo o seu mundo está irremediavelmente perdida, pois a dispersão inerente a toda experiência literária despotencializa aquelas verdades de origem.

O silêncio da escrita Writing is traversed by fundamental ambiguity. (Leslie Hill)

Também a ausência do escritor não é totalmente afirmativa, pois igualmente mostra-se pura presença; ele encontra-se, movimento contínuo, diluído e presente em todo o processo da escrita. Essa ausência não afirma a troca mecânica de ausência / presença ou um processo de início e fim atrelado a um “sujeito esclarecedor do vínculo problemático” (Vasconcelos 2002: 149) com o mundo, como proposto pelos frankfurtianos. Antes disso, mostra-se como processo permanente de compreensão e questionamento, excluídas aqui a tentativa de acerto histórico pelo personagem problemático ou aquela “síntese superior do ser, seja em nome da autenticidade (Heidegger) seja em nome da História (Hegel, Sartre)” (Vasconcelos 2002: 150). No entanto, jamais deixamos de entrever a figura do escritor como ponto de ligação do trinômio autor-obra-leitor: O escritor sem nome, pura ausência dele mesmo, pura ociosidade, em seguida o escritor que é trabalho, movimento de uma realização indiferente ao que realiza, a seguir o escritor que é resultado desse trabalho e vale por esse resultado, e não pelo trabalho, real tanto quanto é real a coisa feita, depois o escritor, não mais afirmado, mas negado por esse resultado e salvando a obra efêmera salvando dela o ideal, a verdade da obra (Blanchot 1997: 300).

O escritor não exclui aqueles elementos, mas os relaciona; é nessa fatalidade, nesse movimento incessante de afirmação e anulação, de conciliação improvável, que sua existência, e a existência daquilo que para ele é verdade, se afirmam. Esse descompromisso autoral com o resultado da obra é a moral de quem escreve: [...] ele deve se opor a si mesmo, negar-se afirmando-se, encontrar na facilidade do dia a profundidade da noite, nas trevas que nunca começam a luz certa que não pode terminar. Deve salvar o mundo e ser o abismo (Blanchot 1997: 302).

Essa operação nem aparta a literatura do mundo nem lhe impõe a necessidade concreta de traduzi-lo e transgredi-lo. Não é dever da literatura transformá-lo, mas Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

115

João Luiz Peçanha Couto (USP) A NEGAÇÃO DO MUNDO: A PALAVRA PROIBIDA

acaba por fazê-lo à sua maneira. Apesar de ele gestá-la a partir de um nada ausente do mundo, o escritor precisa destruir a linguagem realizável, erigi-la diferente do que era e assumir a negação daquilo que afirma. Assim, a obra está no mundo graças à sua ausência dele, pois é na diferença entre o projeto da obra e a própria obra que está o fazer literário; e é nesse lugar de desconstrução que a linguagem afirma-se como elemento constituidor de uma nova realidade: O livro, coisa escrita, entra no mundo, onde cumpre sua obra de transformação e negação. Também é o futuro de muitas outras coisas, e não apenas livros, mas, pelos projetos que podem dele nascer, pelos empreendimentos que favorece, o conjunto do mundo do qual é o reflexo mudado, fonte infinita de novas realidades, a partir de que a existência será o que não era (Blanchot 1997: 303-304).

Blanchot nega a obrigação de a literatura existir para agir no mundo, embora seu processo acabe por fazer com que aja. Seu engajamento está nessa displicência enganosa. Seu trabalho está nessa ausência (que é presença em um sentido não correspondente, contrarrespectivo) do mundo, pois é a partir desse duplo de repetição e descolamento, de representação de uma realidade dada e de refundação de um mundo com suas regras próprias, que a obra se cumpre. Literatura engajada? Assim, a chamada literatura engajada é reconcebida por Blanchot, que condena a cisão entre o engajamento social determinista e o envolvimento pessoal com os movimentos da sociedade. Em vez disso, verifica-se um empenho comunitário desatrelado de um princípio centrado no coletivismo como síntese resultante de um movimento dialético. Aqui fica caracterizada a escrita como processo que leva a um saber extremo – e, portanto, a um estar presente no mundo. As demandas que supre achegam-se ao âmbito subjetivo, esmaecendo-se quando frente a frente com a visada sócio-histórica, por buscarem soluções “segundo os caminhos do tempo num ideal acima do tempo, vazio e inacessível” (Blanchot 1997: 304). A obra, segundo Blanchot, “prioriza aquele que viveu sobre aquele que escreveu” (Blanchot 1997: 9), o que altera a relação de forças entre a experiência e a escrita. No ato da escrita, o escritor torna-se senhor de tudo, pois age sem limites sobre aquele mundo e aquela linguagem, tornando-se dono de um “poder próprio, poder de faltar com a verdade” (Vasconcelos 2002: 148). Assim, a literatura não busca um acerto de contas com a história ou um fim social para a ação por ela supostamente estimulada, apenas procura sugerir suas perguntas como suportes para o questionamento de uma realidade, a partir de um lugar marginal àquele espaço social. Esse lugar não se coloca fora do mundo; está no mundo, mas não se deixa cegar por suas contingências cotidianas – e é por esta característica que se afirma criticamente perante ele: sua força está nesse aparente desinteresse. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

116

João Luiz Peçanha Couto (USP) A NEGAÇÃO DO MUNDO: A PALAVRA PROIBIDA

Nesse espaço, permite-se afirmar outra verdade, não a verdade limitadora contingencial, mas a verdade indecifrável daquele mundo extremo, lugar da hesitação que desabilita o suporte dialético, pois “não há todo a ser reafirmado [...] no espaço produzido pelos livros dos criadores de literatura” (Blanchot 1997: 304). Sua ação é menos contingencial que reflexiva. Ele “coloca à nossa disposição toda a realidade”, e esse tudo possível não é exequível fora da obra. Nesse sentido, a objetividade absoluta é implausível, pois o mundo concreto demanda recortes e limitações para o seu entendimento, irmanando-o com a finitude. Já a obra literária e o espaço nela exercido via linguagem dispõem a quem a lê todas as potencialidades de compreensão: aquele mundo é um tudo. Blanchot esclarece tal relação entre mundo real e criado, concreto e literário (parte da citação já referenciada anteriormente): O imaginário não é uma estranha região situada além do mundo; é o próprio mundo, mas o mundo como conjunto, como o todo. Por isso não está no mundo, pois é o mundo, tomado e realizado em seu conjunto pela negação global de todas as realidades particulares que nele se encontram, por sua colocação fora do jogo, sua ausência, pela realização dessa mesma ausência, com a qual começa a criação literária, que se dá a ilusão, quando se volta para cada coisa e cada ser, de criá-los, porque agora os vê e os nomeia a partir do todo, a partir da ausência de tudo (Blanchot 1997: 305).

Essa dimensão do mundo, expressa por um posicionamento fora dele próprio, torna transformadora a ação do escritor: aquele tudo que ele cria desencarcera-se das contingências, permitindo-lhe tratar a realidade sem amarras. Aqui nada se opera, mantendo-se a dicotomia dentro-ou-fora-do-mundo. Ao contrário: tal como a obra, o escritor é ser de papel, cujas ações só se validam quando afastadas das contingências, mas, no entanto, ele está no mundo – graças à sua ausência dele. Esse poder não advém do mundo, mas da sua ação criadora que, por revolucionária, é sua liberdade. A literatura e o direito à morte mostra-se como resposta a Sartre que, em Que é a literatura?, afirma a literatura de prosa como agente de viés moral, engajada na História e na necessidade de transformação do mundo (“Parler c’est agir”); agente formador, por sua ação, da própria ideia de liberdade. Blanchot refuga o existencialista, ao negar tais implicações e dessubordinar a literatura daquela “propaganda moral”. A obra não busca um fim no mundo – sua causa é a própria questão que a gerou. Karl Erik Schøllhammer assinala que esse modus operandi “não reside numa nova objetividade do fato contingente, mas na maneira como o real é rendido pela escrita” (Schøllhammer 2009: 107). É a essa ausência de objetividade moralizante, a esse continuum discursivo que determina a impossibilidade de seu fim que Blanchot atribui todo o poder transformador da escrita. É nessa morte do mundo, que também é sua total presença, que está sua potência. Vasconcelos afirma que a crítica blanchotiana aproxima-se da escrita “de modo a melhor atentar para o funcionamento das redes culturais, temporais, em que a literatura se dispõe e a partir das quais afirma seu lugar de fora” (Vasconcelos 2002: Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

117

João Luiz Peçanha Couto (USP) A NEGAÇÃO DO MUNDO: A PALAVRA PROIBIDA

144), lugar pleno de possibilidades que se habilita graças à “tensão de seu próprio desaparecimento na fronteira dos saberes” (Vasconcelos 2002: 144), chamando para si o signo da morte, existente no traçado desse desaparecimento. Entenda-se a morte aqui, no entanto, como liberta da individualidade, pois “apesar de manifestado numa individuação, o trabalho mortal é experiência comum, extensiva a qualquerum” (Vasconcelos 2002: 153).

A linguagem instauradora Todas as coisas do mundo não cabem numa ideia. Mas tudo cabe numa palavra, nesta palavra tudo. (Arnaldo Antunes)

Nada mais apropriado para expressar esse irmanamento da morte com a ação do escritor do que a linguagem. É a partir dela que a literatura opera suas (des) construções, é por ela que o esfacelamento necessário para a construção estética embutida na escrita se cumpre. É por meio da linguagem, se não através dela, que a relação entre as palavras e as coisas, entre o mundo dado e aquele outro mundo das platitudes, é reconstituída. O “ser primitivo sabe que a posse das palavras lhe dá o domínio das coisas” (Blanchot 1997: 310), mas essa posse exigiria que se suprimisse aquilo que foi nomeado. Assim, quando nos apossamos de algo por meio da palavra, é suprimida dele sua existência: Para que eu possa dizer: essa mulher, é preciso que de uma maneira ou de outra eu lhe retire sua realidade de carne e osso, que a torne ausente e a aniquile. A palavra me dá o ser, mas ele me chegará privado de ser (Blanchot 1997: 310-311).

Em contraposição a Hegel, Blanchot destaca o poder da palavra de se desfazer do real. Hegel lembra que Adão, em seu primeiro ato de nomear os animais, os destituiu de sua existência, promovendo o primeiro assassinato inimputável da história da cristandade. É na nomeação que o homem faz com que as coisas ganhem sentido para ele – é na destituição daquilo que é nomeado que o homem conhece. Assim, o conhecimento passa pela morte do que se pretendia conhecer e por sua reconstituição como saber: a negação e a linguagem convivem num mesmo movimento com aquele objeto de que se quer se aproximar. A linguagem comum e cotidiana, enfraquecida de seu poder de transformação, apenas chama um gato de gato, pois considera o gato vivo e sua nomeação pela palavra idênticos, e nessa operação não o destitui de sua realidade. O concreto e o criado habitam o mundo e não se excluem: “a palavra lhe restitui, no plano de ser (da ideia), toda a certeza que ele tinha no plano da existência” (Blanchot 1997: 313). No limite, o ser concreto pode se transformar ou até mesmo deixar de existir, mas sua ideia, definitiva e segura, permanece. Já a linguagem literária nos Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

118

João Luiz Peçanha Couto (USP) A NEGAÇÃO DO MUNDO: A PALAVRA PROIBIDA

mostra uma operação “feita de inquietude”, pois admite e necessita da instabilidade, da exclusão e da morte. O gato torna-se negação que se tornou palavra, mundo em si; uma não-existência objetiva e plena de realidade. A operação promove a troca entre a morte do gato cotidiano e sua constituição como palavra e ideia. Todavia, essa ideia não se fecha, não toma para si o caráter puramente irreal, pois sua irrealidade de coisa a transpõe para a realidade da linguagem: “a palavra não basta para a realidade que ela contém” (Blanchot 1997: 313). Blanchot assinala a operação de apropriação da linguagem literária como a liberdade da coisa na palavra literária: O lacre que retinha esse nada nos limites da palavra e sob as espécies do seu sentido se partiu; eis aberto o acesso a outros nomes, menos fixos, ainda indecisos, mais capazes de se reconciliar com a liberdade selvagem da essência negativa dos conjuntos instáveis, não mais dos termos, mas de seu movimento, deslizamento sem fim de “expressões” que não chegam a lugar nenhum (Blanchot 1997: 314).

Na formação desses “conjuntos instáveis”, nesse exercício de hesitação reside o poder da linguagem da literatura. O poeta Arnaldo Antunes bem trata desse poder na epígrafe acima. É na linguagem da literatura que a palavra-Lázaro admite suas realidades, de frescor e de putrefação, antes e depois da operação de sua apropriação e desaparição. É nela que, pelo nada que significa, pela não-referencialização direta e individualizante om seu equivalente concreto, o literário se afirma. Na palavra literária, morre o que lhe dá vida, mas essa escrita e essa nomeação ocorrem se opondo àquele assassinato puro e simples da apropriação cotidiana. Na operação apropriativa, a linguagem poética pluraliza os atributos da coisa renomeada, e esse morrer advindo do apagamento da referência individualizadora da coisa cotidiana esmaece a negatividade absoluta daquela operação. Cumpre lembrar que esse processo difere-se, por outro lado, do trabalho do homem na História e da ideia teleológica de obra como produto com um fim em si.

Dispersão e origem Todavia, o processo de apropriação do real por meio da linguagem literária revela-se igualmente momento de dispersão, pois algo que antes ali havia desaparece, o que era de origem jamais será plenamente restabelecido e os elementos daquela estranha equação nunca mais poderão ser restaurados ou reproduzidos: a morte por diluição daquilo que foi unicamente enunciado acompanha o processo. O empenho da literatura está em perseguir o momento que precede aquela apreensão, o momento da verdade original da coisa, o gato como gato, o Lázaro do túmulo, o princípio, o caos da própria coisa nomeada, irremissível. A esperança de reatar aquela antiga aliança (entre o que é nomeado e a própria coisa) é a obrigação da literatura, e sua única chance de êxito está na linguagem: “Não é a noite; é sua obsessão; não a noite, mas a consciência da noite que sem descanso vela para se Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

119

João Luiz Peçanha Couto (USP) A NEGAÇÃO DO MUNDO: A PALAVRA PROIBIDA

surpreender e por causa disso, sem repouso, se dissipa. Não é o dia, é o lado do dia que este rejeitou para se tornar luz” (Blanchot 1997: 316). O jogo se constrói não mais como reflexo do mundo dado, mas como tentativa de relançamento da referencialidade da coisa original, e a palavra poética torna-se, para a coisa nomeada, “mais um refúgio que uma ameaça”, é sua chance de manterse, mesmo desaparecida, de alguma maneira, viva. A sua precisão, a exatidão viva da palavra comum, enquanto coisa, se apaga para dar lugar ao estranho poder de significar. Daí emergem os dois vieses para o entendimento do processo de nomeação cometida pela palavra literária: o da negação e o do reconhecimento da impossibilidade de reconstituição da aliança com o nomeado. A partir desses movimentos, a literatura se posta sempre além do mundo, à sua margem, extrapolando-o enquanto realidade dada e reinventando-o à sua maneira, sem deixar de marcar o mundo e suas “bordas”: o além-mundo. Não consiste em sua negação, mas no seu vislumbre privilegiado, porque a partir de um lugar ao largo, marginal a ele. É desse lugar que ela emana seu poder de falar das coisas e de se ocupar dos homens e termina por admitir em si mesma sua autoridade mais potente, seu engajamento mais veemente. Desse lugar outliner, torna-se incômoda e até perigosa. Sua aparente distância da realidade faz com que atue sobre o mundo como a adaga que penetra um corpo estranho, sem compromissos que a aprisionem na manutenção da vida daquele corpo, ao mesmo tempo aliada e descompromissada, “indeferida pela história”: [...] existe em sua natureza um deslizamento estranho entre ser e não ser, presença, ausência, realidade e irrealidade. O que é uma obra? Palavras reais e uma história imaginária, um mundo onde tudo o que acontece é tirado da realidade, e esse mundo é inacessível; personagens que se querem vivos, mas sabemos que sua vida é feita de não viver (de permanecer ficção) (Blanchot 1997: 326).

A materialidade da apropriação literária pode ser duvidosa, mas a materialidade do livro é real, e a realidade daquela ficção é muitas vezes muito mais concreta do que o próprio real, pois a realidade da linguagem a impregna de si mesma. Isso faz com que a literatura exista, seja a expressão inventiva de tudo o que não pode ser exprimido e adquira por isso uma força insuspeitada. Ela evoca a náusea ao mundo, permite que se sinta estranho a ele, catapulta quem a experiência para aquele lugar “de borda”; trabalha no mundo porque dele descomprometida, situada fora do lacre imobilizante da palavra comum: exterioridade radical praticada graças à sua visada subjetiva. Atribui, como direito, um sinal negativo ou positivo, mas oposto, a tudo que toca; atribui não o signo materializador de uma historicidade e constituidor da razão (Vasconcelos 2002: 148), mas desmistificador do poder do negativo, a própria morte (a historicidade em seu ponto limite, não ideal); joga com a hesitação onde existe o assertivo monolítico; afirma a instabilidade como sua arma mais poderosa; abriga o excesso e o abuso que secretamente habitam as palavras

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

120

João Luiz Peçanha Couto (USP) A NEGAÇÃO DO MUNDO: A PALAVRA PROIBIDA

porque não procura afirmar, mas buscar as indagações intermitentes, de que trata Blanchot num ensaio sobre Nietzsche, no mesmo livro do ensaio que estudamos: É como se, no âmago da literatura e da linguagem, para além dos movimentos aparentes que as transformam, estivesse reservado um ponto de instabilidade, um poder de metamorfose substancial, capaz de tudo mudar sem nada mudar. Essa instabilidade pode passar como o efeito de uma força desagregadora, pois por ela a obra mais forte e mais carregada de força pode se tornar uma obra de desgraça e ruína, mas essa desagregação é também construção, se subitamente por ela o desespero se faz esperança e a destruição se faz elemento de indestrutibilidade (Blanchot 1997: 329).

O efeito de tomar o sinal das coisas e transformá-lo em seu oposto denota o poder da literatura sobre o mundo, pois a morte existente nesse shift afirma a origem daquilo que é mencionado pela escrita sem, no entanto, resgatá-la por completo, sob pena de debilitar seu poder imensurável de questionamento.

THE DENIAL OF THE WORLD: THE FORBIDDEN WORD Abstract: This article aims, through the analysis of the essay "Literature and the right to die", by Maurice Blanchot, to investigate the literary word and language as overviews of the denial of reality and life, and of the affirmation of death and the struggle as meanings of literature, in the opposite direction of that postulated by the advocates of representation as the only theme for the literary exercise. Keywords: Death; Narrative; Literary word.

REFERÊNCIAS BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. HILL, Leslie. Blanchot: extreme contemporary. London: Routledge, 1997. SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. VASCONCELOS, Mauricio Salles de. Blanchot, paradoxo plural. In: Caligrama. Revista de Estudos Românicos. Belo Horizonte: UFMG, 2002, pp. 143-155.

ARTIGO RECEBIDO EM 24/01/2012 E APROVADO EM 23/03/2012. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

121

O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST Rubens da Cunha (UFSC)1

RESUMO: Partindo das ideias de Blanchot a respeito da literatura como impossibilidade de morrer, da escrita como reviravolta radical, este artigo pretende apontar como a escrita de Hilda Hilst, é, ao mesmo tempo, uma tentativa contínua de entendimento do sentido da vida e da morte e um instrumento para Hilda comportar-se de maneira esdrúxula diante da relação conflituosa que existe entre o escritor, a obra e o mercado literário. PALAVRAS CHAVES: Hilda Hilst; Fracasso; Escrita; Mercado literário.

Escrever: armadilhas Escrever: ação humana cujo significado tem atravessado, preenchido, nublado, esclarecido a mente de muitos que se dedicaram, ou se dedicam, à tentativa de capturar esse mistério dentro dos limites de um conjunto de palavras capaz de resumir as inúmeras possibilidades que essa ação comporta. Quanto mais difícil é o objeto de ser conceituado (ao lado da escrita, podemos pensar o escritor, a literatura, a poesia, o tempo, a morte), mais são as vigílias, mais longas são as tocaias, a busca incontida efetuada pelo pensamento para propor conceitos aptos a prender, apreender, compreender o objeto a ser capturado. Maurice Blanchot foi um dos que mais preparou essas armadilhas. Ele passou grande parte de sua vida como se estivesse em tocaias. Nele, a escrita foi tanto o animal-texto-conceito a ser caçado, quanto a própria armadilha-texto, arapuca-texto armada ao longo dos anos, pacientemente, para dar conta dessa carne dúbia, desse objeto atacado que é, também, o próprio atacante. A literatura é um mundo autossuficiente, em que a obra produzida não é acabada nem inacabada, apenas é. Quem subsidia esse espaço literário é a ambiguidade e nesse território toda segurança que a palavra possa ter no mundo dito “real” cai por terra, a palavra separa-se do referente, entrega-se ao vazio, ao nada, ao abismo do não-saber. Dessa forma, surge uma espécie de reformulação da morte em impossibilidade de morrer e nessa impossibilidade cria-se o espaço da literatura, esse lugar-outro, que se Doutorando em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected]. 1

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Rubens da Cunha (UFSC) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST

relaciona com a existência ainda desumana e “mergulha nesse fundo de existência que não é ser nem nada em que a esperança de nada fazer é radicalmente suprimida” (Blanchot 1997: 326). A relação do escritor com a obra se torna paradoxal, desterritorializada, incapaz de fixar-se em algo, pois se ele escreveu para se desfazer de si, a obra lhe exige comprometimento e lhe faz chamamentos diversos. Por outro lado, se o escritor escreveu para se manifestar, para viver na obra, tudo o que ele tem é nada, “que a maior obra não vale o ato mais insignificante”, vaticina Blanchot (1997: 327), além disso, a obra condena o escritor a uma existência que não é a sua e a uma vida que não é vida. Há também a relação com a impossibilidade da morte: o escrever ocorreu porque ouviu-se o trabalho da morte preparando os seres para a verdade de seus nomes, porém a escrita e o escritor são trabalhos para o nada. Quando o vazio é realizado a obra nasce, fiel à morte e incapaz de morrer: “a quem quis preparar-se uma morte sem história só traz o desdém da imortalidade” (Blanchot 1997: 326). Outro conceito de escrever capturado por Blanchot (1987) diz que escrever pressupõe uma reviravolta radical. Escrever não se cumpre no presente, nem apresenta, nem se apresenta e muito menos representa. Escrever é sempre reescrever, o que não remete a nenhuma escritura prévia, como tampouco a uma anterioridade de fala ou de presença ou de significação (Blanchot 1994: 63). Não são apenas filósofos que buscam conceituar o escrever que, se é um retirar-se, um abandono da palavra, uma experiência de morte, uma impossibilidade da morte, ou algo intransitivo, como pensou Barthes, também “é uma pedra lançada no fundo do poço” ou ainda uma “tal procura de íntima veracidade de vida” conforme visão de Clarice Lispector (1997). Escritores quase sempre se preocupam em trazer o tema da escrita para dentro dos textos como forma de afirmação, de necessidade de expor o processo caótico e difícil que é essa criação de um mundo autossuficiente. Eles tentam expor a busca da sorte e a impossibilidade de morrer, ou aquele colocar a certeza entre parênteses de que fala Blanchot em Le pas au-delà. Ao colocar a certeza entre parênteses, coloca-se também a certeza de si mesmo como sujeito do escrever, algo que conduz de maneira lenta e imediata a um vazio. Cada depoimento, cada texto que pensa o próprio ato da escrita como um acontecimento envolto nas névoas da suspeita, da indecidibilidade, faz com que o escritor se depare com o escuro do poço, com o fato de não saber de onde vem a escrita, para onde vai a escrita, de não saber que armas usar na luta constante da escrita com a morte, ou da escrita do neutro que pode ser visto, dentro da ótica de Roland Barthes (2003), como uma forma de burlar o paradigma, de transgredir o senso comum. O neutro como um desvio da norma, do sistema, do que se estabelece como verdade e, portanto sempre amigada com o poder. O neutro como algo exterior aos territórios do poder. Talvez aí se instale uma grande questão-abismo para os escritores: afirmar suas escritas no campo seguro do poder, ou jogá-las para dentro das maleabilidades daquilo que não pode ser apreendido, aprisionado, não pode ser dito na inteireza? Em Blanchot, “o neutro não seduz, não atrai: eis aí a vertigem de sua sedução, da qual não há nada que proteja” (Blanchot 2010: 46). Quando foca na literatura, Blanchot diz que o neutro é o ato literário que não é nem de afirmação, nem de Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

123

Rubens da Cunha (UFSC) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST

negação, e que, num primeiro tempo, libera o sentido como fantasma, obsessão, simulacro do sentido, como se o próprio da literatura consistisse em ser espetáculo, não obsedada por si mesma, mas sim porque traria consigo esse preliminar a todo sentido que seria sua obsessão. Assim, escrever também é pôr em jogo a sedução sem sedução, é uma exposição da linguagem. Escrever é desprender a linguagem dela mesma “por uma violência que novamente a entrega a ela” até que venha a fala de fragmento: nas palavras de Blanchot “sofrimento do despedaçamento vazio” (Blanchot 2010: 37). Trata-se de um sofrimento porque é difícil aproximar-se da fala de fragmento, porque o fragmento é um substantivo com força de verbo, e sempre ausente: “fratura, frações sem restos, a interrupção como fala quando a interrupção da intermitência não interrompe o devir mas, ao contrário, o provoca na ruptura que lhe preenche” (Blanchot 2010: 41). A literatura como impossibilidade da morte; o escrever como reviravolta radical; o neutro como um pensar ou falar à distância de todo o visível e de todo o invisível; o fragmento como um sofrimento, mas também como um valor que não é positivo nem negativo, algo que não é inacabado, mas que abre outra forma de acabamento, que se coloca em jogo na espera, no questionamento, são algumas das ideias de Blanchot que marcaram o pensamento da segunda metade do século XX e ainda continuam pontuando o debate sobre a escrita, o escritor nesta década inicial do século XXI.

“Tentou na palavra o extremo-tudo. E esboçou-se santo, prostituto e corifeu” Pensando nas premissas apresentadas acima, como ler a escrita de Hilda Hilst? Escrita presente numa obra vasta, com mais de quarenta títulos, envolvendo poemas, narrativas, dramaturgia e crônicas. Hilda também armou suas armadilhas ao longo dos anos para tentar capturar algum entendimento do que seria escrever: desde os poemas líricos dos vinte e poucos anos, em que já abordava o vazio: “homens distantes do mundo/ sucumbidos pelo sonho,/ dia virá em que as naus/ estarão sem nenhum porto/ e as velas sem direção./ Nem haverá uma estrela/ buscando o brilho de outrora/ e sem ela algum poeta/ fazendo um último apelo:/ Procurem o poema virgem.” (Hilst 2003: 78), até seu último personagem, o descabido escritor de Estar Sendo. Ter Sido, que, diante da morte, “a encovada”, ordena-se ainda e mais um pouco: “escreve, filho-da-puta, escreve! e não vai cair babando em cima da máquina, ela não merece isso.” (Hilst 2006: 121). Trata-se de uma escrita densa, revoltosa, árdua na tentativa contínua de entendimento do sentido da vida e da morte. Ao mesmo tempo, a escrita servia de instrumento para Hilda comportar-se de maneira esdrúxula diante dessa relação paradoxal entre o escritor e a obra. Retomando aqui a perspectiva de Blanchot, esse condenar-se a uma existência que não é a sua, exigido do escritor pela obra, sempre foi tido por Hilda Hilst como um sacrifício que ela havia feito em nome da arte. O público, o mercado, o sistema, recebedor desse sacrifício deveria então lhe dar um retorno, financeiro, moral, artístico, retorno de reconhecimento à altura de sua autodenominada genialidade. A Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

124

Rubens da Cunha (UFSC) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST

derrota dessa pretensão pessoal deixou muitas marcas em seus textos. Uma dessas marcas-fracasso é o breve poema-manifesto publicado na contracapa de Amavisse2 que, de certa forma, resume o seu percurso pela escrita: O escritor e seus múltiplos vem vos dizer adeus. Tentou na palavra o extremo-tudo E esboçou-se santo, prostituto e corifeu. A infância Foi velada: obscura na teia da poesia e da loucura. A juventude apenas uma lauda de lascívia, de frêmito Tempo-Nada na página. Depois, transgressor metalescente de percursos Colou-se à compaixão, abismos e à sua própria sombra. Poupem-no o desperdício de explicar o ato de brincar. A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo. O Caderno Rosa é apenas resíduo de um "Potlatch". E hoje, repetindo Bataille: "Sinto-me livre para fracassar" (Hilst 1989: contracapa)

Esse poema, colocado no lado de fora do livro, nos permite uma leitura de como Hilda Hilst enfrentou a problemática da escrita, do escritor. É um resíduo do “sacrifício” de quem acreditou ter se dedicado à literatura, como se fosse um animal feito para e pela escrita. É um poema executado com os restos de uma escrita movida, em parte, por um pathos romântico, mas também imiscuída nas questões que marcaram o pós-guerra: o fragmento, o vazio, o mundo pós Auschwitz, a falta de um centro, o ideal perdido, a cultura de massa. Foi nesse cenário de enfrentamento do vazio, de derramamento contínuo do sentido, que Hilda produziu sua escrita que é, ao mesmo tempo, uma hemorragia em sua gravidade e virulência, e todo o desespero que uma hemorragia pode causar: o sangue derramado, a vida se esvaindo, as tentativas de se estancar o ferimento, a inutilidade dos procedimentos, os gritos, o luto iminente diante da perda do ideal. Esse poema, não é apenas a constatação do fracasso e a aceitação da liberdade perigosa que o fracasso impõe a um escritor, mas também um passo além, o passo para a sua famigerada trilogia obscena: O Caderno Rosa de Lori Lambi (1990), Contos d´escárnio. Textos grotescos. (1990) e Cartas de um sedutor (1991). Trilogia que trouxe ao centro do palco, não apenas o sarcasmo, a obscenidade irrestrita, mas um discurso deveras ácido, pois destituído da pretensão da vitória, ou melhor, discurso de quem aceita a derrota. Porém, o tom de falácia predomina, como naquelas competições em que o perdedor tenta acreditar que o que realmente importa é competir e não vencer. Esse poema nos servirá de base para traçar uma possibilidade de leitura a respeito das relações da escrita de Hilda com o sentimento romântico, do fracasso, a 2 Em 1992, a Editora Pontes publicou o volume Do Desejo, que reunia, além de Amavisse (1989), Alcoólicas (1990) e Sobre a tua grande face (1986), todos publicados originariamente pela Massao Ohno. Do Desejo trazia também os poemas inéditos “Do desejo” e “Da noite”. Esse volume foi reeditado pela Editora Globo em 2009. O poema citado não aparece em nenhuma das edições de Do Desejo.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

125

Rubens da Cunha (UFSC) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST

perda do ideal, dos caminhos e descaminhos que a modernidade tomou no pósguerra, da sensação do vazio de ser escritor, talvez advinda dessa impossibilidade de morrer que é inerente do escrever.

“A juventude apenas uma lauda de lascívia, de frêmito. tempo-nada na página.” Em 1948, Hilda Hilst começou a cursar Direito na Faculdade do Largo São Francisco, em São Paulo. Ainda fazendo o curso, publicou o primeiro livro de poemas, Presságio (1950), editado pela Revista dos Tribunais. Em 1951 publica Balada de Alzira, pela Edições Alarico. Em 1952, Hilda se forma, mas nunca exerce a profissão. No ano de 1955 sai pela editora Jornal das Letras o livro Balada do Festival e em 1959, Roteiro do Silêncio, pela editora Anhambi. No começo dos anos de 1960, Hilda continua com sua produção poética: foram publicados os livros de poemas Trovas de muito amor para um amado senhor (1960), iniciando uma profícua parceria com a editora Massao Ohno; Ode Fragmentária (1961) pela Editora Anhambi e em 1962, Sete cantos do poeta para o anjo, novamente pela Massao Ohno. Há nessa produção poética, apesar dos valores inerentes, ainda um recalque lírico excessivo, até mesmo um certo pudor. Sergio Milliet anotava em seu diário crítico sobre Presságio: “poesia profundamente feminina, feita de pudor e de timidez. Insinuante e estranhamente madura para uma adolescente” (Milliet 1982. Vol. III: 297). Sobre Balada no Festival, Milliet elogia a pessoalidade na poesia de Hilda, bem como a sua despreocupação em ser ou parecer moderna e que, novamente, o pudor era outra qualidade característica da poesia de Hilda Hilst (Milliet 1982. Vol. X: 57-58). No entanto, esse “pudor”, esse “profundamente feminina” essa “adolescência” pareceu incomodar a Hilda balzaquiana. A juventude rica e festiva dos vinte anos tinha passado, era preciso fazer escolhas, correr riscos maiores, deixar o pudor para trás, melhor, expor o avesso do pudor, seu lado de dentro, pecaminoso, intenso, moído por interditos, era preciso se posicionar, encarar de frente o tempo em que vivia. Hilda tomou a decisão de se recolher num sítio no interior de Campinas, onde construiu uma casa batizada de “Casa do Sol”, no ano de 1966 e passou escrever a maior parte de sua obra nesse lugar. Ela residiu na “Casa do Sol” até o seu falecimento, em 2004. Um dos motivos dessa saída do circuito cultural burguês e paulistano que Hilda frequentava, foi a sua leitura de Testamento para el Greco de Nikos Kazantzakis. Trata-se de uma mistura de fato e ficção ou uma biografia espiritual que relata a infância, a juventude, as viagens, as suas experiências místicas. Entremeadas no relato, há muitas considerações sobre a atitude, as dúvidas, a dor de um escritor, além de uma aura romântica que tenta compreender o humano e suas relações com o sagrado, com Deus. Na concepção de Kazantzakis o homem é um exilado, um ser que tenta imitar Deus, pois esse “é o nosso único meio de ultrapassar as fronteiras humanas” (Kazantzakis 1975: 324). Convencida por essa experiência, por essa “responsabilidade”, Hilda decide se afastar da cidade grande para construir uma casa no campo e se dedicar integralmente à literatura. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

126

Rubens da Cunha (UFSC) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST

É possível considerar esse acontecimento como algo determinante para a escrita de Hilda Hilst? Algo que jogou sua escrita para aquele terreno da reviravolta radical prenunciada por Blanchot? Algo que exigiu dela, mais do que lirismo poético ou apegos às ideias clássicas, algum sangue, algum estômago, algum enfrentamento do nojo, do nojo do existir e de toda a transgressão “metalescente de percursos” para finalmente criar o “receptáculo para o inexplicável” de que fala Blanchot? Blanchot (1994) aponta os perigos da exigência de escrever3, não há nada de amistoso ou sagrado na multiplicidade na qual se dissemina essa exigência: os acontecimentos são inúteis, os dias não estão santificados, os homens não são nem divinos nem humanos. Os portadores da exigência se transportam com ela e nela desaparecem. O que um escritor pode fazer com esse movimento que não se reconhece em nada, mas também não se põe em dúvida? A resposta talvez seja manter a exigência de escrever, sempre de antemão esgotada, como uma repetição não viva, esquecendo, lutando contra o fato de que não há tempo para escrever, pois escrever sempre é reescrever. Essa exigência passou a ser a tônica da escrita de Hilda, que sempre se debateu nesse perigo, com esse perigo. É como se sua escrita ficasse seduzida pelo grave dever, a idealização do escritor como um redentor do mundo, mas também visse ou ouvisse, os olhares e os chamamentos dessa disparatada pluralidade, algo repleto de solidão e desimportância, nem amigável nem sagrada, que é a exigência de escrever. “É sempre a morte o sopro de um poema” diz um verso do poema Trajetória Poética do Ser, dedicado a Kazantzakis. Nessa trajetória já se demonstra que Hilda partiria para outro tipo de enfrentamento com a pungência do efêmero, com a sedução sem sedução da escrita: “Ah, diante do efêmero/ hei de cantar mais alto, sem o freio/ de uns cantares longínquos, assustados” (Hilst 2002c: 49). Essa vontade de cantar mais alto, desenfreado, fez com que a escrita hilstiana se despedisse da adolescência, ou do pudor - “era além do pudor o peito em chama” (Hilst 2002c: 85) e passasse para um outro nível de verticalização, de aprofundamento temático e de linguagem. A consequência principal desse ato é que Hilda Hilst, apesar de manter a escrita de poemas, levou sua escrita também para a dramaturgia e para as narrativas. O que se pode aferir desse acontecimento, é que o “retirar-se”, foi constituído em duas frentes principais: a primeira pode ser vista como uma espécie de resposta lutuosa aos caminhos que a modernidade tomou após a segunda guerra mundial: “[…] Esse é um tempo de cegueira. Os homens não se veem./ Sob as vestes um suor terrível toma corpo e na morte nosso corpo de medo/ é que floresce./ Mortos nos vemos. Mortos amamos. [...] Meu pai: este é um tempo de treva.” (Hilst 2002c: 91). A segunda é uma tentativa romântica de suplantar o luto com o canto poético: “De luto esta manhã e as outras/ as mais claras que hão de vir, aquelas/ onde vereis o vosso cão deitado e aquecido/ de terra. De luto essa manhã/ por vós, por vossos filhos e

3 Poderíamos pensar também na ideia de “grave dever” anunciada por Kazantzakis: “Escrever poderia ter sido um jogo em outros tempos de equilíbrio. Hoje é um grave dever” (Kazantzakis 1975: 314).

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

127

Rubens da Cunha (UFSC) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST

não pelo meu canto/ nem por mim, que apesar de vós ainda canto.” (Hilst 2002c: 91)4. De maneira geral, os estudiosos compartilham a ideia de que para o romantismo a arte vale menos que o artista. Anatol Rosenfeld afirma que para o romantismo “o peso não está mais no produto; o que lhe importa é o artista e a sua auto-expressão. A objetividade da obra como valor por si deixa de ser um elemento vital do fazer artístico” (Rosenfeld 2005: 276). A criação passaria a ser então um caminho, uma ferramenta para que o criador possa comunicar o que passa em seu interior. Blanchot aponta o que ele considera o duplo fracasso do romantismo: o autor não consegue desaparecer de verdade completamente, e as obras pelas quais não se pode impedir de querer realizar-se permanecem, e como que intencionalmente inconclusas. Porém, uma das tarefas do romantismo foi introduzir um modo de realização totalmente novo, e também uma verdadeira conversão da escrita, ou seja: “o poder, para a obra, de ser e não mais de representar, de ser tudo, mas sem conteúdo ou com conteúdos, quase indiferentes e, assim, de afirmar a um só tempo o absoluto e o fragmentário” (Blanchot 2010: 103). O aspecto romântico antevisto na tomada de decisão de Hilda Hilst em se “afastar” foi observado por Anatol Rosenfeld no prefácio de Fluxo-Floema, o primeiro livro de narrativas de Hilda, lançado em 1970 pela editora Perspectiva5. Rosenfeld afirma que tal experiência é “decisiva, não só de ordem literária e sim “existencial” (se é possível separar o que é inseparável para quem, como para Hilda Hilst, a criação literária é uma atividade absolutamente vital)” (Rosenfeld: 1970: 8). Havia nessa atitude “a busca esotérica e por vezes excêntrica de verdade última, de unidade cósmica, ao lado da exaltação romântica da vitalidade do vigor primevos” (Rosenfeld: 1970: 8). O fato é que esse afastamento, essa busca esotérica, essa exaltação romântica se deu num contexto em que a modernidade já tinha um longo percurso. A modernidade foi um empreendimento longo, marcado por inúmeras facetas, mutações, características, discursos, tanto que não há possibilidade de se concentrar tal amplitude em um conceito, ou uma teoria, mas sim em “relatos de modernidade” (Antelo 2006: 82). Além disso, houve no século XX as grandes guerras mundiais que, de certa forma, aferraram nas entranhas desses relatos duas forças, duas possibilidades de olhar: a primeira é de encarar o mundo como um desafio,

4 As citações foram retiradas dos poemas “Trajetória Poética do Ser”, “Odes maiores ao pai” e “Iniciação do poeta”. Estes poemas foram escritos entre 1963 e 1966, justamente nesse período de transição. Originalmente os poemas foram publicados em Poesia (1959 / 1967), pela editora Sal em 1967. Em 1980, Nelly Novaes Coelho, a frente da Editora Quíron, publica-os novamente no volume Poesia (1959/1979). Com a reedição das obras de Hilda Hilst pela Editora Globo, sob a organização de Alcir Pécora, a sua produção poética nos anos de 1960 foi reunida no volume denominado com o sugestivo título de Exercícios, lançado em 2003. 5 O prefácio intitulado “Hilda Hilst: poeta, narradora, dramaturga” não está presente na reedição de Fluxo-Floema da Editora Globo. Já na edição feita pela Editora Quiron, em 1977, organizada por Nelly Novaes Coelho, denominada Ficções, parte do prefácio consta como orelha. Ficções reuniu os livros Fluxo-Floema (1970), Qadós (1973) e os inéditos Pequenos discursos. E um grande.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

128

Rubens da Cunha (UFSC) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST

destruir o pai fundador para se colocar no lugar dele, havia esperança no processo de destruição, a guerra era vista como algo benéfico, acreditava-se na energia vital da violência e que a destruição era um ato de criação, surgiria dela uma nova fundação, uma nova experiência da consciência, mais ousada, mais nova, utópica até. Havia, dentro dessa visão, a possibilidade de se inaugurar um tempo inédito. Por outro lado, havia os lamentosos, aqueles que cuspiam melancolias na busca constante do objeto perdido. A esperança norteadora da violência perdia seu espaço para uma sensação de vazio, de fragilidade. Essa sensação, apesar de já estar presente no percurso da modernidade, ganhou força após a segunda guerra mundial. A visão de uma Europa devastada excedeu em muito os ideais modernistas. O que se via era uma desconfiança completa em relação à modernidade. De acordo com Bradbury “o que antes parecia experimentação estratosférica e chocante agora surgia como um meio necessário de apreender o espírito febril e acelerado do mundo pós-guerra” (Bradbury 1989:33). Diante dessas duas perspectivas, como um escritor pode se comportar? Que caminho escolher? Pode-se pensar numa terceira via, no pas au delà de Blanchot, num tempo fora do tempo, em que o acontecimento é que determina a visão, tudo se torna contemporâneo, ou uma experiência de não tempo, de não existência. Já não há pai fundador, já não há objeto perdido a ser encontrado, o que se tem são restos, pedaços de não-sentido. Tendo a sua frente uma tríplice escolha, para onde se encaminhou a hemorrágica e lutuosa escrita hilstiana, ainda fortemente seduzida pela ideia kazantzakiana de grave dever, de redenção?

“A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo.” As narrativas de Hilda não cortam a dor do que se escreve, no sentido de encerrar, mas cortam no sentido de abrir ainda mais a ferida. Na escrita hilstiana há uma ritualização contínua da busca por respostas e da perda de qualquer resposta, mas há também uma luta para que não se perca a esperança da busca, ou seja, quando mais hemorrágica sua escrita se torna, maiores são as tentativas de se estancar o fluxo desse objeto perdido, alucinado pela linguagem. Quanto maior é a tentativa de se instaurar, restaurar as verdades perdidas, maior é a dor pela impossibilidade de se conseguir retornar ao mundo ideal, de ser ouvido pelo próximo, visto ora como o leitor, ora como Deus, no entanto sempre constituído como a presença de uma ausência. Diante do abismo incontornável, impossível de se tampar, apesar das tentativas exasperadas, a escrita de Hilda Hilst se torna, ela mesma, um animal hemorrágico. Em “Fluxo” a primeira narrativa de Fluxo-Floema, o personagem, um escritor debatendo-se num amontoado de questões metafísicas, mas preso à animalidade crua, biológica da vida exclama: estás sozinho como um porco que vai ser sangrado, estás sozinho como um boi que vai ser comido, sabes como é com o boi? abrem a veia, deixam-no sangrar, enquanto isso todos conversam, amam, tu és um boi, Ruiska, um boi Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

129

Rubens da Cunha (UFSC) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST

aberto, esburacado, tu és um porco, Ruiska, e te imaginas homem, pedes todos os dias que te deem as mãos, suplicas, procuras o Deus, Ele está aí mesmo no teu sangue, na tua natureza de porco, nesse chão escuro por onde escorrem os teus humores, no teu olho revirado, estás em emoção, te pensas magnífico dizendo as tuas verdades, mas continuas breu para o teu próximo (Hilst 2003b: 71).

A escrita hilstiana é também o fruto de um desejo de criação de um mundo à parte, cuja ética principal foi produzir uma escritura que tentasse abarcar o essencial: pensando aqui no aforismo bataillano “a literatura é o essencial, ou não é nada” (Bataille 1987: 9). A empreitada de Hilda Hilst foi longa e marcada pelo fracasso da busca, a ausência das certezas, o silêncio do sistema literário às suas tentativas de popularizar uma escrita difícil, que levantava questões muito fundamentais para o ser humano. Num tempo sem fundamento, sem o chão das definições claras, a escrita hilstiana traz sobre si a marca contínua da derrota, da úlcera na córnea: “e todos os dias o rugido: você está com uma úlcera na córnea, por isso eu te aconselho a escrever daqui por diante coisas de fácil digestão, coisas que você pode fazer com pouco esforço” (Hilst 2003b:30). O fantasma da não leitura, do não reconhecimento, o espectro de ter que ser uma escritora fácil, superficial, perpassa essa escrita, atravancando, obsedando, abrindo gretas, grutas, abrindo ainda mais a ferida que é esse escrever sem sentido, escrever da desilusão. Blanchot diz que o artista como personalidade criadora, o literato como existência de exceção, o poeta como gênio – o herói – não tem mais lugar mesmo em nossos mitos. Ele ainda afirma que só as vaidades permanecem, e que o “eu literário” continua mostrando-se, afinal, todo o sistema literário ainda precisa do “grande escritor'', do “grande criador” (Blanchot 2010:167). Apesar de todo o sistema estar cada vez mais estruturado sobre essas categorias, para Blanchot, há uma indiferença completa em relação a isso: “são ecos terminando de repercutir”. O tardoromantismo de Hilda se concentrou em acreditar que o sistema a acolheria como a escritora genial, que sua escrita ainda conseguiria um lugar mitológico dentro do sistema e seria consumida por muitos leitores. No entanto, a sua escrita, ao expor esse fracasso, essa desilusão, coloca-se à beira do abismo, hemorragicamente, em estado de luto, num jogo catártico sem purificação: “Kadosh deve procurar a palavra, encher um milhão de folhas com letras pequeninas, não deve ser lido nunca, isso é importante, que os manuscritos de Kadosh provoquem nojo se tocados, perpétua cegueira naquele que julgar entender uma só palavra” (Hilst 2002d: 47). Compagnon apresenta uma visão desse momento dos anos de 1970, em que um outro vazio se estabelecia sob os pés dos artistas: As vanguardas históricas, niilistas e futuristas, sempre guiadas por uma teoria, acreditavam no sentido do desenvolvimento artístico, mas a arte pop dos anos 60, depois o “vale-tudo” dos anos 70, liberaram a arte do imperativo da inovação. (...) A arte abole toda fronteira entre o que é aceitável e o que não o é, suprime toda definição, positiva ou negativa do objeto artístico (Compagnon 1996: 125). Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

130

Rubens da Cunha (UFSC) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST

A ideia de progresso não tinha mais sentido para o homem, a história ficava aberta para o vazio, e caberia a arte, dar testemunho desse vazio, sem se preocupar para onde ele vai (Compagnon 1996:126). Se pensarmos o objeto como algo inexistente, carente de sentido, a arte seria então um mecanismo através do qual o sentido é amarrado ao objeto que está sempre no território do secreto. O inencontrável, o outro absoluto do sujeito, pode ser abordado, visionado apenas como uma saudade. Afinal, a plenitude, o ideal, a ideia de gênio são fantasmas, transparências, inexatidões inapreensíveis. A arte seria, não apenas testemunhar o vazio, mas aprender a lidar com ele. Essa aprendizagem pode ser vista na escrita de Hilda como uma aprendizagem estabelecida num espaço alheado, nem cá nem lá. Dentro da perspectiva lacaniana do Real, há a percepção de que o sentido tem sempre um furo, um buraco que não pode ser apreendido, seja pela escrita, seja pela leitura, o que resta é administrar, contornar, compor e compor-se com a lacuna. Uma estratégia de se lidar com esse furo, esse buraco, seria esperar, perseguir, tentar uma volta do humanismo, do homem como essência contrária à máquina, do homem ainda humano, nem que para isso tenha que se criar algum dispositivo de perseguição desse ideal. Outra estratégia possível seria quase com um assumir o vazio e, a partir disso, lidar com os restos enquanto se fica à deriva. Hilda opta por se colocar numa espécie de entrelugar: sob os pés ardiam as chamas do vazio, da massificação, e sobre a cabeça, numa espécie de passadopresentificado, cristalizado, as ilusões de um sistema operante, fundacional, onde ainda haveria espaço para escritores eleitos, a alta literatura, as grandes transformações. É um posicionamento que lembra o de Michel Seuphor nas suas “Trinta e uma reflexões sobre o tema”, ensaio publicado em 1965 no livro Le style et le cri. Já na primeira reflexão Seuphor faz uma espécie de releitura da célebre frase de Descartes, “penso logo existo”. Para ele, o gritar corresponde ao ser: “grito, logo sou”. O grito não é nada sem que o outro o escute, o grito não tem vida sem o estilo. Todo aquele que quer viver e perdurar deve transformar-se, deve adquirir um estilo. Assim, no espírito humano há estilo e grito, “porque na base do estilo do homem está a emoção” (Seuphor 1970: 259). Seuphor pensa sempre numa dicotomia entre estilo e grito, sendo que o que diferencia o homem é ser estilo e grito, razão e sem razão, em que esses dois polos atuam de forma equilibrada, equânime. Seuphor luta contra a ideia do inacabado, dizendo que a vida pode ser inacabada, mas isso é contra a nossa vontade, querer o inacabado é algo contra nossas opiniões elevadas e nosso instinto, que sempre encerra a vontade de concluir. Ele também questiona a generalização: tudo é arte desde que seja designada como tal, que tenha o aval de curadores e que o objeto designado como arte tenha uma assinatura de alguém com renome. Tudo vale desde que o artista queira que valha, desde que o artista valha. É contra uma semeadura da destruição que Seuphor levanta sua voz: “El arte es un objeto de cultura, por lo tanto es um culto” (Seuphor 1970: 276), não pode ser destruída simplesmente pela destruição, destruída somente por um conceito, geralmente, simplório de destruição. Seuphor defende que o ofício do artista está em saber conciliar a força e a transparência, a confidência serena e a afirmação abrupta. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

131

Rubens da Cunha (UFSC) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST

A escrita de Hilda é atravessada pelo saudosismo, por essa hierarquização em que a arte como culto está acima de qualquer outra forma de arte, porém se estabelece também num lamento contínuo, hemorragia não estanque, tentando sempre conter o incontível, triturar o Real intriturável, tendo que criar com os dejetos, com o sangue perdido, tentando suturar a ferida feita no corpo da utopia, no corpo da arte como um todo. Um dos inúmeros exemplos está na narrativa “Unicórnio” de Fluxo-floema, a híbrida, animalesca narradora diz: “É estranho mas aquilo tudo me parecia limpeza da alma, agora me parece imundície. Era tudo vaidade. No fundo nós nos achávamos excepcionais, eu sei que sou diferente de muitos, todos aqueles que escrevem são diferentes de muitos, mas agora é preciso ser homem-massa, senão não há salvação.” (Hilst 2003b: 151). A escrita de Hilda agiu como um Sísifo, previamente e conscientemente derrotado, mas imbuído de força suficiente para lamentar uma vez mais o fim do ideal, a ausência de sentido, tendo sempre “a boca expelindo ainda palavras-agonia” (Hilst 2001: 88), enquanto empurra a pedra-escrita montanha acima.

“E hoje, repetindo bataille: "sinto-me livre para fracassar". Nos anos 1990, três narrativas trazem, mais uma vez, a problemática que sempre permeou a escrita de Hilda Hilst, a figura do escritor: Caderno Rosa de Lori Lambi (1990), Contos d´escárnio. Textos grotescos. (1990) e Cartas de um sedutor (1991). As três são feitas com a mesma estrutura: há um escritor atormentado, preso ao passado mítico, ao gênio romântico que tem que se tornar um escritor fútil, entregue ao sistema, e pairando, como uma sombra, ou como alegoria do vazio da época, das imposições terríveis do sistema, a figura do editor. A ingenuidade mentirosa de Lori Lamby relata essa obsessão hilstiana, lembrando que não há demarcação clara no texto, portanto Lori Lamby pode ser uma espécie de alter ego do “papi”, o escritor sério: Eu já vi papi triste porque ninguém compra o que ele escreve. Ele estudou muito e ainda estuda muito, e outro dia ele brigou com o Lalau que é quem faz na máquina o livro dele, os livros dele, porque papai escreveu muitos livros mesmo, esses homens que fazem o livro da gente na máquina tem nome de editor. [...] O Lalau falou pro papi: por que você não começa a escrever umas bananeiras pra variar? Acho que não é bananeira, é bandalheira, agora eu sei. Aí papi disse pro Lalau: então é só isso que você tem pra me dizer? (Hilst 2005: 19)

Seguida por Statimatius, o escritor mendigo, kierkegardiano, de Cartas de um Sedutor que ouvia de um pretendente a escritor o seguinte: Ponderava: Tiu, não tem essa não de ascese e abstração. Escritor não é santo, negão. O negócio é inventar escroteria, tesudices, xotas na mão, os caras

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

132

Rubens da Cunha (UFSC) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST

querem ler um troço que os faça esquecer que são mortais e estrume. Continua: Tiu, com a tua mania de infinitude quem é que vai te ler? Aposto que serei o primeiro na vitrina e tu lá nos confins da livraria (Hilst 2002: 138).

Por fim, o mais deletério dos narradores da trilogia, Crasso, cujo nome já remete a esse extremo dúbio no qual a escrita de Hilda coloca a situação do escritor. Crasso foi assim nomeado porque a mãe tinha mania de ler “História das Civilizações” “e se impressionou muito quando leu que Crasso, um homem muito rico, romano, foi degolado e teve a cabeça entupida de ouro derretido por algum adversário de batalhas e conceitos” (Hilst 2002b:13). Por outro lado, o nome também se remete a uma história do pai de Crasso que “morreu em cima de uma mulher nada elegante mais muito mais gostosa que mamãe”, então, a partir disso, “todo mundo quando me via dizia: lá vai o Crasso, filho daquela crassa putaria”. Esse personagem e seus contos grotescos é um escritor em busca de outro, ironicamente nomeado por Hilda Hilst com as iniciais de seu nome: “Hans Haeckel”, o escritor sério, infeliz, dono de uma escrita superior desejada por Crasso, a quem coube ser o escritor fútil: Sempre sonhei em ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros, os que lêem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que não posso escrever a minha? (Hilst 2002b: 14)

O cenário onde Hilda inscreveu a trilogia é o mesmo de suas narrativas anteriores: o texto cuja organização remete ao mise em abîme; vozes narrativas se movendo no lixo, nas sobras, numa existência-dejeto, em que riqueza e miséria se irmanam, deslimitadas; a presença ininterrupta de um deus ausente. A mais visível diferença em relação aos textos anteriores é que aqui, o luto, o ranger de dentes, aquela indignação advinda da perda, está envolta num tipo de aceitação mais sarcástica da perda. Freud diz que o luto é, via de regra “a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa o seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc” (Freud 2010:172). Dessa forma, sabendo que o objeto amado não mais existe, o trabalho do luto consistiria em exigir “que toda libido seja retirada de suas conexões com esse objeto” (Freud 2010: 173). Claro que essa exigência é dolorosa, tanto que Freud afirma que o homem não gosta de abandonar a sua “posição libidinal”, mesmo que haja um substituto à vista. A questão é que, nesse momento, a escrita de Hilda parece não encontrar nenhum substituto para o objeto perdido. Aproxima-se mais da visão que Barthes tem sobre o luto: Dizem que o luto, por seu trabalho progressivo, apaga lentamente a dor; eu não podia, não posso acreditar nisso; pois para mim o Tempo elimina a emoção da perda (não choro) isso é tudo. Quanto ao resto, tudo permaneceu imóvel. Pois o que perdi não é uma Figura (a Mãe), mas uma qualidade (uma alma): não indispensável, mas insubstituível. Eu podia viver sem a Mãe (todos

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

133

Rubens da Cunha (UFSC) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST

vivemos, mais cedo ou mais tarde); mas a vida que me restava seria infalivelmente e até o fim inqualificável (sem qualidade) (Barthes 1984: 113).

O luto na escrita de Hilda tomou a direção do inqualificável. É como se o tempo houvesse eliminado a emoção, a idealização, e o mergulho no fracasso fosse contumaz. Hilda, presa que foi à idealização romântica, às certezas do que seria o literário e o não literário, fez com que sua escrita carregasse espectros, não mais como esperanças, mas como restos. A hemorragia chegava ao final, o sangue estava todo fora. É como se aquela constatação do “inqualificável” de que fala Barthes, tivesse legado ao texto hilstiano um deslocamento ainda maior. Há nessa trilogia uma constante perda de referências e o caos, comum aos textos anteriores, no entanto, ela ganha novos adendos, novos limites, trazidos, sobretudo pelo humor exacerbado e grotesco. Com a famigerada trilogia obscena Hilda arremessa-se ao pas au delà, ou seja, a negação da transcendência no passo que transgride o limite, passo sem afirmação, neutralidade, passo que não é (Blanchot 1994: 51). Há uma aceitação da inutilidade, uma destituição do saber erudito, agora demonizado: Assim que resolvi escrever um livro, vi o demônio. Presumo que cada um de nós vê o seu demônio. O meu tomou esta forma: um senhor de meia-idade mais pro balofo que pro atlético, linguista, e muito interessado nos esotéricos da semântica, da semiótica, da epistemologia, coisas essas que eu nunca vou saber o que são (Hilst 2002b: 110).

A ignorância frente à erudição é um dos motes principais de O caderno rosa de Lori Lamby: a irrequieta narradora-escritora de oito anos, filha e/ou personagem de um escritor sério e genial narra suas aventuras sexuais, enquanto o seu pai e/ou autor admoesta-se frente à banalidade do mundo. A seriedade da escrita hilstiana feneceu, o que resta agora são pedaços de sarcasmo espalhados no texto, restos de saudade da idealização estraçalhada, despedaçada. O ser predestinado à literatura já não é mais importante, já pode ser reduzido à praticidade de Lori Lamby: “a coisa de predestinada é mais ou menos assim: uns nascem pra ser lambidos e outros pra lamberem e pagarem” (Hilst 2005: 35). A predestinação corporificou-se no prazer imediato, tanto do agente passivo quanto do agente ativo desse prazer. Hilda, que se embrenhou dentro da “Casa do Sol”, chega a um momento em que a sua escrita fica sem abrigo, sem oikos, sem segurança alguma, seja metafísica, seja romântica, ou mesmo moderna. Eis a liberdade do fracasso. Não apenas aquela prenunciado por Bataille em seu “Estudo VI – A santidade, o erotismo e a solidão”6, em que a “a especialização é a condição da eficiência, e a busca da eficiência é o que caracteriza aquele que sabe o que lhe falta” existindo nisso “uma confissão de impotência” (Bataille 1987: 237), porém um outro fracasso, que pode ser associado à 6 A frase “sinto-me livre para fracassar” está no “Estudo VI – A santidade, o erotismo, e solidão”, publicada no livro O erotismo. Trata-se de uma conferência de Bataille no Collège Philosophique, em 1955.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

134

Rubens da Cunha (UFSC) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST

outra imagem bataillana: o sol podre. Se o sol do ideal não pode ser olhado em sua magnificência, pois nos cega, o ânus solar também é ofuscante, e “como um cadáver no fundo do poço, situado ao fundo do céu o Sol responde a esse grito desumano com o atrativo espectral da podridão” (Bataille 1985: 37). A escrita de Hilda, que tanto insistiu em olhar o sol daquilo que ela considerava alta literatura, olha, mais profundamente, para o outro sol, o da baixa literatura, ainda mais cegante. Esse seria o fracasso da escrita hilstiana: ficar cega diante do ideal e do nojo, cega diante de um corpo já sem sangue, e ter apenas a ironia, fantasmagoricamente romântica, para suportar o eterno presente a que está submetida: “vou me demitindo. E vou ficando muito mais sozinho. Restarão meus ossos. Devo polir meus ossos antes de sumir?” (Hilst 2002:148). A seriedade ética com que Hilda conduziu sua escrita, até esse momento de aceitação do fracasso, encaminhou o texto mais no campo da revolução do que da revolta, daquela tentativa de destruir o vigente para impor uma outra vigência, uma outra ordem de privilégios. Esse foi o jogo mais ousado e perigoso em que Hilda circunscreveu sua escrita: fez dela uma matéria de reflexão contínua da impossibilidade da morte, ou um campo para as relações do pensamento com a morte, que na ótica de Blanchot são tão próximos, pensando morremos e se ao morrer nos permitimos não pensar, todo pensamento seria mortal, todo pensamento, último pensamento; e, ao mesmo tempo, querendo que essa experiência, esse afastarse do sistema literário fosse assimilado pelo próprio sistema. Hilda, no seu poema-manifesto, pede a bênção a Bataille, mas poderia pedir também a Emil Cioran, já que os dois se vizinham nas citações que abrem um capítulo de Cartas de Um Sedutor. Além disso, outra epígrafe de Cioran abre o segundo livro da trilogia: “A vida só é tolerável pelo grau de mistificação que se coloca nela”, sendo que nessa frase, contida no texto “O autômato”, de Breviário de Decomposição, mistificação serve como um antídoto a um modelo de fraqueza considerado inútil por Cioran: o sujeito que “emancipado de todos os tipos de costume, não dispusesse de nenhum dom de comediante, seria o arquétipo do infortúnio, o ser idealmente desgraçado” (Cioran 1995:111). É preciso rir para dar curso ao fato de sermos todos impostores que apenas se suportam. O fracasso hilstiano assume o riso demente, deletério como forma de mistificação do ideal perdido. Cioran também traçou a “fisionomia de um fracasso”, um rosto cruel, incisivo, imperdoável: O intervalo que me separa de meu cadáver é uma ferida para mim, todavia, aspiro em vão às seduções da tumba: não podendo separar-me de nada, sem cessar de palpitar, tudo em mim assegura-me que os vermes permaneceriam inativos sobre os meus instintos. Tão incompetente na vida como na morte, odeio-me, e neste ódio sonho com outra vida, com outra morte. E por haver querido ser um sábio como nunca houve outro, sou apenas um louco entre os loucos (Cioran 1995: 174).

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

135

Rubens da Cunha (UFSC) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST

Assim, a escrita de Hilda Hilst, desejosa de uma sapiência perdida, abriu-se tresloucada no auto-declarado fracasso, tornou-se revolta, jogou-se ainda mais sobre os restos, ainda mais para dentro do inqualificável de um mundo sem sentido, em que arte, escrita, literatura, vida e morte podem ser condensadas numa onomatopeia do esvaziamento: “afinal você aprende aprende, quando está tudo pertinho da compreensão, você só sabe que já vai morrer, que judiaria! que terror! o homem todo aprumado diz de repente: quase que já sei, e aí aquela explosão, aquele vômito, alguns estertores e psss... o homem foi-se” (Hilst 2006: 121).

FAILURES IN HILDA HILST'S HEMORRHAGIC WRITING Abstract: Based on Blanchot's ideas about Literature, like the impossibility of dying and the writing like radical revolution, this article intends to point out how the writing of Hilda Hilst is, at the same time, a continuous tentative of understanding the sense of life and death and a mechanism which allows Hilda to behave herself in an extravagant way when facing the conflictive relation that exists among writer, work and literary market. Keywords: Hilda Hilst; Failure; Writing; Literary Market.

REFERÊNCIAS

ANTELO, R. (org.) Crítica e ficção, ainda. Florianópolis: Pallotti, 2006. BLANCHOT, M. A conversa infinita – a ausência do livro. São Paulo: Escuta, 2010. ______. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. ______. El paso (no) más allá. Tradução: Cristina de Peretti. Barcelona: Paidós, 1994. ______. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. BARTHES, R. A câmera clara: nota sobre a fotografia. Tradução: Júlio Castañon Guimarães. Rio de jáneiro: Nova Fronteira, 1984. ______. O neutro. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Porto Alegre: L&PM, 1989. ______. O ânus solar. Lisboa, Portugal: Hiena Editora, 1985. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

136

Rubens da Cunha (UFSC) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST

______. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987. BRADBURY, M. O mundo moderno. Tradução: Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das letras, 1989. CIORAN, Emile M. Breviário da decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. COMPAGNON, A. Os cinco paradoxos da modernidade. Tradução: Cleonice P. Mourão, Consuelo F. Santiago, Eunice D. Galéry. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. FREUD, S. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) Tradução e notas: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. HILST, Hilda. A obscena senhora D. São Paulo: Globo, 2001. ______. Amavisse. São Paulo: Massao Ohno, 1989. ______. Baladas. São Paulo: Globo, 2003. ______. Cartas de um sedutor. São Paulo: Globo, 2002. ______. Contos d´escárnio – textos grotescos. São Paulo: Globo, 2002b. ______. Estar sendo. Ter sido. São Paulo: Globo, 2006. ______. Exercícios. São Paulo: Globo, 2002c. ______. Fluxo-Floema. São Paulo: Globo, 2003b. ______. Fluxo-Floema. São Paulo: Perspectiva, 1970. ______. Kadosh. São Paulo: Globo, 2002d. ______. O caderno rosa de Lori Lamby. São Paulo: Globo, 2005. ______. Rútilos. São Paulo: Globo, 2003b. KAZANTZAKIS, N. Testamento para el Greco. Tradução: Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Artenova, 1975. LACAN, J. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

137

Rubens da Cunha (UFSC) O FRACASSO NA ESCRITA HEMORRÁGICA DE HILDA HILST

LISPECTOR, C. Um sopro de vida (pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999. MILLIET, Sérgio. Diário crítico. 2. ed. Vol. II. e Vol X. São Paulo: Martins, 1982. ROSENFELD, Anatol. Hilda Hilst: poeta, narradora, dramatura. In: HILST, H. Fluxofloema. São Paulo: Perspectiva, 1970. SEUPHOR, Michel. Treinta y una reflexiones sobre un tema. In: El estilo y el grito. Caracas: Monte Ávila C.A, 1970.

ARTIGO RECEBIDO EM 28/02/2012 E APROVADO EM 20/03/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

138

SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO Raquel Parrine (USP)1

Resumo: Para Emmanuel Lévinas, a essência do indivíduo está em sua relação com o outro, na forma de uma responsabilidade primordial. Com a morte do outro, o eu experimenta um luto especial, na forma da responsabilidade de sobrevivente. Assim, o romance de Roberto Bolaño Los detectives salvajes, ao transformar a estrutura da narrativa policial, devolve a sua leitura a dimensão trágica da morte e da perda, ao colocar em primeiro plano o luto em relação à morte da primeira poeta real-visceralista Cesárea Tinajero. Desta forma, encontra outro conceito de Lévinas, o enigma, que representa a sombra do outro, que sempre está, mas que nunca pode ser recolhida. Palavras-chave: Roberto Bolaño; Emmanuel Lévinas; Literatura Policial.

O filósofo lituano Emmanuel Lévinas defendeu uma visão muito particular do ser, especialmente da fenomenologia. Pensando com ele, operamos, de antemão, uma inversão particular, considerando a ética como filosofia primeira. É uma questão de ordem: se a ética vem em primeiro lugar, ela ocupa um espaço que tradicionalmente foi da fenomenologia, assume os desafios desta e se torna uma espécie de ética fenomenológica. Isso se traduz no conceito de ser de Lévinas, que não pode ser pensado de uma forma abstrata, mas como um processo. Assim, no lugar de pensar o esse, o ser como verbo intransitivo, ecoa o Dasein de Heidegger ao imaginar o ser como um processo, que não pode ser isolado do seu meio e não pode deixar de estar afetado por ele. O ser processual de Lévinas assumirá a forma de uma face, que se apresenta a partir de uma relação particular com o Outro. Sua palavra preferida, responsabilidade, é aquilo que emerge no contato com o Outro e é algo que me aspecta como ser. Lévinas afirma: “sou eu na única medida em que sou responsável” (1991: 96). No princípio, a minha existência não é um dado independente. Ela surge na forma de uma face endereçada a um Outro além de mim. Esse endereçar-se é similar à relação de uma língua com o mundo, ou seja, não pode existir senão pressupondo Mestranda do Programa de Teoria Literária e Literatura Comparada, da FFLCH/USP. E-mail: [email protected]. 1

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Raquel Parrine (USP) SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO

um interlocutor. Essa relação tão essencial entre o eu e o Outro existe, para Lévinas, na forma de uma responsabilidade. O meu eu, portanto, “não desponta na sua unicidade senão respondendo por outrem através de uma responsabilidade para a qual não há fuga possível, numa responsabilidade da qual nunca poderei estar quite” (Lévinas 2003: 46). Essa responsabilidade está também no fato de que a face do Outro é um enigma. Ela se anuncia, mas nunca está lá. Está sempre em outro lugar que não é o meu. Essa ideia, “o segredo da subjetividade” (Lévinas 1991: 73), me parece, tem muita força: o Outro é a face do desconhecido, daquilo que nunca vai ser assimilado por mim e que será sempre diferente de mim, mas por quem serei sempre e eternamente responsável. Lévinas diz que a primeira palavra é: “Não matarás”. Essa interdição está elaborada de uma forma particular, advinda de sua tradução, em que o imperativo “Não deves matar”, sede lugar ao futuro, “Não matarás”. A diferença está na afirmação da impossibilidade, ou seja, o futuro implica que matar seja impossível. “‘Não matarás’ significa obviamente ‘farás tudo para que o outro viva’” (Lévinas 1984: 32). A diferença entre o eu e o Outro se estabelece desde aí. Lévinas observa que a força do Outro não me interdita em meu poder-dizer, ou poder-fazer, mas no poder-matar – ou seja, extinguir a face do Outro. Essa interdição fundamental aparece simplesmente porque o Outro se dirige a mim (Waldenfels 2005: 70). Para Heidegger, cujo pensamento sobre o ser influenciará profundamente Lévinas, o Daisen não é algo que morre com a morte física. É uma individualidade que se mantém enquanto se possa endereçar a ela. Entretanto, Heidegger e Lévinas não compartilham a mesma versão sobre a morte: para o primeiro, a morte é o fim das possibilidades do ser, o fim último, que não pode ser ultrapassado. Para Lévinas, a morte é a “questão sem resposta, à qual toda a questão pede de empréstimo sua modalidade interrogativa” (2003: 61). Para o filósofo lituano, a morte é a pergunta modelar, é aquilo que encerra todo o obscuro e o mistério. Ela é a origem de todas as perguntas, aquilo que inaugura uma dimensão à qual todas as perguntas não têm resposta. Para o alemão, a morte é o último obstáculo intransponível. Fica claro que a diferença do conceito de morte entre os dois está fundada na variação da premissa. Para Heidegger, a morte é o destino final, porque ela é a minha morte. Para Lévinas, ao contrário, a morte nunca pode ser a minha morte, é sempre a morte do Outro e só pode ser vivida por mim como algo alheio a mim. A minha morte não está disponível como logos, como fonte de conhecimento2. É dessa forma que “estou sempre já incluído na morte do outro, como se fosse chamado a me sacrificar para o outro. Como um substituto insubstituível por ela ou por ele, eu ofereço a ela/ele o presente da morte.” (Wyschograd 2005: 193, minha tradução). A minha morte não pode ser acessada, nem mesmo considerada. Não posso viver, realmente, sabendo da minha morte. Só me é possível conhecer o conceito da morte, da cessação da existência, por meio do Outro.

2

Vide prólogo de Deus, a Morte e o Tempo (2003).

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

140

Raquel Parrine (USP) SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO

E é diante do Outro que desponta minha responsabilidade, em forma de uma culpabilidade de sobrevivente. Isso porque Outrem individua-me na responsabilidade que tenho por ele. A morte de outrem, que morre, afecta-me na minha própria identidade de eu [moi] responsável – identidade não substancial, não simples coerência dos diversos actos de identificação, mas feita de indizível responsabilidade. Tal é a minha afecção pela morte de outrem, a minha relação com sua morte. Ela é, na minha relação, a minha deferência por alguém que não responde mais, já uma culpabilidade – uma culpabilidade de sobrevivente. (Lévinas 2003: 40)

Nesta passagem, fica claro que, para Lévinas, a identidade não tem a ver com uma simultaneidade de atitudes e pensamentos que se encadeariam de maneira coerente e poderiam todos ser reunidos num todo em volta de um nome. O ser já é em si a sua responsabilidade para o Outro – não há lugar para a fenomenologia. A morte do Outro me afeta na precisa medida em que eu não sou no sentido fenomenológico, não há nada em mim que escape dessa responsabilidade, que não seja essa responsabilidade. Não sobra nada que não seja afetado, que se esquive da morte do Outro. Ainda segundo o filósofo lituano, há só uma coisa que me furta da responsabilidade do Outro, o sequestro do eu pelo Outro: a literatura. Por que Lévinas coloca a literatura nesse lugar tão terrível? É possível dizer que a literatura está acima da ética, que dispensa a ética como a um empregado obsoleto, porque – pensando com Jacques Derrida (1995) – ela pode virtualmente dizer tudo. Segundo o filósofo francês, A literatura é uma invenção moderna, inscreve-se em convenções e instituições que, retendo apenas esse traço, asseguram-lhe em princípio o direito a dizer tudo. A literatura liga, assim, seu destino a uma determinada não-censura, ao espaço de liberdade democrática (liberdade de imprensa, liberdade de opinião, etc.). Não há democracia sem literatura, não há literatura sem democracia. (grifos do autor) (Derrida 1995: 47)

Para Derrida, portanto, a faculdade de dizer, a princípio, tudo faz que a literatura tenha um pacto pré-determinado com a democracia, uma espécie de simbiose essencial. Esta só é articulada, me parece, a partir de uma aliança ainda mais fundamental, ou talvez duas, a da literatura com a liberdade – bradada, historicamente, por muitos artistas – e da democracia com a liberdade – esta, muito mais discutível. A liberdade, portanto, é pressuposta nesta relação e tanto ela quanto a democracia aparecem, nesta fórmula, com certo otimismo. Não é impossível afirmar, no entanto, o oposto, que haja literatura sem democracia e democracia sem literatura. Esta já foi vista andando com companhias menos valorosas, pelo menos do ponto de vista de onde estamos, ou seja, da perspectiva democrática. Chamamos de literatura, ainda que seja um conceito Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

141

Raquel Parrine (USP) SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO

moderno, uma forma específica que já existiu em governos autoritários e advogando valores inescrupulosos. É por isso que Lévinas desconfia dela: “A arte não é (...) comprometida por sua própria virtude de arte. Mas por isso não é o valor supremo da civilização” (2001: 64, minha tradução). Principalmente porque a arte, ou a literatura especificamente, podendo dizer a princípio tudo, pode ignorar o chamado do Outro. A arte é uma espécie de evasão ao chamado da responsabilidade em relação ao Outro. Uma das operações que a literatura, essa instituição de liberdade fundamental, pode fazer é passar pelo limite intransponível da morte. Ela pode cruzá-lo e narrar a morte a partir deste limite e além deste limite. Inclusive, pode experimentar a morte do eu, em primeira pessoa. Temos, aliás, um cânone particularmente familiarizado com um defunto autor. A literatura pode fazer troça desta que é a pergunta sem resposta, à qual todas as perguntas tomam emprestada sua modalidade interrogativa. Pode respondê-la e pode falar no lugar dela. A morte treme ante a liberdade absoluta da literatura. A literatura pode prolongar a experiência da morte, num tempo, um ínterim que aparece paralelamente à duração do tempo dos vivos. Lévinas chama esse intervalo de entretempo, um espaço ocupado pela literatura, que seria uma “esfera que o ser pode atravessar, mas onde sua alma se imobiliza.” (2001: 62, minha tradução). Chamo atenção ao horror dessa imagem: a esfera em que o ser pode ultrapassar, mas que sua alma se imobiliza – essa é a esfera que a literatura ocupa. Lévinas cita contos de Edgar Allan Poe como exemplos desse entretempo, em forma de uma aproximação da morte que dura uma eternidade, às vezes caracterizada como o medo de ser enterrado vivo (Lévinas 2001: 62). Isso acontece em contos como “Barril de Amontillado”, de 1846, onde um homem se vinga do amigo emparedando-o em sua adega. Ou “A Queda da Casa de Usher”, de 1839, em que a irmã gêmea de Roderick Usher é descoberta viva dentro de sua tumba. O tema é recorrente na obra de Poe, como também em uma linha de romantismo grotesco que tem os alemães como influência. Também em certa medida, talvez não tão óbvia, poderíamos pensar nesta chave outros contos do escritor, como “Crimes na Rua Morgue”, por exemplo. Este conto trata do escrutínio de um crime ocorrido nesta rua, em que duas mulheres são assassinadas brutalmente. Nos contos e romances de detetive, a morte é o elemento ativador da narrativa. O sujeito morre, seu nome permanece, como um fantasma, rondando o enredo. Isso só é possível mediante a dupla articulação própria da narrativa policial, conforme teorizada por Tzvetan Todorov. Para ele, um conto policial tem sua estrutura articulada em dois tempos: o do crime e o do inquérito. O tempo do crime é um pretérito em relação ao tempo da narrativa, e é revelado ao detetive através do inquérito, que coincide com o tempo presente. O objetivo final da narrativa seria recontar o crime no presente, mas no último momento, nos últimos parágrafos do texto (Todorov 1970: 96). Pensando em Lévinas, podemos dizer que essa dupla articulação, ou seja, a diferença entre o tempo do inquérito e o da narrativa, representa o entretempo. Essa Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

142

Raquel Parrine (USP) SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO

“esfera em que o ser pode atravessar, mas onde sua alma se imobiliza” representa o que acontece à memória do assassinato e é o que move a narrativa. É neste sentido que afirmo que existe a sobrevida do cadáver através do inquérito. O cadáver, seu nome que ronda a narrativa, é a sombra imobilizada do ser que atravessou a fronteira da morte através da arte. A literatura policial também é uma espécie de espaço de excelência do tratamento da morte do Outro. Um gênero cujo combustível é feito de sangue – de preferência, muito sangue, com requintes de tortura, abuso, terrorismo e violência. Não é difícil ver o narrador do romance policial, ou o detetive, como uma espécie científica de sádico. Aquele que procura ver a morte do Outro com escrutínio, nos detalhes mais mínimos e repetidamente3. Esse também é um dos motivos secretos do policial. Segundo o escritor argentino Pablo De Santis Muy a menudo se aprovecha algo que excita la curiosidad morbosa del lector, como la violencia sexual, pero dando al libro un tono de denuncia, que libera el lector de toda la culpa, como quien mira la sangrienta escena de un accidente de autos mientras se convence que así medita sobre educación vial.4 (2010)

Não é à toa, me parece, que os detetives da linha analítica clássica normalmente são investigadores por hobbie, ou seja, por vocação e divertimento. Se fizermos umas contas, juntando todos os novos livros de suspense, as séries de televisão, os filmes de serial killer, as peças de teatro, quantos cadáveres empilharemos em nossas salas todas as semanas? De fato, a razão de ser da literatura policial – entenda-se policial analítica clássica5 – parece passar longe da experiência da morte do Outro como luto ou tragédia. Poe, caracterizando o pensamento analítico, diz que “[O homem] acha prazer até mesmo nas circunstâncias mais triviais, desde que ponham em jogo seu talento” (2007: 67). Note-se que a “circunstância trivial”, no caso deste conto, é o assassinato brutal de duas mulheres. Sobre este assunto, Pablo De Santis observa que El género [policial] no nace con el crimen, sino con la desaparición del crimen, es decir, el borramiento del crimen como hecho moral y aún humano, para que quede sólo como problema intelectual, como desafío gnoseológico.

Penso no retrato do narrador sádico feito por Eliane Robert Moraes (2009). Muito frequentemente aproveita-se algo que excita a curiosidade mórbida do leitor, como a violência sexual, mas dando ao livro um tom de denúncia, que libera o leitor de toda a culpa, como quem observa uma cena sangrenta de um acidente de carro enquanto se convence de que dessa forma medita sobre a educação no trânsito. (Minha tradução) 5 O que exclui, por exemplo, os romances policiais duros, como os de Raymond Chandler, e parte dos contemporâneos. 3 4

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

143

Raquel Parrine (USP) SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO

Mientras el asesino trata de hacer desaparecer sus huellas, el escritor de novelas policiales trata de borrar al crimen en cuanto tal.6 (2010)

O assunto do policial, assim, só parece ser o cadáver que mancha o tapete da biblioteca. Entretanto, seu real propósito poderá estar mais ligado à mancha do tapete. Para os escritores do analítico, isto é considerado até uma espécie de regra, como o faz Borges, que chama isso de “pudor da morte”: Homero pudo transmitir que una espada tronchó la mano de Hypsinor y que la mano ensangrentada cayó por tierra y que la muerte color sangre y el severo destino se apoderaron de sus ojos; pero esas pompas de la muerte no caben en la narración policial, cuyas musas glaciales son la higiene, la falacia y el orden.7 (2001: 38)

De fato, o gênero parece estar orientado muito mais para uma demonstração de virtuose do raciocínio do detetive8, do que para a solução do crime e a aplicação da justiça, por exemplo. O álibi da literatura policial é a justiça, o sentido único da narrativa é a aplicação da lei. Esse traço é tão forte que às vezes perdemos os movimentos que fazem que o detetive garanta que é a sua lei que será aplicada. Perdemos a ideia de que existe uma mente vigorosa a modelar todos os contornos da ação, porque ela sempre parece, aos nossos olhos, virtuosa. A vontade do detetive se confunde com os meandros da lei, é ainda mais justa do que a lei. Um exemplo interessante é o célebre desfecho do romance de Agatha Christie, Assassinato no Expresso Oriente: todos os suspeitos estão de fato envolvidos no assassinato investigado. Entretanto, o morto havia sido, anteriormente, um assassino, fazendo do crime em questão uma ação de vingança. O detetive, Hercule Poirot, resolve ignorar o inquérito e, ele mesmo, absolver os envolvidos. Dispensa-se, peremptoriamente, a necessidade de um julgamento nos moldes do direito penal. O detetive, assim, é a personificação da lei para o bem ou para o mal. É a lei e também a sanção, enfim, todas as instâncias envolvidas na condenação do assassino. Gostaria de voltar a Lévinas e dispor da ideia de “culpabilidade de sobrevivente”, a condição daqueles que sobrevivem à morte de outrem, que é a única morte que posso experimentar. Lembremos o impacto que a morte do Outro tem, segundo o filósofo. 6 O gênero [policial] não nasce com o crime, mas com o desaparecimento do crime, ou seja, o apagamento do crime como um fato moral e mesmo humano, para que fique só como problema intelectual, como desafio gnoseológico. Enquanto o assassino trata de fazer desaparecer seus vestígios, o escritor de romances policiais trata de apagar o crime como tal. (Minha tradução) 7 Homero pôde transmitir que uma espada decepou a mão de Hypsinor e que a mão ensanguentada caiu por terra e que a morte cor de sangue e o severo destino se apoderaram de seus olhos; mas essas pompas da morte não cabem na narração policial, cujas musas glaciais são a higiene, a falácia e a ordem. (Minha tradução). 8 Essa ideia está no ensaio de Peter Thoms (2002).

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

144

Raquel Parrine (USP) SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO

Dessa forma, podemos dizer que a culpabilidade de sobrevivente se dá no policial no processo de reconstituição do crime, em torno do nome próprio do cadáver, ou seja, no movimento de falar em nome daquele que não está mais lá, reivindicando justiça. Mas essa condição também está solapada, subordinada, marginalizada, por um ego e um orgulho, na forma do raciocínio do detetive. Este gesto representa a exaltação de um certo modelo de intelectual, que no século XIX queria se opor a uma perspectiva obscurantista. No universo recente do policial, entretanto, uma perspectiva que poderíamos chamar de neo-obscurantista, na forma de um terror humanista, ressurge para se vingar e acerta suas contas com o detetive astuto. Depois da humanização hollywoodiana do detetive nos anos 30, com o policial duro, o personagem começa a exibir sinais de fraqueza e ensaiar alguns erros. Em algumas obras, ele parece quase indefeso, inútil, balbuciante. O acaso começa a ser um componente importante para o seu sucesso, não mais uma mente que pode incorporar todos os conhecimentos humanos. Não que ele tenha deixado de ser excêntrico e genial, de modo geral, mas o seu aspecto humano ganha nova forma. Crimes começam a ficar sem solução, ou vencem o poder da lei, por exemplo. Há um espaço maior para o indecifrável. É nesta chave em que leio o título de Los detectives salvajes, de Roberto Bolaño. Se o policial analítico clássico queria chamar atenção para o seu detetive, acima da lei e dos homens, para quem um mistério poderia ser desvendado a partir da menor evidência, Bolaño nos coloca frente ao que de antemão é um paradoxo, detetives selvagens. Numa tentativa de ler este romance como policial, o defunto seria a primeira poeta real visceralista, Cesárea Tinajero. Mas ela, contrariando a lógica da dupla articulação do policial, morre no fim do livro, e não no começo. E o miolo do livro, na verdade, apresenta o que acontece depois da sua morte. Assim, se a inversão do policial clássico é contar o que aconteceu antes do começo da narrativa, ou seja, remontar os eventos da morte de alguém, no presente; Detectives faz dessa inversão uma experimentação estética. O livro tem três partes: a primeira e a última são um diário de um dos poetas e a parte do meio é um apanhado de testemunhos, tomados depois do fim do diário. Sabemos que Cesárea morreu. Alguém nos conta, desde o futuro, em um dos testemunhos da segunda parte. Mas sua morte só é narrada no final, em tempo presente. A dupla articulação de Detectives, ainda que culmine na narração da morte, como um policial clássico faria, coloca no centro da narrativa a vida após a morte de Cesárea, ou seja, coloca em primeiro plano a narrativa desde a culpabilidade de sobrevivente, desde a perspectiva da tragédia e do luto. Mas se, na segunda parte do romance, tentarmos ler os testemunhos como rastros, pistas de um mistério, ou seja, como leitores de policial, isso seria uma empresa frustrada. As pistas abundam, mas não nos ajudam a recontar uma segunda história, a organizar um relato como os dândis hermeneutas da primeira fase do policial. A leitura é irregular e não se deixa domar por um só vetor interpretativo. Há uma matéria crua, selvagem na fala desses personagens que não evoca nenhuma

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

145

Raquel Parrine (USP) SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO

argumentação, não facilita uma tese. É resistente à interpretação, sob pena de um didatismo reducionista. A seu modo, um livro policial clássico termina com a resolução do crime, o fim do inquérito. Traz a organização de todas as pistas e os rastros confusos a que o leitor foi exposto durante a narrativa reunidos em uma solução triunfal. Retomando as provas acumuladas durante a narrativa, a solução do crime nos obriga a rememorar todo o livro, em uma leitura retrospectiva dos passos do detetive. Com a solução em mãos, o leitor pode repassar todos os episódios do romance com uma nova luz, a solução do mistério, e a consequente resolução de todas as dúvidas, que o bom policial terá oferecido em grandes doses. Se é verdade que em Detectives, ao contrário, o motor da leitura retrospectiva não é a solução do mistério, mas o próprio assassinato, somos obrigados a repassar mentalmente pelas pistas, dadas na segunda parte, agora realmente como pistas, como o inquérito. Algo muda radicalmente a leitura do livro, e isso é a morte de Cesárea. Essa nova leitura, diferente da do policial, é movida pelo horizonte da tragédia, não só por causa do luto por Cesárea, mas pelo que sua morte representa para os demais: o fim da utopia de uma geração. Leva-nos a ver a segunda parte, o futuro, com o horizonte da morte de Cesárea, enchendo a narrativa de uma profunda decepção. É produtivo pensar que Bolaño coloca a morte de Cesárea no exato momento em que, no policial, se daria não só a solução do enigma, mas também a reviravolta clássica. Aí vemos em cena a surpresa lúdica, a reinstituição da ordem, a dissolução das questões, o cumprimento da lei serem substituídos pela tragédia da morte, o luto, a decepção. Vemos a sombra imobilizada que atravessou a morte, neste caso, a morte do Outro. Do tom aparentemente exitoso do policial, ao completo desengano. Esse momento é familiar ao leitor de Bolaño. Talvez seja um dos temas recorrentes de sua obra, a sensação de falência do projeto estético de uma juventude. Esse desalento aparece no episódio do duelo de Arturo Belano com o crítico literário, em Los detectives salvajes. Mas também está em outros lugares em sua obra, como no sonho de Auxilio Lacouture em Amuleto: uma multidão de jovens, meio fantasmas, caminhando em direção ao abismo, cantando uma música impronunciável, uma massa imbricada em uma ideia comum, unida pela generosidade, pela simpatia e pela morte. As últimas palavras do imenso monólogo de Auxilio são: Y aunque el canto que escuché hablaba de la guerra, de las hazañas heroicas de una generación entera de jóvenes latinoamericanos sacrificados, yo supe que por encima de todo hablaba del valor y de los espejos, del deseo y del placer.//Y ese canto es nuestro amuleto.9 (Bolaño 1999: 138)

E mesmo que o canto que escutei falasse da guerra, das façanhas heróicas de uma geração inteira de jovens latino-americanos sacrificados, eu soube que além de tudo falava do valor e dos espelhos, do desejo e do prazer.//E este canto é o nosso amuleto. (Minha tradução) 9

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

146

Raquel Parrine (USP) SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO

A imagem é muito forte. Uma massa de jovens caminhando para a morte, cantando uma música que fala de guerra e prazer. Auxilio é uma personagem que aparece pela primeira vez em Detectives. Amuleto pode ser considerado um spin-off do romance original, trazendo à tona novos e antigos personagens, pelo ponto de vista de Auxilio, a mulher que ficou trancada no banheiro feminino da UNAM durante a invasão dos militares. De fato, Detectives é o vórtice de onde saem muitas de suas outras obras, que têm em comum um traço autobiográfico (ou talvez auto-fictício) centrado na figura de Arturo Belano. Esse conjunto de textos estão reunidos por um certo tom, que domina também a segunda parte de Detectives, misturando exaltação e melancolia: o luto pela geração que foi jovem durante o estouro das ditaduras militares latino-americanas, um elogio do fracasso desses ideais – e em certa medida, de uma concepção da literatura que poderia salvá-los. Em seu emocionante discurso ao receber o prêmio Rómulo Gallegos, Bolaño afirma …en gran parte todo lo que he escrito es una carta de amor o de despedida a mi propia generación, los que nacimos en la década del cinquenta y los que escogimos en un momento dado el ejercicio de la milicia, en este caso sería más correcto decir la militancia, y entregamos lo poco que teníamos, lo mucho que teníamos, que era nuestra juventud, a una causa que creímos la más generosa de las causas del mundo y que en cierta forma lo era, pero que en la realidad no era. De más está decir que luchamos a brazo partido, pero tuvimos jefes corruptos, líderes cobardes, un aparato de propaganda que era peor que una leprosería, luchamos por partidos que de haber vencido nos habrían enviado de inmediato a un campo de trabajos forzados, luchamos y pusimos toda nuestra generosidad en un ideal que hacía más de cinquenta años que estaba muerto, y algunos lo sabíamos, y cómo no lo íbamos a saber si habíamos leído a Trotski o éramos trotskistas, pero igual lo hicimos, porque fuimos estúpidos y generosos, como son los jóvenes, que todo lo entregan y no piden nada a cambio, y ahora de esos jóvenes ya no queda nada (…). Toda Latinoamérica está sembrada con los huesos de estos jóvenes olvidados.10 (Bolaño 2006:37-38)

10

…em grande parte, tudo o que escrevi é uma carta de amor, ou de despedida, para minha própria geração, os que nasceram na década de cinquenta e que escolhemos em um momento dado o exercício da milícia, neste caso seria mais correto dizer militância, e entregamos o pouco que tínhamos, o muito que tínhamos, que era nossa juventude, a uma causa que achávamos que era a mais generosa das causas do mundo e que de certa forma era, mas na verdade não era. Demais está dizer que lutamos bravamente, mas tivemos chefes corruptos, líderes covardes, um aparato de propaganda que era pior que um leprosário, lutados por partidos que, se tivessem vencido, nos mandariam de imediato a um campo de trabalhos forçados, lutamos e colocamos toda nossa generosidade em um ideal que fazia mais de cinquenta anos que estava morto, e alguns de nós sabiam, e como não saberíamos se tínhamos lido Trótski, ou éramos trotskistas, mas o fizemos mesmo assim, porque fomos estúpidos e generosos, como são os jovens, que entregam tudo e não pedem nada em troca, e agora desses jovens já não resta nada (…). Toda a América Latina está semeada com os ossos desses jovens esquecidos. (Minha tradução)

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

147

Raquel Parrine (USP) SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO

Mas esse luto também é impossível de ser lido em sua totalidade, uma vez que a experiência de leitura de Detectives não nos permite juntar os fios e sintetizar essa vivência. A organização do romance não indica um caminho lógico e nem termina em uma chave de ouro totalizadora. Há muito material entre os testemunhos dos personagens e uma dimensão claramente deixada num lado escuro da narração: não temos a voz dos protagonistas, Arturo Belano e Ulises Lima. Ouvimos seus sucessos pelas vozes desiguais de seus colegas e conhecidos. Às vezes, aparecem nas histórias dos outros como figurantes longínquos, o administrador do camping, o mendigo. Estão no pano de fundo das histórias e, mesmo assim, são os personagens principais do livro. Talvez essa resistência ao testemunho, à libertação da voz em primeira pessoa, possa ser pensada paralelamente à impossibilidade de assimilação do Outro, apontada por Lévinas. Falamos sobre a minha face que se apresenta como um chamado do Outro. Mas e a face do Outro, como ela se apresenta para mim? Como ela pode estar presente no meu ser? De fato, ela não está. A face do Outro está sempre encoberta pelo mistério. Eu me endereço a ela sem saber onde ela está ou o que ela é. Está sempre no espaço onde eu não estou, qualquer que ele seja. O outro está presente em sua ausência, é o enigma. Não um tipo de enigma à espera de sua decifração, mas um fenômeno no limiar entre o visível e o invisível (Waldenfels 2005: 78). É como se Bolaño mimetizasse essa impossibilidade, ao tornar invisível certas coisas. A canção dos jovens existe, mas não podemos ouvi-la. Sabemos que Ulises Lima e Arturo Belano viajaram o mundo todo, mas não sabemos o que aconteceu. Não temos acesso a todo o enredo, à obra dos personagens escritores e, especialmente, à voz do Outro11. Ela está sempre lá, presente na sua ausência. Essas obras falam sobre o enigma, anunciam uma dimensão indecifrável da narrativa. Poderíamos pensar, inicialmente, que a literatura policial é o contrário disso. É aquela que fará questão de não deixar nada sobrar na sua explicação totalizadora, que não deixa nenhum mistério sem sua correspondente decifração. Entretanto, isso faz parte da ilusão resolutiva do desfecho do policial. Se acreditarmos no detetive e em sua narrativa, seremos vítimas de seus ardis, porque a única legitimidade que ele tem é a sua autoridade. Não teremos atualizado o narrador nas novas teorias da literatura e não teremos desconfiado dessa sua autoridade. A verdade que o detetive tenta ocultar é que não há explicação que dê conta de um mistério, há sempre algo no segredo que sobrevive à explicação. Não temos as versões das outras personagens e não podemos reproduzir as circunstâncias do crime. Tudo o que temos é a narrativa do detetive, as opções e a seleção que o detetive fez. Ele é todos os elementos envolvidos na narrativa, todos os atores. Não há nada que chegue a nós sem passar por ele.

Não temos acesso, inclusive, às obras dos personagens que são autores. Elas são mencionadas, mas nem mesmo da obra Cesárea temos um excerto sequer. A obra é embargada porque ela também é uma forma de voz. 11

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

148

Raquel Parrine (USP) SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO

Assim, o que Bolaño faz é construir suas histórias partindo deste enigma, pisando nas ruínas da representação. Assume o escuro e o indecifrável como estratégia narrativa, deixando bem claro ao leitor que há algo que ele nunca vai saber. E isso não acontece em setores marginais da narrativa, em histórias paralelas, mas no enredo principal. Quem está sob a escuridão são os protagonistas. Em um ensaio de 1965 chamado “Enigma y Fenómeno”, Lévinas caracteriza a filosofia, vista como compreensão do ser, ontologia ou fenomenologia, como um discurso racional ancorado no presente e na presença. Seria um suporte racional no qual a experiência poderia ser inscrita de forma a fazer sentido, na medida em que o presente ordena o passado. Assim, a impossibilidade de se retratar uma experiência poderia vir não da essência finita dela, mas da estrutura do pensamento que deve dar conta dela (Lévinas 2004). A estrutura deste pensamento consiste em trazer para o familiar aquilo que está, em muitos sentidos, invisível. Lévinas vê uma fissura neste pensamento orientado ao presente, algo a que ele se refere como rastro: “la huella de un más allá que trae un tiempo diferente de aquel donde los desdobramientos del presente refluyen hacia aquel presente a través de la memoria y la esperanza”12 (Lévinas 2004). Lévinas pergunta-se se algo poderia negar a ordem da contemporaneidade e ainda assim significar. Tudo dependeria, segundo ele, de um discurso orientado para a desordem, que transladaria a compreensão do ser do centro do pensamento filosófico. O ensaio gira em torno, portanto, de como se poderia dar essa desordem. Como tratar de um passado irreversível, que nunca pode se manifestar novamente, se repetir? É preciso que haja um indício daquilo que não pode ser recuperado – diferentemente da memória, que faz o passado voltar. Sería necesaria una indicación acusando la retirada de lo indicado, en lugar de una referencia que lo reúna. Tal es la huella por su vacío y desolación. Desolación que no está hecha de evocaciones, sino de olvidos, de olvidos que estarían haciéndose, que estarían apartando el pasado, de olvidos sorprendidos antes que este “olvidamiento” se vuelque en vinculo y anude de nuevo aquel pasado absoluto al presente, volviéndose evocador. ¿Pero cuál es esta huella original, esta desolación primordial? La desnudez del rostro haciendo frente, expresándose: ella interrumpe el orden.13 (Lévinas 2004)

O rastro, portanto, aquilo que é avesso à atividade de familiarização da ordem, do conhecimento fenomenológico, é a face do Outro diante de mim, aquilo que acusa 12 o rastro de um além que traz um tempo diferente daquele onde os desdobramentos do presente refluem para aquele presente através da memória e da esperança. (Minha tradução) 13 Seria necessária uma indicação acusando a retirada do indicado, no lugar de uma referência que o reúna. Tal é o rastro por seu vazio e desolação. Desolação que não é feita de evocações, mas de esquecimentos, de esquecimentos que se estariam fazendo, que estariam apartando o passado, de esquecimentos surpreendidos antes que este “esquecimento” transforme-se em vínculo e amarre de novo aquele passado absoluto ao presente, virando evocador. Mas qual é este rastro original, esta desolação primordial? A nudez do rosto fazendo frente, se expressando: ela interrompe a ordem. (Minha tradução)

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

149

Raquel Parrine (USP) SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO

todas as omissões que são feitas e que serão feitas. A manifestação do Outro mostra a dimensão daquilo que nunca poderá ser contemplado, porque é externo e irrepetível, como o passado. Segundo Lévinas, esse Outro que aparece como rastro não é uma presença. Ele se manifesta sem se manifestar, meu reconhecimento dele não vem de uma revelação, mas antes de um ocultamento. Assim, o filósofo o caracteriza como oposto ao fenômeno, que é a aparição totalizadora e infinita do deus. O oposto ao fenômeno é o enigma, a forma característica de manifestação do Outro. El enigma, intervención de un sentido que desordena el fenómeno, pero totalmente dispuesto a retirarse como un extranjero indeseable, a menos que se preste oído hacia esos pasos que se alejan, es la transcendencia misma, la proximidad del Otro en tanto que Otro.14 (Lévinas 2004)

Daí o caráter fugidio, discreto do enigma e o motivo de ele não poder acabar completamente com a ordem. Ele só a desestabiliza, porque não está disposto a revelar-se – ele não pode ser revelação, mas o rastro, o vestígio daquilo que não está sendo contemplado, uma oração que começa com “senão”. O enigma é estranho ao conhecimento, porque é velho demais para o jogo do conhecimento. Ele é avesso ao jogo da contemporaneidade da fenomenologia platônica, porque, segundo Lévinas, ele impõe uma versão totalmente outra do tempo. “Ese movimiento extra-vagante de sobrepasamiento del ser o de transcendencia hacia una inmemorial ancianidad, nosotros lo llamamos idea del infinito”15 (Lévinas 2004). De uma forma geral, em suma, Lévinas aponta um rastro no conhecimento que foge de seu jogo de assimilação – indica uma dimensão indecifrável de que a filosofia não pode dar conta. Essa dimensão é o Outro, que representa todas as omissões e o passado irrepetível. Conforme procuramos mostrar, o Outro está como dimensão desestruturante da ordem representada pelo conhecimento filosófico, mas ainda assim não se revela em sua plenitude – é o enigma. O enigma é mais antigo que o conhecimento e nos arrasta para fora da contemporaneidade exigida pelo pensamento racional, na direção de um passado primordial que é chamado de ideia de infinito. A proposta é que as particularidades que observamos em Los detectives salvajes – o foco narrativo particular, o ocultamento das vozes dos protagonistas, a morte velada de Cesárea Tinajero – sejam uma forma especial de tratar o problema do enigma, de falar em nome de algo que não pode ser reconstituído. Arturo Belano e Ulises Lima passam pelo romance nesta forma de enigma, preparados para dar lugar, para abster-se a todo o momento de dizer “eu” – e, ao mesmo tempo, a obra é O enigma, intervenção de um sentido que desordena o fenômeno, mas totalmente disposto a se retirar como um estrangeiro indesejável, a menos que se dê ouvidos aos passos que se afastam, é a transcendência mesma, a proximidade do Outro como Outro. (Minha tradução) 15 Esse movimento extra-vagante de sobrepassagem do ser ou de transcendência a uma antiguidade imemorial, nós o chamamos de ideia do infinito. (Minha tradução) 14

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

150

Raquel Parrine (USP) SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO

assinada por Roberto Bolaño, a quem parte da história se remete. É uma autobiografia, ou auto-ficção, narrada em terceira pessoa. Pode-se, portanto, narrar a partir do “ele”, da eleidade, segundo Lévinas, assumir o discurso do Outro e sempre abster-se. Ao contrário de uma autobiografia, em que o eu deve sempre ser protagonista, na história de Arturo Belano e Ulises Lima – ou Roberto Bolaño e Mario Santiago – o primeiro plano está na voz do Outro, fazendo que as omissões, os esquecimentos, as lacunas, sejam sempre evidentes. Na literatura policial, a questão do enigma é central. Mesmo que o enigma do policial não corresponda exatamente ao enigma de Lévinas, há similaridades interessantes na aproximação das duas problemáticas. Em primeiro lugar, a questão do tempo. A dupla articulação entre crime e inquérito pode ser considerada uma forma singular do gênero de lidar com a irreprodutibilidade do passado, o crime. Na impossibilidade de reencenar as circunstâncias particulares do evento do assassinato, o detetive organiza uma narrativa baseada nas pistas, nos vestígios deste evento. Assim, de certa forma, o policial é sempre a narrativa da anacronia, do rastro da morte e de suas consequências. É uma história sobre um evento que interdita a passagem normal do tempo, que congela o presente, em sua referência constante ao passado, ao crime, a algo que não se deixa ir até que o mistério seja revelado. Esta narrativa em geral está profundamente arraigada numa perspectiva totalizadora capaz de convencer os leitores de que estão diante da única solução satisfatória do enigma. O propósito do detetive, portanto, é trazer para o familiar as particularidades de um crime de forma que ele possa ser compreendido completamente por qualquer um, para que ele possa ser interpretado na forma da lei e para que as categorias normalmente associadas a ele – criminoso, testemunha, cúmplice, vítima – sejam satisfatoriamente preenchidas. Entretanto, o enigma persiste, porque o detetive não pode responder por tudo. A dinâmica de luz e sombra do policial – em que o foco narrativo sempre está na luz – esconde o fato de que há em seu horizonte algo insondável, inassimilável, obscuro, diante de que a única resposta possível do detetive é o discurso da lei. Sua única forma de intervenção é condenar à prisão. Mas a captura do assassino não garante que todas as perguntas tenham respostas e que o enigma do assassinato seja dissolvido. Há algo no horizonte do crime, na morte encomendada de uma pessoa, que suplanta aquilo que o detetive pode dizer sobre ela. Existe algo que não pode ser testemunhado, ou explicado, decifrado, narrado... Podemos chamá-lo de enigma – e este é um dos grandes temas da literatura policial: a dimensão que existe e permanece indecifrável na narrativa e que corresponde aos motivos mais escusos do indivíduo, da humanidade e da leitura. Corresponde também ao Outro, ao passado e à matéria que existe além da ficção, da ordem da filosofia, da qual não temos nada além de vestígios. Mesmo que se narrasse a história em diferentes perspectivas e que o enredo ganhasse em complexidade, questionando-se – o que de fato acontece nos policiais modernos – o enigma sobreviveria, porque há algo na ficção, na literatura, que simplesmente não pode dar conta da experiência. Em parte porque ela é um artifício, Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

151

Raquel Parrine (USP) SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO

uma seleção arbitrária de um começo e um fim que marcariam o que chamamos de obra. Em parte, porque, como afirma Lévinas, a questão do Outro é mais antiga do que a formulação de questões, ela é anciã à história e à arte. Em certa medida, a experiência mesma da leitura está inscrita aí, quando ela funciona como via de acesso ao Outro. Mas esse Outro nunca está lá, mesmo que seja um testemunho, porque o que temos é a ordem e não as omissões que marcam a presença/ausência do enigma. Segundo Juan Carlos Moraga Bolaño escribe sobre poetas que investigan el reverso de las cosas y transforman la experiencia en obra de arte, así como Piglia ve en el detective la variante popular del intelectual, hombre que busca conexiones y una teoría que explique el entorno, Bolaño plantea al poeta como detective de una realidad descarnada, bastión último de la reconstrucción del sentido, a costas de un destino siempre cifrado por la tragedia (quizás por que si bien el destino en si no es trágico si lo es el de la poesía o de quienes la ejercen como un oficio penitente).16 (Moraga 2012)

Resta dizer que, para Piglia, o detetive também é o símbolo do crítico literário, mas um detetive que busca um segredo que talvez nem exista (Piglia 2006: 15). Será que o nosso ofício, então, também compõe um destino trágico? Será que podemos dizer que exercemos a poesia como ofício penitente? – os críticos literários de Bolaño parecem dizer que não. Cabe ainda perguntar-nos, portanto, sobre a dimensão ética da nossa própria visão do enigma.

LIVING AFTER CESÁREA TINAJERO Abstract: According to Emmanuel Lévinas, the essence of the subject lies in his relationship with the Other, in the form of an ancestral responsibility, which remains even after death. Thus, as the Other dies, the Self experiences a special kind of mourning, a responsibility of the survivor. On this perspective, Roberto Bolaño’s novel Los detectives salvajes, as it modifies the structure of crime fiction narratives, brings back the tragedy to the story, when it recounts in the foreground the death of the poet Cesárea Tijanero. Thereof, it develops another concept of Levinas’, the enigma, a word very familiar to crime fiction: the enigma is the trace of the other, who is always there but never shows himself. Keywords: Roberto Bolaño; Emmanuel Lévinas; Detective Fiction. Bolaño escreve sobre poetas que pesquisam o reverso das coisas e transformam a experiência em obra de arte, assim como Piglia vê no detetive a variante popular do intelectual, homem que busca conexões e uma teoria que explique o entorno, Bolaño estabelece o poeta como detetive de uma realidade descarnada, bastião último da reconstrução do sentido, às custas de um destino sempre cifrado pela tragédia (talvez porque, se o destino não é trágico, o é o da poesia e daqueles que a exercem como ofício penitente). (Minha tradução) 16

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

152

Raquel Parrine (USP) SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO

REFERÊNCIAS

BOLAÑO, Roberto. Amuleto. Barcelona: Anagrama, 1999. _________. Entre paréntesis. Barcelona: Anagrama, 2006. _________. Los detectives salvajes. Barcelona: Anagrama, 2007. BORGES, Jorge Luis. Leyes de la narración policial. In: BORGES, Jorge Luis. Textos recobrados (1931-1955). Buenos Aires: Emecé, 2001, pp.36-39. DERRIDA, Jacques. Paixões. Campinas: Papirus, 1995. LÉVINAS, Emmanuel. Deus, a morte e o tempo. Coimbra: Almedina, 2003. _________. Enigma y fenómeno. Tradução: Manuela Valdivia G. Disponível em: Acesso em: 13 fev 2011. _________. Ética e infinito. Madri: Visor, 1991. _________. La realidad y su sombra. Madri: Editorial Trotta, 2001. _________. Transcendência e Inteligibilidade. Rio de Janeiro: Edições 70, 1984. MORAGA, Juan Carlos. Nuestros modelos de espanto: Roberto Bolaño y la novela criminal. Disponível em: . Acesso em: 22 fev 2012. MORAES, Eliane Robert. Um vasto prazer, quieto e profundo. In: Estudos Avançados, volume 23, número 65, 2009, pp. 271-288. PIGLIA, Ricardo. O último leitor. Tradução: Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. POE, Edgar Allan. Ficção completa, poesia & ensaios. Tradução: Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2007. SANTIS, Pablo De. El crimen como enigma de la razón. Disponível em: . Acesso em: 02 mai 2010.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

153

Raquel Parrine (USP) SOBREVIVER A CESÁREA TINAJERO

TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. In: As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1970, pp. 93-104. THOMS, Peter. Poe’s Dupin and the power of detection. In: The Cambridge Companion to Edgar Allan Poe. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp. 133-174. WALDENFELS, Benhard. Lévinas and the face of the other. In: The Cambridge Companion to Lévinas. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp 63-81. WYSCHOGRAD, Edith. Language and alterity in the thought of Lévinas. In: The Cambridge Companion to Lévinas. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 188-205.

ARTIGO RECEBIDO EM 26/02/2012 E APROVADO EM 08/03/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

154

PLATA QUEMADA: LEITURAS, TRANSGRESSÕES E TRANSFIGURAÇÕES Eduardo Fava Rubio (USP)1

Resumo: O ato da leitura sempre foi um ponto chave tanto da obra ficcional como da crítica do escritor argentino Ricardo Piglia. Este artigo busca discutir a aproximação da leitura com os mecanismos narrativos do relato policial que se evidenciam no romance Plata quemada. Além disso, procura traçar a relação que há entre a prática narrativa ficcional do autor e suas reflexões teóricas sobre a literatura analisando como o conceito de gênero, e em especial o de gênero policial, sofre transgressões e transformações no romance no sentido de configurar uma práxis narrativa única e original. Palavras-chave: Ricardo Piglia; Literatura Argentina; Gêneros Literários; Gênero Policial.

A leitura é um diálogo, mas dele não participa propriamente o escritor. A leitura é um diálogo entre o leitor e o texto, e o autor, se e quando fala, é através deste seu preposto textual, às vezes infiel, sempre ambíguo, inescapavelmente equívoco. A riqueza da experiência da leitura reside, justamente, na pertinência destes diálogos que estabelecemos com os textos. Como dialogar com a letra morta? Naturalmente, dialogamos com quem nos diz algo e isso não acontece com a letra morta, mas sim com o texto vivo, com o texto que não só nos diz algo hoje, mas que pode nos dizer outras coisas amanhã; com o texto que não oferece respostas definitivas, e sim com o que sempre suscita perguntas. Para dialogar com o texto, temos que “ter assunto” com ele. A leitura crítica é esse processo em que dialogamos insistentemente com os textos que nos dizem algo, com os textos com os quais temos assunto. A repetição da leitura é o aprofundamento do diálogo e este se faz da descoberta de novos sentidos, de novos questionamentos, de novas perguntas. A obsessão com o texto e com a leitura faz a crítica se desenvolver, multiplicando leituras, multiplicando textos.

Aluno do Programa de Doutorado na área de Literatura Hispano-americana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Mestre em Literatura Espanhola (FFLCH/USP). E-mail: [email protected]. 1

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Eduardo Fava Rubio (USP) PLATA QUEMADA: LEITURAS, TRANSGRESSÕES E TRANSFIGURAÇÕES

Piglia e a leitura Ricardo Piglia cultiva a imagem da leitura de forma reiterada em sua obra de ficção tanto quanto em sua obra crítica – chega a dedicar a esta imagem exclusivamente um de seus livros, El último lector. Em Respiración artificial, as leituras de cartas, diários, a leitura crítica da literatura argentina formam o tecido mesmo da trama: podemos ler a “respiração artificial” como a vida pela literatura, pela representação, pelo artifício. O personagem de Emilio Renzi, espécie de alter ego do escritor – um alter ego tomado com ironia e por vezes paródico, segundo o próprio Piglia – é descrito por ele, em uma entrevista dada a Carlos Damaso Martínez em 1985 e publicada em Crítica y ficción, como um personagem a quem “sólo le interesa la literatura, vive y mira todo desde la literatura” (2001: 93). Assim me parece a literatura ficcional de Piglia. Em outra entrevista, dada quatro anos depois a Ana Inês Larre Borges e também publicada em Crítica y ficción, a descrição praticamente se repete (2001: 110): Renzi está construido con algo que yo veo en mí con cierta ironía y con cierta distancia. En el sentido de que a Renzi sólo le interesa la literatura, habla siempre con citas, vive “literariamente” y es lo que yo espontáneamente hago o quiero hacer pero que controlo a través de mi conciencia política, digamos, una relación diferente con la realidad. Entonces es como si de entrada el personaje se hubiera constituido como el lugar desde el cual el mundo puede ser visto desde el estilo, desde las tramas. En este sentido Renzi es una autobiografía.

Se Renzi, o personagem, expressa certa auto-ironia do escritor, os textos – romances, contos – podem ser lidos todos como “respirações artificiais”: mais do que simplesmente literatura de ficção, uma representação da realidade feita em termos literários, uma visão do mundo que passa pela leitura, que passa pela criação do real pela ficção ou, ao menos, pelo texto. Em vários de seus textos críticos, como “Los relatos sociales”, também uma entrevista publicada em Crítica y ficción, discorre sobre o crime, os transgressores da lei e a sociedade “policialesca”, os relatos do Estado. Este, ao se tornar opressor, totalitário ou violento, conforma uma realidade “lida” pelo texto de Piglia em termos literários. A construção do real – como, por exemplo, a ficção gerada pelo Estado – assume assim, muitas vezes as formas do gênero policial e dos seus subgêneros mais violentos. A sociedade se constrói, ou se entende, seguindo a lógica de um gênero literário, ainda que este “real” seja só o real dos textos de Piglia. Esta leitura do real que conforma sua literatura e que aparece também em muitos de seus textos críticos se evidencia na ligação de Piglia com o gênero policial. Como editor, a partir de 1968, dirige na Argentina a “Serie Negra”, coleção de romances policiais norte-americanos publicada pela editora Tiempo Contemporáneo. Por fim, trabalha de diversas formas com o gênero em seus contos e romances, seja pela clave do policial de intriga –“La Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

156

Eduardo Fava Rubio (USP) PLATA QUEMADA: LEITURAS, TRANSGRESSÕES E TRANSFIGURAÇÕES

loca y el relato del crimen”–, seja pela do policial noir, ou do hardboiled norteamericano – Plata quemada. Sempre, porém, “desrespeitando” os cânones do gênero, acrescentando-lhe ou tirando-lhe algo, subvertendo-lhe certos parâmetros. Conformar sua literatura com leituras, releituras e citações de leituras, ao mesmo tempo em que conforma sua “realidade” literária baseando-se fortemente na ideia do crime, do delito e da violência conduz, naturalmente, a uma ideia muito explorada por Piglia: mesclar os dois temas – a leitura e o policial –, reiterando a imagem do escritor como criminoso – transgressor – e do leitor, especialmente do leitor-crítico, como detetive em busca das pistas que permitam elucidar o crime – a própria obra literária. Esta construção perpassa vários de seus textos críticos: em entrevista de 1984, publicada em Crítica y ficción, afirma que “[e]n más de un sentido el crítico es el investigador y el escritor es el criminal” (2001: 15); a frase que abre “Notas sobre literatura em um Diário”, em Formas breves é “Emma Zunz ou a narrativa como crime perfeito” (2000:79); em El último lector, comenta-se que “[u]na de las mayores representaciones modernas de la figura del lector es la del detective privado (private eye) del género policial” (2005: 77). A metáfora do leitor-detetive não é, de qualquer modo, uma invenção de Piglia e, evidentemente, não é uma exclusividade de seu repertório crítico, sendo quase um lugar-comum no estudo da literatura. Se definimos o detetive como um decifrador, por exemplo, podemos citar Antoine Compagnon, que em seu O demônio da teoria diz que: “O indivíduo é um leitor solitário, um intérprete de signos, um caçador ou um adivinho (...)” (2010: 35). Ainda que a metáfora não seja explícita – o leitor não é identificado com o detetive, propriamente, mas com o caçador e o adivinho –, a analogia continua válida ao se pensar que o detetive não só “lê” as pistas do crime, como também formula hipóteses para sua elucidação – como o adivinho – e deve “caçar” e prender o criminoso – como o caçador. O gênero policial ressalta a metáfora do leitor-detetive, propondo muitas vezes ao leitor que, acompanhando os indícios revelados pela narração, faça também o papel do detetive formulando suas hipóteses para a resolução do crime e consequentemente para o desfecho da intriga narrada. Não obstante, é importante ressaltar também que, do ponto de vista da crítica literária, a metáfora leitor-detetive é aplicável à leitura de qualquer texto, entendendo-se neste caso que a leitura é o deciframento dos signos que estão presentes em todo texto e podem ser mais ou menos implícitos e enigmáticos. Assim, o encontro do leitor-detetive com o gênero policial na obra de Piglia não é uma ocorrência que poderíamos considerar de antemão previsível ou obrigatória. Dito de outro modo, Piglia poderia cultivar a imagem da leitura como investigação em seus textos críticos sem que sua obra ficcional se voltasse para o gênero policial. Do mesmo modo o gênero policial não implica automaticamente uma adesão, em termos teóricos, à metáfora do leitordetetive. Em entrevista dada a Guillermo Mayr em 2009 (b), o próprio Piglia afirma: Yo creo que el modelo del relato como investigación no supone ni exige que el investigador sea un policía o un detective, ni que esté investigando un crimen o un delito. El modelo de investigación puede servir para construir relatos Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

157

Eduardo Fava Rubio (USP) PLATA QUEMADA: LEITURAS, TRANSGRESSÕES E TRANSFIGURAÇÕES

donde la investigación tenga otra función; no hay que asimilar "investigación" con "resolución del crimen". Entonces, para mí, el género policial ha funcionado como una estrategia narrativa fundada, básicamente, en la idea del relato como investigación.

É uma visão da leitura como constructo do mundo ficcional e uma visão da construção do real como relato policial que levam as duas ideias a se mesclarem. Para Daniel Link (2002: 73), “[a] outra razão que torna interessante o policial é estrutural: o policial é um relato sobre o Crime e a Verdade. É nesse sentido que o policial é, além do mais, o modelo de funcionamento de todo relato (...)”. Dito isto, tomemos o caso de Plata quemada, romance de Piglia de 1997, para tentar ver de que modo se dá essa relação entre o gênero e os pressupostos teóricos do autor expostos em seus textos críticos.

O gênero, os gêneros Ler Plata quemada como romance policial não parece, a princípio, motivo de grande discussão. Há inclusive na crítica trabalhos que partem explicitamente desta leitura, como “Plata quemada o un mito para el policial argentino”, de Adriana Rodríguez Pérsico (2004: 113-121). De qualquer modo, assumir este ou qualquer outro romance como policial a priori pressupõe uma discussão ampla e espinhosa: de fato o romance pertence ao gênero policial? Quais as regras do policial? Como definir a noção de “gênero” na atualidade? De maneira bastante resumida, podemos traçar uma história do conceito de gênero partindo da Antiguidade e chegando até fins do século XVIII como uma categoria prescritiva: o gênero é o arcabouço inescapável que determina o “bemfazer” das obras artísticas e literárias. A partir do pré-romantismo, marcado pelo movimento alemão Sturm und drang, os ditames do gênero são desafiados em prol da individualidade artística e chegamos, um século depois, às propostas de simples eliminação do gênero como categoria substantiva da crítica literária: para Benedetto Croce (apud Borges: 1999: 220), por exemplo, as obras já não se devem encaixar mais nos gêneros literários e nem teriam porque fazê-lo. Como, mesmo vítima de ataques e questionamentos, o gênero resiste a desaparecer do vocabulário tanto da crítica especializada como do leitor comum, chegamos ao século XX procurando ainda a ideia por trás do conceito. Bakhtin amplia o conceito para os gêneros do discurso, aproximando-o da linguística. Aqui, buscaremos destacar três das ideias vigentes nos dias de hoje sobre o conceito: o gênero como categoria histórica, o gênero como categoria de leitura e o gênero como categoria da literatura de massas. Pela primeira categoria ainda aceita modernamente para o entendimento do gênero, consideramos o conceito como uma categoria histórica, isto é, os gêneros não são mais aqueles formulados por Aristóteles ou pelos manuais de retórica renascentistas, e sim assumem formas contemporâneas. Desta maneira, podemos catalogar hoje como gêneros o romance, o conto, o ensaio, a autobiografia, etc. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

158

Eduardo Fava Rubio (USP) PLATA QUEMADA: LEITURAS, TRANSGRESSÕES E TRANSFIGURAÇÕES

Mesmo tendo perdido muito de seu caráter prescritivo a partir do século XIX, ainda podemos considerar que se espera de um livro classificado como “romance” que siga determinadas diretrizes próprias de seu gênero: se o texto tem dez páginas, não será um romance; se está escrito todo em verso, tampouco. Com o fim do gênero como categoria prescritiva – a melhor obra é aquela que melhor segue os ditames de seu gênero –, passamos à categoria seguinte: o gênero como uma expectativa de leitura. Se não há “leis retóricas” que determinem que um romance não pode ter dez páginas e se há críticos dispostos a analisar as obras de maneira bastante aberta, sem pré-conceitos, é fato que o leitor comum que compra e se dispõe a ler um romance não espera – e provavelmente não aceitará – deparar-se com um texto de dez páginas. É claro que essa adequação da obra ao horizonte de expectativa do leitor está ligada também à questões do mercado editorial, o que nos leva à terceira categoria de gênero. Para vários críticos e escritores, não é função do artista – antes seria o contrário – atender ao horizonte de expectativa do leitor. Ao fazê-lo, o artista se prende ao gênero como se prendiam os antigos aos modelos retóricos e sua obra, perdendo a originalidade da transgressão, tende à insignificância. Este conceito de gênero, ligado à literatura de massas, é atacado, por exemplo, por Jorge Volpi: En un principio, la utilización de los recursos de las novelas de género significó una bocanada de aire fresco frente a la experimentación formal de los años sesenta, pero su uso indiscriminado se ha convertido en una carga. En vez de arriesgarse a explorar nuevas sendas, numerosos autores, auspiciados por sus editores, se conforman en seguir esquemas preestablecidos que les garantizan grandes tirajes y fama inmediata. No nos hallamos en una época de decadencia de la novela, sino en el manierismo de lo policíaco, lo negro, lo fantástico y lo folletinesco (2008: 35-6).

Ricardo Piglia, em Plata quemada, apropria-se então de um gênero fortemente associado à literatura de massa, operando, no entanto, uma série de transgressões ao gênero que conferem ao romance outro semblante, mais original e desafiador. Ou, dito de outro modo, pelo próprio escritor na mencionada entrevista dada a Guillermo Mayr em 2009 (b): El género está presente en mi literatura sin que yo escriba directamente narrativa policial. Entonces, en "Respiración artificial" hay investigaciones múltiples, la forma del relato como investigación, digamos, que define un poco la forma de la novela, y en el caso de "Plata quemada" hay cierta relación con cierta tradición del género, digamos, la idea de la novela criminal, la novela contada desde la conciencia de los criminales más que la novela concebida como una investigación. El género funciona, para mí, como un punto de referencia, pero nunca he escrito textos del género en sentido estricto.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

159

Eduardo Fava Rubio (USP) PLATA QUEMADA: LEITURAS, TRANSGRESSÕES E TRANSFIGURAÇÕES

Claro que, aqui, supõe-se que o “gênero em sentido estrito” de que fala Piglia remete ao gênero em seu sentido mais tradicional ou, ao menos, a certo matiz prescritivo associado ao conceito. Ao renegar a escritura de textos de gênero, mas aceitá-los como “ponto de referência”, o que Piglia realiza é uma transgressão que, ao mesmo tempo em que supera os limites do conceito, também o delimita e conforma. Para Foucault (1999: 167), “la transgresión es un gesto que concierne al límite; es ahí en esa finura de la línea que se manifiesta el destello de su paso pero quizás también de su trayectoria total, su origen mismo”.

A transgressão do gênero A primeira transgressão diz respeito aos protagonistas da história: enquanto o policial clássico centra sua narrativa na figura do detetive – seja o detetive cerebral e passivo do romance de enigma, como o Auguste Dupin de Edgar Allan Poe ou o Sherlock Holmes de Arthur Conan Doyle, seja o detetive “durão” e pragmático do romance noir, como o Sam Spade de Dashiell Hammett ou o Philip Marlowe de Raymond Chandler –, Plata quemada tem como protagonistas os criminosos, notadamente o Nene Brignone e o Gaucho Dorda. O procedimento em si de centrar a narrativa no criminoso não é absolutamente nova: vejam-se, por exemplo, os protagonistas, às vezes também narradores, de romances como They Shoot Horses, Don't They? (1935), de Horace McCoy, The Killer Inside Me (1952) e Savage night (1953), de Jim Thompson, ou The Talented Mr. Ripley (1955), de Patricia Highsmith. A transgressão se dá, portanto, em relação ao modelo mais tradicional do policial, mas a configuração da dupla de personagens delinqüentes de Plata quemada – o dandy portenho e o gaucho pampeano – representa uma originalidade em relação ao que se espera do estereótipo destes personagens ao mesmo tempo em que os insere em um ambiente literário também inesperado: o policial. O Gaucho e o Nene são os transgressores dentro da trama e são as transgressões que tecem a trama, o que provoca o estranhamento do leitor que busca no romance o gênero e suas marcas mais reconhecíveis. Por outro lado, a figura do narrador também se modifica: se no policial clássico costuma-se ver uma voz narrativa unívoca – a do amigo do detetive cerebral, a do narrador em terceira pessoa onisciente ou até a do criminoso em tom de confissão ou memória –, no romance de Piglia a narrativa nos chega por meio de narradores múltiplos, muitas vezes contraditórios, falhos e pouco confiáveis. Uma nova expectativa – a de certa unidade narrativa – daquele que busca, de um modo ou de outro, o gênero no romance é também transgredida. A experiência de leitura que Plata quemada nos oferece passa a ser então ambígua: identificamos com certa facilidade muitos elementos do romance policial, especialmente de sua vertente norte-americana, dura, do romance noir, ao mesmo tempo em que nos é exigida uma superação de nosso horizonte de expectativa em relação a um romance policial. Tal procedimento configura a transgressão do gênero, seja este entendido como expectativa de leitura (o que esperamos encontrar em um Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

160

Eduardo Fava Rubio (USP) PLATA QUEMADA: LEITURAS, TRANSGRESSÕES E TRANSFIGURAÇÕES

romance policial), como expectativa do mercado editorial (o que se vende como romance policial dentro da literatura de massas), seja como marca de um gênero contemporâneo ao qual se inscreveria a obra (afinal a que gênero pertence Plata quemada, a que novo modelo nos levam suas transgressões?). A resposta às últimas questões poderia nos levar novamente à zona de conforto do gênero, afinal a determinação de parâmetros que alinhassem Plata quemada a outros romances contemporâneos seus forneceria ao leitor um novo horizonte de expectativa, ao mercado um rótulo para vender sua produção editorial, à leitura crítica um novo arcabouço teórico para analisar esta e outras obras. A que nos remetem então as transgressões ao gênero policial presentes no romance de Piglia? Em “Sobre el género policial”, artigo de 1976 publicado em Crítica y ficción, Piglia discute a relação entre o gênero policial e o jornalismo: Auden decía que el género policial había venido a compensar las deficiencias del género narrativo no ficcional (la noticia policial) que fundaba el conocimiento de la realidad en la pura narración de los hechos. Me parece una idea muy buena. Porque en un sentido Poe está en los dos lados: se separa de los hechos reales como el álgebra pura de la forma analítica y abre paso a la narración como reconstrucción y deducción, que construye la trama sobre las huellas vacías de lo real. La pura ficción, digamos, que trabaja la realidad como huella, como rastro, la sinécdoque criminal. Pero también abre paso a la línea de la non-fiction, la novela tipo A sangre fría de Capote (2001: 60-1).

Esta é uma concepção do gênero policial à qual Plata quemada parece adequarse perfeitamente, com sua narrativa fragmentada, buscando-se erguer entre os “vazios” da realidade desta história supostamente real. Também o relato jornalístico serve, no romance, como forma de construção narrativa, trazendo para o seio deste toda sua “deficiência” em narrar a realidade só a partir dos fatos. O narrador, no Epílogo do romance, chega a afirmar que: No siempre los diálogos o las opiniones transcriptas se corresponden con exactitud al lugar donde se enuncian pero siempre he reconstruido con materiales verdaderos los dichos y las acciones de los personajes. […] El conjunto del material documental ha sido usado según las exigencias de la trama, es decir que cuando no he podido comprobar los hechos en fuentes directas he preferido omitir los acontecimientos (1998: 245-6).

Curiosamente, no mesmo epílogo, parte importante do “material verdadeiro”, do “material documental” usado na confecção do romance é atribuída ao correspondente do jornal argentino “El Mundo” em Montevideo que assinava seus textos como “E.R.” e que corresponde no romance ao jovem jornalista... Emilio Renzi. O romance, assim, se fragmenta e se constrói a partir das pistas, dos indícios, dos entreditos, das falhas que a própria realidade criada por Piglia apresenta. O seu alter ego irônico, que vive “literariamente”, na própria literatura não dá conta de sua Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

161

Eduardo Fava Rubio (USP) PLATA QUEMADA: LEITURAS, TRANSGRESSÕES E TRANSFIGURAÇÕES

realidade, como não dão conta da realidade dos fatos os outros jornalistas e meios de imprensa que cobrem o roubo e a fuga dos criminosos. É certo que os jornais têm um papel importante na tentativa de cobrir as “falhas” da narrativa, revertendo a tese de que o gênero policial vem a cobrir uma falha da notícia policial, que nunca poderá dar conta da verdade em sua completude. Em Plata quemada, abundam expressões como “segundo os jornais” e “disseram os jornais” (páginas 36, 41, 46, 53, 87, 88, 121, 130, etc) que, supostamente, cobririam lapsos da narrativa – aquilo que o narrador, o mesmo do Epílogo, não tem condições de narrar –, mas que só reforçam a percepção de uma narrativa incompleta e entrecortada. Nem o gênero policial resolve os crimes das páginas policiais dos jornais, nem o gênero jornalístico confere “verdade” e “certeza” à ficção literária. A reflexão de Piglia sobre o gênero policial e a realização da ficção na narrativa do romance se encontram na mesma leitura e, assim como esta, muitas ideias de Piglia sobre sua concepção teórica de literatura parecem prenunciar os mecanismos de construção de Plata quemada. Outra delas é a ficção paranoica. Em uma conferência proferida em 2001 e publicada na revista brasileira Serrote, Piglia afirma que: No gênero romance, o complô substituiu a noção trágica de destino: certas forças ocultas definem o mundo social e o sujeito é instrumento dessas forças que não compreende. O romance introduziu a política na ficção sob a forma do complô. A diferença entre tragédia e romance parece estar ligada a um deslocamento da noção de fatalidade: o destino é vivido sob a forma de complô. Os oráculos mudaram de lugar; a trama múltipla da informação, as versões e contraversões da vida pública, eis o lugar visível e denso onde o sujeito lê cotidianamente a cifra de um destino que não chega a compreender (2009a: 99-100).

Já em Plata quemada o narrador do Epílogo apresenta a história da crônica policial narrada como tendo adquirido para ele “la luz y el pathos de una leyenda” (1998: 245). No capítulo sete, afirma, em meio ao cerco da polícia aos bandidos encastelados no apartamento de Montevideo, que “la larga odisea (…) ya dura cuatro horas.” (1998: 171). Nesta espécie de epopéia trágica do Prata é o próprio personagem do Gaucho Dorda quem encarna a figura deste moderno anti-herói trágico do romance que se vê envolto em uma paranóica trama de complô, cujos sinais agourentos estão por toda parte: “estaba siempre viendo signos negativos y tenía múltiples cábalas que le complicaban la vida.” (1998: 12). Seus “oráculos” se travestem nas instituições sociais. A primeira é a polícia, a quem combate como quem combate o destino: “Lo había matado [al policía] porque odiaba a la policía más que nada en el mundo y pensaba de un modo irracional que cada policía que él mataba no iba a ser reemplazado.” (1998: 40) Depois a lei: “Lo detuvieron varias veces de chico hasta que a los quince lo mandaron al neuropsiquiátrico de Melchor Romero, cerca de La Plata.” (1998: 73) Também a imprensa, falando do Gaucho e dos outros do bando: “’Hybris’, buscó en el diccionario el chico que hacía policiales en El Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

162

Eduardo Fava Rubio (USP) PLATA QUEMADA: LEITURAS, TRANSGRESSÕES E TRANSFIGURAÇÕES

Mundo: la arrogancia de quien desafía a los dioses y busca su propia ruina’” (1998: 91). Por fim, o médico psiquiatra (1998: 225): – Si sigue así va a terminar mal, Dorda – le dijo el médico. – Yo voy mal – dificultoso para expresarse, el Gaucho Rubio –. Vengo mal desde chico. Yo soy desgraciado. No sé expresarme, doctor.

Assim como a narrativa jornalística corrompe a policial e é, em tese, corrompida por ela na teoria ficcional de Piglia, também a tragédia, um gênero clássico por excelência, encontra uma contrapartida nas ideias críticas do autor sobre a narrativa contemporânea – a ficção paranoica, a teoria do complô – e uma realização ficcional em algum nível de Plata quemada.

Transfiguração e hibridismo Por fim, em outro artigo publicado em Crítica y ficción, “La lectura de la ficción”, reprodução de entrevista de 1984 a Mónica López Ocón, Piglia afirma: Por mi parte, me interesan mucho los elementos narrativos que hay en la crítica: la crítica como forma de relato; a menudo veo la crítica como variante del género policial. (…) Se podría pensar que la novela policial es la gran forma ficcional de la crítica literaria. (…) Me interesa mucho la estructura del relato como investigación: de hecho es la forma que he utilizado en Respiración artificial. Hay como una investigación exasperada que funciona en todos los planos del texto (2001: 15-6).

Jorge Volpi já enxerga – e com bons olhos – na obra de escritores como Sergio Pitol, Javier Marías e Enrique Vila-Matas a simbiose entre romance e ensaio: “Todos ellos han experimentado distintas variedades de esta mutación, a veces por medio de largos pasajes ensayísticos en el interior de sus novelas, a veces con ensayos narrativos o verdaderos híbridos” (2008: 36). Em um romance como Respiración artificial também é evidente a discussão crítica levada a cabo, sobretudo na segunda parte do romance, cheia de passagens ensaísticas. Por outro lado, se como o próprio Piglia afirma, no citado artigo “La lectura de la ficción”, que “la crítica es una de las formas modernas de la autobiografía”, há muito de narrativa em sua obra crítica como já notou Gabriela Speranza em seu artigo “Autobiografía, crítica y ficción: Juan José Saer y Ricardo Piglia” (2001). A questão é se o mesmo se poderia dizer de Plata quemada, romance que, ao menos na aparência mais superficial, entrega-se à trama pura e simples ou, eventualmente, a algum aprofundamento psicológico de um dos personagens, sem, no entanto, jamais ter passagens propriamente ensaísticas, tais quais as que notamos claramente em Respiração artificial. De fato, Plata quemada não parece realizar o hibridismo entre romance e ensaio presentes em Trilogía de la memoria, de Pitol, Corazón tan blanco, de Marías ou Historia Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

163

Eduardo Fava Rubio (USP) PLATA QUEMADA: LEITURAS, TRANSGRESSÕES E TRANSFIGURAÇÕES

abreviada de la literatura portátil, de Vila-Matas. Tampouco é uma narrativa na qual discussões literárias surgem da boca dos personagens ou das situações da trama em si, como em Respiración artificial, Los detectives salvajes, de Bolaño, ou mesmo O nome da rosa, de Umberto Eco. No entanto, como aponta Daniel Link em seu já citado artigo “O jogo dos cautos (sobre o policial)”, de 2002: Falar do gênero policial é, portanto, falar de bem mais que literatura: de imediato, de filmes e de séries de TV, de crônicas policiais, de noticiários e de histórias em quadrinhos: o policial é uma categoria que atravessa todos os gêneros. Porém também é falar do Estado e de sua relação com o crime, da verdade e de seus regimes de aparição, da política e de sua relação com a moral, da Lei e seus regimes de coação (2002: 72).

Plata quemada transgride o gênero policial realizando um hibridismo entre o romance policial e outros gêneros. O relato jornalístico e certos tópicos da tragédia clássica são os campos pelos quais, em especial, a narrativa parece passar nessa operação de transgressão – travessia, ida além das fronteiras estabelecidas. Os procedimentos narrativos da construção da novela, seus personagens e as inúmeras citações – diretas e indiretas; literárias, políticas e históricas –, tão marcantes na escrita de Piglia, oferecem ao leitor crítico, insistente, indagador, novos questionamentos que conduzem a novas travessias e novas leituras híbridas: será o romance, eminentemente, sobre o papel do dinheiro na sociedade e, neste sentido, há algo de análise sociológica no texto? Será a trama principal de roubo, fuga e violência pano de fundo alegórico para o momento histórico vivido pela Argentina às portas das terríveis ditaduras dos anos setenta? Será o personagem do Gaúcho Rubio um ponto de diálogo com a tradição gauchesca, não do ponto de vista estético formal, claro, mas no sentido de discutir uma enorme – e polêmica – tradição cultural argentina, que de Sarmiento passa por Hernández, por Güiraldes, por Borges, por todos de alguma maneira? Ainda que considere todas estas perguntas válidas, mesmo que as respostas dadas após a reflexão as rejeite, a transgressão possível do romance que mais me interessa neste momento é a que remete Plata quemada à obra do próprio autor: tanto suas outras narrativas, como suas ideias críticas, expressas em artigos, ensaios, conferências e entrevistas. No artigo “De “Pulp Fiction” a metaficción literaria: las transformaciones del personaje detectivesco en la narrativa policial brasileña”, Michele Dávila Gonçalves já aponta, ao falar sobre o gênero policial no Brasil que: (…) en estas obras se requiere más esfuerzo del lector para seguir la historia y por ende, las pistas para resolver el enigma. Esto se debe a que las novelas policiales más recientes tienen en común una preocupación teórica con el género policíaco en sí y la literatura en general. Son textos llenos de alusiones, intertextualidad y erudición que los ejemplos clásicos del género no tienen. Las obras son metaficciones donde los autores proponen y discuten teorías sobre el arte de escribir y en especial la narrativa policial (2005: 85).

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

164

Eduardo Fava Rubio (USP) PLATA QUEMADA: LEITURAS, TRANSGRESSÕES E TRANSFIGURAÇÕES

A metaficção vista por Gonçalves nos romances policiais brasileiros exige, como ela mesma afirma, “mais esforço do leitor”. Por outro lado, me parece que as alusões, intertextualidades e erudição muitas vezes são relativamente claras em muitos exemplos do policial contemporâneo – seja ele brasileiro, hispano-americano, norte-americano ou europeu. A dificuldade que pode encontrar o leitor está em seguir as pistas, em interpretá-las, não necessariamente em encontrá-las no texto. Com relação às ideias de Gonçalves, duas discrepâncias me parecem fundamentais em minha leitura de Plata quemada. Em primeiro lugar, ainda que tome como ponto de partida o gênero policial, o diálogo intertextual proposto por Piglia não se centra propriamente na discussão do gênero em si. Claro que, ao transgredilo, comete um ato que, como diz Foucault, concerne ao limite. A narrativa ajuda a redefinir o gênero ao redefinir seus limites e este ato é, de todo modo, uma discussão teórica sobre a escrita e a literatura em geral. Há, no entanto, um diálogo teórico que me parece mais central com a própria visão de literatura que nos apresenta Piglia em seus textos críticos e ficcionais, com teses como a ficção paranóica e a teoria do complô; como a forma do relato como investigação; como a do dinheiro como motor social, a modo do que ele analisa na obra de Roberto Arlt; como a da violência e opressão do Estado como criadoras de narrativas, de ficções sociais. Por esta leitura, Plata quemada aprofunda mais do que tudo uma leitura da visão pigliana da literatura, dos seus temas recorrentes, suas obsessões, seus questionamentos. Em segundo lugar, está a maneira como se constrói a narrativa mesma. Não se discute literatura praticamente em nenhum momento do texto do romance, ao mesmo tempo em que o texto é em si a realização de muitas das discussões de Piglia ao longo dos anos sobre o que é hoje a literatura, a cultura, a sociedade, a política e a história. As referências, alusões e citações não se esgotam na erudição por si só – demonstrada pelo escritor e exigida do leitor. A leitura que proponho exige, talvez, ainda mais esforço do leitor ao forçá-lo a fazer parte do diálogo com Piglia sobre a literatura em seus termos, nos termos que ele propõe. Ao deparar-se com as pistas do texto, com os indícios do crime – real ou literário –, o leitor não encontra propriamente respostas, não decifra nada. A tarefa é descobrir o jogo escondido que desvelará não só uma visão de literatura, mas uma visão de mundo em termos literários. Se em Plata quemada, enfim, Piglia parece ter buscado realizar a crítica através da ficção, em forma de relato policial, objetivo almejado em alguns de seus textos teóricos, o que resta ao leitor? Não transgredir junto com o texto é sempre uma opção: basta ler no romance só uma narrativa criminal. A outra, que me parece mais rica e prazerosa, é jogar o jogo e expor-se, inclusive, ao erro, a sair do mapa, do texto, e perder-se. É fantasiar por um momento que Plata quemada não é, na verdade, um romance de Ricardo Piglia, mas o romance policial que escreveu Emilio Renzi, utilizando como pseudônimo o nome deste renomado professor nascido em Adrogué.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

165

Eduardo Fava Rubio (USP)

166

PLATA QUEMADA: LEITURAS, TRANSGRESSÕES E TRANSFIGURAÇÕES

PLATA QUEMADA: TRANSFIGURATIONS

READINGS,

TRANSGRESSIONS

AND

Abstract: The act of reading has always been a major subject for the Argentinean writer Ricardo Piglia, both in his fiction and critical writings. This article aims at discussing the approach of the reading act to the narrative devices of the crime novel present in the author’s novel Plata quemada (Burnt Money). Besides, it intends to describe the relationship between the author’s fictional narrative praxis and his theoretical thoughts about literature by analyzing how the concept of literary genre, especially the crime novel as a genre, passes through transgressions and changes in the novel in a sense of delineating an original and unique narrative praxis. Keywords: Ricardo Piglia; Argentinian Literature; Literary Genres; Crime fiction.

REFERÊNCIAS

BORGES, Jorge Luis. 1999. O conto policial. In: Borges, oral. Obras completas. vol. IV. 1975-1988. Tradução: Maria Rosinda Ramos da Silva. São Paulo: Globo, 1999, pp. 22030. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: Literatura e senso comum. 2 ed. Tradução: Cleonice Paes Barreto Mourão, Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010. DÁVILA GONÇALVES, Michele. De “Pulp Fiction” a metaficción literária: las transformaciones del personaje detectivesco en la narrativa policial brasileña. In: Chasqui, número 34.2, 2005, pp. 78-91. FOUCAULT, Michel. Prefacio a la transgresión. In: Entre filosofía y literatura – Obras esenciales: volumen 1. Barcelona: Paidós, 1999, pp. 163-80. LINK, Daniel. O jogo dos cautos (sobre o policial). In: Como se lê e outras intervenções críticas. Chapecó: Argos, 2002, pp. 69-89. PIGLIA, Ricardo. Crítica y ficción. Barcelona: Anagrama, 2001. ______. El último lector. Barcelona: Anagrama, 2005. ______. Formas breves. Tradução: José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ______. Plata quemada. 8. ed. Buenos Aires: Planeta, 1998.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Eduardo Fava Rubio (USP) PLATA QUEMADA: LEITURAS, TRANSGRESSÕES E TRANSFIGURAÇÕES

______. Teoria do complô. In: Revista Serrote, número 2, julho/2009, pp. 97-111. ______. El género policial ha funcionado como una estrategia narrativa fundada en la idea del relato como investigación - entrevista a Guillermo Mayr. Blog El jinete insomne. 12 de noviembre de 2009. Disponível em: . Acesso em 31 out 2011. RODRÍGUEZ PÉRSICO, Adriana. Plata quemada o un mito para el policial argentino. In: RODRÍGUEZ PÉRSICO, Adriana (org.). Ricardo Piglia: una poética sin límites. Pittsburg: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana / Universidad de Pittsburg, 2004. SPERANZA, Graciela. Autobiografía, crítica y ficción: Juan José Saer y Ricardo Piglia. In: Boletín del Centro de Estudios de Teoría y Crítica Literaria, número 9, diciembre/2001, pp. 90-103. VOLPI, Jorge. Mentiras contagiosas. Madrid: Páginas de Espuma, 2008.

ARTIGO RECEBIDO EM 28/02/2012 E APROVADO EM 10/03/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

167

EXPERIÊNCIA, INÉRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO Laura de Assis Souza (UFJF)1

Resumo: O presente trabalho empreenderá uma análise de contos do livro Paraísos artificiais (2004) do escritor brasileiro Paulo Henriques Britto, com o objetivo de discutir de que modo é abordada nessas narrativas a temática do esvaziamento da experiência na contemporaneidade. Palavras-chave: Esvaziamento; Experiência; Literatura contemporânea.

Experiência e contemporaneidade: narrar o hoje A palavra experiência é amplamente utilizada em níveis distintos de significação, mas em todos eles é possível identificar um mesmo sentido original que remete à etimologia do vocábulo. Experiência vem da palavra grega experientia: o que está fora e foi retirado (ex-) de uma prova ou provação (-perientia). Esse conceito ocupa lugar de bastante destaque na filosofia de Walter Benjamin. A primeira vez que esse conceito aparece em sua obra é em um texto de 1913 intitulado justamente “Experiência”, no qual Benjamin fala sobre a experiência no sentido de vivência, colocando-a como uma prerrogativa do adulto diante dos jovens. Ele caracteriza essa vivência como uma experiência amarga e monótona, pois as “coisas grandiosas, novas, futuras” não podem ser experimentadas. De acordo com Benjamin: Tudo o que tem sentido, que é verdadeiro, bom, belo está fundamentado sobre si mesmo – o que a experiência tem a ver com isso tudo? E aqui está o segredo: a experiência se transformou no evangelho do filisteu porque ele jamais levanta os olhos para as coisas grandes e plenas de sentido; a experiência se torna para ele a mensagem da vulgaridade da vida (Benjamin 1984: 23-24).

1 Estudante do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestre. E-mail: [email protected].

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Laura de Assis Souza (UFJF) EXPERIÊNCIA, INÉRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO

No texto original, Benjamin usa a palavra alemã Erfahrung, oriunda do verbo erfahren, que significa “aprender, vir a saber, descobrir, experimentar”, estando relacionada, portanto, ao conhecimento em seu caráter individual, adquirido na vivência de cada um. Também em “Sobre o programa de uma filosofia futura” (1917) Benjamin toca na questão da experiência, definindo-a como “a multiplicidade unitária e contínua do conhecimento”. Essa definição vai se aproximar bastante da postulada em “Experiência e pobreza” (1933), texto no qual Benjamin volta a esse conceito, relacionando-o à situação da sociedade moderna daquela época e encarando a experiência como um fator mais coletivo e social. Nesse texto Benjamin conclui que “está claro que as ações da experiência estão em baixa” (Benjamin 1994: 114) e questiona: Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade (Benjamin 1994: 115).

O filósofo Giorgio Agamben, responsável pela edição italiana das obras completas de Walter Benjamin, dedicou à releitura das ideias deste vários de seus textos. O livro Infância e História: destruição da experiência da história (2005) traz vários artigos relacionados à obra de Benjamin, que buscam dar conta de alguns dos conceitos presentes na obra do filósofo alemão não sem contemplar também uma perspectiva atual desses conceitos, procurando afiná-los com os dias de hoje. Assim como evidenciado no título, a questão da experiência é tema central do livro. No primeiro ensaio Agamben direciona suas reflexões justamente para a questão da perda da experiência, analisando algumas proposições de Benjamin no já citado “Experiência e pobreza” e anuncia que: Todo discurso sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de que ela não é mais algo que ainda nos seja dado a fazer. (…) o dia-a-dia do homem contemporâneo não contém quase nada que seja ainda traduzível em experiência: não a leitura do jornal, tão rica em notícias do que lhe diz respeito a uma distância insuperável; não os minutos que passa, preso ao volante, em um engarrafamento; não a viagem às regiões ínferas nos vagões do metrô nem a manifestação que de repente bloqueia a rua (...). O homem moderno volta para casa à noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos – divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes–, entretanto nenhum deles se tornou experiência (Agamben 2005: 21-22).

Giorgio Agamben afirma ainda que essa precarização da experiência pode ser notada, por exemplo, no desaparecimento da máxima e do provérbio. De acordo com Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

169

Laura de Assis Souza (UFJF) EXPERIÊNCIA, INÉRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO

Agamben, na sociedade de hoje eles foram substituídos pelo slogan. A máxima e o provérbio teriam sido, no passado, a palavra de autoridade da experiência e, de acordo com Agamben, nos dias de hoje, “o slogan é o provérbio de uma humanidade que perdeu a experiência.” (Agamben 2005: 23). A “pobreza de experiência” da qual Benjamin fala no ensaio relido por Agamben, “Experiência e pobreza”, está diretamente ligada às consequências catastróficas da Primeira Guerra Mundial, diante das quais o “frágil e minúsculo corpo humano” se viu abandonado em um “campo de forças de correntes e explosões destruidoras” (Benjamin 1994: 115). No entanto, como observa Agamben, não é necessário nenhum acontecimento catastrófico para que se consume a destruição da experiência nos dias atuais, pois “a existência cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, perfeitamente suficiente” (Agamben 2005: 21). O distanciamento dos indivíduos é um dos principais sintomas de que a experiência autêntica está de fato se perdendo. Tomando, por exemplo, a definição de experiência de Maurice Blanchot – para quem a experiência é “contato com o ser, renovação do eu nesse contato” (Blanchot 1987: 83) e de Michel Foucault – que afirma que “uma experiência é qualquer coisa da qual saímos transformados em nós mesmos” (Foucault apud Revel 2005: 47) –, pode-se concluir que a experiência está sempre relacionada com a alteridade, com o contato com o outro. Sendo a arte criação relacionada à representação e elaboração do mundo, é inevitável, portanto, que a experiência e as modificações que essa noção vem sofrendo estejam atingindo, tanto em uma perspectiva formal quanto temática, a literatura. De fato, é possível notar na prosa de ficção contemporânea alguns traços que apontam para uma tentativa de representação do empobrecimento da experiência. De acordo com Silvia Regina Pinto, professora do Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro: Em grande parte das narrativas atuais, inclusive no cinema, evidencia-se a questão pós-humanista no mundo hoje, que descarta a metafísica, desconfia da imanência, passa ao largo dos sentidos únicos, envolve-se todo o tempo com os mais variados problemas de identidade, e, de quebra, questiona as indecidibilidades da autoria (Pinto 2008: 168).

Silvia cita Budapeste (2003), livro de Chico Buarque, como exemplo de obra que de algum modo tenta representar essa crise da qual ela fala e a esse exemplo podemos somar ainda livros como Nove noites (2002), de Bernardo Carvalho e Cordilheira (2000), de Daniel Galera e filmes como e Adaptação (2002) e Sinédoque, Nova York (2009), ambos roteirizados por Charlie Kaufman. De fato a frequência de estratégias narrativas como a metaficção e a metaliteratura chama a atenção de qualquer leitor que acompanhe mais atentamente a literatura pós-moderna e contemporânea, assim como a hibridização de realidade e ficção que, em 1985, já era apontada por Flora Süssekind, quando a crítica tece um comentário acerca do livro Em liberdade (1981), de Silviano Santiago. De acordo com Flora: Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

170

Laura de Assis Souza (UFJF) EXPERIÊNCIA, INÉRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO

Só pelo realce da própria ficcionalidade, em meio a múltiplas referências históricas e personagens com nomes por demais conhecidos; só pela mistura de gêneros (ensaio, diário, ficção), o romance de Silviano Santiago já se situa em posição singular em meio ao panorama literário brasileiro da última década (Süssekind 1985: 54).

Bem, todas as características de Em liberdade destacadas por Flora – realce da própria ficcionalidade, referências históricas e personagens reais e mistura de gêneros – vão aparecer e se intensificar na produção literária brasileira a partir dos anos 2000. Mas se há duas décadas e meia eram responsáveis por situar o livro de Santiago em uma “posição singular em meio ao panorama literário brasileiro”, hoje se configuram como bastante recorrentes. A essas estratégias somaram-se ainda outros tipos de soluções de conteúdo e estilo ligadas à prosa de ficção, como a metaliteratura, a inércia da trama e o esvaziamento do universo ficcional, e são principalmente elas o foco deste artigo como será apresentado posteriormente. O realce da ficcionalidade – que a partir daqui será chamado pelo seu nome mais recorrente: metaficção – é, na maior parte das vezes, a estratégia inicial utilizada pelos autores quando começam a abordar as relações entre arte e a realidade em seus textos, de alguma maneira questionando o limite entre as duas estâncias. Em um texto metanarrativo ou metaficcional é evidenciado no próprio texto seu processo de construção e, portanto, o foco se volta tanto para o universo ficcional quanto para fora dele, ao mesmo tempo estruturando e explicitando a ficção. Esse conceito de metaficção é definido por Linda Hutcheon (1984) como “narrativa narcísica”, ou seja, a narrativa que evoca o próprio ato de narrar e questiona a forma como o texto está sendo produzido: “Metafiction,” as it has now been named, is fiction about fiction – that is, fiction that includes within itself a commentary on its own narrative and/or linguistic identity. “Narcissistic” – the figurative adjective chosen here to designate this textual self-awareness – is not intended as derogatory but rather as descriptive and suggestive, as the ironic allegorical readings of the Narcissus myth (Hutcheon 1984: 1). [“Metaficção”, como vem sendo chamada, é ficção sobre ficção – isto é, ficção que inclui em si mesma um comentário sobre sua própria identidade narrativa e/ou linguística. “Narcisista” – o adjetivo qualificativo escolhido aqui para designar essa autoconsciência textual – não tem sentido pejorativo, mas principalmente descritivo e sugestivo, como as leituras alegóricas do mito de Narciso.]

Já a metaliteratura seria uma categoria “maior”, mais abrangente, dentro da qual a própria metaficção estaria inserida. Ela está relacionada à presença da literatura como tema central das narrativas, ou seja, a produção do texto não precisa

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

171

Laura de Assis Souza (UFJF) EXPERIÊNCIA, INÉRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO

ser evocada especificamente, pois é o fato da literatura falar sobre si mesma que dá a essa estratégia um caráter autorreflexivo. Outras estratégias recorrentes e já citadas, que também serão analisadas estão ligadas à inércia da trama. O que marca essas características são: a ausência de diegese, de clímax e de desenvolvimento do universo ficcional, todas muito frequentes na obra de Paulo Henriques Britto, como veremos a seguir.

Inércia, metaficção e metaliteratura na obra de Paulo Henriques Britto Paulo Henriques Britto nasceu no Rio de Janeiro em 1951 e é bastante conhecido por seu trabalho como tradutor – traduziu cerca de 80 livros, tanto nas direções inglês/português como português/inglês, tendo como suas principais traduções obras de Willian Faulkner, Ian McEwan, Lord Byron, Elizabeth Bishop, Philip Roth, Thomas Pynchon e Wallace Stevens. Também atua como professor nas áreas de tradução, criação literária e literatura brasileira na PUC-Rio e vem sendo apontado como um dos autores mais representativos da poesia contemporânea brasileira. Publicou seis livros de poesia: Liturgia da matéria (1982), Mínima lírica (1989), Trovar claro (1997), Macau (vencedor do Prêmio Portugal Telecom 2004), Tarde (2007) e Formas do nada (2012) e um livro de contos, Paraísos artificiais (2004), que será o objeto da análise do presente trabalho. Na prosa de Paulo Henriques Britto existem três linhas que interessam aqui especialmente, por estarem diretamente relacionadas com a questão central desse artigo, a representação do esvaziamento da experiência na prosa de ficção contemporânea. As três linhas são: a metaficção, a linha que aborda a questão da inércia e a metaliteratura. Primeiramente abordaremos a questão da metaficção, estratégia recorrente na produção contemporânea. No primeiro conto do livro, “Os paraísos artificiais”, o narrador se dirige a um interlocutor – “Você está sentado numa cadeira. Você está sentado nesta cadeira já faz bastante tempo.” (Britto 2004: 9) – narrando possíveis atos e sensações desse “você” ao sentar-se em uma cadeira, e a maior parte do conto se desenvolve em torno do conforto e do desconforto de se estar sentado e as possíveis posições que podem tornar essa situação mais ou menos confortável. Você está sentado numa cadeira. Você está sentado nesta cadeira já faz bastante tempo. Você fica sentado nesta cadeira durante muito tempo, diariamente. Você não conseguiria ficar parado em pé por tanto tempo; logo você ficaria cansado, com dor nas pernas. Também não conseguiria permanecer tanto tempo assim deitado na cama, de cara para o teto; essa posição se tornaria cada vez mais incômoda com o passar do tempo, até fazêlo virar-se para um lado – por exemplo, para o lado esquerdo; mas depois de alguns minutos de bem-estar, seu corpo seria dominado pouco a pouco por uma sensação de desconforto que gradualmente se transformaria numa idéia, de início vaga, depois mais nítida, mais e mais, até cristalizar-se nas palavras: ‘Esta posição é a menos confortável que há’ (...) (Britto 2004: 9) Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

172

Laura de Assis Souza (UFJF) EXPERIÊNCIA, INÉRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO

Não há um enredo objetivo, personagens ou uma ação substancial. Todo o conto se articula em um discurso que apenas expõe impressões. Ao fim do conto, depois de discorrer sobre as possíveis ações do interlocutor, o narrador passa a considerar outra questão que estaria ligada a essas ações: Pois ao levantar-se da cadeira você se dá conta de que a porção de espaço que você ocupou durante tanto tempo, sentado na cadeira, está agora impregnada da presença física do seu corpo; ou seja, ela guarda agora alguns vestígios de substancialidade que seu corpo deixou ali. (...) Naturalmente, nada impede que você recoloque a cadeira no mesmo lugar de antes, se sente nela e permaneça ali por quanto tempo quiser, ou conseguir, e durante todo esse tempo goze a sensação de estar na posse da sua materialidade perdida. Mas essa sensação é ilusória, pois esses vestígios não fazem mais parte de você (...) (Britto 2004: 10)

O narrador passa então a apresentar para o interlocutor uma possível solução para o problema da “materialidade perdida”, e é nesse momento do conto que se evidencia a metaficção presente nessa narrativa de Paulo Henriques Britto, pois a alternativa encontrada pelo narrador para a perda dos “vestígios de substancialidade” é justamente a literatura: Mas há uma maneira simples de alterar essa situação - quer dizer, não alterála objetivamente, o que seria impossível, e sim modificar o modo como você a vivencia (e como você só sabe das situações o que vivencia delas, para todos os fins práticos modificar sua percepção de uma situação é a mesma coisa que modificar a situação em si): basta sentar-se na cadeira, pegar um lápis e uma folha de papel, e começar a escrever (Britto 2004: 11-12).

Acerca desse conto existem ainda dois outros pontos importantes: o primeiro é que ele, ao contrário dos outros contos do livro, é grafado em itálico, o que evidencia uma tentativa de diferenciação das outras narrativas de Paraísos artificiais. É possível ainda estabelecer uma relação entre o conto em questão e o livro Paraísos artificiais (1858), de Charles Baudelaire, uma vez que, desde o título, há um diálogo bastante claro entre os dois. Ambos os textos falam de algum modo da busca pela satisfação. Mas se em Baudelaire essa satisfação pode ser encontrada no ópio e no haxixe, em Paulo Henriques Britto a alternativa apresentada é a literatura e o ato da escrita. O enredo de “Os paraísos artificiais” é, portanto, centrado apenas nas impressões de um possível interlocutor e em uma determinada realidade constituída apenas por acontecimentos mínimos – como sentar-se em uma cadeira e mudar de posição. O conto narra pequenos eventos, transformando-os, no entanto, em matéria para a narrativa. A ausência de ação perpassa toda a narrativa e a inércia apresentase como característica preponderante da diesege. Em A era do vazio (2005), Gilles Liposvetsky observa que a passividade vem de fato se constituindo como um traço expressivo do indivíduo contemporâneo: Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

173

Laura de Assis Souza (UFJF) EXPERIÊNCIA, INÉRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO

O tempo em que a solidão designava as almas poéticas e excepcionais terminou, aqui todos os personagens a conhecem com a mesma inércia. Nenhuma revolta, nenhuma vertigem mortífera a acompanha; a solidão se tornou um fato, uma banalidade com a mesma importância dos gestos cotidianos. As consciências não mais se definem pela dilaceração recíproca; o reconhecimento, a sensação de incomunicabilidade e o conflito deram lugar à apatia, e a própria intersubjetividade se encontra relegada (Lipovetsky 2005: 29).

A partir dessa consideração de Lipovestky, passamos a abordar então mais diretamente a segunda linha que nos chama atenção na prosa de Paulo Henriques Britto e que se configura como tema que deve ser destacado no presente trabalho: a questão da inércia representada através da ausência de ação da narrativa. Assim como nesse primeiro conto analisado, são outros os textos de Paraísos artificiais nos quais a ausência e imobilidade de personagens e o esvaziamento da diegese e do universo ficcional são pontos centrais. Essas narrativas são relatos sobre a inércia e a imobilidade, centrados nas impressões do narrador acerca de determinada realidade, que é constituída apenas pelas experiências mínimas vividas pelos protagonistas, experiências essas que à primeira vista podem soar como quase insignificantes, mas que são, no entanto, transformadas em matéria para a ficção. A característica mais marcante do conto “Uma doença”, por exemplo, é justamente a imobilidade. A narrativa em primeira pessoa é sobre um homem que, acometido por uma doença “das que obrigam a pessoa a ficar deitada o tempo todo” (Britto 2004: 13), passa a observar nos mínimos detalhes o quarto no qual está confinado, analisando e catalogando manchas, rachaduras e acidentes geográficos das paredes, do teto, do chão e até mesmo do lençol, e é na composição desse inventário que o narrador consegue vencer, pelo menos momentaneamente, o tédio e a inércia física inerentes a essa situação. Após analisar e inventariar tudo o que está ao alcance de sua vista, inclusive seu próprio corpo, o narrador pensa ter encontrado uma relação entre o avanço de uma rachadura no teto e seu estado de saúde, mas após várias análises, desiste de tentar descobrir qual seria essa relação: Durante algum tempo não fiz outra coisa a não ser observar a rachadura e meu corpo, tentando resolver o problema; por fim cheguei à conclusão – óbvia, aliás – de que, com os dados de que eu dispunha, a questão era, a rigor, insolúvel. Além disso, a rachadura já estava me entediando, por ser um fenômeno demasiado previsível. (Britto 2004: 17).

Uma vez que a investigação de todos os aspectos possíveis do quarto no qual está e de seu corpo já não interessam mais ao narrador, ele busca outra alternativa à inércia: “Então resolvi escrever esse breve relato” (Britto 2004: 17). Desse modo podese compreender que, se no primeiro conto existe um narrador que considera a escrita a única forma de validar a experiência vivida e evitar a perda da substancialidade, no Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

174

Laura de Assis Souza (UFJF) EXPERIÊNCIA, INÉRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO

segundo há uma reafirmação desta idéia, já que o relato é a saída para que este supere a imobilidade, mesmo que a experiência a ser narrada seja mínima. Esse mesmo tema aparece também na poesia de Paulo Henriques Britto, em uma série de poemas chamada justamente “Uma doença”, do livro Tarde. É óbvia a dificuldade de comparação entre os dois gêneros, por serem, a prosa e a poesia, linguagens distintas que apresentam estratégias diferentes de construção. No entanto destaco apenas essa questão temática, que lida não só com o tema da doença, mas também da dinâmica de posição e mobilidade – o que também remonta ao primeiro conto de Britto aqui analisado, “Os paraísos artificiais”: Nenhuma posição é natural. Qualquer ordenação de pé e mão e tronco é tão-somente parcial. e momentânea, uma constelação tão arbitrária e pouco funcional quanto a Ursa Maior ou o Escorpião. Nenhuma é estritamente indispensável. Nenhuma é realmente lenitiva. Nenhuma é propriamente confortável. Apenas uma é definitiva. (Britto 2007: 27)

A inércia permeia ainda outros contos do livro, como “Uma visita”. A delimitada ação dessa narrativa se passa toda ela com o protagonista na janela de sua casa observando um homem na rua. Britto traz à tona o tradicional tema do duplo sem, no entanto, levar os personagens a algum confronto de qualquer espécie, delimitando a narrativa apenas à observação à distância. Parecida com a trama de “Uma visita” é a de “Um criminoso”. Assim como no primeiro, no segundo também um homem na janela é o centro da narrativa, em uma trama definida na orelha do livro como “uma versão carioca de Janela indiscreta”. Mas ao contrário do filme de Alfred Hitchcock, não há nenhum risco, perigo ou assassinato e toda a história é, de fato, criada na mente do protagonista, que experimenta um estado de “tensão insuportável” só por ver um homem desconhecido parado na rua e, a partir daí, constrói para si mesmo uma trama imaginária cujos desdobramentos nunca chegam a se realizar. A capa do livro, inclusive, retrata exatamente esse tipo de cena, relativa aos dois últimos contos citados. Um homem parado em frente à janela, de costas, em um ambiente mobiliado e estéril, passando justamente a imagem de solidão que atravessa essas narrativas, o que nos remete à fala de Lipovestky: “a solidão se tornou um fato, uma banalidade com a mesma importância dos gestos cotidianos” (Lipovetsky 2005: 29). Entretanto, em “Os sonetos negros”, último conto do livro, a solidão, a inércia e a imobilidade saem de cena para dar lugar a outra estratégia também bastante Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

175

Laura de Assis Souza (UFJF) EXPERIÊNCIA, INÉRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO

recorrente na prosa de ficção contemporânea: a metaliteratura, terceira linha da prosa de Britto que consideramos interessante para esta análise. O enredo de “Os sonetos negros” gira em torno de uma pesquisadora de Teoria da Literatura que faz uma pesquisa de campo acerca da obra da fictícia poeta Matilde Fortes e, para tanto, se desloca até a também fictícia cidade de São Dimas, onde essa poeta teria morado em vida. A protagonista do conto, Tânia, está escrevendo uma tese de doutorado sobre determinadas publicações misteriosas de Matilde Fortes, e para prosseguir em sua pesquisa tem então que lidar com Gastão, viúvo da escritora, para quem explica suas intenções: [...] seu Gastão me perguntou o que eu viera fazer em São Dimas. Expliquei que meu objetivo era examinar os manuscritos de Matilde para esclarecer uma série de dúvidas textuais, porque ele não era o único a fazer críticas à edição da Poesia reunida: quase todo mundo encontrava uma série de problemas na edição, e não só na introdução. Além das gralhas evidentes, havia muitas dúvidas quanto à pontuação; a estrofação também tinha sido questionada por mais de um crítico, principalmente nos poemas em verso livre. Acrescentei que era minha intenção fazer mais uma tentativa de encontrar os originais dos “Sonetos negros”, porque a minha tese de doutorado, expliquei, seria sobre os sonetos (Britto 2004: 85).

Diferente dos contos anteriormente analisados, em “Os sonetos negros” a inércia e a imobilidade não se constituem como eixos da narrativa e o universo ficcional é ampliado, o conto é mais convencional, no sentido de possuir uma trama com vários personagens, ações e começo, meio e fim. O conto, inclusive, tem um tom de narrativa de mistério, uma vez que a pesquisadora precisa resolver um enigma acerca da obra da poeta que é objeto de sua tese. E é nesse contexto que Britto cria uma história que tem como tema a própria literatura. No entanto, o autor não só coloca a literatura como tema principal, mas também a teoria e a pesquisa literária, tratando ambas com certa ironia ao longo da narrativa, emulando a linguagem acadêmica dos Estudos Literários – área de conhecimento, inclusive, na qual o próprio Paulo atua: Vou passar o resto da tarde lendo uma tese sobre Matilde Fortes que a Ercila me passou com altos elogios. O título não é nada animador: “Verso sub-verso: a desconstrução da(o) fala(o) lírica(o) na escritura clitocêntrica de Matildes Fortes”. Nenhuma tese jamais vai me convencer de que a poesia de Matildes Fortes é “clitocêntrica”. Nem que “escritura” não é coisa de cartório (Britto 2004: 95).

Além de ironizar, por exemplo, os títulos pomposos de certas pesquisas e adicionar termos inventados, comuns ao ambiente acadêmico – “clitocêntrica”, como no fragmento acima ou “matildeana”, em outro trecho da narrativa –, são evidenciados ainda dilemas e percalços da pesquisa literária, tanto relativas à própria pesquisa – a dificuldade da protagonista em encontrar os originais da obra que Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

176

Laura de Assis Souza (UFJF) EXPERIÊNCIA, INÉRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO

procurar e o mistério que circunda essas publicações – quanto dificuldades práticas relacionadas à vida acadêmica. Paulo Henriques Britto usa como matéria para a narrativa o percurso fictício de uma pesquisadora em seus mínimos detalhes como, por exemplo, a preocupação com a bolsa de financiamento da pesquisa: Relendo a mensagem agora à noite, me pergunto se faz sentido atacar de modo tão frontal a tese da clitoricidade da escritura matildeana – quer dizer, politicamente falando. Afinal, a bolsa que está custeando minha viagem de pesquisa a São Dimas provém do NUELFE. Sei que a Ercila faz de tudo para defender meu sagrado direito de discordar dela, mas nem todo mundo no NUELFE há de ser tão tolerante com a minha incorreção política. Enfim, não adianta chorar sobre o e-mail enviado (Britto 2004: 97).

A metaliteratura, portanto, também se manifesta como estratégia nas narrativas de Paraísos artificiais. No entanto, é possível observar que, como já salientado anteriormente, o traço mais marcante da literatura de Paulo Henriques Britto está relacionado à questão da inércia, da apatia e da solidão. Essas estratégias utilizadas pelo autor estão diretamente ligadas à precarização da experiência, uma vez que são relatos centrados nas impressões do narrador acerca de determinada realidade, que é constituída apenas pelos eventos mínimos vividos pelos protagonistas, experiências essas que à primeira vista podem soar como quase insignificantes, mas que são, no entanto, transformadas em matéria da narrativa. Inclusive, nos textos que tratam deste livro e podem ser facilmente encontrados na internet, é recorrente o uso de palavras como “banal” e “trivial” para descrever o tema dos contos.

Considerações finais A questão capital para esse trabalho foi, portanto, a hipótese central de que é possível observar na prosa de ficção contemporânea alguns traços que apontam para uma tentativa de representação do empobrecimento – também chamado de “esvaziamento” ou “precarização” – da experiência. E, através da análise da obra de Paulo Henriques Britto, acreditamos que tenha sido possível entender de que modo a literatura tem procurado representar ou expressar esse fenômeno. O uso de estratégias como a metaliteratura, metaficção e esvaziamento da diegese, evidencia um sintoma da precarização da experiência autêntica analisada por Benjamin e Agamben, entre outros teóricos citados, pois, se a literatura é representação da experimentação do mundo, quando essa experimentação é reduzida ou modificada, resta à literatura narrar essa ausência, redução ou mudança. E é através do uso dessas estratégias que podemos perceber que o estatuto tradicional da narrativa está sendo de fato bastante modificado. Dentro dessa questão de “narrar a ausência”, é importante destacar que, de acordo com Agamben, é a aporia – ausência de via, de caminho – que fundamenta a Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

177

Laura de Assis Souza (UFJF) EXPERIÊNCIA, INÉRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO

única experiência possível para o homem hoje. Portanto, as estratégias narrativas aqui elencadas podem ser encaradas justamente como uma representação dessa aporia. Se a experiência nos dias de hoje foi esvaziada ou precarizada, resta à literatura – para quem até então a matéria seria justamente a experiência vivida – representar essa falta, essa ausência de caminho. E, para tanto, a solução encontrada tem sido, como vimos, cada vez mais falar de si mesma, das suas peculiaridades, dificuldades e limitações – através da metaficção e metaliteratura – ou representar tematicamente essa lacuna, por meio do esvaziamento interno da própria narrativa – movimento que aqui chamamos de inércia e desficcionalização do enredo, ausência de diegese e redução do universo ficcional. Mais uma vez recorrendo a Agamben, apenas para concluir essa exposição, trago à tona a investigação que ele empreende sobre a contemporaneidade, com foco especialmente no conceito de contemporâneo. Em O que é o contemporâneo e outros ensaios (2009), Agamben se concentra em buscar especificidades na natureza do contemporâneo, partindo de uma proposição de Roland Barthes segundo a qual “o contemporâneo é o intempestivo” e concluindo que: Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender seu tempo (Agamben 2009: 58).

Somando a essa definição de Giorgio Agamben uma citação de Antoine Compagnon, “Un contemporain est un écrivain qui nous parle de nous”2 (Compagnon 2011) , nos parece bastante clara a importância de investigar em que medida a literatura contemporânea tem, de fato, procurado estar afinada com as questões de seu tempo. Se esse trabalho elegeu a literatura do presente como corpus, isso se deu justamente por acreditar que é necessário compreender como a literatura vem lidando com os desafios e especificidades da contemporaneidade. Se a arte é um dos caminhos para se entender e apreender a humanidade e a sociedade como um todo, nada mais lógico do que nos debruçarmos cada vez mais sobre a produção literária do presente.

2

“Um contemporâneo é um escritor que nos fala de nós” (tradução minha)

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

178

Laura de Assis Souza (UFJF) EXPERIÊNCIA, INÉRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO

EXPERIENCE, INERTIA AND METALITERATURE IN PAULO HENRIQUES BRITTO Abstract: This study will analyze the short stories in the book Paraísos artificiais (2004) by Paulo Henriques Britto, with the aim of discussing how these narratives deal with the theme of experience's emptying in contemporary times. Keywords: Emptying; Experience; Contemporary literature.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Infância e História: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2005. ______. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. BRITTO, Paulo Henriques. Paraísos artificiais. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ______. Tarde. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. ______. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984. COMPAGNON, Antoine. “Vous avez dit contemporain?”. Texto publicado no site do College de France em 2011. Disponível em: Acesso em 08 de setembro de 2011. HUTCHEON, Linda. Narcissistic narrative: the metafictional paradox. New York: Methuen, 1984. LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. São Paulo: Manole, 2005. PINTO, Silvia. “Agruras da ficção contemporânea”. In: Revista Gragoatá número 24. Niterói: EdUFF, 2008. p. 165;175. REVEL, Judith. Michel Foucault – conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

179

Laura de Assis Souza (UFJF) EXPERIÊNCIA, INÉRCIA E METALITERATURA EM PAULO HENRIQUES BRITTO

______. Literatura e vida literária. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1985. SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1985.

ARTIGO RECEBIDO EM 01/03/2012 E APROVADO EM 05/03/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

180

VISÃO RELIGIOSA DE ORDEM E DE JUSTIÇA EM CIDADE DE DEUS, DE PAULO LINS Rafael Magno de Paula Costa (UEL)1

Resumo: O presente trabalho procura analisar o ponto de vista relativo aos conceitos de ordem e de justiça, vistos pelas personagens religiosas de Cidade de Deus. Para tanto, a análise das personagens da obra dialoga com teóricos que discorrem sobre as constituições da ordem e da justiça, tais como Thomas Hobbes, Montesquieu e Max Weber, intentando-se mostrar como as personagens atribuem a forças sobrenaturais eventos meramente humanos. Palavras-chave: Literatura; Religião; Ordem; Justiça.

O romance Cidade de Deus, escrito por Paulo Lins e lançado pela primeira vez no ano de 1997, é dividido em três histórias que narram episódios da vida de Inferninho, Pardalzinho e Zé Miúdo, respectivamente, relatando a criminalidade em Cidade de Deus, famosa favela carioca e cenário retratado na obra. Um dos objetivos da narrativa é claramente expresso com: “Mas o assunto aqui é o crime, eu vim aqui por isso” (Lins 2002: 20). O núcleo desta narrativa encerra o cenário como centro dos acontecimentos, também usurpando o foco de um protagonista, ou seja, a importância do foco narrativo está em Cidade de Deus, e não em um personagem particular. Os personagens são numerosos e, por sua vez, são muitas vezes chamados por apelidos que evocam, algumas vezes, seus estereótipos. As modalidades de comunicação (Candido 1980: 30), concernente à linguagem das personagens, são as praticadas pelos moradores da favela, como as gírias principalmente. O seu conteúdo consiste na contribuição que os valores e as ideologias (Candido 1980: 30) incutidas nos discursos religiosos praticados pelas personagens trazem para o campo da análise e reflexão deste trabalho. Deste modo, tais discursos remetem aos conceitos de ordem e justiça provenientes dos ideais religiosos absorvidos por algumas personagens. O narrador em terceira pessoa, onisciente neutro, caracteriza-se por sua naturalidade com que representa as ações brutais e cruéis das personagens. O Mestrando do Programa de Pós-graduação em Letras. Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected]. 1

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Rafael Magno de Paula Costa (UEL) VISÃO RELIGIOSA DE ORDEM E DE JUSTIÇA EM CIDADE DE DEUS, DE PAULO LINS

protestantismo, considerando a visão religiosa inerente à obra, passa a ser uma religião representada na obra. Por outro lado, essa religião, nas poucas cenas em que são apresentadas ao leitor, mostra seu conjunto de crenças e as consequências do seu ascetismo, e de forma implícita também na vida dos que pertencem a tal religião. Algumas vezes, percebe-se como essa ascese religiosa é encarada de modo positivo, como, por exemplo, na vida do personagem Martelo, que se converte ao protestantismo pentecostal, abandonando a criminalidade. Outras vezes, principalmente no que tange a uma possível visão de justiça, a concretização desta é distorcida pelas concepções de realização post mortem, principalmente pela mãe de Bonito, e por Antunes, também filho dela. Contudo, a obra e o protestantismo possuem, dentre seus diversos aspectos, a ideia de justiça, ou ainda, uma possível ausência desta. Para este estudo é interessante e necessário remontar a alguns conceitos curiosos sobre justiça. Na mitologia grega, Têmis, deusa da Ordem e da Justiça, é representada segurando em uma das mãos uma espada (Ordem) e na outra uma balança (Justiça), estando seus olhos vendados, para que assim não fizesse discriminação de pessoas em seus julgamentos. Isto, segundo os ditames da consciência mítica antiga. Também é certo que na visão bíblica, mais especificamente no “Decágolo”, se estabelece a justiça como sendo a vontade de Deus, coadunada dentro das cláusulas da Lei, instituída também em toda a Torá, o livro sagrado dos judeus, que abrange o “Pentateuco”, ou os cinco primeiros livros do Antigo Testamento. Até aqui, percebe-se que na antiguidade não havia distinção entre lei civil e religiosa, pois ambas eram confundidas mutuamente. Compreende-se, assim, que as leis civil e religiosa eram entendidas como a vontade tanto dos governantes e legisladores, que desempenhavam as funções tanto de sacerdotes do povo, quanto de Deus ou dos deuses. Thomas Hobbes, em sua obra Leviatã (1997), tem uma visão mais incisiva quando o assunto trata da temática religiosa: os primeiros fundadores e legisladores de Estado entre os gentios, cujo objetivo era apenas manter o povo em obediência e paz, em todos os lugares tiveram os seguintes cuidados. Primeiro, o de incutir em suas mentes a crença de que os preceitos que ditavam a respeito da religião não deviam ser considerados como provenientes de sua própria invenção, mas como os ditames de algum deus, ou outro espírito, ou então de que eles próprios eram de natureza superior à dos simples mortais, a fim de que suas leis fossem mais facilmente aceitas. (Hobbes 1997: 102)

Logo, transgredir o poder, além de caracterizar desobediência ao governante ou ao sacerdote, era também desobedecer aos deuses. No “Evangelho de Mateus”, capítulo 22, versículo 21, essa visão homogênea é separada com a máxima: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Bíblia 1989: 954). Além disso, o cristianismo, como se vê em Mateus, capítulo 7, versículo 12, considerava justo fazer ao outro tudo aquilo que o indivíduo quisesse que fizessem a si próprio (Bíblia 1989: 935). A primeira proposição do evangelho, que também dissolvera a visão una de Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

182

Rafael Magno de Paula Costa (UEL) VISÃO RELIGIOSA DE ORDEM E DE JUSTIÇA EM CIDADE DE DEUS, DE PAULO LINS

religião e política, assemelha-se à proposta da personagem Polemarco, que no “Livro I” da obra de Platão, A República (2004), propôs como conceito de justiça dar a cada um aquilo que lhe fosse devido. Esta proposição é refutada por Sócrates, outra personagem utilizada por Platão, muitas vezes associado como sendo o seu portavoz em suas obras: se alguém disser que a justiça consiste em restituir a cada um aquilo que lhes é devido, e com isso quiser significar que o homem justo deve fazer mal aos inimigos, e bem aos amigos, quem assim falar não é sábio, porquanto não disse a verdade. Portanto, em caso algum nos pareceu que fosse justo fazer mal a alguém. (Platão 2004: 22)

Não obstante, a personagem Trasímaco, também presente na referida obra, considerava que a justiça se verificava como a conveniência do mais forte. Esse conceito fora refutado pela personagem Sócrates com a ideia de que a mesma não seria senão virtude e sabedoria (Platão 2004: 43), configurando a injustiça como o inverso disso, o vício e a ignorância. Obviamente, deve-se levar em consideração toda a bagagem idealista do platonismo. Pela sociologia de Max Weber, em seus discursos na obra intitulada Ciência e Política (2006), este entende que “o Estado consiste em uma relação de dominação do homem pelo homem, com base no instrumento da violência legítima” (Weber 2006: 61). Assim, a manutenção do poder do Estado seria, também, uma forma de justiça, pois, peremptoriamente, afirma a violência como sendo o seu instrumento legal. Weber é ainda mais categórico quando afirma: Se existissem apenas estruturas sociais das quais a violência estivesse ausente, o conceito de Estado também teria desaparecido e apenas subsistiria o que, no sentido próprio da palavra, se denomina “anarquia”. Por evidência, a violência não é o único instrumento de que se vale o Estado [...], mas é o seu instrumento específico. Na atualidade, a relação entre o Estado e a violência é particularmente íntima. (Weber 2006: 60)

Deste modo, essa visão de justiça assemelha-se com a da personagem Trasímaco. Essa concepção é a que está mais presente em Cidade de Deus, pois na favela prevalece a lei do mais forte. A distinção verifica-se apenas em relação à posição da utilização desse instrumento, pois Weber afirma a violência em favor do Estado, e Cidade de Deus afirma-a como a conveniência do mercado ilegal do tráfico de drogas, em que seus interessados, de posse das suas armas, se tornam consequentemente os mais fortes e, com efeito, governam a favela. Então, a justiça, de um modo mais genérico e menos idealista, seria também a conveniência de um poder instituído. Pela ausência de justiça por parte dos governantes, o tráfico concebe e edifica a sua própria, ou ainda, pela ausência de um governo formal, estabelece a desordem contra o Estado, ou seja, o crime como sendo a ordem, instituindo aquilo

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

183

Rafael Magno de Paula Costa (UEL) VISÃO RELIGIOSA DE ORDEM E DE JUSTIÇA EM CIDADE DE DEUS, DE PAULO LINS

que lhes é conveniente. Com efeito, esse conceito exposto n’A República de Platão, e enunciado pela personagem Trasímaco, é o que mais se aproxima da realidade: Certamente cada governo estabelece as leis de acordo com a sua conveniência [...]. Uma vez promulgadas essas leis, fazem saber que é justo para os governos aquilo que lhes convém, e castigam os transgressores, a título de que violaram a lei e cometeram uma injustiça. Aqui tens [...], aquilo que eu quero dizer, ao afirmar que há um só modelo de justiça em todos os Estados, o que convém aos poderes constituídos. Ora, estes é que detêm força. De onde resulta, para quem pensar corretamente, que a justiça é a mesma em toda a parte: a conveniência do mais forte” (Platão 2004: 25).

No entanto, o capitalismo transparece como um dos principais fatores que corroboram a existência das favelas. Na primeira cena do romance, o narrador descreve como as pessoas necessitadas foram deslocadas para o empreendimento imobiliário conhecido como “Cidade de Deus”. A lógica social de sua existência parece remeter, além da divisão de classes que demarca os limites do universo capitalista, embasada no direito de propriedade, ao núcleo e à margem de um urbs tipicamente burguês. No núcleo desta sociedade estão os indivíduos de influência e com papéis importantes e determinados dentro dela. E que, ipso facto, são cidadãos críticos que exercem seu poder e influência, por terem sido os fundadores, criadores, idealizadores, ou herdeiros culturais de tal sociedade. O que faz com que, logicamente, eles sejam conscientes de tudo aquilo que está a sua volta, ao mesmo tempo possuindo toda a propriedade e os benefícios que advêm da posse representada pelo capital. À margem deste núcleo, estão aqueles que são menos favorecidos, ou desfavorecidos pelas leis que regem os interesses dos que governam. Por isso, a compreensão daquilo que concerne à vida na favela é crucialmente importante. Viver à margem, sinônimo de ser marginalizado, demonstra como os governos, dentro do processo histórico que caracteriza essas moradias no Brasil como um todo, estabeleceram aquilo que fora apenas conveniente aos que viviam ou vivem nos centros (núcleo), ignorando completamente os que viviam à margem desta. A ordem, em Cidade de Deus, passa a ser o caos e a desordem, a lei torna-se a conveniência do traficante, e a justiça é concebida como as decisões arbitrárias de tais indivíduos envolvidos naquilo que o Estado considera como crime, ou seja, a derrogação das suas leis e normas, configurando, portanto, a injustiça ou criminalidade. A favela, em Cidade de Deus, é esta margem, onde prevalece uma justiça forjada pelo tráfico, ou se se preferir uma “ausência de justiça”, conhecida e concebida como tal pelos poderes constituídos, e que se converte em ordem vigente. Muitos moradores ficam à mercê das arbitrariedades cometidas pelo crime organizado ou das circunstâncias que advém desses crimes, ou “injustiças”, tais como os sentimentos de vingança que nascem dessa desordem social, o que se perceberá com o desenvolvimento da trama. O caos, a selvageria e a barbárie se manifestam nas personagens de Cidade de Deus, e a vida passa a estar condicionada em nome dos interesses capitalistas de lucro, pois as batalhas são causadas pelas Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

184

Rafael Magno de Paula Costa (UEL) VISÃO RELIGIOSA DE ORDEM E DE JUSTIÇA EM CIDADE DE DEUS, DE PAULO LINS

disputas por pontos estratégicos do tráfico de drogas. A animalidade e a brutalidade persistem na mente desses indivíduos, pouco a pouco, transparecendo sua degeneração, haja vista a essência social do ser humano que o distingue dos animais. Deste modo é que a atmosfera da obra se apresenta, como um ambiente ou um habitat natural de pessoas que não estranham a vida marginal que levam e, como consequência, se entregam à criminalidade. Por outro lado, considerando a obra sob o aspecto do conceito religioso de justiça, conceber-se-ia Deus, obviamente sob o prisma monoteísta, como o criador de tal conceito. Neste caso, a justiça serve aos interesses daqueles que são considerados os depositários desta ordem, gerando o poder instituído pela teocracia. No polo oposto desta concepção, principalmente a cristã, tem-se na figura do Diabo a representação dos vícios, a oposição e rebeldia religiosa e, por que não, política, contrárias a esse poder. Partindo desse pressuposto, o poder civil é mostrado como sendo o poder divino, e ser contrário a esse mesmo poder é posicionar-se contra Deus. Logo, ser rebelde ao poder instituído significaria estar ao lado do Diabo e posicionar-se em favor daquele que representa o oposto de Deus. Certamente, nisto verifica-se a intimidade entre religião e sistema político. Segundo Montesquieu, os sistemas políticos necessitam dessa crença em Deus, para que a sociedade estabeleça uma ordem sobre o caos: “Da ideia de que ele não existe, decorre a ideia de nossa independência; ou, [...] a de nossa revolta. Dizer que a religião não é um motivo repressor porque nem sempre ela reprime, é dizer que as leis civis também não são um motivo repressor” (Montesquieu 1997: 130). Tudo isso facilita a compreensão da obra, voltando a análise para o sentido de que a religião também imprime no juízo de seus seguidores ideias inerentes à justiça, facultando assim o controle sobre tais indivíduos. Assim, em “A História de Inferninho”, primeira parte do romance, que retrata a formação das quadrilhas, a personagem de Tutuca traz essa reflexão, pois, em seu foro íntimo, ele resolve fazer um acordo com o Diabo: “tinha vontade de conhecer o Diabo, faria um pacto com ele para ter tudo na Terra” (Lins 2002: 26). Tutuca é um ex-protestante da igreja Assembleia de Deus. Seus pais, fiéis seguidores da religião, não permitiam que levasse uma vida como a dos outros garotos da favela: Até os quinze anos, foi obrigado a frequentar a igreja Assembleia de Deus. Sempre dizia aos pais que não gostava daquela vida de oração e mais orações, de ter que acompanhá-los nos cultos. Odiava quando sua casa era palco de vigílias, reuniões do pessoal da igreja. Queria ter uma vida igual à da maioria dos garotos do morro. Tinha vontade de participar das festas juninas, comer doce de são Cosme e Damião, ganhar presentes no Natal. Desejava desfilar na ala da bateria de qualquer escola de samba, mas nada disso a religião permitia. Diziam que o carnaval era festa do Diabo [...]. Um dia decidira abandonar a igreja. Rasgou a Bíblia, fez a mesma coisa com os panfletos, desafiou os pais, que insistiam em sua permanência na religião. (Lins 2002: 27)

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

185

Rafael Magno de Paula Costa (UEL) VISÃO RELIGIOSA DE ORDEM E DE JUSTIÇA EM CIDADE DE DEUS, DE PAULO LINS

A opressão e inflexibilidade exercidas pelo pátrio poder, comandados pela religião que dita as regras entre o fazer e o não fazer, agir e não agir, faz com que Tutuca se projete no polo oposto das razões de seus pais, aliando-se a tudo que seja contrário a este poder – considerado pela personagem como opressor – representado por Deus, pela religião e pelos pais, buscando um objetivo para sua vida na rebeldia e na criminalidade e, ao mesmo tempo, concebendo o Diabo como aquele que pode auxiliá-lo: “O Diabo era quem sabia das coisas” (Lins 2002: 27). Assim, ele revolta-se contra o pensamento cristão que restringe e tolhe sua liberdade a uma obediência pacífica às instituições, como família, igreja e Estado. Com efeito, ele passa a se opor a tudo o que delimite suas ações. Por isso, adota a vida de criminoso, associando-se ao Diabo. A psicologia de Tutuca é reveladora: a ordem é representada pela família, pela igreja e pelo Estado, ou seja, por seus pais, por Deus e pelo governo. Não obstante, o Diabo representa o caos, a desordem, a insurreição, a rebeldia e a revolta contra todos esses valores, verificando-se através disso o erro, o pecado ou o crime. Efetivamente, o Diabo, converte-se para ele em modelo ou ídolo: “Repetiu sete vezes que era filho do Diabo” (Lins 2002: 120). Em todas as suas artimanhas, Tutuca evoca o Diabo, parodiando provérbios famosos conhecidos pela religiosidade cristã: “O Diabo escreve torto com linhas certas!” (Lins 2002: 121). A presença da religião, mais especificamente do protestantismo, na vida dessa personagem, apresenta-se como uma subversão contra os poderes e uma perversão contra os valores sustentados pela religião, possivelmente, causados por uma visão extremamente exagerada da figura do Diabo por parte dela, demonstrando haver um efeito completamente reverso daquele a que visava o temor a essa figura. Isto é, ele considera como seu aliado justamente algo que seus pais consideravam como adversário ou inimigo. O próprio capitalismo, como um sistema fundamentado no consumismo, foi o que deu vazão a esse ensejo, fazendo com que a referida personagem buscasse tudo aquilo que o caráter servil do cristianismo não poderia lhe proporcionar. O cristianismo, considerando toda sua bagagem cultural desenvolvida ao longo dos séculos, não pode, pois, voltar-se contra aqueles que detêm o poder, excetuando a própria Reforma Protestante – bem como outros movimentos cristãos contrários ao catolicismo – que enfraqueceu o poder do Papa. Essencialmente, o cristão é propenso à busca dos prazeres não desta vida, mas na que se projeta para além da morte, através do dogma da ressurreição dos mortos. Por essa razão, o religioso cristão busca depreciar o poder como algo não invejável, ao passo que exalta a grandeza dos servos e, de um modo geral, a servidão, segundo as doutrinas do evangelho, como em Mateus capítulo 20, versículos 25 e 26: “Sabeis que os chefes das nações as governam e os grandes exercem o poder sobre elas. Mas entre vós não será assim. E quem quiser fazer-se grande entre vós será vosso servidor” (Bíblia 1989: 952). Deste modo, a doutrina cristã idealizava uma sociedade sem poderes, onde haveria apenas servos. Entretanto, consoante ao processo histórico de adaptação do cristianismo ao mundo romano-helenístico, o cristão passa a respeitar as leis do Estado e seus governos como depositários de um poder maior ou divino. É o que ocorre ainda nos dias atuais. Por exemplo, em outra visão religiosa cristã, no parágrafo 2234 do Catecismo da Igreja Católica, lê-se: “O quarto mandamento ordena Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

186

Rafael Magno de Paula Costa (UEL) VISÃO RELIGIOSA DE ORDEM E DE JUSTIÇA EM CIDADE DE DEUS, DE PAULO LINS

também que honremos todos aqueles que, para nosso bem, receberam de Deus uma autoridade na sociedade” (Catecismo 2002: 583). Outrossim, o protestantismo busca, também segundo Weber, além de simplesmente respeitar o poder, reconhecer o seu recurso à violência e o Estado autoritário como legítimos: “Em posição contrária, o protestantismo comum reconhece, em geral, o Estado como válido e, consequentemente, o recurso à violência como instituição divina. Muito particularmente, justifica o Estado autoritário legítimo” (Weber 2006: 119). Contudo, a personagem Tutuca busca divorciar-se dos tentáculos dessa lei, agindo de forma contrária às recomendações dos pais e da religião. Sob outro ponto de vista, encontra-se a religiosidade de Martelo, companheiro de Inferninho e Tutuca em todas as aventuras criminosas empreendidas por eles. Após ouvir a pregação de um pastor, Martelo deixa-se persuadir, convertendo-se ao protestantismo: “Entrega tua alma ao Senhor e terás a vida eterna. Só Cristo salva de todo sofrimento e liberta do fogo do inferno. Arrepende-te de teus pecados que o paraíso te espera! Aleluia!” (Lins 2002: 128). Martelo, atento à pregação dos membros da igreja Batista, absorve cada trecho, cada oração, cada palavra, com todos os valores de dependência a Deus, incutidos na Bíblia, em que muitos adotam para se evadirem diante do caos da existência ou de uma crise propriamente existencial: A segurança daquele que se refugia em Deus. Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará. Direi do Senhor: Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei. Porque ele te livrará do laço do passarinheiro, e da peste perniciosa. Ele te cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas estarás seguro: a sua verdade é escudo e broquel. Não temerás espanto noturno, nem seta que voe de dia. Nem peste que ande na escuridão, nem mortandade que assole ao meio-dia... Tudo em Martelo se transformara em emoção saltitante e jubilosa, ao ouvir essas palavras. (Lins 2002: 129, grifos do autor)

Martelo, entregando-se à oratória do pastor e aos ideais religiosos, automaticamente se molda aos padrões de vida estabelecidos pela religião, passando da criminalidade à obediência, da revolta à resignação. O protestantismo não se apresenta para ele como algo repressor, mas como algo salutar e aprazível, anestesiando todas as dores e sofrimentos de sua vida. Sendo assim, a religião possui a capacidade de amenizar seus impulsos, desviando o foco da sua vida marginal para planos completamente sobrenaturais. A origem dessa adesão pacífica e imediata aos princípios religiosos do protestantismo pode ser encontrada em seus próprios sentimentos, descritos minuciosamente pelo narrador: Aceitar Jesus era poder renascer numa mesma vida. [...] O milagre da conversão modificou as metáforas de seu semblante. [...] Largou o baralho, o canivete, o revólver, os vícios. De uma vez por todas deixou de lutar contra o azar. [...] Conseguiu um emprego na empresa Sérgio Dourado, onde foi explorado por muito tempo, mas não ligava. A fé afastava o sentimento de revolta diante da segregação que sofria por ser negro, desdentado, semi-

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

187

Rafael Magno de Paula Costa (UEL) VISÃO RELIGIOSA DE ORDEM E DE JUSTIÇA EM CIDADE DE DEUS, DE PAULO LINS

analfabeto. Os preconceitos sofridos partiam dessa gente que não tem Jesus no coração. (Lins 2002: 129-130)

Martelo prefere aceitar a fé, acreditar na Bíblia e desprezar tudo o que sofrera até então pela segregação social e pela marginalidade. Abandona a criminalidade aceitando a ascese religiosa, sobretudo caracterizada pelo sofrimento e pela servidão, pois, estando empregado, não se rebela contra a exploração da referida empresa, como descreve o narrador. Isso demonstra como algumas religiões podem exercer um controle quase absoluto na mente de alguns indivíduos. O que equivale a dizer, neste caso, como sugere Weber, que todo cristão deve abster-se de cogitar qualquer tipo de revolta: Aquele que pretende agir segundo a ética do Evangelho deve renunciar a fazer greve – a greve é uma coação – e não lhe restará solução possível que não a de filiar-se a um sindicato amarelo [sindicato que não faz defesa da classe]. E, sobretudo, deve abster-se de falar de “revolução”. (Weber 2006: 113)

Devido a sua conversão, Martelo está “reintegrado” à sociedade, pois aderiu à ideologia que advém da crença em Deus, que carrega em seu bojo todas as regras e normas que regulam a sociedade, seja ela religiosa ou até mesmo civil. Em Martelo têm-se a antítese de Tutuca, pois um rebela-se, enquanto o outro se conforma. Este fato demonstra como as atitudes de Tutuca podem ser associadas à revolta ou rebeldia refletindo a imagem do Diabo, enquanto as atitudes de Martelo podem ser associadas à resignação e obediência, refletindo Deus. Neste ponto, é importante reiterar que o próprio livro sagrado dos judeus, os primeiros monoteístas, denominase em hebraico Torá, que significa Lei. De fato, a justiça, a ordem e a lei de Deus. Neste caso, há uma relativa e frequente oposição a todo sentimento de revolta por parte da religião, sendo que a rebeldia torna-se sufocada pelas aspirações ascéticas. A terceira parte da obra, “A História de Zé Miúdo”, que narra a guerra pelo comando do tráfico de drogas, exibe um conceito de justiça que transcende a capacidade humana de realização desta. A justiça é compreendida apenas dentro dos julgamentos e desígnios de Deus, podendo ser prorrogada para além da morte, caracterizando o que alguns religiosos consideram “mistério”. Assim é que a mãe de Bonito, integrante da igreja Assembléia de Deus, pretendia dissuadir seu filho das ideias de vingança que planejava contra Zé Miúdo, afirmando que apenas Deus poderia julgar os seres humanos. Bonito entra no mundo do crime motivado pelo sentimento de vingança contra Zé Miúdo: vingaria o avô, o estupro da ex-namorada e também os amigos mortos em combate. A mãe pediu para ele entregar tudo nas mãos de Deus, insistiu em fazê-lo abandonar aquelas idéias tolas de vingança, porque somente o Senhor pode julgar a cada um de nós, implorou-lhe resignação diante da provação posta para ele pelo Pai. Não obtendo êxito, entregou-se, juntamente com o marido e outros irmãos de fé, às orações da igreja Assembleia de Deus” (Lins 2002: 327-328) Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

188

Rafael Magno de Paula Costa (UEL) VISÃO RELIGIOSA DE ORDEM E DE JUSTIÇA EM CIDADE DE DEUS, DE PAULO LINS

Essa passagem revela como a presença do protestantismo na vida da mãe de Bonito provoca uma noção evasiva de justiça, que apenas pode concretizar-se por canais completamente desconhecidas pelo ser humano. Destarte, ela concebe o infortúnio como “provação” da parte deste Deus e busca uma justiça fugaz, abstraída de sua opinião obscura sobre a justiça, e que se torna, por essa razão, irrealizável, ou ainda, segundo ela, realizável em uma esfera totalmente transcendente e que dispensa a compreensão da razão humana. Essa resignação é uma característica presente na vida do cristão, e consequentemente do protestante, no caso das personagens da obra. Contudo, Bonito não se deixa levar por sua mãe, trazendo seu irmão, Antunes, consigo para a criminalidade. Posteriormente, Antunes resolve entregar-se à religião e desistir das ideias de seu irmão, convertendo-se à igreja Assembléia de Deus e passando a pensar exatamente como sua mãe: “Aquela manhã para Antunes tinha o ar mais puro, manhã em que ele deixaria de lado a loucura da vingança. O Deus, todo-poderoso, se encarregaria de castigar Miúdo, quem era ele para fazer justiça se a justiça divina é mais forte?” (Lins 2002: 365). Nesta parte da narrativa, percebe-se certo tom de ironia, por parte do narrador, em referência às pessoas que, de certo modo, pensam como Antunes, atribuindo a um ente abstrato a função ou faculdade de exercer a justiça, embora, ignorem como se realize ou se concretize tal ideia. Isso demonstra como algumas pessoas, muitas vezes, desistem facilmente de resolver seus problemas ou dificuldades, atribuindo a sua resolução a um determinado ente, não procurando a justiça, nem mesmo a instituída ou legal. Por isso, Bonito busca no mundo do crime uma vingança que a justiça, instituída dentro dos parâmetros inerentes ao espaço e tempo histórico do enunciado da narrativa, ou seja, a contemporaneidade, não lhe pode proporcionar. Vingança esta que é saciada apenas se feita com as próprias mãos. Doravante, ao final do romance, a personagem de Otávio, que foi preso por suas práticas criminosas em série e com crueldade inigualável, possuidor de atributos que caracterizam um cruel criminoso, pois “colocou trinta corpos em um só buraco e que, quando não os matava, cortava-lhes as mãos a golpes de machadadas” (Lins 2002: 397), converte-se ao protestantismo alegando que as causas de seus crimes eram produzidas pelo Diabo: “converteu-se ao protestantismo e passou a pregar perto das bocas-de-fumo, dizia que praticara aqueles crimes porque o Diabo tomara conta de seu corpo” (Lins 2002: 398). Otávio atribui a responsabilidade dos seus atos a um ente abstrato (Diabo), demonstrando uma completa irracionalidade e leviandade em suas desculpas. Torna-se, entretanto, respeitado pelos bandidos por ser evangélico: “Os bandidos o respeitavam porque sempre respeitaram os evangélicos” (Lins 2002: 397). Ele leva sua conversão a sério, até depois de ser preso e passar dois anos na prisão. Livre da prisão, Otávio casa-se e tem filhos, mas continua visitando presídios para converter os detentos, praticando o costume que caracteriza o universo do protestantismo, o de multiplicar prosélitos: “Todo domingo, visitava presídios para tentar converter os internos; no entanto, a polícia, quando o via, não acreditando em sua conversão, dava-lhe surras, até mesmo na frente da esposa e dos filhos” (Lins 2002: 398). Por outro lado, ele não suporta sustentar esse ascetismo resignado e rebela-se contra sua religião: “Otávio rasgou a Bíblia, queimou o terno Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

189

Rafael Magno de Paula Costa (UEL) VISÃO RELIGIOSA DE ORDEM E DE JUSTIÇA EM CIDADE DE DEUS, DE PAULO LINS

com o qual costumava ir aos cultos e foi à boca pedir a Borboletão uma pistola para matar somente policiais” (Lins 2002: 398). Nesta personagem, tem-se a oscilação do caráter humano entre polos opostos, provocados por uma visão de mundo maniqueísta – visão que divide o mundo em uma luta do bem contra o mal –, verificando-se ora a ascese religiosa, ora a revolta; ora a cidadania, ora a marginalidade. A religiosidade em Cidade de Deus está implicitamente ligada aos conceitos de justiça considerada divina, concebidos pelos personagens analisados. Assim, a neutralidade do narrador se atém a um discurso imparcial, demonstrando nas ações das personagens a religião sob o aspecto de como ela pode regenerar o ser humano em direção àquilo que os poderes constituídos consideram legal à vida de cidadão, ou também, em outros momentos, de como ela pode conduzir os sujeitos à sua oposição ou revolta. A religião protestante, representada no texto por igrejas conhecidas no Brasil e no exterior como a Batista e a Assembleia de Deus, com toda sua ascese comportamental, direciona a justiça para uma esfera de realização possível apenas em Deus, produto do idealismo cristão. Entretanto, esses dois conceitos – a ordem e a justiça – vistos, não como ideais abstraídos da virtude, mas sim como prática das conveniências da lei, são ignorados pelos religiosos que confundem ambos, divorciando-se ao mesmo tempo da posse dos seus direitos pessoais. Atribuise a Deus o papel de intermediário (juiz) entre os homens, paralelamente, estes se subtraem de seus papéis como cidadãos conscientes da sociedade que fazem parte, ao passo que a justiça humana se torna algo marginalizada pela própria acepção de justiça divina, ou religiosa. Por fim, mais uma vez o ascetismo religioso mostra-se intrinsecamente ligado aos poderes instituídos, embora em Cidade de Deus apresentese de uma maneira consideravelmente evasiva, que por essa razão passa a ser instrumento de controle do Estado para estabelecer a ordem e a justiça, como sugere Montesquieu: Como a religião e as leis civis devem tender principalmente a tornar os homens bons cidadãos, vê-se que, quando uma das duas se afastar desse objetivo, a outra deve tender ainda mais para ele: quanto menos a religião for repressora, mais as leis civis devem reprimir. (Montesquieu 1997: 137)

Em última análise, a obra Cidade de Deus revela uma nova ordem social, através da vida na favela, e a religião, por sua vez, também exerce aí seu papel influente. Os contrastes que caracterizam a ordem e a justiça na vida das personagens não refletem, pois, novidade alguma, já que asseguram os mesmos paradigmas da ordem e do poder, do sistema instituído. A justiça, na mente das personagens religiosas em análise, seria apenas aquela executada por Deus, deixando os homens, portanto, a mercê das suas arbitrariedades. Contudo, o comportamento das personagens possibilita a reflexão sobre o domínio que a religião exerce sobre a mente de algumas pessoas, tal como, a necessidade de uma mudança comportamental, mesmo que seja apenas aparente. Personagens, como Otávio de Cidade de Deus, por exemplo, representam essa falta de constância e, talvez, aparência Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

190

Rafael Magno de Paula Costa (UEL) VISÃO RELIGIOSA DE ORDEM E DE JUSTIÇA EM CIDADE DE DEUS, DE PAULO LINS

de religiosidade. Os padrões comportamentais desse ascetismo religioso trazem, em seu bojo, toda uma gama de parâmetros que conduzem os seguidores a uma obediência pacífica aos poderes, paralelamente assegurando a estabilidade dos poderosos que lá se encontram. Algumas vezes, isso pode ser um reflexo dos pensamentos propriamente cristãos. As personagens em Cidade de Deus mostram uma religiosidade popular que assegura de modo rígido a manutenção desses poderes instituídos. O mais interessante é que na obra analisada em questão a crença no Diabo transparece como fundamental, não apenas para sustento da própria religião cristã em si, mas também corroborando o sustento do próprio poder político. Essa crença é, em todas as obras, enfatizada como fator de controle dos indivíduos através do medo. Como demonstrado pela obra Cidade de Deus, bem como pelos referidos teóricos, esse medo assegura a ordem, não só política como também comportamental, pois impede a revolta dos indivíduos contra o quê ou quem os oprime. Para impedir, reprimir ou sufocar visões contrárias aos poderes constituídos, esses poderes assim passam a se utilizar da religiosidade como uma força alternativa, paralela ao campo político, criando-se denominações até certo ponto antagônicas aos poderes, mas todas com a ordem instituída incutida, sem que as personagens em questão sejam capazes de perceber.

RELIGIOUS VIEW OF ORDER AND JUSTICE ON CIDADE DE DEUS, BY PAULO LINS Abstract: The present essay aims at analyzing the point of view concerning the concepts of order and justice, seen by the religious characters of Cidade de Deus. Therefore, the analysis of the characters dialogues with theorists that discuss about the constitutions of order and justice, such as Thomas Hobbes, Montesquieu and Max Weber. The paper also aims to show how the characters ascribes to supernatural forces, events that are merely humans. Keywords: Literature; Religion; Order; Justice.

REFERÊNCIAS

BÍBLIA, Português. Bíblia: Mensagem de Deus. São Paulo: Loyola, 1989. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 6 ed. São Paulo: Nacional, 1980. CATECISMO. Catecismo da Igreja Católica. Trad. CNBB. São Paulo: Loyola, 2002.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

191

Rafael Magno de Paula Costa (UEL) VISÃO RELIGIOSA DE ORDEM E DE JUSTIÇA EM CIDADE DE DEUS, DE PAULO LINS

HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. Col. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1997. LINS, Paulo. Cidade de Deus. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. LYRA, Pedro. Literatura e ideologia: ensaios de sociologia da arte. Petrópolis: Vozes, 1979. MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. Col. Os pensadores. v. 2. São Paulo: Nova Cultural, 1997. PLATÃO. A República. Trad. Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2004. WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Trad. Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2005. ______. Ciência e Política. Trad. Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2006.

ARTIGO RECEBIDO EM 19/02/2012 E APROVADO EM 12/03/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

192

AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NA LITERATURA DIDÁTICA E NOS ESCRITOS LITERÁRIOS INFANTIS: UMA ANÁLISE EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE RACIAL Andréia Ramos Budaruiche (UFOP)1

Resumo: Este artigo analisa as diversas representações do negro na literatura didática e nos escritos literários infantis e retrata a reprodução de obras, seus autores em suas produções. A partir das imagens formadas a respeito do pensamento social e racial brasileiro, procurou-se responder sobre as várias identidades formadas ao longo da história, sobretudo aquelas ensinadas e aprendidas no ambiente escolar. Entendeu-se que não há uma definição única e padrão para a construção da identidade e do imaginário sobre o negro e seus personagens, relatados nas obras infantis, pois essas identidades estão em constante (trans)formações em uma visão temporal, de espaços e de diversas crenças. Palavras-chave: Identidade Racial; Negros; Literatura; Educação.

Segundo Paulo Freire (1995) o legado acerca do entendimento da educação e sua prática são considerados fenômenos típicos da existência, sendo, portanto, esse exclusivamente humano em toda a sua complexidade e riqueza. Quando se aborda a respeito da educação escolar, como afirma Almeida (1995), é fundamental pensar no processo de construção da imagem que uma sociedade faz de sua história, de sua diversidade interna e de si mesma.

Pós-graduanda em Gestão de Políticas Públicas, com foco em gênero e raça, do Programa de Educação para a Diversidade (UFOP). Pós-graduada em Elaboração, Gestão e Avaliação de Projetos Sociais (UFMG) e Bacharel em Ciências Sociais (PUC Minas). E-mail: [email protected]. 1

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Andréia Ramos Budaruiche (UFOP) AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NA LITERATURA DIDÁTICA E NOS ESCRITOS LITERÁRIOS INFANTIS: UMA ANÁLISE EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE RACIAL

As críticas têm se centrado na estrutura do currículo escolar (que exclui temas como história da África e do negro no Brasil, vistas como fontes de uma identidade racial positiva) e na maneira estereotipada e preconceituosa com que o negro é apresentado nos livros didáticos. (Hasenbalg & Silva 1990: 6).

Educadores e ativistas negros2 têm demonstrado preocupação com os efeitos produzidos por conteúdos racistas transmitidos pelo sistema formal de ensino e sobre a formação da identidade racial do aluno negro, como afirma Hasenbalg & Silva (1990). O relato abaixo apresenta a relação da criança negra com a professora, visto em Ferreira & Carmargo (2001), quando ela tenta mostrar o quanto as suas relações pessoais estão desprovidas de preconceito para lidar com as histórias infantis. Diz a professora: Nas próprias histórias infantis, existe aquela história da madrasta, da bruxa. Em relação a uma coisa má e uma coisa boa. Então, a gente pode aproveitar a raça nesse sentido. Porque, às vezes, uma pessoa, por exemplo, é preta e tem a alma branca. As pessoas também são diferentes, podem ser negras (ou) da raça branca, mas todas são iguais. São feitas de carne e osso. Porque, às vezes, uma pessoa, por exemplo, é preta e tem a alma branca. E a branca pode ter a alma preta. (Cavalleiro apud Ferreira & Camargo 2001: 77).

Segundo Ferreira & Camargo (2001), nessa afirmação, pode-se perceber como a cor branca está associada ao bem, e a cor negra ao mal. Melhor explicitando, um fator de importância para a construção da identidade das crianças é a revelação de que os brancos seriam referenciados como "superiores” - ligados ao europeu, e os negros seriam referenciados como "inferiores" - formados por uma desvalorização de suas características pessoais. Em um estudo das representações sociais a propósito do negro na literatura destinada à criança no Brasil, Gouvêa (2005) analisa a produção literária nas três primeiras décadas do século XX. Segundo a autora, é a partir da década de 20 e 30 do século citado, que a literatura destinada à criança foi afirmada. A urbanização brasileira crescente e o processo de modernização da sociedade aliando-se “a construção de uma linguagem que expressasse a complexidade da vida contemporânea” (Gouvêa 2005: 82) eram reflexos de uma discussão em torno da identidade brasileira. Delineou-se um novo olhar para o país que permitisse compreendê-lo como nação com uma identidade própria, a chamada “brasilidade”. Destacam-se uma série de produções artísticas e científicas do período, voltadas para compreender o que é brasileiro, o que singulariza e o define, e que marcas essa identidade imprimia à cena social. (Gouvêa 2005: 82).

Historicamente, observa-se que a tentativa do branqueamento era uma possível “solução” para eliminar a população negra, considerada inferior à branca. Tal Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

194

Andréia Ramos Budaruiche (UFOP) AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NA LITERATURA DIDÁTICA E NOS ESCRITOS LITERÁRIOS INFANTIS: UMA ANÁLISE EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE RACIAL

tentativa se desenvolveu na virada do século e das décadas seguintes ao século XX. Segundo Telles (2003), os eugenistas brasileiros “argumentavam que as deficiências genéticas poderiam ser superadas em uma única geração. [...] propuseram a solução do ‘branqueamento’, por meio da mescla de brancos e não-brancos.” (Telles 2003: 4546). Nessa teoria, os brancos iriam prevalecer em virtude da “seleção natural”, resultante do grande volume de imigrantes europeus (portanto, brancos) os quais chegaram ao Brasil. Dessa forma, ter-se-ia respectivamente, o aumento do contingente da população branca. Para Gouvêa (2005), nas obras analisadas por ela, tal “embranquecimento” perdia sua característica metafórica e tornava-se literal. “Na verdade, mais que embranquecer os personagens, a literatura infantil do período, dirige-se e produz um leitor modelo identificado com os personagens e as referências culturais brancas, marcando, portanto, um embranquecimento do leitor.” (Gouvêa 2005: 79). Nas diversas narrativas, tal “embranquecimento” físico dos personagens negros era reproduzido, como observado em No país das formigas, de Menotti Picchia, e em Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, respectivamente: Tal qual uma mosca muito preta, Pé de Moleque nadava e debatia-se num lago muito branco. A terrina estava cheia de leite (...) – Banho de leite faz bem pra pele, disse o Joãozinho que se divertia com os apuros do companheiro. Quem sabe se você sai branco daí de dentro. Depois de algum tempo, com pena do companheiro, João Peralta ajudou a safar-se. Desta vez o garoto apareceu branco... enormes pedaços de nata cobriam-lhe a cara e somente a ponta do nariz continuava preta. Você parece mágico Pé de Moleque... você há pouco estava mais preto que o gato preto do tio Moçamba, e agora está mais branco que minha camisa. (Picchia apud Gouvêa 2005: 89). Tia Nastácia não sei se vem. Está com vergonha, coitada, por ser preta. – Que não seja boba e venha – disse Narizinho – eu dou uma explicação ao respeitável público... – Respeitável público, tenho a honra de apresentar (...) a Princesa Anastácia. Não reparem ser preta. É preta só por fora, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe. Então, o encanto quebrar-se-á e ela virará uma linda princesa loura. (Lobato apud Gouvêa 2005: 89).

Há uma desqualificação dos personagens, como a herança racial sendo um fardo, de acordo com Gouvêa (2005). Produz-se um leitor modelo identificado com os personagens e consequentemente, com as referências culturais brancas, marcando, também, um “embranquecimento” do leitor. “A literatura infantil espelhava a representação social das relações inter-raciais no Brasil, [...] uma visão racista e etnocêntrica fazia-se presente, escapando à idealização pretendida pelos autores infantis.” (Gouvêa 2005: 89). Em uma pesquisa realizada com livros didáticos brasileiros de primeiro grau, da Rede Pública Escolar, verificam-se veiculações de preconceito racial. Esses livros, Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

195

Andréia Ramos Budaruiche (UFOP) AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NA LITERATURA DIDÁTICA E NOS ESCRITOS LITERÁRIOS INFANTIS: UMA ANÁLISE EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE RACIAL

datados de meados dos anos 80, reproduzem a abolição da escravidão como um assunto administrativo, dissociado de qualquer luta, resistência e iniciativas negras, afirma Almeida (1995). “Quem faz a abolição é a ‘Princesa Isabel’ (numa ilustração, assinando a Lei ‘Áurea’ e sendo abanada gentilmente por uma negra sorridente).” (Almeida 1995: 34). A abolição da escravidão aparece, nos livros, como feita por “heróis” brancos e as “fugas em massa” dos escravos são relatadas como uma recusa do exército em persegui-los. O negro, na história, deixa de ser citado e seu destino social sequer é mencionado. Para Almeida (1995), não são oferecidos instrumentos aos alunos para relativizar, criticar ou entender a posição inferior (de classe) associada atualmente à condição étnica do grupo. Os negros, como os índios, passam a ser um “problema”, a certa altura, depois de terem sido “solução”. Resolvido esse problema com a “abolição”, eles desaparecem. A miscigenação encarregava-se de dissolver o negro na população brasileira (como a assimilação, no caso do índio). [...] Não se fala da destruição forçada de suas culturas originais e das condições em que os negros foram obrigados a se reorganizar culturalmente sob o peso da escravidão, mas se exalta a sua “contribuição” para o “brasileiro em geral”. Isto é, comidas (feijoada), ritmos (o samba), superstições (o candomblé baiano). (Almeida 1995: 34).

A respeito da miscigenação, Gouvêa (2005) afirma que a década de 30 foi um período de intensa produção científica para a compreensão da identidade brasileira. Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala (2004), realizou um importante estudo sobre as relações raciais no Brasil, (re) significando uma positividade da cultura negra. Segundo a autora, o termo “democracia racial” tornar-se-ia referência para entender a problemática racial do país. Citando Freyre (2004), Telles explicita um consenso da crença natural de uma plasticidade, no Brasil, para a mescla cultural. Diante disso, há uma predisposição ou “vocação” para a mistura de raças em que todas elas viveriam harmoniosamente em uma “Democracia Racial”. Mais ainda, o Brasil seria o único dentre as sociedades Ocidentais com uma “fusão serena” dos povos e culturas africanas, indígenas e européias. “Assim, ele sustentava que a sociedade brasileira estava livre do racismo que afligia o resto do mundo”. (Telles 2003: 50). Realmente, o Brasil era visto como um “laboratório racial” servindo de exemplo para outros países como o mais bem sucedido na questão racial, adquirindo reputação internacional, relata Telles (2003). Por isso, em 1950, estudos étnicos raciais são financiados pela UNESCO liderados por Florestan Fernandes. O Brasil foi escolhido para o projeto-piloto da UNESCO porque representava uma alternativa viável à segregação racial. Contudo, as pesquisas revelaram à imensa desigualdade e preconceito existente em todo o país. Telles (2003), afirma que, atualmente, o racismo é amplamente reconhecido no Brasil, mas a discriminação racial permanece, ao mesmo tempo em que a mistura racial é valorizada como forma positiva da cultura brasileira. Contundente a Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

196

Andréia Ramos Budaruiche (UFOP) AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NA LITERATURA DIDÁTICA E NOS ESCRITOS LITERÁRIOS INFANTIS: UMA ANÁLISE EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE RACIAL

existência de uma “Democracia Racial”, esse mesmo autor argumenta sua posição contrária afirmando que, tal “democracia” é imaginada ou mitológica, quando ocupa uma falsa crença de que as relações raciais são harmoniosas e desprovidas de preconceitos. Para ele, a história e as posições ocupadas pelos negros revelam atualmente, sem dúvida, a existência do racismo. Também, para Peter Fry (2005), não é negável o conhecimento do racismo no Brasil. “As antigas colônias dos portugueses na América Latina e dos Ingleses na África são hoje sociedades campeãs de desigualdade social e racial”. (Fry 2005: 336). Fry também lembra que quando chegou ao Brasil se deparou com um diferente racismo visto na África Austral: um racismo “por debaixo dos panos” da “democracia racial” que continua a ser exercido informalmente pela sociedade. Contudo, diferentemente de Telles (2003), Fry propõe que ao contrário da “ortodoxia dos movimentos negros” e de muitos acadêmicos que condenam a “democracia racial” a farsa que ilude os indivíduos, essa “democracia” deve ser pensada no sentido antropológico do termo: “uma maneira específica de pensar um arranjo social em que a ancestralidade ou a aparência do indivíduo deveriam ser irrelevantes para a distribuição dos direitos civis e dos bens públicos”. (Fry 2005:17). A “democracia racial” como um mito antropológico passa a ser considerada um ideal a ser alcançado, podendo-se dizer, talvez, como um “sonho” a ser realizado e, uma maneira de reflexão sobre a sociedade em que as aparências ou estereótipos são de pouca importância na distribuição dos direitos. Fry ainda explica que quando se descreve a “democracia racial” como mito, faz-se isso porque a entendem que mitos são falsos e, assim, reúnem indícios indiscutíveis como provas de preconceito e da discriminação no intuito de desmascarar tal mito da harmonia e da igualdade. Porém, sobre os mitos, os antropólogos: admitem que não são inverdades, produtos de equívocos que devem ser desmascarados e denunciados pela superioridade do saber ocidental, mas antes sistemas ordenados de pensamento social que consagram e exprimem percepções fundamentais sobre a vida social. Entender a democracia racial e seus corolários não mais como “impedimentos” à consciência racial, mas como fundamento do que de fato significa a raça no Brasil, leva a uma radical mudança de ênfase”. (Fry 2005: 175).

Nas obras analisadas por Gouvêa (2005), a partir da década de 1920, a literatura infantil passa a estabelecer uma interlocução com os discursos produzidos no campo artístico e científico, sobre as diversas representações construídas acerca da questão racial, incorporando-as no interior das narrativas. Entretanto, de acordo com a autora, “a discussão em torno da brasilidade, não mais de negação, mas de afirmação de sua composição racial, a representação do negro na literatura infantil se altera. O negro emergia nas narrativas, de maneira mitificada [...]”. (Gouvêa 2005: 84). Esse é um momento em que as produções brasileiras e as suas formações discursivas acerca da pluralidade e em torno da identidade brasileira passa a assumir contornos próprios, em diversos campos, como o científico, de produção simbólica e Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

197

Andréia Ramos Budaruiche (UFOP) AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NA LITERATURA DIDÁTICA E NOS ESCRITOS LITERÁRIOS INFANTIS: UMA ANÁLISE EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE RACIAL

outros. A produção científica nos anos de 1930 é clássica em obras voltadas para a identidade nacional e em campos de análise a respeito da sua composição racial. De um lado, Oliveira Vianna, com seus estudos fundados numa perspectiva de desqualificação do negro e defensora da miscigenação como estratégia para o embranquecimento da população. De outro, Gilberto Freyre que, em Casagrande & senzala, ressignificou os estudos sobre as relações raciais brasileiras, apontando a positividade da cultura negra, embora numa perspectiva mistificadora. (Gouvêa 2005: 83).

A partir desse contexto, pautada sobre o emblema da modernidade, que a literatura infantil buscou definir a sua identidade no cerne da produção artística brasileira, de acordo com Gouvêa (2005). As obras sustentavam-se no diálogo com os temas presentes nas demais produções culturais, como a identificação da brasilidade, embora, dada a especificidade de seu público, assumisse contornos próprios. O ícone da brasilidade traduziu-se, na literatura infantil brasileira, pela tentativa de construção de personagens e temáticas que recuperassem uma tradição oral presente no imaginário social do país e que, ao mesmo tempo, falasse sobre seu patrimônio cultural. Os autores buscaram no chamado folclore nacional referências temáticas e estéticas para construção de um texto dirigido à criança. Desse modo, a temática racial torna-se constante nas obras escritas entre as décadas de 1920 e 1940, por meio da presença de personagens negros, associados às raízes culturais do país. (Gouvêa 2005: 83).

Assim, enquanto o negro assumia um espaço mítico e era afirmado estereotipicamente em sua identidade cultural constituidora da brasilidade, simultaneamente, era excluído do projeto de modernização do país: Nos textos pesquisados, produzidos entre 1900 e 1920, o negro era um personagem quase ausente, ou referido ocasionalmente como parte da cena doméstica. Era personagem mudo, desprovido de uma caracterização que fosse além da referência racial. Ou então personagem presente nos contos que relatavam o período escravocrata, como na obra: Contos pátrios, de Olavo Bilac e Coelho Neto, de 1906, em que os autores descrevem com ternura a figura submissa de Mãe Maria. (Gouvêa 2005: 84).

Paralelamente, também, era folclorizado no imaginário literário. Em O país das formigas, de Menotti Del Pichia, e em O Saci, de Lobato, a feitiçaria se torna uma prática associada nas figuras dos pretos velhos, diz Gouvêa (2005). Havia uma cabana escondida numa porção de árvores. Todos os que passavam por lá se benziam. É que corria a fama por toda a redondeza que ali

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

198

Andréia Ramos Budaruiche (UFOP) AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NA LITERATURA DIDÁTICA E NOS ESCRITOS LITERÁRIOS INFANTIS: UMA ANÁLISE EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE RACIAL

morava um feiticeiro. De fato, o dono daquela cabana era um preto velho, muito feio, muito misterioso. (Del Pichia apud Gouvêa 2005: 87). Pois seu Pedrinho é uma coisa que branco da cidade nega, diz que não há, mas há. Não existe negro velho por aí, desses que nascem e morrem no meio do mato, que não jure ter visto Saci. Nunca vi, mas sei de quem viu... o Tio Barnabé, fale com ele. Negro sabido ta aí! Entende de todas as feitiçarias – disse Tia Nastácia. (Lobato apud Gouvêa 2005: 87).

Verifica-se que há uma incorporação do negro relacionado a práticas religiosas “primitivas”, “pagãs”, uma prática de “cultura inferior”, “corporificada” nos pretos e nas pretas velhas, “(pré) científica”, no espaço da literatura infantil, afirma Gouvêa (2005). Para a autora, “enquanto a modernidade, associada à urbanidade, ao progresso, à técnica e à ruptura, era representada pelos personagens brancos adultos, os negros eram relacionados a significantes opostos, como tradição e ignorância, universo rural e passado.” (Gouvêa 2005: 84). Além disso, também, se observa a descrição dos personagens negros vinculados aos seus atributos físicos. Enquanto, por um lado, os textos marcavam um ideal “integracionista” em que brancos e negros partilhavam o mesmo espaço, mesmo em posições sociais hierarquizadas, por outro lado, os atributos físicos dos personagens eram relatados de forma diferenciada ao falar de negros e brancos. Existe quase um paralelismo nos textos em que as mesmas partes do corpo sofriam denominações diferenciadas de acordo com o “pertencimento” racial dos personagens. Assim é que, enquanto o branco tinha “cabeça”, o negro “carapinha, ou carapinha dura”, o branco tinha “cabelo” e o negro “pixaim”, o branco possuía “lábios” e o negro “beiço”, “é beiçudo, tem gengivada vermelha”. O branco tinha “nariz” e o negro “ventas”. O branco tinha “pele” e o negro era “lustroso”. Da mesma forma, a branca “se sentava” a negra “se escarrapachava”. (Gouvêa 2005: 88).

Assim, denota-se uma diferenciação desqualificante do negro, em que corporalmente, ele era classificado como distinta e associada a um corpo animalizado, “[...] na medida em que a descrição do seu corpo colocava-o entre o corpo animal e o corpo do homem branco.” (Gouvêa 2005: 88). Tais descrições a respeito do corpo animalizado, historicamente, é reflexo do lugar de “interior da cadeia evolutiva” do negro, em um patamar entre o homem branco e as demais espécies. Em Reinações de Narizinho, de Lobato, vêem-se os diversos textos em que há a referência ao beiço de Tia Nastácia, animalizando-a. Assim, por exemplo, dizia a personagem Emília: eu cortava um pedaço desse beiço. (Lobato apud Gouvêa 2005: 88).

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

199

Andréia Ramos Budaruiche (UFOP) AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NA LITERATURA DIDÁTICA E NOS ESCRITOS LITERÁRIOS INFANTIS: UMA ANÁLISE EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE RACIAL

melado com rapadura é uma coisa de lamber os beiços, disse Pedrinho – Beiço é de boi, protestou Emília. Gente tem lábios. (Lobato apud Gouvêa 2005: 88).

De acordo com Gouvêa (2005), ao animalizar os personagens negros, os escritores reproduziam uma representação de inferioridade a uma menor capacidade cognitiva. Almeida (1995) problematiza o negro, nos conteúdos dos livros didáticos: Não encontraremos, contudo, a afirmação da capacidade do homem negro como homem pleno – não apenas “trabalhador” ou “sambista”, mas criador, intelectual, político e dirigente. E mais: o leitor branco perceberá que, hoje os negros permanecem “embaixo”, como na Colônia, na posição de trabalhadores. São eles os habitantes dos cortiços e favelas, são as empregadas domésticas, são os lavradores e os pescadores. (Almeida 1995: 32).

De acordo com Silva Jr. (2002), na década de 80, Rosemberg realizou uma pesquisa sobre imagens estereotipadas dos negros em livros didáticos escritos nas décadas de 30 e 50, utilizando a amostragem de 157 textos. Considerando, igualmente, ilustração e texto, os resultados apontam que as personagens negras eram atribuídas características como subordinação, desumanização (associação dos personagens negros a figura de animais), ignorância e, principalmente, indiferenciação. Outra pesquisa, realizada no final da década de 1980, identificou estereótipos nas ilustrações e textos de 82 livros de Língua Portuguesa. Os destacados são: a) negros rejeitados explicitamente apareciam como “criança negra barrada”, “castigada”, “faminta”, “isolada”, “em último lugar”; b) exercendo atividades subalternas: doméstica, trabalhador braçal, escravo; c) considerado minoria; d) incapaz: burro, ingênuo, desatento, desastrado, inibido; e) sem identidade: sem nome, sem origem; e) pobre: maltrapilho, favelado, esmoler; f) estigmatizado em papéis sociais específicos: cantor, jogador de futebol; g) desumanização do negro: associado a objeto, a formiga, a burro, a macaco. (Silva apud Silva Jr. 2002: 37).

Debates em escolas paulistas a propósito do livro didático foi fundamental para se entender a importância que os estereótipos tinham sobre as relações raciais. Silva Jr. (2002) afirma que o aspecto tendencioso era mais a postura do professor face às discriminações, principalmente na vivência escolar cotidiana, do que o teor dos textos e das ilustrações desse instrumento didático. Via-se uma necessidade de mudança na postura dos professores sobre a questão do negro, ao lidar com os conteúdos didáticos infantis. Parece-nos de suma importância uma reavaliação dos conteúdos que constituem o currículo escolar e uma formação pedagógica com propósitos de inserção social das diferenças, de forma que as relações raciais que afetam o

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

200

Andréia Ramos Budaruiche (UFOP) AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NA LITERATURA DIDÁTICA E NOS ESCRITOS LITERÁRIOS INFANTIS: UMA ANÁLISE EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE RACIAL

processo de aprendizagem e colaboram para construir estigmatizados possam melhorar. (Ferreira & Camargo 2001: 89).

indivíduos

Não diferente da Terceira Conferência Mundial sobre racismo em Durban, África do Sul, em 2002 – que legitimou as lutas contra o racismo no Brasil e em outras partes do mundo – dos movimentos de ativistas, por volta dos anos 90, reivindicando políticas públicas de ações afirmativas, das ONG’S de base, cerca de seiscentas, pertencentes ao Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), incluídas organizações do movimento negro preocupadas com os direitos sociais, culturais e econômicos, e entre várias outras políticas públicas surgidas sobre a questão racial, de acordo com Telles (2003). A Lei tornou obrigatório o estudo sobre “História e Cultura Afro-Brasileira”. Baseado nos princípios da ação afirmativa, de reparos a danos causados por desigualdades raciais e sociais, segundo Maggi (2006). Assim, a Lei federal 10.639, de 9 de janeiro de 2003 é decisiva nas transformações e implementação de novos paradigmas sobre o negro e as relações por ele vividas. Visualizam-se mudanças nos conteúdos infanto-juvenis dos materiais didáticos. O novo discurso, tanto escrito como oral, estes dos professores, passam a ser da diversidade, da igualdade, do multiculturalismo. A citação a seguir acompanha gravuras de “crianças de várias partes do mundo”, em um livro “manual do professor”, de história. “Chamar a atenção para as diferenças e semelhanças, para a diversidade étnica e cultural. Discutir com a ajuda do globo terrestre, estimulando a curiosidade para o conhecimento de crianças de outras partes do mundo”. (Símon & Fonseca 2004: 9). Perspectivas de mudanças são contempladas, novos sistemas formados, novos valores estipulados e absorvidos. Ainda está em aberto a (re)construção de uma identidade racial. A pertinência de um movimento identitário é, aqui, discutida e a “coexistência de diferentes estilos de vida e visões de mundo” uma das características principais das sociedades complexas, de acordo com Velho (1992). “Mas o que julgo mais significativo é a explicitação de um campo de possibilidades próprio à sociedade complexa moderna”. (Velho 1992: 19). Vê-se uma visão temporal, de espaço, de debates de diferentes linhas, crenças, termos, de ruptura sobre a perspectiva racial, enfim, um “campo de possibilidades”.

REPRESENTATIONS OF THE BLACK IN TEACHING LITERATURE AND LITERARY WRITINGS FOR CHILDREN: AN ANALYSIS IN SEARCH OF A RACIAL IDENTITY Abstract: This article discusses the different representations of blacks in didactic literature and literary writings for children, featuring a reproduction of works and their authors in their productions. From the images formed on Brazilian racial and social thought, it tried to answer about their own identities formed throughout Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

201

Andréia Ramos Budaruiche (UFOP) AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NA LITERATURA DIDÁTICA E NOS ESCRITOS LITERÁRIOS INFANTIS: UMA ANÁLISE EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE RACIAL

history, especially those taught and learned in school. It would appear that there is no single and standard definition for the construction of identity and imagination on the black and its characters, reported in the works for children, because these identities are in constant (trans)formations in a temporal view, space and different beliefs. Keywords: Racial Identity; Black; Literature; Education.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Mauro de. Imagem do negro nos livros didáticos. In: Ramos, Ítalo (Coord.). A Luta contra o racismo na rede escolar. São Paulo: FDE, Grupo de Trabalho para Assuntos Afro-Brasileiros, 1995. 92p. (Série Idéias; n. 27). BRASIL. LEI 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 9 jan. 2003. CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2003. FERREIRA, Ricardo Franklin & CARMARGO, Amilton Carlos. A Naturalização do preconceito na formação da identidade afro-descendente. Eccos: Revista Científica. UNINOVE, São Paulo, v. 3, n. 1, p.77-82, jun.2001. FREIRE, Paulo. Política e Educação: ensaios. 2 ed. v. 23. São Paulo: Cortez. 1995. (Coleção Questão da Nossa Época Volume 23). FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 49 ed. São Paulo: Global, 2004. Apresentação de Fernando Henrique Cardoso, Prefácio a 1ª edição. FRY, Peter. A persistência da raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África austral. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 348 p. GOUVÊA, Maria Cristina Soares de. Imagens do Negro na literatura Infantil brasileira: análise historiográfica. Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 31, n. 1, p. 79-91, jan./ abr. 2005. HASENBALG, Carlos A. & SILVA, Nelson do Valle. Raça e oportunidades Educacionais no Brasil. Caderno de Pesquisa. São Paulo, n. 73, p. 5-12, maio. 1990. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

202

Andréia Ramos Budaruiche (UFOP) AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NA LITERATURA DIDÁTICA E NOS ESCRITOS LITERÁRIOS INFANTIS: UMA ANÁLISE EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE RACIAL

MAGGIE, Yvonne. Uma política pública com base na “raça”. In: MAGGIE, Yvonne. A escola no seu ambiente: políticas públicas e seus impactos. Relatório parcial de pesquisa (julho de 2004 – dezembro de 2005). 2006. SILVA Jr., Hédio. Discriminação racial nas escolas: entre a lei e as práticas sociais. Brasília: UNESCO, 2002. p. 9-58. SÍMON, Cristiano Biazzo & FONSECA, Selva Guimarães. Travessia: 1ª série. Belo Horizonte. Dimensão, 2004. 208p. (História). TELLES, Edward Eric. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica: Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2003. 347p. VELHO, Gilberto. Projeto e Metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. Cap. 1, p. 11-30.

ARTIGO RECEBIDO EM 01/03/2012 E APROVADO EM 17/03/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

203

THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA Maria Aparecida de Oliveira (UNESP)1

Resumo: O presente artigo tem como objetivo realizar uma leitura do ensaio Three Guineas a partir da crítica literária feminista no intuito de compreender como o sentido do texto de Virginia Woolf foi reconstruído nas últimas décadas. Pretende-se investigar como a crítica literária feminista atual tem feito uma revisão e uma releitura da obra da escritora e como Woolf ela mesma foi reinventada por tal crítica. Para tanto, a abordagem teórica concentra-se em autoras como Naomi Black (2004), Barbara Hill Rigney (1978), Krista Ratcliffe (1993), Teresa Winterhalter (2003), entre outros. Palavras-chave: Virginia Woolf; Three Guineas; Crítica literária feminista; Revisão.

A obra de Virginia Woolf tem sido foco de interesse da crítica literária, sendo estudada sob diferentes perspectivas, tais como a marxista, a feminista, a histórica e a psicanalítica. Por conta de todas essas apropriações, Virginia Woolf tornou-se uma figura histórica e contemporânea. Woolf é considerada uma das pioneiras da teoria “reader-response”, pois estava interessada no diálogo de mão-dupla que se estabelece entre leitores e escritores. Hermione Lee (2010) a esse respeito diz que os livros mudam seus leitores, ensinando-os como devem ser lidos, mas que também leitores mudam seus escritores. Os livros mudam à medida que são lidos, re-lidos, portanto, os leitores devem estar conscientes de seu papel, não como indivíduos isolados, mas como partes de uma longa sucessão de leitores no processo de recriação das obras literárias. Nesse diálogo entre Woolf e seus leitores, uma grande variedade de diferentes Woolfs surgiram, assim como muitos aspectos de sua obra que haviam sido ignorados até então. Não que seus ensaios e seu jornalismo tenham sido completamente ignorados, mas a crítica recente tem lido esses ensaios de diversas Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, da Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara. Currently a Visiting Scholar at the University of Winnipeg. E-mail: [email protected]. 1

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Maria Aparecida de Oliveira (UNESP) THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA

maneiras, possibilitando novos olhares à obra da escritora e ressuscitando diferentes Woolfs, que não haviam sido vislumbradas até o momento. Mais recentemente, o crescente interesse na história de seus ensaios preocupase em investigar a relação de seus romances com o pensamento da escritora sobre a mulher, política e sociedade. A crítica tem revisto o pensamento de Woolf a partir de uma variada gama de assuntos, tudo isso combinado com um novo mapeamento de seus escritos, o que redireciona o foco de interesse na escritora e abre infinitas possibilidades para os Estudos Woolfianos. Essas novas perspectivas estão sendo utilizadas como abordagens ideológicas ou como dados de pano de fundo para seus romances, o que demonstra agora um interesse nas estratégias de escrita, nos processos de pensamento, nas texturas e tessituras dos próprios ensaios em relação aos romances. Seus ensaios estão sendo relidos como partes cruciais na grande rede de complexidade da obra de Woolf, entre seus romances, contos, diários, cartas, revisões de livros, esboços, ensaios, ensaioscontos, ensaios-romances. Ou seja, uma grande rede de conexões e interrelações que somente agora estão começando a ser compreendidas na sua totalidade. Hermione Lee (2010) percebe que as estratégias anti-autoritárias de Virginia Woolf em seus ensaios estão intimamente relacionadas às suas aspirações por uma comunidade literária mais democrática e seu desejo por um modo de comunicação mais compartilhado entre leitores e escritores, como propõe Woolf em The Common Reader e em How One Should Read a Book, mas levaram algum tempo para serem reconhecidos. Desse modo, o presente artigo tem como objetivo investigar de que maneira Three Guineas tem sido reconstruído pela crítica literária feminista. Além disso, será discutido aqui como Woolf tem sido apropriada pelo feminismo e quais seriam as consequências dessa apropriação para o futuro da crítica feminista. É importante lembrar que Three Guineas foi concebido como uma sequência de A Room of One’s Own. Contudo, o processo de elaboração foi longo e árduo. Virginia Woolf estava tentando desenvolver uma nova forma literária, a qual ela denominou “romance-ensaio”, em que ela poderia simultaneamente trabalhar tanto as questões políticas, quanto estéticas. A princípio, o livro, intitulado The Pargiters, alternava cenas de ficção com comentários e análises históricas e deveria abordar a evolução de uma família da classe média de 1880 aos dias atuais. No entanto, mais tarde Woolf decide separar o ensaio do romance. Publicado em 1937, The Years tornou-se um bestseller, já Three Guineas, publicado em 1938, recebe várias críticas e causa diversas polêmicas. Virginia Woolf em Three Guineas procura responder a questão que foi lançada a ela sobre como se pode evitar a guerra. Em sua longa resposta Virginia Woolf dedica ironicamente três simbólicas moedas a diferentes causas: 1) Construção de faculdades para mulheres; 2) Organizações que ajudam o ingresso feminino nas mais variadas profissões; 3) Associações que combatam a guerra. Na verdade, os três argumentos estão conectados, já que a educação, a independência feminina e o consequente ingresso na esfera pública fariam com que as mulheres participassem das questões políticas e poderiam de algum modo Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

205

Maria Aparecida de Oliveira (UNESP) THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA

contribuir de forma favorável para evitar a guerra. Ela começa seu argumento dizendo que a educação faz uma grande diferença neste contexto, juntamente com algum conhecimento sobre política, relações internacionais, economia, filosofia, teologia e psicologia. Ao afirmar que “in fact, as a woman, I have no country. As a woman I want no country. As a woman my country is the whole world2”, Woolf (1993) está propondo o começo de uma revisão histórica e cultural, opondo-se ao discurso nacionalista e à tirania da sociedade patriarcal, ela sugere uma visão de mundo que nos liberta do desejo de posse e de dominação sobre o outro, além de oferecer uma política feminista pacifista bastante revolucionária. Por isso, ela dedica a última moeda em nome dos direitos de todos os homens e de todas as mulheres, em respeito a todas as pessoas de grandes princípios como justiça, igualdade e liberdade. Michelle Barret (1993), na introdução de Three Guineas, nos lembra de forma brilhante que o manuscrito do livro, tão odiado e tão criticado, foi vendido para levantar fundos para os refugiados da guerra civil espanhola, o destino que teve Three Guineas foi louvável e isso o torna muito mais poderoso e significativo, pois de uma forma bem efetiva ele responde à questão de Woolf no começo de seu ensaio, se ela não contribuiu para evitar a guerra, pelo menos pôde fazer algo efetivo para aliviar suas consequências.

Three Guineas e a crítica literária feminista A crítica literária feminista será utilizada aqui para demonstrar como o texto Three Guineas de Virginia Woolf tem sido revisto, relido e reconfigurado nas últimas décadas. Tal crítica nos permite refletir sobre novas formas de se pensar a linguagem e o gênero, ou talvez o próprio gênero da linguagem e, também, nos leva a questionar a lógica dominante da sociedade patriarcal, observando como a mulher tem sido aprisionada no texto masculino e qual seu lugar fora dele. A crítica literária feminista tem insistido na ideia da revisão, isto é, rever o passado com outros olhos, reescrever a história literária para preencher as lacunas, os espaços de silêncio, a ausência feminina das diversas antologias. Para muitas escritoras, tal projeto representa mais do que uma página reescrita, mas seria mais um ato de sobrevivência e permanência na história literária. Adrienne Rich (1972) em seu texto “When We Dead Awaken: writing as ReVision” aborda exatamente essa questão da (re)visão como processo de autoconsciência e diz que a crítica feminista nos oferece uma pista sobre como vivemos, como as mulheres foram conduzidas a refletir sobre a própria imagem nos textos literários e como a linguagem por muito tempo as aprisionou, mas também, as liberou, a partir do momento que se tornaram conscientes do conceito de identidade sexual. No entanto, para as escritoras há ainda um desafio e uma promessa de uma 2 Na verdade, como mulher, eu não possuo pátria. Como mulher, eu não quero pátria. Como mulher, meu país é o mundo inteiro. (Tradução minha)

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

206

Maria Aparecida de Oliveira (UNESP) THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA

nova geografia psíquica a ser explorada. Mas, há também uma difícil e perigosa trilha para encontrar a linguagem e as imagens para essa consciência que está sendo despertada. Na mesma direção Krista Ratcliffe (1993), em seu artigo “A rhetoric of textual feminism. (Re)reading the emotional in Virginia Woolf’s Three Guineas”, considera que a retórica textual do feminismo implica em uma análise contextualizada das estratégias textuais no processo crítico de leitura e escrita, ou releitura e reescrita, que envolve uma crítica do texto a partir dos termos sexuais e de gênero. Tal retórica propõe uma reconstrução do sentido, levando em consideração diferentes espaços, agentes e contextos culturais. Além de localizar o sentido naquele determinado contexto, uma retórica feminista localiza o significado em diversas possibilidades de intersecções de texto, contexto, escritor e leitor. Sobretudo, nos lembra Ratcliffe (1993), o feminismo não pode ser visto como uma teoria estática, totalizadora, mas sim como um processo em que feministas são sujeitos em processo constante de transformação e construção, em um processo de leitura e escrita, releitura e reescrita. Ambas, Rich (1972) e Ratcliffe (1993) compreendem o feminismo como um processo em transformação e em construção, ambas chamam a atenção para uma auto-consciência seja em relação à linguagem ou à imagem feminina veiculada nos textos e na mídia em geral. Embora, muitos proclamam o fim do feminismo, há ainda muito a ser realizado nesse processo de conscientização, ação e transformação das relações sociais e do papel da mulher na sociedade. É muito conveniente da nossa parte analisar o texto de Woolf sob este pontode-vista, assim, muitos de seus argumentos nos parecem óbvios e extremamente relevantes. Contudo, Three Guineas foi mal compreendido por sua própria geração, além de haver uma cegueira que é própria de cada época. Assim como é difícil para nós nos enxergarmos dentro da nebulosa que é o pós-modernismo, o feminismo de Woolf estava carregado por uma visão bastante preconceituosa e por outras questões políticas e sociais bastante complexas que não podiam ser desvendadas facilmente. Woolf estava certa quando dizia que a própria palavra “feminismo” estava desgastada e que precisaria ser re-significada. Os contemporâneos de Woolf não conseguiam ou não queriam ver o modo como ela responde aos exemplos mais visíveis dos danos da sociedade patriarcal e à tradição feminista de seu tempo. Eles acreditavam que a batalha por igualdade encerrava-se com o direito feminino ao voto e já que as mulheres estavam visivelmente ingressando no mundo das profissões. Ademais, eles não conseguiam compreender as conexões entre pacifismo e feminismo. Além disso, devemos lembrar que Woolf estava propondo uma nova forma, tanto com relação ao romance, quanto ao ensaio. Se T. S. Eliot, um escritor renomado e consagrado, encontra resistência por parte dos leitores, em adentrar um texto poético repleto de notas, para Woolf essa resistência era multiplicada. As sessenta páginas de notas no final do livro refletem o processo de escrita e elaboração do ensaio, além de embasar seus argumentos, oferecem ao leitor um vasto panorama sobre o contexto histórico da época. Contudo, elas acabam por dificultar a leitura e aumentam a resistência do leitor. Há vários estudos que contemplam as notas de Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

207

Maria Aparecida de Oliveira (UNESP) THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA

Three Guineas, dentre eles Virginia Woolf’s Reading Books (1983) de Brenda Silver em que ela analisa o método utilizado por Woolf para coletar dados para seus argumentos e ilustra a elaboração e o processo de escrita. Naomi Black (2004) em seu livro Virginia Woolf as a feminist afirma que Three Guineas é um trabalho essencialmente feminista, cujas atitudes anti-bélicas não podem ser desvinculadas do ataque de Woolf à dominação e aos privéligios masculinos. A autora procura enfatizar a associação de Woolf com relação à guerra e à estrutura patriarcal de dominação, agressão, hierarquia e de status cultural que os adorna e santifica. Desse modo, militarismo e guerra são necessariamente os resultados da sociedade patriarcal. Black (2004) procura demonstrar como Three Guineas foi completamente mal compreendido pelos contemporâneos de Woolf, assim, ela busca ilustrar a consistência e coerência dos argumentos particulares de Virginia Woolf e, como ainda hoje, eles são extremamente válidos, desde que democratização, educação, atividades profissionais públicas ainda representam um programa de transformações políticas, levando em consideração nosso contexto global. Dentre as várias formas de feminismo – liberal, marxista, socialista, anarquista – Black (2004) identifica o feminismo de Woolf como o feminismo social, baseado nas diferenças, que provém da experiência e das características distintas femininas. O objetivo é mais do que a igualdade ou o tratamento igualitário, Woolf pertence ao feminismo social devido à sua valorização por uma civilização feminina, visando à transformação política e social. Woolf em Three Guineas exige o total acesso das mulheres aos direitos políticos, econômicos, sociais, educacionais e profissionais para promover reformas utilizando a história e a experiência feminina como base para reconstruir um mundo que seria dividido por todos seres humanos de forma mais justa. Nesse caso, ele ainda é muito relevante atualmente, pois chama a atenção para as relações entre o mundo público e suas estruturas de dominação. Black (2004) reconhece que Woolf utiliza dois argumentos que contribuem para o distanciamento de seu público não-feminista, e mesmo, feminista. Primeiramente, Woolf argumenta que mesmo o sistema liberal da Inglaterra era tirânico com relação ao tratamento dado à mulher. Além disso, ela acrescenta um outro argumento que, ainda hoje, não é muito aceito, quando diz que as estruturas públicas de dominação e opressão podem ser mais bem combatidas pela eliminação das instituições privadas. Para Woolf, a guerra e outros horrores da esfera pública estavam de certo modo relacionados à opressão e a submissão feminina. Na verdade, Three Guineas tem sido amplamente criticado mais pelo seu tom, do que pelos seus argumentos. Embora, o tom seja extremamente controlado pela autora e seus argumentos cuidadosamente pensados, bem-elaborados e referenciados nas notas finais, percebe-se que a crítica, principalmente masculina, associa o tom do ensaio ao tom do movimento feminista da época, por isso nega a autoridade narrativa e a própria autora, sem de fato ouvir os argumentos impressos nele. Por isso, se faz necessária a releitura da crítica feminista que analisa o discurso woolfiano procurando levar em conta o contexto cultural e os agentes envolvidos no discurso dominante da época. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

208

Maria Aparecida de Oliveira (UNESP) THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA

Barbara Hill Rigney (1978), em Madness and sexual politics in the feminist novel, nos lembra que E.M. Forster considerava Three Guineas como “an expression of angry”, e que o feminismo de Woolf estava fora de moda, contudo, Forster avaliou atitude de Woolf em relação à sociedade de forma precisa. Para ele, Woolf estava certa quando dizia que a sociedade era patriarcal e que as principais atividades masculinas eram o militarismo, a reprodução de dinheiro, as ordens e a importância aos uniformes e que nenhuma dessas ocupações eram admiráveis. Rigney (1978) enfatiza que em Three Guineas o mundo público reflete o mundo privado e que o sistema que aprova a tirania de mulheres em casa também aprovaria a tirania da humanidade em geral. Herbert Marder (1988), assim como Rigney, em “Virginia Woolf’s conversion: Three Guineas, Pointz Hall and Between the acts”, entende que as esferas públicas e privadas deveriam estar conectadas, assim como homens e mulheres deveriam estar conectados, lembrando do projeto de androginia que Woolf expressa em A Room of One’s Own. Em seu projeto sobre androginia, Woolf acreditava que o escritor deveria ter sua mente fertilizada pela criatividade feminina, pois sem as imposições patriarcais e sem as restrições econômicas e sociais a mulher poderia oferecer sua contribuição artística, social e cultural, da qual a própria sociedade patriarcal necessitava. À medida que a diferença entre os sexos diminui, a arte mostraria sinais de maior liberdade e, consequentemente, maior criatividade. Pois, a emancipação feminina proporcionaria uma sexualidade mais adequada e, também, uma imaginação mais apropriada marcada pela androginia. Retoma-se aqui a posição de Krista Ratcliffe (1993), em seu artigo mencionado anteriormente, no qual ela se refere à importância de reler Three Guineas evitando os estereótipos que têm sido atribuídos a ele, lembrando que o livro tem sido criticado por ser permeado pelos sentimentos emocionais, entre eles a ira. A esse respeito, Adrienne Rich (1972), no mesmo texto citado anteriormente, fala da sua impressão ao ter lido A Room of One’s Own, que cabe muito bem a Three Guineas: And I recognized that tone. I had heard it often enough, in myself and in other women. It is the tone of a woman almost in touch with her anger, who is determined not to appear angry, who is willing herself to be calm, detached, and even charming in a roomful of men where things have been said, which are attacks on her very integrity. Virginia Woolf is addressing an audience of women, but she is acutely conscious-as she always was-of being over-heard by men: by Morgan and Lytton and Maynard Keynes and for that matter by her father, Leslie Stephen. She drew the language out into an exacerbated thread in her determination to have her own sensibility yet protect it from those masculine presences. Only at rare moments in that essay do you hear the passion in her voice; she was trying to sound as cool as Jane Austen, as Olympian as Shakespeare, because that is the way the men of the culture thought a writer should sound.3 (Rich 1972: 4) 3 E eu reconheci aquele tom. Eu o ouço frequentemente, em mim mesma e em outras mulheres. É o tom de uma mulher quase em contato com a própria raiva, determinada a não aparecer irada, disposta

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

209

Maria Aparecida de Oliveira (UNESP) THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA

Rich (1972) comenta que os homens, ao contrário das mulheres, nunca escrevem pensando na crítica feminina ou feminista, quando ele escolhe seus materiais, seus temas ou linguagem. As mulheres, em oposição, sempre escrevem pensando na crítica masculina, mesmo quando se dirigem a um público estritamente feminino, como no caso de Woolf. Ainda sobre o mesmo assunto, Alex Zwerdling (1983) em seu texto “Anger and Conciliation in Woolf's Feminism” comenta exatamente sobre a forma como Woolf procura conciliar a expressão da indignação ou ira com relação à submissão feminina e o seu público masculino que ela jamais poderia ignorar. Zwerdling nota, assim como Rich e outras feministas, que Woolf assume duas estratégias como forma de expressão, uma que é direta, passional e áspera e a outra que é irônica, distanciada e extremamente controlada. Zwerdling (1983), com seu olhar refinado ao texto de Woolf, percebe que ela cria seu leitor masculino desde o início quando decide responder sua carta, seu suposto “leitor” seria o homem liberal que mantém certa simpatia para com o movimento feminista, este seria seu principal público-alvo. Woolf afirma em Professions for women que os homens também deveriam emancipar-se, isto é, deveriam libertar-se do peso e da tirania da sociedade patriarcal. O leitor ideal construído pela escritora é também ideal para o feminismo, pois ele compreende as necessidades do movimento, pode contribuir para que as mudanças ocorram sem se sentir ameaçado, pois sabe que seu próprio papel será alterado. Levando em conta essas mudanças dos papéis tradicionais que ocorriam no próprio grupo Bloomsbury, Woolf estava consciente a respeito de seu tom irônico e do controle sobre seu público masculino. Ela deveria ser direta, mas também deveria manter seu leitor interessado em seu texto, pois ela sabia que não podia irritá-lo demais com a sua ironia, a ponto que ele desistisse da leitura. Com relação a essa auto-consciência Zwerdling afirma que: Woolf never stops being sensitive to masculine criticism of her feminist writings. At the same time, however, she becomes increasingly dismissive about men's disapproval and steadily more willing to meet it. In writing Three Guineas, she faces the fact that she will need real courage to attack the a transparecer calma, distanciada e mesmo, encantadora, em uma sala repleta de homens, onde coisas serão ditas, ataques à sua própria integridade. Virginia Woolf está dirigindo-se a um público feminino, mas ela estava extremamente consciente – como sempre esteve – de ser ouvida pelo público masculino: Morgan e Lytton e Maynard Keynes e, inclusive, pelo seu próprio pai, Leslie Stephen. Ela delinea a linguagem em um fio exarcebado na sua determinação em manter sua própria sensibilidade ainda protegida daquelas presenças masculinas. Somente em raros momentos naquele ensaio, você ouve a paixão em sua voz; ela estava tentando soar calma como Jane Austen, Olympian como Shakespeare, porque este é o modo como os homens de cultura achavam que um escritor deveria soar. (Rich 1972: 4)

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

210

Maria Aparecida de Oliveira (UNESP) THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA

entrenched positions that are the book's targets. When the men in her circle discuss the futility of pacifism, the inevitability of war, she becomes firmly convinced of the need to examine their attitudes from her own detached point of view. What had begun as a helpless fear of male authority had gradually turned into a sceptical and highly critical perspective on it. But of course she could not afford to ignore masculine culture, the realities of power being what they were.4 (Zwerdling 1983: 13)

Woolf sabia que não podia ignorar seu público masculino, por isso ela partia da própria linguagem masculina, assumindo seus métodos de persuasão e um discurso acadêmico, em que seus argumentos estão embasados com citações e notas de rodapé. Woolf em muitos de seus ensaios, incluindo A Room of One’s Own questiona como a escritora deve lidar com os padrões, a mulher deve experimentar as formas aceitas, mas deve evitar o excesso e criar outras formas mais adequadas. Primeiro, as mulheres devem localizar-se dentro da linguagem patriarcal, que constitui o âmbito simbólico da cultura “falogocêntrica”, mas ao mesmo tempo ela deve construir uma posição de sujeito, abrindo seu próprio espaço cultural. Novas formas devem emergir das formas tradicionais, uma vez que é impossível escapar da cultura “falogocêntrica”, é necessário subvertê-la a partir de dentro. É importante notar que o texto de Woolf de forma alguma reflete ou reforça a lógica dominante ou o discurso dominante da nossa cultura “falogocêntrica”, ao contrário, ela situa-se dentro dele para implodir essa lógica, subvertê-la no sentido de nos fazer questionar quão ilógica e nonsense ela nos parece. Principalmente quando observamos a fotografia que Woolf descrevia com as casas arruinadas e os corpos dilacerados, ou seja, toda vez que observamos o quadro Guernica de Picasso nos lembramos do quão irracional o ser humano pode ser. Teresa Winterhalter (2003), em “What else can I do but write? Discursive, disruption and the ethics of style in Virginia Woolf’s Three Guineas”, apresenta ao leitor uma posição bastante interessante em relação ao estilo de Woolf. Apesar de Three Guineas ter sido um texto bastante criticado pela sua retórica, a autora procura partir dela para revê-lo. Muitos críticos têm sugerido que as manipulações retóricas de Virginia Woolf tem como objetivo produzir um efeito político bem particular: 1) controlar o tom energético do texto; 2) abrandar o radicalismo de sua crítica; 3) demonstrar as semelhanças entre a discriminação contra as mulheres e o sacrifício

4Woolf nunca deixou de ser sensível à crítica masculina de sua escrita feminista. Ao mesmo tempo, no entanto, à medida que ela se torna progressivamente indiferente à desaprovação masculina, gradualmente, ela estava mais disposta a enfrentá-la. Ao escrever Three Guineas, ela encara o fato de que ela precisará de verdadeira coragem para atacar as posições fixas que são os alvos do livro. Quando os homens de seu círculo discutem a futilidade do pacifismo, a inevitabilidade da guerra, decididamente ela convence-se da necessidade de examinar a atitude deles a partir de seu ponto-devista distanciado. O que teria começado como um medo inútil da autoridade masculina, aos poucos transformou-se em uma perspectiva extremamente crítica e céptica. Mas, é claro que ela não poderia ignorar a cultura masculina, as realidades de poder sendo como eram. (Zwerdling 1983: 13)

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

211

Maria Aparecida de Oliveira (UNESP) THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA

religioso; 4) produzir sarcasmo e desdém como meio de imitar e desafiar o discurso masculino. Contudo, Winterhalter (2003) considera que Three Guineas revela várias camadas interligadas de diferentes vozes, uma mudança de identidades narrativas e uma argumentação muitas vezes intricada que complica tais conceitualizações univalentes da estratégia retórica de Virginia Woolf. Para ela, a autoridade narrativa é muito fragmentada e representa o modo de narrativa perceptivo que Woolf deve incorporar para construir seu argumento de como prevenir a guerra. Winterhalter (2003) acredita que quando Woolf rompe as frases e as sequências das convenções, ela está de fato dissimulando a “female sentence” que ela se refere em A Room of One’s Own. Na mesma direção, Pamela L. Caughie, citada por Winterhalter, argumenta que as frases quebradas de Woolf revolucionam a força retórica ao ponto que ela apresenta um desafio à ordem tirânica. Winterhalter conclui que o estilo de Woolf oferece um desafio a buscar uma nova relação entre narrativa e política. Assim, ela também sugere que as inovações artísticas de Woolf redirecionam nossa compreensão das relações entre as superfícies narrativas e as bases políticas, mas também denotam os pressupostos linguísticos da sua ética feminista. As rupturas com as convenções literárias demonstram como uma estética que emerge do processo de escrita nos permite escapar da armadilha de compreender o referencial como o uso primário da linguagem e a representação como função primária da narrativa. A autora observa que a ruptura com as convenções aliada a uma técnica de manipulação retórica na qual muda a sua súplica para um mundo pacifista que vai além de uma mera plataforma social, alcançando uma prosa que beira a performance e enfatiza a ética de descentralizar o poder da autoridade. Desse modo, seu estilo não é apenas uma característica de expressão, mas o próprio motivo da escrita. O argumento principal de Woolf seria como estabelecer a ponte entre o mundo privado e o mundo da vida pública, ela constrói a analogia entre as esferas políticas e da sociedade patriarcal, denunciando as tiranias aparentes na educação, na religião e no governo. Ela previne o leitor dos perigos de tais ditatores como Hitler e Mussolini, que estavam presentes no próprio coração da Inglaterra, levantando suas cabeças e espalhando seu veneno. Woolf em seu texto percebe que o capitalismo, o imperialismo britânico e as instituições privadas e públicas da sociedade patriarcal, bem como as identificações de algumas mulheres com os valores patriarcais estariam todos implicados, a partir do momento que estavam sendo construídos sobre os mesmos desejos de dominação sobre o outro. Ao subverter a linguagem e os padrões aceitos, Woolf propõe um ato significante de uma rebelião engajada contra as práticas linguísticas que estão aliadas às formas de totalitarismo. Winterhalter (2003) demonstra como Woolf manipula a voz autorial para explorar a relação entre a autoridade narrativa e política. Para evitar a convenção literária, ela assume três vozes narrativas: 1) uma voz deliberadamente polêmica; 2) aquela que imita o discurso masculino; 3) uma voz que fala em nome da decência humana. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

212

Maria Aparecida de Oliveira (UNESP) THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA

É interessante notar a trajetória de Virginia Woolf, inicialmente, ela invade o mundo patriarcal, conquistando o território masculino e retornando com suas recompensas para dividir com outras mulheres. Woolf rompe com a linguagem dominante para, finalmente, alcançar uma voz apropriada. Pode-se ainda aproximar a trajetória de Woolf à própria estrutura de Three Guineas, ela parte do feminismo para falar da exclusão feminina do mundo público, em seguida ela amplia seu foco para demonstrar como a tirania da sociedade patriarcal, levada a um grau máximo poderia atingir a ambos os sexos de maneira extremamente destrutiva para toda a humanidade. Por último, ela busca reafirmar valores como justiça, igualdade e liberdade fazendo valer os direitos de todos os indivíduos.

A apropriação da figura de Virginia Woolf pelo feminismo Partindo exatamente da trajetória de Woolf, Bette London (1991) discute a apropriação da figura de Virginia Woolf em seu ensaio “Guerrilha in pettitcoat or san-culotte?”, aliando tal apropriação ao futuro da crítica feminista. De forma bilhante, ela fornece ao leitor uma nova perspectiva em toda essa discussão que é refletir sobre o modo como nos apropriamos de Woolf, estamos olhando para o passado para construir essa “matrilineagem literária”, que era um dos objetivos de Woolf em A Room of One’s Own, recuperar a tradição literária feminina. Esse tem sido o objetivo da crítica feminista, que seguindo a trilha aberta por Virginia Woolf, tem retomado seu trabalho, como se pode ver em Gubar e Gilbert (2000), Ellen Moers (1976), Carolyn Heilbrun (1993), Jane Marcus (1988), Lousie DeSalvo (1989) e mesmo Elaine Showalter (1977), ainda que a considere como traidora do movimento. Contudo, precisamos lembrar que ao refletirmos sobre a tradição literária feminina, tendo Woolf como inspiração primordial, esse olhar só será válido a partir do momento que estivermos refletindo sobre os caminhos que definirão o futuro do feminismo ou então trata-se apenas de “necrofilia” literária. Apesar de seu sobrinho Quentin Bell (1972) ter escrito que Virginia Woolf não era feminista, nem tampouco uma figura política, muitos pesquisadores tem encontrado em seu arquivo, abundantes evidências do feminismo de Woolf contra a sociedade patriarcal em que ela vivia. Um projeto que combina uma política revolucionária, a presença autorial e o processo estético certamente levará em conta sua escrita e seu discurso femininista. Toril Moi (2006) observa que a Virginia Woolf revolucionária, principalmente aquela criada por Jane Marcus (1988), é produzida de forma bastante tradicional, pela herança crítica, pela investigação biográfica, textual, documental, historicismo e estudos de fonte. Esta Virginia Woolf descoberta por materiais históricos tornou-se aquela adequada à crítica pela necessidade de uma feminista radical. A imagem que Jane Marcus (1988) defende de Woolf é aquela de um soldado num campo de batalha, cujo objetivo seria conduzir outras mulheres soldados a cruzar este difícil território. O que é uma imagem bastante contraditória, se pensarmos em Three Guineas, o quão anti-militarista ela era. Gilbert e Gubar (1988), Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

213

Maria Aparecida de Oliveira (UNESP) THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA

assim como Moi (2006), ao recuperar a imagem de Woolf como feminista, trazem o feminismo francês para iluminar uma diferente compreensão do conceito de “female sentence” mencionado por Virginia Woolf em A Room of One’s Own. Mas, as autoras consideram as palavras de Cixous e Irigary imoderadamente teórica e, em seus esforços para elaborar uma linguagem propriamente feminina. No entanto, Gilbert acha que dificilmente tais ideias possam iluminar a escrita de Woolf. London (1991) afirma que a observação de Virginia Woolf em A room of one’s own de que “we think back through our mothers if we are women5” tem levantado muita polêmica na crítica feminista contemporânea, já que funciona como uma figura retórica bastante evidente ao proporcionar um modelo e, ao mesmo tempo, inspiração para um trabalho de recuperação para uma nova crítica literária feminista. Jane Marcus (1988) transformou essa frase em um slogan para seu próprio trabalho sobre Woolf, como se pode notar no título de seu ensaio “Thinking Back Through Our Mothers”. O mesmo ocorre no trabalho de Sandra Gilbert e Susan Gubar (2000), pois na busca de se recuperar uma tradição literária feminina, tanto em Madwoman in the attic, quanto em Norton Anthology of Literature by women e, em No man’s Land as autoras têm reconhecido e prestado um tributo monumental à obra de Virginia Woolf. Embora, Elaine Showalter (1977) tenha criticado severamente A room of one’s own, percebe-se que ela usa a ideia de Woolf em uma tentativa de reconstruir uma tradição literária feminina, nota-se pelo próprio título A literature of their own, que Showalter também está criando uma matrilineagem literária, embora ela mencione que o seu título deve-se a John Stuart Mill, sem mencionar Woolf. Quando Jane Marcus (1988) reconhece Woolf como “the mother of us all6”, entendemos que a figura de Virginia Woolf como referência para a crítica feminista tem causado diversas polêmicas. Para Showalter, contraditoriamente, ela aparece com uma “bad mother”, mais próxima do anjo-do-lar que traiu o movimento feminista, pois ela considera seu projeto de androgínia, mais como uma fuga, do que uma afirmação do movimento feminista. Para Carolyn G. Heilburn (1993), na mesma direção de Jane Marcus, Woolf aparece, ainda que implicitamente, como a “good mother”, e ela considera que movimento em direção à androgínia como uma das alternativas para o movimento feminista, oferecendo outras possibilidades em relação à rigidez dos papéis prédeterminados. Já para Gilbert and Gubar, Woolf seria a “mother muse” em Madwoman in the attic, assim como em Literary Women de Ellen Moers (1976), ou ainda em Shakespeare’s sisters, cujo título declara explicitamente sua matrilineagem. Lousie DeSalvo (1989) entende o projeto de Woolf em reconstruir a imagem de Judith Shakespeare, como uma busca épica para uma “mythic mother muse7”, nesse

“Nós refletimos por meio de nossas mães, se somos mulheres”. (Tradução minha) “a mãe de todas nós”. (Tradução minha) 7 “musa mãe mítica”. (Tradução minha) 5 6

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

214

Maria Aparecida de Oliveira (UNESP) THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA

caso, Woolf seria a própria Judith Shakespeare, “a sister of us all8” mas que diferente dela, que não escreveu uma simples palavra, ela imprime sua marca na literatura e na história, consagrando-se como uma grande escritora. Sobretudo, London (1991) questiona que ao ressuscitar a imagem de Virginia Woolf como mãe do feminismo, ela nos faz refletir que tipo de laços estamos estabelecendo nessa relação, somos Woolf’s sisters? Até que ponto queremos ou precisamos desse laço? E ainda, a que interesses estamos servindo com este investimento necrófilo? Ou que papel nos resta que não o de filhas ou irmãs da nossa grande predecessora? O que a intriga é que ao nos voltarmos para nossas mães literárias, nós estamos voltando ao passado e não em direção ao futuro. Levando essa posição em consideração, devemos considerar Woolf como uma representante da trilha, alguém que abriu caminho desse “território selvagem”, nesse sentido, podemos considerá-la como “a mother of us all”, como menciona Jane Marcus, contudo, devemos pensar em novas trilhas e novos rumos para o movimento feminista, pois muitas das questões reinvindicadas pelo movimento já foram solucionadas, mas outras foram surgindo. Resta-nos construir a ponte para a trilha do futuro, para mudar, transformar e transcender essas barreiras. Além disso, London (1991) problematiza que o papel de mãe-filha-irmã representa as estruturas da autoridade patriarcal’ e como Judith Butler (2008) sugere tais representações tendem a reinforçar a estrutura binária heterosexual, ao contrário do que propõe o projeto de androgínia de Virginia Woolf. Em relação à linguagem de Woolf, London sugere que se as intervenções feministas nos Estudos Woolfianos nos ensinam ler uma “revolução na linguagem” como uma realização fundamental. Mas, podemos entender essa premissa de uma forma diferente, Jane Marcus propaga um tipo de estética feminina. Já Kristeva, citada pela autora, compreende este tipo de estética como não-existente, ou como impossibilidades lógicas dentro de estruturas que definem a mulher culturalmente. Nesse sentido, o feminismo francês para London (1991), bem como para muitas outras teóricas, acaba por reduzir a problemática da crítica literária feminista a uma voz e linguagem feminina. Em uma discussão recente sobre o status de Woolf, como uma figura exemplar para a crítica feminista contemporânea, Rachel Bowlby (1992), de modo bastante perspicaz, observa a apropriação à figura de Woolf, de forma amplamente diferente, e mesmo de uma posição contraditória à feminista. Ela resolve estas contradições ao encontrar em Woolf uma representativa do spectrum das possibilidades feministas. Para ela, essa posição e representação da multiplicidade – a recusa em ser emoldurada em qualquer resposta conclusiva às “questões generalizantes sobre a mulher” – torna-se o aspecto definidor da obra de Woolf. Nesse caso, o feminismo de Woolf constitui-se pela sua exata disponibilidade e representação à diferença feminista. 8

“irmã de todas nós”. (Tradução minha)

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

215

Maria Aparecida de Oliveira (UNESP) THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA

Considerações Finais Precisamos estar conscientes da nossa apropriação de Virginia Woolf, do modo como nós a buscamos e às vezes forçamos práticas críticas que parecem estar desconectadas de Woolf, como autoridade pré-estabelecida. London (1991) sugere que ao destacarmos o projeto feminista de Woolf da sua prática e exemplos, estaríamos abrindo possibilidades para a produção de novos ensaios feministas sobre Virginia Woolf, assim como novos ensaios que abririam novas trilhas e novos rumos sobre a crítica feminista. Precisamos, segundo London (1991), ouvirmos nossas próprias vozes, como algo real, pois talvez seja isso, precisamente, o que é mais difícil de reconhecer: o que está sujeito à manipulação e apropriação pelo feminismo em si. Ou seja, de que modo, o feminismo tem sido manipulado pela indústria cultural, de que forma ele tem sido apropriado por diversas vozes contraditórias ao que busca o movimento, de que modo nossas vozes ainda são abafadas por todas as necessidades criadas pela mídia? A crítica feminista tem relido Three Guineas sob diferentes perspectivas, ressaltando as estratégias feministas do texto, observando a relação com o movimento feminista da época, estabelecendo as relações entre as notas finais e o contexto político e social em que foi escrito, analizando as diferentes vozes presentes no texto, examinando a questão da autoridade e controle do tom do ensaio, etc. Com isso, nota-se que o texto muda, à medida que o leitor muda. E o leitor, assim como a crítica feminista, não é uma instância rígida, isolada e estanque, mas está em constante processo de construção e em consonância com as demandas e exigências de um mundo também em constante processo de transformação. Por um lado, o texto de Woolf tem sido recuperado pela crítica feminista. E, tal crítica leva em conta o contexto histórico e cultural em que foi produzido, o espaço e os agentes neles envolvidos. Isto é, o texto foi escrito em um momento delicado que prevê os horrores de uma segunda guerra mundial. A visão de Woolf não se limita a seu próprio país, mas ela aborda a situação política internacional. A princípio ela fala a partir de sua posição enquanto mulher e intelectual que poderia influenciar a opinião pública em geral, ao final de seu texto ela fala em nome de todos os indivíduos. Por outro lado, há muitos ainda que não conseguem compreender a relevância de seus argumentos, não os entendem ou não querem entender. O fato é que as hierarquias ainda prevalecem, vivemos num mundo cercado pela ameaça de uma terceira guerra ou várias guerras localizadas, diárias, marcadas pela pobreza, intolerância, machismo, racismo e, ainda, pela opressão das minorias religiosas ou de orientação sexual. Ao evitar a soberanidade autorial, o texto de Woolf não oferece respostas, mas levanta uma série de questionamentos, leva o leitor a refletir sobre seu próprio processo histórico, sendo ele fruto de um processo político e social e nos força a pensar que nossas posições determinam uma série de reações. Apesar das contradições e idiossincrasias do discurso woolfiano, seu pacifismo continua hoje como uma estratégica política de extrema eficácia. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

216

Maria Aparecida de Oliveira (UNESP) THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA

Three Guineas pode ser compreendido hoje como um modelo de mobilização feminina (e também masculina), com o intuito de desestruturar as hierarquias que governam e deformam nossas próprias vidas. Enquanto experiência discursiva e política, Three Guineas pode ser entendido como um modelo inspirador para as Mães da Praça de Maio, por exemplo, pois essas usam o discurso que as oprimiam por muito tempo como base para sua própria ação política. É claro que os discursos dominantes da sociedade patriarcal, sejam eles políticos, críticos ou psicológicos, são construídos como sendo verdade absoluta e condenam, sobretudo, a ira do discurso feminista, como se ele fosse contraditório a tal verdade, fazendo-o parecer irracional, ilógico e inconsequente. Por isso, Three Guineas deve continuar a ser lido com toda sua ira, força e seu tom passional e nosso papel enquanto leitores é dotá-lo do seu poder autorial como forma de expressão no debate político das esferas públicas e privadas. Contudo, não podemos prometer que as três moedas de Virginia Woolf foram de fato bem utilizadas. Hoje, com um pouco mais de educação e inserção no mercado de trabalho, ainda não podemos evitar o militarismo nas instituições públicas e privadas, já que este se tornou uma empresa extremamente lucrativa que destrói e constrói nações rapidamente em nome de uma democracia que ainda soa tão irracional, quanto a irracionalidade ilustrada por Picasso em Guernica, ao retratar a Guerra Civil Espanhola, a que se refere Woolf em seu ensaio. Portanto, devemos ler e reler Three Guineas para que a voz de Woolf ecoe em nossos ouvidos. É verdade, no entanto, que há homens e mulheres pacíficos e há homens e mulheres a favor da indústria bélica, por isso a terceira moeda de Woolf deve ser valorizada em nome da paz, da justiça e da igualdade de todos os indivíduos.

THREE GUINEAS AND THE FEMINIST LITERARY CRITICISM: REVISION AND REREADING Abstract: This paper aims to analyze Virginia Woolf’s essay Three Guineas from a feminist literary criticism perspective in order to understand how the meaning of Virginia Woolf’s text has been reconstructed in the last decades. It will be investigated how the current feminist literary criticism has revisited and reread her works and as Woolf herself has been reinvented by such criticism. In order to do so, the theoretical framework will concentrate on authors such as Naomi Black, Barbara Hill Rigney, Krista Ratcliffe, Teresa Winterhalter among others. Keywords: Virginia Woolf; Three Guineas; Crítica literária feminista; Revision.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

217

Maria Aparecida de Oliveira (UNESP) THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA

REFERÊNCIAS

BELL, Quentin. Virginia Woolf: A Biography. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1972. BLACK. Naomi. Virginia Woolf as a Feminist. London: Cornell U P, 2004. BOWLBLY, R. Walking, Women and Writing: Virginia Woolf as flâneuse. In: Isobel Armstrong, ed. New Feminist Discourses: Critical Essays on Theories and Texts. London: Routledge, 1992. DESALVO, L. Virginia Woolf: The Impact of Childhood Sexual Abuse on Her Life and Work. Boston: Beacon, 1989. GUBAR, S.; GILBERT, S. The madwoman in the attic: The Woman Writer in the Nineteenth-Century Literary Imagination. New Haven: Yale University Press, 2000. _____. The War of Words. Vol.1 of No Man’s Land: The Place of the Woman Writer in the Twentieth Century. New Haven: Yale University Press, 1988. _____. Sexchanges. Vol.2 No Man’s Land: The Place of the Woman Writer in the Twentieth Century. New Haven: Yale University Press, 1989.

HEILBRUN, Carolyn Gold. Toward a Recognition of Androgyny. New York: W.W. Norton&Company, 1993. HUSSEY, Mark. Virginia Woolf: A to Z. New York: Oxford University Press, 1996. LEE, Hermione. “The Novels of the 1930’s and the Impact of History.” In: The Cambridge Companion to Virginia Woolf. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. LONDON, B. Guerrilla in Petticoats or Sans-Culotte? Virginia Woolf and the Future of Feminist Criticism. Diacritics. Vol. 21, No. 2/3. 1991. Disponível em http://www.jstor.org. Acesso em 18 Mar 2011 MARCUS, Jane. Art and anger. Ohio: Ohio University Press, 1988. MARDER, Hebert. Virginia Woolf's Conversion: Three Guineas, Pointz Hall and Between the Acts. Journal of Modern Literature. Vol. 14. No. 4.1988, pp. 465-480. Disponível em http://www.jstor.org. Acesso em 19 Março 2011 MOERS, E. Literary Women: The Great Writers. New York: Doubleday, 1976. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

218

Maria Aparecida de Oliveira (UNESP) THREE GUINEAS E A CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: REVISÃO E RELEITURA

MOI, T. Teoria Literaria Feminista. Madrid: Catedra, 2006. RATCLIFFE, Krista. A Rhetoric of Textual Feminism: (Re)Reading the Emotional in Virginia Woolf's Three Guineas. Rhetoric Review. Vol. 11, No. 2. 1993, pp. 400-417. Disponível em http://www.jstor.org. Acesso em 19 Março 2011. RICH, Adrienne. When We Dead Awaken: Writing as Re-Vision. College English. Vol. 34, No. 1. 1972, pp. 18-30. Disponível em http://www.jstor.org. Acesso em 04 Fevereiro 2012 RIGNEY, Barbara Hill. Madness and Sexual Politics in The Feminist Novel. Studies in Brontë, Woolf, Lessing and Atwood. Madison: The Univerity of Wisconsin P, 1978. SILVER, Brenda. Virginia Woolf’s Reading Books. New Jersey: Princeton U P, 1983. SHOWALTER, E. A Literature of Their Own: British Women Novelists from Brontë to Lessing. New Jersey: Princeton University, 1977. WINTERHALTER, Teresa. "What Else Can I Do but Write?" Discursive Disruption and the Ethics of Style in VirginiaWoolf's Three Guineas. Hypatia. Vol. 18. No. 4. 2003. pp.236-257. Disponível em http://www.jstor.org. Acesso em 20 Março 2011 WOOLF, Virginia. A room of one’s own and Three Guineas. Introd. Michele Barrett. London: Penguin Books, 1993. ZWERDLING, Alex. Anger and Conciliation in Woolf's Feminism. Representations, No. 3, 1983. Disponível em http://www.jstor.org. Acesso em 12 Abril 2011.

ARTIGO RECEBIDO EM 01/03/2012 E APROVADO EM 26/03/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

219

CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓSMODERNO1 Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL)2

Resumo: Diante das mudanças e os movimentos ocorridos no final do século XX e início do século XXI, destacamos neste artigo o pós-modernismo como um movimento social, abrangendo suas várias instâncias. Na literatura, muitas são as abordagens trazidas. Entre elas, destacaremos o humor pósmoderno, que traz algumas peculiaridades próprias do homem contemporâneo. Assim, o presente trabalho pretende apresentar sinteticamente o movimento pós-moderno, algumas de suas abordagens, destacando o humor e suas singularidades. Palavras-chave: Humor; Pós-modernismo; Literatura.

A virada do século XX para o século XXI é marcada pelo montante de mudanças ocorridas e pela velocidade das descobertas. Nunca se descobriu tanto em tão pouco tempo. Podemos dizer que nesse período houve mais inovações nos mais diversos setores do que em todos os séculos anteriores juntos, construindo, assim, uma nova realidade nas diversas civilizações ocidentais. Os avanços tecnológicos juntamente com o desenvolvimento da imprensa e da comunicação cada vez mais rápida e ágil deram ao homem do início do século XXI um novo perfil. A globalização aproximou nações enquanto os grupos se reuniram em pequenos setores para lutar por seus direitos. A política, até então a grande dominadora do mundo, rendeu-se também às regras ditadas pela economia. A aceleração das inovações tecnológicas se dá agora numa escala multiplicativa, uma autêntica reação em cadeia, de modo que em intervalos de

Este artigo é parte integrante da dissertação de Mestrado em Letras da própria autora, intitulada O humor pós-moderno como crítica contemporânea: uma análise dos contos de Moacyr Scliar. 2 Aluna do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Londrina. Doutorado. E-mail: [email protected]. 1

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

tempo o conjunto do aparato tecnológico vigente passa por saltos qualitativos em que a ampliação, a condensação e a miniaturização de seus potenciais reconfiguram completamente o universo de possibilidades e expectativas, tornando-se cada vez mais imprevisível, irresistível e incompreensível (Sevcenko 2004: 16).

Com o grande avanço tecnológico e comunicativo, a população do novo século está diante de novas buscas, de novos anseios, de uma nova realidade. Surgem a “sociedade de consumo” e a “sociedade globalizada”. Isso tudo graças aos meios de comunicação que possibilitam a aproximação de nações extremamente distantes, mas que podem também isolar pessoas muito próximas em suas “aldeias comunicativas”. Os hábitos foram mudando, os recursos se transformando e se multiplicando, tudo em prol da comodidade dos indivíduos que, em sua maioria, têm de trabalhar mais que antes para comprar mais que antes e se sentir inserido nessa sociedade que lhe é apresentada. Dessa forma, ele tem também menos tempo para as ações “menores” – fazer compras, ter um momento de lazer com a família, conversar com os amigos, pagar contas, etc. E para isso também a tecnologia e a comunicação estão aí, prontas para adequá-lo ao novo modo de vida. Já se fazem compras, inclusive as básicas de mercado e se pagam quase todas as contas sem sair de casa; o lazer também é oferecido em casa e sem necessariamente a presença de todos os membros da família; e amigos são construídos através de bate-papos virtuais. Diante dessa nova perspectiva de vida, algumas normas e códigos de moral reguladores do comportamento social ganham novos contornos e em meio a esse contexto, emerge um fenômeno intitulado Pós-modernismo e que abrange as diversas áreas da sociedade: arte, ciência, tecnologia, política, filosofia e cultura. Em linhas gerais, as mudanças que convergiram para o surgimento dessa nova tendência destacaram-se a partir de meados dos anos 50, com a arquitetura e a computação, infiltram-se no meio intelectual nos anos 60, apresentam um crescimento na filosofia nos anos 70 e alastram-se nos anos 80 abrangendo os campos da moda, do cinema, da música, entre outros.

1. O pós-modernismo no Brasil Há grandes controvérsias a respeito da empregabilidade do termo pósmodernismo em países que estejam dissociados do grande eixo que engloba os países do primeiro mundo. Alguns estudiosos negam a existência ou a adequação do conceito nos países subdesenvolvidos chamados de terceiro mundo. Para a escritora canadense Linda Hutcheon, o movimento não pode ser aceito como “um fenômeno cultural internacional, pois é basicamente europeu e (norte- e sul-) americano” (Hutcheon 1995: 20). Fredric Jameson é mais radical ainda quando diz que o pósmodernismo é “essencialmente norte-americano” (Jameson 1994: 136).

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

221

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

Outros teóricos, porém, principalmente os que se localizam nesses ditos países subdesenvolvidos reagem contrariamente a essas idéias. Um deles é Aijaz Ahmad, que, num texto dirigido exclusivamente a Jameson, postula a possibilidade de uma literatura em países do terceiro mundo que não se restringe a propósitos alegorizantes e que essa possibilidade não é aceita por Jameson devido a um etnocentrismo que o impede de ver os avanços significativos em tais países, bem como estudar suas produções artísticas. No que se refere às relações entre o pós-moderno e a América Latina, dois estudiosos se destacam: Nestor Garcia-Canclini e Irlemar Chiampi. O primeiro refere-se à hibridização cultural existente nesse continente como algo essencial no pós-modernismo. No plano do desenvolvimento, Garcia-Canclini observa a heterogeneidade latino-americana quanto aos estágios próprios de cada país: Hoje concebemos a América Latina como uma articulação mais complexa de tradições e modernidades (diversas, desiguais), um continente heterogêneo formado por países onde, em cada um, coexistem múltiplas lógicas de desenvolvimento. Para repensar esta heterogeneidade é útil a reflexão antievolucionista do pós-modernismo, mais radical que qualquer outra anterior (Garcia-Canclini 1997: 28).

Podemos perceber assim que Canclini relaciona o pós-moderno com a multiplicidade cultural e de estágios de desenvolvimento da América Latina. Essa mistura própria desse continente, segundo Canclini, é algo que está altamente ligado à proposta pós-moderna. Irlemar Chiampi, usando o bolero e o romance do pós-boom hispanoamericano como exemplos, também destaca a aproximação do erudito e do popular feita através da cultura de massa como aspecto fundamental no pós-modernismo da produção da América Latina. Para a autora, essa aproximação pode ser caracterizada por duas modalidades. A primeira delas seria o deslocamento do material exclusivo da cultura popular-massiva para inseri-lo no código culto da enunciação narrativa. Aqui, Chiampi discute como os elementos ditos como “espúrios”, “alienantes”, “adulterados” são reutilizados em outros contextos de forma que possam adquirir novas funções dentro da narrativa em um processo de incorporação chamada por ela de “repragmatização”. A segunda forma é o deslocamento do código culto da literatura para um contexto mais melodramático da narrativa. Esse segundo processo visa “aproveitar diversos resíduos da tradição literária para transcodificá-la na narrativa, mediante a despragmatização do seu efeito estético ‘alto’” (Chiampi 1996: 81). Acontece, então, uma inversão da apropriação dos materiais residuais da cultura popular-massiva. Para Chiampi não há, pois, motivos para querer preservar a diferença entre erudito e popular; “sua identidade e legitimidade ficam comprometidas pelo contágio” (Chiampi 1996: 83), não podendo mais (nenhum dos dois) voltarem ao seu estágio original, sem estarem afetados, contaminados um pelo outro. Essa

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

222

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

contaminação existente na América Latina é, para a autora, indício de uma nova tendência, no caso, o pós-modernismo: O lixo cultural, cuja presença a cultura hegemônica foi tolerando na época moderna desde que se mantivesse em territórios bem definidos – onde o contágio não ameaçasse a pureza das expressões culturais genuínas e nobres, as do Folclore e da Arte, o popular e o erudito –, parece experimentar dias de glória que transcendem sua condição de resíduo. Reciclado por narradores pertencentes ao cânone literário, seu reaproveitamento e funcionalização em obras prestigiadas lhe outorga um novo status dentro da cultura pós-moderna na América Latina (Chiampi 1996: 76).

No Brasil, o termo “pós-modernismo” foi empregado pela primeira vez em 1946 por Alceu Amoroso Lima, já dentro de uma realidade especificamente brasileira. Fala-se em aspectos específicos porque o Brasil – e aqui poderíamos incluir também os outros países da América Latina – possui uma realidade histórico-cultural diferente dos países europeus e norte-americanos, convergindo assim para alguns aspectos singulares também na arte. Uma questão bastante relevante é de ordem política já que os países do então chamado terceiro mundo não se encontram no mesmo estágio de modernização que os do primeiro mundo. Dessa forma, não há como pensar o pós-moderno como homogêneo, haja vista que vivemos em sociedades heterogêneas quanto aos estágios de modernização. Poderíamos pensar então não em um pós-modernismo, mas em pós-modernismos, ou seja, como temos sociedades heterogêneas, o conceito também se mostra heterogêneo adaptado a cada realidade onde está inserido. Seria então incoerente estender determinados conceitos, que são de uma amplitude maior a diferentes países sem observar as diferenças sociais, políticas e culturais que compõem os diferentes países. Em se tratando da América Latina seria prudente observar o processo de modernização ocorrido nas últimas décadas e então teríamos como ponto de referência que esse processo “apresenta uma feição peculiar, característica de uma economia dependente e de uma realidade social fortemente matizada e diferenciada, e as manifestações estéticas aqui surgidas estão em constante diálogo com tais aspectos” (Coutinho 1995: 428). É válido, porém, que se insiram as manifestações artísticas produzidas na América Latina dentro do contexto pós-moderno desde que essas peculiaridades sejam respeitadas. Assim, a partir das décadas de 50 e 60, o Brasil assistia ao surgimento de vanguardas e posicionamentos assumidos que foram mudando o contexto literário em nosso país. Na poesia, encontramos o movimento da poesia concreta (1956), o Neoconcretismo (1959), a Literatura-praxis (1962), o movimento do Poema/processo (1967). Em 1968, emerge o Tropicalismo, que representa uma tomada de posição de alguns artistas renovadores na área de diversas atividades – teatro, cinema, artes plásticas e música popular. Esse momento foi crucial para o desenvolvimento da arte como tal, já que toda a produção “carregou-se de uma implicação ideológica que se expressava na Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

223

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

censura”, que representava “o tipo de orientação que o Estado pretendia conferir à cultura e acabou funcionando como uma espécie de emblema da época, por meio do qual seria possível interpretar toda a produção cultural, como se interpreta um código cifrado, acessível apenas aos iniciados” (Pellegrini 1995: 73). O Estado, através da censura, agiu de forma a constranger a criação artística, num primeiro momento, e depois, quando percebe que está perdendo terreno diante do povo, da classe média e do empresariado, passa a investir num incentivo à cultura criando uma Política Nacional de Cultura, em 1975. Assim, a cultura nacional passa a fazer parte de um sistema empresarial que a coloca nos moldes da profissionalização e da conquista do mercado. Aqueles que não estavam de acordo com essa política não recebiam incentivo dela, então agiam de forma paralela e marginal, com recursos próprios. Entre eles, podemos citar a poesia marginal e os grupos experimentais de teatro e cinema. A partir dos anos 80 essa relação entre o Estado e a produção cultural se solidifica com uma significativa ampliação do espaço para a produção. Espaço este “dimensionado pelos parâmetros da indústria cultural, sendo que o fator decisivo dessa nova dimensão fora a simbiose operada entre a mídia e o mercado”. Dessa forma, o limite entre cultura e mercadoria desaparece, difundindo-se uma “estética ‘internacional-popular’, fundada na proliferação das imagens, via televisão: a do espetáculo3” (Pellegrini 1995: 75). Por outro lado, esvaiu-se também o caráter rebelde dos anos 60 e 70; a poesia marginal ampliou seus leitores através de uma grande editora: a Brasiliense, profissionalizou-se e incorporou-se no meio do mercado de bens culturais. Os grupos experimentais, por sua vez, desapareceram ou aderiram aos grupos profissionais selecionados pela televisão. Observamos, contudo, que, mesmo em meio a esse fenômeno chamado mercado de bens culturais ou ainda indústria cultural, nossa literatura vem trazendo grandes inovações em suas produções nessas últimas décadas. A poesia contemporânea traz, por um lado, manifestações que vêm para consolidar o discurso modernista e, por outro, apresenta novos matizes e novas contribuições para uma nova tendência. Na prosa, temos um grande número de escritores que enriqueceu e continua enriquecendo a cultura brasileira. Alguns seguem desenvolvendo a linha do texto espelho ou do texto de denúncia social, na continuidade da tradição realista-naturalista, acrescida de um ou outro aspecto diferenciador; outros continuam o percurso da introspecção psicológica e outros mais se preocupam basicamente com a linguagem em si mesma (Proença Filho 2002: 387). Além do romance, a emergência do conto é um fato bastante relevante dentro da literatura brasileira contemporânea. O conto passa a ser um gênero de destaque na atualidade, trazendo muitas propostas de recursos renovadores. As temáticas do conto são variadíssimas e vão “desde a caracterização de problemas individuais até

3

grifo da autora.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

224

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

os espaços do imaginário aberto, passando por espaços relevantes da realidade social brasileira” (Proença Filho 2002: 388). Em se tratando especificamente do conto contemporâneo, nota-se que este acompanha as mudanças da era moderna capitalista. O homem, com seus limites e apreensões, em sua luta diária perante a sociedade esmagadora, e até suas pequenas vitórias cotidianas, é o retrato do final do século XX e início do século XXI. E é a esse retrato que se refere o conto atual. Não há mais uma preocupação como tinha o humanismo liberal, com grandes feitos e soluções. Hoje, o conto está centralizado nos pequenos (ou grandes) problemas individuais, que nem sempre têm soluções, como são também na realidade. Para tanto, o conto se utiliza de todos os artifícios da modernidade. Assim, como imagens televisivas dos meios de comunicação, o conto vai traçando o retrato da sociedade contemporânea. Luiz Carlos Simon (1999) comenta essas peculiaridades da ficção pós-moderna e diz que o conto possui três aspectos básicos: fragmentação, velocidade e intensidade. O primeiro se refere a frases desconexas, falta de linearidade e superposição de ideias, sempre escolhidas pelo contista a fim de gerar um efeito jamais conseguido se baseado na integridade e na sequência. Segundo o autor, essa escolha pelo fragmento é igualmente um reflexo da sociedade atual, em que a fragmentação, o caco é visível e fortemente presente. As referências ao efêmero e ao frágil, às vozes e aos momentos alimentam a afinidade entre o conto e a fragmentação. Agora, além da intencionalidade do recorte e da natureza lírica emanada da fixação em um momento, pode-se começar a confirmação de que o caráter fragmentário transcende a estrutura do conto e caracteriza também o mundo aí representado igualmente fragmentado (Simon 1999: 67). Percebe-se, então, que numa sociedade baseada no recorte individual, nos problemas de ordem particular e fragmentária, a ficção não poderia deixar de ser semelhante. A preferência por tais temas é explícita no conto contemporâneo, o sujeito aqui enfocado não é mais do centro – como observa Linda Hutcheon – e sim o das margens, seja de ordem sexual, étnica, econômica ou social. Encontrar, por exemplo, um protagonista num conto sem nem sequer um nome, que não consegue ultrapassar seus obstáculos ou resolver seus problemas, é muito comum nos contos com que o leitor se depara atualmente. A coletividade foi substituída pelas pequenas preocupações individuais. Esse personagem anônimo dentro da ficção contemporânea também foi observado por Fredric Jameson (1994) como marca presente e muito representativa. Dessa forma, o autor dá preferência a personagens carentes de identificação, apresentando, muitas vezes, histórias de seres (a maioria sem nome ou qualquer outro traço que o individualize), que representam tipos genéricos, modelos de ação e comportamento, em vez de personalidades cuja intimidade e psicologia são vasculhadas pelo escritor. O segundo aspecto atribuído ao conto contemporâneo é a velocidade. Este que já fora observado por Tchekov com uma supressão de detalhes e por Poe no que se Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

225

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

refere à duração do tempo de leitura e sua relação com a unidade do efeito. Hoje, porém, a velocidade é muito mais marcante na vida cotidiana, pois o homem contemporâneo dispõe de pouco tempo para estar informado, se entreter ou manterse em contato com a arte. Em se tratando do conto, é possível perceber que este segue essa tendência, atualizando o conceito de velocidade. As obras são cada vez mais sintéticas e objetivas, com uma linguagem mais voltada para o leitor moderno. Italo Calvino (1990) trata sobre esse assunto em seu livro Seis propostas para o próximo milênio, apontando a rapidez como uma delas. Para ele, a velocidade não tem valor em si, pois “o tempo narrativo pode ser também retardador ou cíclico, ou imóvel. Em todo caso, o conto opera sobre a duração, é um sortilégio que age sobre o passar do tempo, contraindo-o ou dilatando-o” (Calvino 1990:48-49). O que o autor ressalta é que a negligência quanto aos detalhes inúteis prende muito mais a atenção do leitor ao conto. A intensidade é a terceira característica atribuída ao conto contemporâneo. Novamente, concebida, hoje, de forma diferente do que fora anteriormente. O conceito não corresponde mais “à idéia de um aprofundamento crítico e reflexivo” (Simon 1999: 75), mas está ligado ao que Linda Hutcheon (1995: 19) chama de “retórica negativizada”, ou seja, “descontinuidade, desmembramento, deslocamento, descentralização, indeterminação e antitotalização”. Esses termos, sempre antecedidos por prefixos de negação, são usados pela ficção contemporânea para negar o compromisso, ou ainda “incorporar aquilo que pretende contestar” (Hutcheon 1995: 19). Um gênero muito próximo do conto, exclusivamente brasileiro e que ganha uma vitalidade literária muito grande nas últimas três décadas, é a crônica, com autores que trabalham incessantemente a fim de assegurar-lhe a permanência apesar de sua efemeridade. Diferentemente de outros gêneros, a crônica não vai em busca do grandioso e do sublime; o que ela faz é pegar o miúdo e, assim, mostrar o que nele há de grandioso, singular ou inesperado. Ela também não é um gênero feito para durar como os outros, “uma vez que é filha do jornal e da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa” (Candido 1992: 14). Assim, ela ensina a cada um a conviver com as palavras de forma íntima e pessoal, transformando a literatura em algo que se relaciona com a vida de cada um, já que faz com que a palavra não se dissolva tão rapidamente, ao contrário, permaneça um pouco mais, mesmo que seja por um curto espaço de tempo, em nossas mentes, ganhando relevo entre os nossos pensamentos, permitindo que o leitor a sinta na força dos seus valores próprios. Assim como o conto, a crônica também economiza nas palavras, abdica do tom rebuscado da linguagem, prefere a simplicidade e a naturalidade e busca, da mesma forma, uma aproximação com a oralidade. Seu traço particular é a aproximação de fatos exclusivos do dia-a-dia, como se fosse uma conversa fiada com o leitor. O que se observa, porém, é que esse ar despreocupado, de coisa sem muita importância permite à crônica aprofundar-se “no significado dos atos e sentimentos do homem” (Candido 1992: 18) e servir-se como crítica social. De uma maneira leve e bem humorada, a crônica se permite ser “um veículo privilegiado para mostrar de Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

226

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

modo persuasivo muita coisa que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão das coisas” (Candido 1992: 19). Os dois gêneros, o conto e a crônica, são muito representativos na literatura contemporânea, por sua brevidade e leveza, por sua simplicidade e sutileza de sensibilidade com o fato que vai narrar. Ambos, conto e crônica, estimulam o leitor a uma nova procura, já que seu conteúdo é tão atraente e singular, apesar de tratar muitas vezes de tramas tão comuns à vida diária desse mesmo leitor. Esse que, em muitos momentos, recorre à arte para entender sua vida e as agruras que a envolvem, que muitas vezes prefere rir dos seus problemas a se desesperar com eles, se aproxima da narrativa breve, simples e reflexiva para dar talvez um sentido a sua vida que nem sempre é leve e nem sempre é passível de ser entendida. Em suma, a literatura brasileira tem vivido, nas últimas décadas, sob o signo da multiplicidade, seja no campo político, social ou artístico. No que se refere ao espaço artístico, a contemporaneidade presencia fortes mudanças que envolvem atitudes variadas e multifacetadas, procedimentos de vanguarda, posicionamentos divergentes e aproximação das culturas erudita e popular. Em todas essas mudanças o que é certo é que há, sem dúvida, traços da pós-modernidade. Justifica-se, então, falarmos em Pós-modernismo na literatura e na cultura brasileira.

2. Algumas abordagens do pós-modernismo O pós-modernismo é um fenômeno cultural, estético, político e filosófico que abrange vários aspectos diferenciadores para que possa ser chamado de movimento. O presente estudo pretende abordar alguns deles, selecionando-os de forma a reunir elementos que possibilitem uma pesquisa acerca das vertentes sociais e estéticas desse movimento. Dessa forma pretende-se apresentar algumas abordagens referentes à produção pós-moderna, privilegiando alguns aspectos que possam trazer uma relevante contribuição para o trabalho aqui apresentado. 2.1. Engajamento e criticidade: a grande desilusão do sujeito descentralizado Um dos grandes questionamentos abordados pelo pós-moderno é a totalização, a verdade absoluta, a crença indissolúvel nas grandes autoridades sociais. Esses conceitos totalitários foram herdados do que comumente se chama de humanismo liberal. O poder centralizado do homem ocidental, branco, heterossexual, de classe média cai em decorrência da ascensão das margens. É o que Linda Hutcheon denomina “descentralização do sujeito” para caracterizar esse movimento de mudança de sentido cultural: o centro cede lugar às margens e a homogeneidade, às diferenças. A partir de uma perspectiva descentralizada (...), se existe um mundo, então existem todos os mundos possíveis: a pluralidade histórica substitui a essência atemporal eterna (Hutcheon 1995: 85).

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

227

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

Essa descentralização descrita por Hutcheon se estabelece em vários âmbitos distintos, dentro e fora da ficção. O universal e totalizante cedem lugar ao local e ao particular. Nas produções artísticas, por exemplo, vemos uma emergência de autores dos países ditos do Terceiro Mundo (América Latina e África principalmente). A literatura desses países já é analisada de forma particular, com certo enfoque em suas inovações e vanguardas. O centro artístico – Europa e América do Norte – divide espaço com as produções dos países em desenvolvimento. Dentro da ficção, os temas assim como os personagens são notadamente das margens, representados pelos vários pequenos grupos que as compõem: os negros, as mulheres, os homossexuais, os índios, os miseráveis, etc. “O múltiplo, o heterogêneo, o diferente: essa é a retórica pluralizante do pós-modernismo” (Hutcheon 1995: 95) e esse discurso vai se disseminar por todas as manifestações que se denominam pós-modernas. A ideia do pós-modernismo em focalizar as margens não quer dizer mudar as posições: trazer a margem para o centro. A intenção é questionar essa disposição interno/externo, centro/margens e despertar uma consciência tanto estética quanto política existente nessas relações. Linda Hutcheon completa dizendo que “as contradições formais e temáticas da arte pós-moderna atuam exatamente nesse sentido, de chamar a atenção tanto para o que está sendo contestado como para o que se oferece como resposta a isso, e fazê-lo de uma maneira autoconsciente que admite seu próprio caráter provisório” (Hutcheon 1995: 31). Para a autora canadense o lema do pós-modernismo deve ser: “Vivam as margens!”. Trazer como ponto central da arte pós-moderna o sujeito anônimo acarreta ao próprio fenômeno um outro aspecto muito constante nas produções; se o sujeito é descentralizado, o tema que envolve esse sujeito não pode ser de centro, ele deve convir com seu representante. Dessa forma, temos nas produções pós-modernas uma tendência que abarca as questões próprias dos grupos das margens – suas mazelas, suas aspirações e tudo que os envolve. Fredric Jameson se refere a esse sujeito como um representante de seu grupo, como um anônimo capaz de representar milhões de outros anônimos, numa multiplicação de identidades. O pós-moderno toma uma posição de desconstrução diante das totalidades tradicionais e apresenta em seu lugar o homem comum e seus problemas individuais. Diante disso, temos uma nova perspectiva crítica diante da realidade; se os problemas são individualizados, as soluções (se elas existem) são apresentadas da mesma forma. O sujeito pós-moderno já não acredita em grandes feitos, grandes revoluções em busca do bem comum. No aqui e agora, cada um deve resolver seus problemas a seu modo sem esperar que ninguém o faça a não ser ele próprio. Podemos dizer então que o indivíduo pós-moderno perdeu as ilusões que seus antepassados cultivavam “quanto à obtenção de respostas conclusivas sobre o sentido do universo e da vida, entrevistas no sonho de unidade e poder representados primordialmente na figura de Deus” ou outro referente de autoridade – história, natureza, conhecimento (Konzen 2000: 81). É importante ressaltar que o pós-modernismo questiona os sistemas centralizados, totalizantes, hierarquizados e fechados, mas não os destrói. Na Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

228

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

verdade, ele não aponta grandes soluções; apresenta o problema para que haja uma reflexão sobre e não para apontar uma outra alternativa. Isso porque, dentro da ótica pós-moderna, não existe uma ordem única possível, uma única verdade objetiva, há ordens e verdades múltiplas, heterogêneas e provisórias e essas são criadas por todos os indivíduos descentralizados dentro da história. Essa é a verdade pós-moderna: tudo é limitado, temporário e provisório; nada é eterno e completo. “O impulso pósmoderno não é buscar nenhuma visão total. Ele se limita a questionar. Caso encontre uma verdade dessas visões, ele questiona a maneira como, na verdade, a fabricou4” (Hutcheon 1995: 73). Linda Hutcheon diz ainda que o pós-modernismo não está em acordo nem com a ordem, nem com a desordem, ele questiona ambas, cada uma em seus aspectos falhos. 2.2. Fragmentação: a arte imita a vida A vida do homem contemporâneo está cada vez mais envolvida com um ritmo frenético, uma descontinuidade de tempo e espaço, uma necessidade cada vez maior de trabalhar mais para viver melhor e um desejo de viver melhor para poder trabalhar menos. Tudo se resume a pequenas partes separadas de um quebra-cabeça que parece não se juntar nunca, de forma a apresentar a vida – que é (ou deveria ser) algo contínuo e ininterrupto – em algo completamente fragmentado e separado pelos dias vividos e pelos ambientes e situações encontrados. Isso pode ser observado na área profissional, em que há uma segmentação através das especializações; nos programas televisivos, cada vez menores ou seqüencializados em pequenos capítulos; nos serviços prestados, com um telefone ou um atendente para cada departamento. Muitas vezes, o indivíduo tem de estar em vários lugares num único dia, receber milhares de informações de uma só vez, resolver muitas situações sem ter tempo de analisá-las adequadamente. Tudo porque não há tempo na nossa sociedade capitalista, em que o mais importante é conseguir ganhar mais dinheiro no menor espaço de tempo possível. Esse aparente caos cotidiano está presente em todas as classes sociais e em praticamente todos os pontos geográficos do nosso planeta. Estamos na era pósmoderna, passando por uma cultura pós-moderna. E nessa cultura pós-moderna, diz Douglas Kellner, o sujeito se desintegrou num fluxo de euforia intensa, fragmentada e desconexa, e que o eu pós-moderno descentrado já não sente ansiedade (...) e já não possui a profundidade, a substancialidade e a coerência que eram os ideais e às vezes a realização do eu moderno (Kellner 2001: 298).

Tais sujeitos, segundo alguns teóricos, se desestabilizaram e se tornaram massas, criando um mundo desconexo, fragmentado e descontínuo.

4

Grifos da autora.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

229

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

Essa fragmentação é refletida na arte pós-moderna. São inúmeros os exemplos de textos descontínuos, esculturas e pinturas fragmentadas, poemas que parecem não ter início nem fim. A vida em fragmentos é inspiração para a arte pós-moderna. Essa descontinuidade é feita pela hibridização de gêneros, pela mistura de texto literário com não literário, pela ruptura inesperada da obra, pela mistura de materiais e recursos. Tudo isso é feito de maneira consciente pelo artista num intuito de apresentar o homem contemporâneo como ele é em seu cotidiano fragmentado e desconexo. Em consonância com esta cultura fragmentada, um gênero vem demonstrando bastante importância na contemporaneidade: o conto. Dessa forma, faz-se necessário analisar o conto nesse entrelaçamento com a cultura pós-moderna pelo veio da fragmentação. Sendo o conto, como diz Alfredo Bosi, o gênero da literatura contemporânea, é quase natural que traga consigo aspectos imanentes dessa cultura. Dessa forma, podemos notar uma aproximação muito grande desta forma ficcional com os aspectos culturais da sociedade em que ele é inserido. Num momento em que o caco reflete os vários discursos e as várias realidades, o conto, através de sua supressão de tempo e espaço, caminha lado a lado, ou melhor, vai ao encontro de seu público para tentar satisfazer seus desejos enquanto leitores. Assim, o fragmento torna-se necessário também na literatura para que ela alcance seu objetivo primeiro: ser lida. A brevidade do conto tem esse poder, já que o leitor não precisa disponibilizar de muito tempo para a leitura. Tempo, aliás, que ele não tem. O fragmento, dessa forma, não é algo gratuito; “haveria também uma intencionalidade no processo de recorte com fins específicos (...), moldado de modo a gerar resultados que não seriam atingidos com uma exposição mais baseada na seqüência ou na integralidade” (Simon 1999: 66). Podemos dizer, portanto, que não estamos desamparados, nem estamos sós. Há um meio de vermos nossa sociedade refletida na arte de uma forma mais direta e profunda. A fragmentação diária é compreendida e harmonizada através da ficção que também abre mão da continuidade e da perenidade para ser um pequeno fragmento descentralizado, descontínuo, um caco. 2.3. Humor e a ironia: uma estreita relação entre o riso e a dor Um dos aspectos apresentados pelo pós-modernismo é o fato de não apresentar soluções para os problemas que apresenta. Como não consegue resolver os problemas que aponta, o pós-modernismo ri deles. Ri num sentido de denúncia e renúncia, para combater ou apenas para não chorar das tragédias que o indivíduo enfrenta. Como afirma Sandra Fontoura, uma das características marcantes no pósmodernismo, é “um teor irônico ou até cômico, para não dizer que tem um toque de loucura, uma vez que não apresenta soluções ou alternativas, apenas aceita passivamente o que o moderno não conseguiu resolver e ri da tragédia cotidiana” (Fontoura 1996: 33). Sendo assim, o recurso mais utilizado pelo humor contemporâneo é a ironia. Isso porque, segundo Georges Minois, “a ironia está próxima da consciência do Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

230

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

nada” (Minois 2003: 567). Ela está muito perto da tristeza, porque celebra a derrota da razão. Podemos dizer, portanto, que a ironia é pessimista porque trabalha com contradições que do ponto de vista da razão são absurdas e irremediáveis. Para o historiador, o uso da ironia no humor torna este superficial, sem grandes engajamentos. Isso porque o “ironista sempre pisa em falso, porque nunca adere completamente ao presente. Ele toca de leve os problemas, jamais se engaja a fundo, não corre o risco de desencanto, pois nunca toma como seu valor nenhum” (Minois 2003: 570). Uma forma bastante frequente (e por que não dizer eficaz?) de se estabelecer o humor irônico no pós-modernismo é a paródia, e esta por sua vez chega com um tom de crítica ao passado e também ao presente, através do referencial histórico do qual se apropria. Apesar de que o próprio Modernismo tenha se utilizado amplamente do recurso parodístico, podemos perceber nessa nova vertente uma significativa mudança. No Modernismo, os objetos da paródia eram textos consagrados de uma literatura que eles pretendiam contestar. Agora, temos uma paródia que revisita textos modernos a fim de desconstruí-los e desmistificá-los. É o caso, por exemplo, da obra consagrada de Franz Kafka, A Metamorfose, que já foi parodiada por vários escritores contemporâneos, como o conto “O despertar de Gregório Barata” de Sérgio Sant’anna, em histórias em quadrinhos e até através de uma música que versa sobre uma barata encontrada numa cozinha e traz um trocadilho com o nome do próprio autor: “sim, vem Kafka (cá, ficar), comigo...”. Linda Hutcheon diz que a predominância da paródia se dá pelo fato de que a voz mais forte vem das margens assinalando uma “posição paradoxal: tanto de dentro como de fora”. Essa oposição traz a paródia como “a forma intertextual que constitui, paradoxalmente, uma transgressão autorizada, pois sua irônica diferença se estabelece no próprio âmago da semelhança” (Hutcheon 1995: 95). Utilizando-se da paródia, o pós-modernismo pode realizar seu propósito dentro da arte: “incorporar aquilo que pretende contestar” (Hutcheon 1995: 19), ou seja, se colocar dentro de um contexto que ele quer subverter. A ironia usada na contemporaneidade tem também um tom de moralidade, fazendo com que os atos ditos “imorais” saiam de seus esconderijos e se tornem públicos. O riso causado pela ironia é sempre calculado, intelectualizado, refletido. Sem dúvida nenhuma, é esse o recurso que se generalizou no campo do humor. E este vem para destruir fronteiras; o superior tem seu valor absoluto colocado em dúvida através da ironia. Esse processo se dá em todos os setores da sociedade: religião, Estado, razão, economias. A ironia tem o poder de tornar tudo relativo; nada mais é absoluto. 2.3.1. O humor como movimento contemporâneo Trazendo o humor e a irreverência como herança do Modernismo, as várias manifestações artísticas contemporâneas usam e abusam desses recursos em suas obras. Ao contrário, esse fenômeno não se restringe apenas a uma ou outra arte, ou

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

231

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

em uma ou outra obra; o humor está impregnado em (quase) tudo, e tudo é passível de se transformar em objeto do riso. Atentemo-nos para os diversos programas televisivos. Boa parte deles se dedica ao humor: “A praça é nossa” (SBT), “Casseta e Planeta” (GLOBO), “A escolinha do professor Raimundo” (GLOBO), “Os normais” (GLOBO), “Sai de baixo” (GLOBO), “A grande família” (GLOBO), “Pânico” (REDE TV), entre outros. Observemos as piadas, as crônicas e os quadrinhos inseridos em jornais e revistas; muitos filmes no cinema ou na televisão; alguns programas de rádio; a tempestade de charges que surgiram em quase todos os meios de comunicação; a Internet, que está carregada de páginas dedicadas somente ao humor. Notamos, nesse contexto, uma tendência muito forte a satirizar tudo e todos. Não há o que escape das garras da comicidade (nem os seres supremos de antes); desde acontecimentos banais do cotidiano até grandes tragédias, como guerras, desastres, atentados terroristas. É só o momento de passar a comoção do acontecido que já aparecem as piadas, as charges, uma tirada sobre o assunto. Então, o que era trágico passa a ser cômico. Esse fenômeno já foi descrito por Bergson quando afirma que o riso depende da indiferença do espectador. Afirma ainda que numa “sociedade de puras inteligências provavelmente não mais se choraria, mas ainda se risse” (Bergson 2001: 3), já que o riso se liga à inteligência pura. É a inquietação do saber e a falta de comoção que gera o riso. Podemos perceber na sociedade contemporânea esses dois aspectos: nunca se descobriu tanto e nunca se importou tão pouco com o próximo. A correria diária e a luta com uma concorrência acirrada por um lugar ao sol levam o homem a se isolar em seu micro-mundo, deixando a coletividade (macro-mundo) e seus problemas, seus dissabores ou suas alegrias para segundo plano. Além disso, há, no nosso tempo, uma genérica descrença em uma solução grandiosa para as diversas agruras que invadem a sociedade. A dúvida é o mal da contemporaneidade. Duvida-se do caráter de uns, do amor de outros. Duvida-se dos políticos, da igreja, dos pais, dos filhos, do professor e do aluno. Para Slavutzky (apud Kupermann 2003:15), a contemporaneidade seria caracterizada pelo espectro da derrota do sujeito: “em lugar das paixões, a calmaria, em lugar do desejo, a ausência do desejo, em lugar do sujeito, o nada, e em lugar da história, o fim da história”. Diante de todos esses conflitos que se cercam do homem moderno, resta-lhe rir de tudo e de todos, e mais: fazer também os outros rirem. Como se a ordem fosse: “Já que não podemos vencê-los, rimos deles”. A procura pela comicidade em suas várias manifestações aumenta a cada dia, talvez como uma forma de defesa, como já se referiu Freud, no que se refere a não ter soluções para os diversos problemas. Rir para não chorar. Do mesmo modo também afirma Gilles Lipovetsky, em A era do vazio (1989), que vivemos em uma “sociedade humorística”, em que há um desenvolvimento generalizado do código e do estilo humorístico. Esse fenômeno é claramente percebido em campos bastante heterogêneos: na publicidade, nos slogans de manifestações políticas, na moda, na arte, nos meios de comunicação de massa e, sobretudo, nas relações interpessoais; o clima de irreverência e espontaneidade passa a ter um valor privilegiado, como se nada devesse ser levado a sério.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

232

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

Para Georges Minois, esse fenômeno se dá porque o homem moderno está diante de uma nova obsessão: “fazer a festa”. Tudo é motivo para se dar uma festa (aniversário, acontecimentos culturais, artísticos ou esportivos, festas sem motivo). “O riso, que, bem entendido, deve acompanhar todas essas festas, tornou-se o antiestresse infalível” (Minois 2003: 593). Essa obsessão festiva deve-se ao fato de que a sociedade atual não consegue resolver os problemas que estão a sua frente. Então procura algo que a faça esquecer deles. Mas essa festa não é como as da Antiguidade Clássica – com o intuito de restabelecer a ordem social –, a festa da atualidade é “perpétua, existencial, ontológica” (Minois 2003:600). Na sociedade moderna, o que seria um fenômeno excepcional – a festa –, torna-se um modo de existência permanente, uma maneira de ser. Uma questão apontada por Minois em relação a estas festas permanentes é a contradição no que se refere a sua credibilidade. Para que essas festas tenham sucesso é necessário que haja unanimidade e isso seria dizer que ela é obrigatória. Daniel Kupermann, em Ousar rir (2003:15-16) diz que, à medida que uma fase de depressão, de um “mau humor crônico” assola a sociedade contemporânea (acompanhada por decepções nos diversos campos possíveis ao longo de sua história e sem uma aparente esperança também diante do futuro), é bastante natural que se tenha tantas manifestações humorísticas. “Trata-se agora de evitar qualquer litígio, em nome do bem-estar definido por uma cultura na qual a adaptação e o sucesso pessoal são os alvos almejados”. Assim, o humor passa a dominar as várias instâncias da sociedade com a mesma tônica: “ausência de conflitos; impossibilidade de revolta; descrença”; é o humor descontraído que se apresenta, quando ninguém acredita na importância das coisas. Ele se apresenta, de acordo com as idéias de Kupermann (2003: 16-17), como um humor acrítico e gratuito, ‘humor de massa’ próprio da sociedade hedonista na qual é o instrumento privilegiado para a promoção de uma proximidade cordial e de uma atmosfera de comunhão liberta de tensões. O humor pósmoderno é, assim, uma espécie de lubrificante social.

Ainda segundo o psicanalista, essa descontração generalizada remete-se e é proporcional “à falência de projetos comuns e ao desinteresse das possibilidades de transformação social” (Kupermann 2003: 17), ou seja, ele é a prova da descrença pósmoderna perante as mudanças coletivas. Nesse sentido, diz ele, o humor contemporâneo é, acima de tudo, cínico, pois reflete alguém que ri de si mesmo e de suas próprias desgraças; é um riso amarelo, constrangido. É o humor da “descontração e do cinismo desencantado”, em que vigora “a desvitalização e a banalização esterilizante”. Por isso, o homem pós-moderno tem dificuldades em “rebentar de riso”, em sair de si, em sentir-se entusiasmado perante aos acontecimentos. “O humor de massa seria, assim, a pálida atualização da risada entusiasmante que, da Antigüidade ao Renascimento, acompanhou festividades populares, e na qual o Romantismo buscou inspiração para a libertação do espírito” (Kupermann 2003: 21). Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

233

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

O historiador francês Georges Minois comunga em certos aspectos das mesmas ideias de Kupermann quando se trata do humor contemporâneo. Minois diz que o homem moderno encontra no riso uma válvula de escape para zombar de seus males, que foram muitos no século XX: guerras, crises econômicas, genocídios, fome, miséria, terrorismos, desemprego, bombas atômicas, degradação do meio ambiente, etc. Desse modo, como não há como escapar ou mesmo justificar tais agruras, é melhor rir, de um riso nervoso, incontrolável talvez. “Essa doce droga permitiu à humanidade sobreviver a suas vergonhas” (Minois 2003: 553). A sociedade de final do século XX e início do século XXI tornou-se, então, uma “sociedade humorística” que, por não encontrar mais soluções para os problemas, ri deles. O riso é algo obrigatório nesse meio. Não há espaço para os não ridentes; seja onde for, “manter o cômico é inevitável”. Esse riso, porém, não é de alegria. A obrigatoriedade do riso retira-lhe o tom espontâneo e lhe impõe uma carga negativa. “O mundo deve rir para camuflar a perda de sentido. Ele não sabe para onde caminha, mas vai rindo. Ri para agarrar-se a alguma continência” (Minois 2003: 554). Assim, rir de uma situação dá ao homem a impressão de tê-la dominado. Com essa mistura de dor e riso, a sociedade contemporânea cria uma espécie de “fraternidade humorística”, cujo principal objetivo é tornar os sofrimentos mais suportáveis. Segundo Minois, são “as desgraças do século que estimulam o desenvolvimento do humor, como um antídoto ou um anticorpo diante das agressões da doença” (Minois 2003: 558). Aqui, o humor ganha uma dimensão coletiva que parte da reflexão do problema através do humor e caminha para o ato solidário. É um humor sociológico que requer a participação ativa do ouvinte, sua cumplicidade. Ele gera uma simpatia, vinda da solidariedade diante das desgraças e dificuldades do grupo social, profissional, humano. O riso nascido desse humor não é explosivo, nem incontrolável. É um riso econômico que propicia um alívio intelectual triste e pode ser traduzido como um simples “sorriso fraternal”, que funciona como uma arma protetora contra a angústia. Sob uma outra perspectiva, Luiz Carlos Travaglia (1990: 55) aponta o humor contemporâneo como crítico e engajado, usado como uma espécie de arma de denúncia, de instrumento de manutenção do equilíbrio social e psicológico; uma forma de revelar e de flagrar outras possibilidades de visão do mundo e das realidades naturais ou culturais que nos cercam e, assim, de desmontar falsos equilíbrios. Segundo o lingüista, partindo do ponto de vista social e político, o humor desempenha um papel fundamental na sociedade no que concerne ao ataque à censura, ao que é pré-estabelecido, ao controle social e ao estabelecimento de outras possibilidades nesses mesmos âmbitos. Com o intuito de desafiar a autoridade do discurso oficial, através de críticas e de denúncias depreciativas, o humor torna possível o que pela via do sério seria considerado “crime” e desacato. Mesmo o humor veiculado pelos meios de comunicação de massa não é visto por Travaglia como alienado e “pálido” como afirma Kupermann. Ele é, ao contrário, uma forma criativa, uma arma, um meio utilizado em todas as sociedades para Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

234

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

“descobrir (através da análise crítica do homem e da vida) e revelar verdades escondidas e falsificadas, permitindo uma visão especial da vida, uma nova visão do mundo pela transposição de conceitos, uma ampliação dos contatos com nossas realidades.” O mesmo autor ainda coloca o humor como responsável por ser “o senso das proporções e da verdade escondida” e por revelar “a alegria da descoberta” de forma “não -convencional, sinuosa, intuitiva” gerando um compromisso entre humor e riso, e entre esses e a sociedade (Travaglia 1990: 67). Em meio a essa divergência de ideias a respeito do humor contemporâneo, resta-nos refletir a respeito do conceito de engajamento e de crítica social utilizada pelo movimento Pós-moderno e em que temática o humor dos nossos dias estaria inserido, sem, no entanto, enquadrá-lo em sistemas e características préestabelecidos. Crítico ou não, o humor está presente nos diversos gêneros e formas de lazer (cinema, teatro, televisão, etc.) e, nesse contexto, a literatura também dá sua contribuição; são diversos os autores que incluem em suas obras uma pequena parcela de comicidade ou ainda trabalham exclusivamente com ela. Um gênero estreitamente relacionado com o aspecto cômico e que também surgiu com maior ênfase na contemporaneidade é a crônica. Vários são os cronistas e, quase sem exceção, todos usam o humor para se referirem ao aspecto social que objetivam. Temos vários nomes como: Rubem Braga, Sergio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Luiz Fernando Veríssimo (que também utiliza o humor em seus contos), Moacyr Scliar, entre outros. Em vários gêneros literários, percebemos também algumas passagens ou até obras completas dedicadas ao humorismo. Contistas como Rubem Fonseca, que se caracteriza pelo apelo à violência nua e crua, recorre à ironia como recurso cômico; romancistas como Ignácio de Loyola Brandão usam o humor para fazer suas críticas ao sistema social e político vigente; poetas como José Paulo Paes também buscam no humor uma forma de expressar seus pensamentos; enfim, são muitos os autores que, através do recurso humorístico, procuram permear suas obras com originalidade e criatividade, convergindo para um movimento que faz do humor uma de suas características básicas. Rir é um verbo que mudou seu sentido com o passar dos tempos. Antes ria-se com os deuses, para se aproximar deles. Ria-se em festas periódicas, em que se procurava estabelecer uma ordem social entre as pessoas. Hoje, a festa é algo não mais esporádico ou periódico; é uma constante, já que se brinca com tudo e com todos num constante processo de vulgarização do sério, de desmistificação do onipotente, de relativização do absoluto. Hoje rir não se relaciona apenas ao movimento que se realiza com os músculos do rosto diante de uma situação engraçada. Hoje rir está intimamente ligado ao movimento dos músculos do rosto diante de uma situação sem solução ou sem grandes perspectivas. O riso contemporâneo é de certa forma um riso triste que não libera nenhuma substância que denota a alegria do ridente. É o riso amargo e irônico de um povo que já não tem motivos para rir, mas continua rindo para ter motivos para continuar vivendo. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

235

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

CONTEMPORARY CULTURE AND LITERATURE: SOME APPROACHES OF THE POST-MODERN Abstract: In face of changes and movements that took place in the end of the Twentieth century and the beginning of the Twenty-first century, we highlight postmodernism as a social movement, including its various instances. In literature, many approaches are brought. Among them, we emphasize the postmodern humor, wich brings some peculiarities of contemporary man. So this paper aims at presenting briefly the postmodern movement, some of its approaches, highlighting humor and its singularities. Keywords: Humor; Postmodernism; Literature.

REFERÊNCIAS

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Coleção Tópicos) CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CANDIDO, Antonio et. al. (org.). A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. CHIAMPI, Irlemar. O romance latino-americano do pós-boom se apropria dos gêneros da cultura de massas. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada. v.3. nº 3, 1996. p. 75-85. COUTINHO, Eduardo F. “O pós-modernismo e a ficção latino-americana contemporânea: riscos e limites”. In: Anais do III Congresso ABRALIC – Limites. São Paulo: EDUSP; Niterói: ABRALIC, 1995, p. 423-428. FONTOURA, Sandra R. H. da. Ironias da cultura pós-moderna. In: Revista Signo. Santa Cruz do Sul: UNISC, v.21, n.31, p.33-37, set.1996. GARCIA-CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Heloísa P. Cintrão e Ana R. Lessa. São Paulo: Edusp, 1997. HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

236

Angela Maria Pelizer de Arruda (UEL) CULTURA E LITERATURA CONTEMPORÂNEAS: ALGUMAS ABORDAGENS DO PÓS-MODERNO

JAMESON, Fredric. Espaço e imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios. Trad. Ana L. ª Gazoela. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994. KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Trad. Ivone C. Benedetti. Bauru, SP: EDUSC, 2001. KONZEN, Paulo Cezar. Crônica e crítica: comicidade e contestação em Luis Fernando Veríssimo. Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual de Londrina – Londrina, 2000. KUPERMANN, Daniel. Ousar rir: humor, criação e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio. Lisboa: Antropos, 1989. MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003 PELLEGRINI, Tânia. Aspectos da produção cultural brasileira contemporânea. In: Revista Crítica Marxista. V.1, nº 2. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 69-91. PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de época na literatura (através de textos comentados). 15.ed.São Paulo: Ática, 2002. SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa. 6ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Coleção Virando Séculos, v. 7. SIMON, Luiz C. S. Além do visível: contos brasileiros e imagens na era do pósmoderno. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999. Tese de Doutorado em Literatura Comparada. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Uma introdução ao estudo do humor pela lingüística. In: D.E.L.T.A, v.6, nº 1, 1990, p. 55-82.

ARTIGO RECEBIDO EM 05/03/2012 E APROVADO EM 23/04/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

237

PARÓDIA E QUESTIONAMENTO SOCIAL EM NÉLIDA PIÑON E LYA LUFT Carlos Magno Gomes (UFS)1

Resumo: Este artigo analisa a paródia como um dos principais recursos estéticos do romance brasileiro do final do século XX. Além de ser satírica e questionadora, a paródia ressalta a intertextualidade como recurso artístico legítimo do romance pós-moderno. Como corpus, dimensionaremos o recurso da paródia na crítica à família patriarcal presente nos romances de Nélida Piñon e Lya Luft. Metodologicamente, exploramos conceitos de paródia e de intertextualidade propostos por Linda Hutcheon, Umberto Eco e Eduardo Coutinho. Palavras-chave: Intertextualidade; Paródia; Romance pós-moderno.

Introdução As escritoras brasileiras contemporâneas exploram a paródia como uma forma contestadora da sociedade patriarcal ao fazer diferentes críticas à opressão e aos preconceitos sofridos pela mulher e pelos excluídos. Nesse sentido, podemos afirmar que o romance do final do século XX é estritamente marcado por esse recurso estético que tem a peculiaridade de ser dual, pois “imitando a arte mais que a vida, a paródia reconhece conscientemente e autocriticamente a sua própria natureza” (Hutcheon 1989: 40). Com essa peculiaridade, o romance brasileiro do final do século XX traz um olhar duplo ao retomar um texto do passado, enquanto busca saídas para os problemas do presente. Por exemplo, ao explorar diferentes tensões entre a mulher e a sociedade, o romance paródico alarga o espaço da família ao incluir personagens marginalizadas como parte dos problemas contemporâneos. A partir desse duplo movimento, este ensaio valoriza a paródia como diálogo entre obras clássicas e diferentes contextos sociais. Tal intertextualidade é própria da rede de conexões que o texto literário carrega (Nitrini 2010: 162). Para melhor Professor do Programação de Pós-Graduação em Letras (UFS) e do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural (UNEB). Doutor em Literatura pela UnB (2004), com pós-doutorado em Letras Vernáculas pela UFRJ (2007). Contato: [email protected]. 1

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Carlos Magno Gomes (UFS) PARÓDIA E QUESTIONAMENTO SOCIAL EM NÉLIDA PIÑON E LYA LUFT

construir nosso argumento, dividimos este trabalho em dois momentos. No primeiro, apresentamos algumas informações sobre a especificidade do romance de autoria feminina, visto que ele, em geral, prioriza a luta da mulher pela liberdade na família patriarcal; e, no segundo, identificamos as marcas paródicas em A doce canção de Caetana (1987), de Nélida Piñon, e em O ponto cego (1999), de Lya Luft. Com isso, destacamos o quanto a paródia é explorada como forma literária inovadora do ponto de vista dos estudos de gênero. Seguindo a trilha da intertextualidade, argumentamos que, no romance paródico, há uma dualidade que possibilita classificá-lo como “literatura anfíbia”: aquela que não abre mão do engajamento com as causas sociais ao mesmo tempo em que incorpora novos elementos estéticos (Santiago 2004: 68). Nesse sentido, a intertextualidade, que sustenta a forma paródica, será marcada pela transformação e assimilação do texto anterior (Nitrini 2010: 162). Portanto, exploramos a paródia como um recurso híbrido que tanto é um movimento estético quanto ideológico, pois valoriza a construção artística sem deixar de tocar nos problemas sociais de sua época (Santiago 2004: 66). Paródia e intertextualidade, portanto, podem ser integradas como recursos estéticos e críticos. A intertextualidade é um dos conceitos teóricos mais abrangentes dos estudos literários atuais. Umberto Eco (2003) defende que a intertextualidade pode funcionar como um roteiro de leitura quando o leitor é capaz de saborear as citações explícitas e implícitas propostas pelo autor. Para Linda Huctheon (1991), a intertextualidade é uma particularidade do texto pós-moderno, pois explicita o jogo de montagem que sustenta as metanarrativas. Ao usar o tom paródico, as escritoras contemporâneas exploram a intertextualidade com uma forma de contestação ideológica. Historicamente, as escritoras brasileiras usam a paródia como uma característica de sua dicção contestadora ao trazer novas experimentações formais ao romance, dialogando com outras artes. Clarice Lispector explode o espaço romanesco, em Água viva (1973) e em A hora da estrela (1977), ao fazer críticas à estrutura narrativa tradicional. Nessa mesma direção, Nélida Piñon incorpora o universo operístico do compositor italiano Verdi pelo prisma paródico, em A força do destino (1977) e em A doce canção de Caetana (1987), ao construir uma intertextualidade paródica a de suas famosas óperas. Na década de 1980, Lygia Fagundes Telles utiliza o jogo paródico de forma mordaz, em As horas nuas (1989), ao narrar a trajetória de uma atriz decadente que tenta escrever suas memórias, mas se perde no meio de uma crise depressiva. Dialogando com suas companheiras, Helena Parente Cunha surpreende a crítica ao lançar As doze cores do vermelho (1988) com uma explícita crítica à opressão patriarcal. Esse romance é paródico, tanto em sua forma, escrito em colunas, como na temática, ao brincar com a formação e transgressão da artista a partir das relações entre pintura e literatura. Na última década do século XX, esse tipo de romance ganha força nas narrativas de Lya Luft, que questiona o espaço da família por meio de personagens monstruosas e frustradas com o matrimônio em A sentinela (1994) e em O ponto cego Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

239

Carlos Magno Gomes (UFS) PARÓDIA E QUESTIONAMENTO SOCIAL EM NÉLIDA PIÑON E LYA LUFT

(1999). Essa autora é considerada uma das maiores críticas à família patriarcal. Como visto, as escritoras brasileiras têm em comum a exploração da paródia como uma forma de contestação da sociedade patriarcal em tempos de cultura de massa. Com tal estratégia, essas autoras enfrentam o fantasma da opressão contra a mulher por meio da criticidade de seus romances. Além de tais especificidades, essas obras também podem ser consideradas pós-modernas por privilegiarem a metanarratividade, a polifonia de vozes e a consciência hiperbólica da narrativa (Coutinho 2005: 171-2). Assim, as posturas inovadoras e contestadoras das escritoras brasileiras fazem parte de uma prática híbrida de construção literária, na qual o estético é explorado como parte dos questionamentos sociais. Nas últimas décadas do século passado, a paródia passa a ser, portanto, uma forma de questionar o sistema opressor, visto que esse recurso artístico é também uma estratégia ideológica ao falar menos de arte e mais da opressão social sofrida por mulheres em diferentes espaços sociais. Nesse sentido, a paródia pode ser considerada como parte do jogo textual pós-moderno que encara seu caráter repetitivo como uma postura revisionista da tradição literária e cultural. Por isso, podemos dizer que, ao priorizar o diálogo com outros textos e artes, valorizando a situação política da mulher e dos excluídos, as escritoras brasileiras destacam o papel político da arte, pois revelam a visão da literatura como forma de conhecimento e como um exercício de busca por justiça na sociedade democrática (Santiago 2004: 72). Assim, nas últimas décadas, a paródia, quando explorada de forma híbrida, se configura como uma das mais importantes estratégias contra opressões e injustiças impostas às mulheres na família patriarcal. Depois desse pequeno panorama, este artigo analisará o viés paródico de A doce canção de Caetana, de Nélida Piñon, e de O ponto cego, de Lya Luft, obras representativas do final do século XX.

Entre a atriz e a cortesã Em A doce canção de Caetana, a intertextualidade com a ópera La Traviata, de Verdi, proporciona um jogo paródico que brinca com os limites entre as identidades da artista e da prostituta. Esse romance dialoga, de forma irreverente e satírica, com o espetáculo do compositor italiano e com o espaço artístico do teatro mambembe brasileiro. Com essas duas referências explícitas, esse romance apresenta uma intertextualidade crítica, pois explora o texto original de forma irônica e jocosa. Diferentemente do enredo da ópera, no qual a protagonista é punida com a morte, as personagens femininas de Piñon buscam a liberdade e tentam abandonar as normas da sociedade patriarcal. A protagonista do romance, Caetana, uma atriz mambembe fracassada, volta a Trindade para negociar com seu ex-amante, Polidoro, o financiamento da montagem de um espetáculo. Apesar de a cidade não ter atores profissionais, nem um teatro para tal encenação, ela pede ajuda às amigas prostitutas para que o espetáculo seja montado. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

240

Carlos Magno Gomes (UFS) PARÓDIA E QUESTIONAMENTO SOCIAL EM NÉLIDA PIÑON E LYA LUFT

Nesse contexto, Caetana busca se vingar de seu destino ao tentar uma última chance para conseguir uma posição artística de sucesso. Ela quer ser lembrada como uma atriz talentosa e não por seu passado de ex-amante de Polidoro. Além da atriz mambembe, esse romance apresenta um grupo de prostitutas pobres: Gioconda, Diana, Sebastiana e Palmira, que abandonam o prostíbulo para se dedicarem à construção de uma nova identidade social, a de atrizes. Historicamente, os acontecimentos do romance retratam o espaço de uma cidade pequena, Trindade, em 1970, em tempos de copa do mundo e de ditadura militar. A partir desse olhar de recepção crítica, reconhe-se o intricado processo de intertextualidades que sustenta o romance de Piñon. Assim, por meio do duplo movimento que o texto faz para si em busca de um novo caminho enquanto vai assimilando e transformando o texto anterior, Piñon se mostra consciente de seu processo antropofágico. A forma como brinca com o espaço artístico das óperas de Verdi sugere sua capacidade de assimilação das referências por trás de sua criação. Assim, por ser paródica, tal obra explora a “transgressão autorizada, pois sua irônica diferença se estabelece no próprio âmago da semelhança” (Hutcheon 1991: 95). Essa dialética de redescobrir personagens da arte para atualizá-los no texto literário tem sido uma experiência literária rica na produção de Nélida Piñon que, ao mostrar as inquietações do passado com o olhar do presente, assinala seu compromisso com a função social da literatura. Sua lição de intertextualidade passa pela exploração da repetição de um texto como uma prática não-inocente, pois toda repetição está carregada de uma intencionalidade, que tanto pode dar continuidade, quanto ser subversiva (Carvalhal 2003: 54). Com a subversão do enredo da ópera, a paródia se constitui em um importante roteiro de leitura por projetar uma visão irônica e debochada da opressão da mulher em A doce canção de Caetana, quando destaca uma artista mambembe pobre, tentando ajudar as amigas prostitutas a terem uma identidade de atriz. Assim, a voz da artista é usada como um espaço de intersecção, já que, por meio da identidade artística, a prostituta tenta um novo lugar na sociedade patriarcal. O tom paródico dessa empreitada começa com a luta das prostitutas pela identidade de atrizes. Elas aceitam o convite que recebem de Caetana e fecham “as portas da pensão para concentrarem em vigília artística no teatro” (Piñon 1997: 295). Como crítica ao patriarcado, a suspensão das atividades das prostitutas provoca uma inflação de seus serviços, já que os clientes queriam “pagar-lhe em dobro os serviços” (Piñon 1997: 295). Mesmo com uma possível vantagem econômica, elas não aceitam, pois o desejo de serem novas mulheres é maior do que suas necessidades econômicas. Com o fechamento da pensão, Gioconda, Diana, Palmira e Sebastiana mudam-se para o teatro Íris, local adaptado para o espetáculo. Nesse jogo espacial, o romance traz um debate interessante sobre as identidades pós-modernas, quando desterritorializa a identidade sexual dessas mulheres, remontando à questão da descentralização do sujeito e da busca da individualidade que questionam o conceito de racionalidade (Hutcheon 1991: 85). Por exemplo, Caetana busca um espaço digno para sua aposentadoria e quer se distanciar do “fracasso” para ter uma “velhice” tranquila (Piñon 1997: 328). Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

241

Carlos Magno Gomes (UFS) PARÓDIA E QUESTIONAMENTO SOCIAL EM NÉLIDA PIÑON E LYA LUFT

Por meio dessa representação de mulheres que fogem da submissão e do determinismo social, a paródia é um meio artístico de contextualização ideológica própria de representações heterogêneas e plurais tanto da identificação sexual como de sua significação cultural (Richard 2002: 155). A tensão que atravessa a construção identitária das prostitutas é muito sofisticada e tem a formação da identidade como um dos sistemas de significação. No afã de abandonarem uma vida de miséria, elas se preparam para se tornarem atrizes da ópera de Verdi. Assim, o caráter crítico dessa obra pode ser identificado quando a ópera que será encenada é nomeada. Nesse caso, a referência à ópera não para de ser retomada e fica explícita quando as personagens anunciam que o público irá assistir “à ópera chamada La Traviata” (Piñon 1997: 373). Além das referências à ópera e à tradição mambembe, essa obra retoma alguns pontos da cultura de massa quando destaca a alienação do povo brasileiro diante da vitória da seleção, no México, em 1970. A vitoriosa conquista do campeonato de futebol no México ganha destaque no desdobramento do enredo, mostrando o quanto as fronteiras das mídias estão presentes no espaço romanesco: “Na véspera da vitória do Brasil. Dessa vez traremos o caneco para casa, disse ele com ar zombador” (Piñon 1997: 289). Voltando à ideia de uma identidade complementar a outra, observa-se esse efeito tanto na atriz quanto nas prostitutas. A fronteira de uma identidade está sempre se prolongando até a outra, mas nunca completamente. Caetana em busca do sucesso, e suas amigas, de uma nova identidade, terão seus cotidianos igualmente transformados, como se vê em: “promovidas à condição de atrizes, quase não permaneciam na pensão. Consumiam os dias na rua e no cinema Íris” (Piñon 1997: 258). A atriz, em busca do sucesso, e as prostitutas, em busca de reconhecimento social, fazem parte de uma representação plural do feminino, pois há “uma rede de significados em processo e construção, que cruzam o gênero com outras marcas de identificação social e de acentuação cultural” (Richard 2002:151). Além da posição artística de Caetana e da sexual das prostitutas, o contexto onde se passa a narrativa denuncia um país rural, como uma sátira à sociedade patriarcal: “em Trindade, o povo só se importa com vaca e bosta” (Piñon 1997: 107). Tal relação do grupo de prostitutas com o universo da arte proporciona diversas reflexões estéticas e sociais, uma delas é o quanto a arte é usada como uma crítica ao conservadorismo e ao moralismo pregado pelas sociedades patriarcais. Entre o romance de Nélida e a ópera de Verdi, podemos dizer que há um “processo dialético que se estabelece entre os textos, com um infindável jogo de espelhos faz com que uns iluminem e resgatem outros” (Carvalhal 2003: 66). Além da questão da segregação sexual da prostituta, a condição de miséria dessas mulheres não é esquecida pela autora. Tanto as prostitutas como a atriz estão cercadas pela pobreza. Caetana está diretamente relacionada à cultura popular e ao contexto de miséria do povo. Ela narra as precárias condições do povo brasileiro como uma extensão do seu palco: “elegi esses povoados feios como meu único palco” (Piñon 1997: 183). Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

242

Carlos Magno Gomes (UFS) PARÓDIA E QUESTIONAMENTO SOCIAL EM NÉLIDA PIÑON E LYA LUFT

A consciência de sua condição de classe é uma determinante para Caetana assumir uma identidade deslizante que não se prende mais a nada, nem ao passado, nem ao presente. Nessa perspectiva paródica da ópera, a obra tem caráter pedagógico, por questionar diversos textos culturais. Nesse sentido, por trazer referências à história do rádio e do teatro brasileiros, essa narrativa problematiza “a presença mais intensa da mídia extraliterária” (Coutinho 2005: 170-1). Além disso, A doce canção de Caetana explora espaços decadentes, como o teatro Íris, a pensão onde as prostitutas trabalham, a estação de trem abandonada, o hotel envelhecido e o passado de Caetana: “Nunca estranhei a miséria nem a fantasia de meu país, sempre vestida de andrajos, esquelética mais inesgotável” (Piñon 1997: 332). Essas diferentes referências a espaços sociais mostram o quanto o romance de Piñon se projeta como texto híbrido. Isso está presente na contextualização espacial das prostitutas que se isolaram em um espaço utópico de “vigília artística no teatro” (Piñon 1997: 295). Com o deslocamento da prostituta para o espaço artístico, esse romance fortalece sua proposta híbrida de explorar o recurso estético como uma forma de contestação social, pois desestabiliza a identidade da mulher como algo homogêneo. Por isso, se reconhece no romance um caráter revisionista e saudável, “já que produz fissuras da representação, que rompem a fixidez categorial da identidade e da diferença” (Richard 2002: 157). Nesse sentido, o romance de Piñon entrecruza narrativas e histórias, pois aproxima o universo da atriz mambembe do espaço de Callas, enquanto proporciona às prostitutas a oportunidade de terem uma nova identidade. Vale antecipar que, apesar de todo esforço, o espetáculo não chega ao final, pois a vitrola que tocava a voz de Callas quebra. Com a descoberta da fraude, o público começa a protestar e tenta agredir as artistas. Nesse momento, Caetana desaparece de cena enquanto suas amigas ficam sem destino. Nesse jogo textual, essas personagens encenam suas próprias histórias. Quanto às questões de gênero, cabe destacar o quanto a técnica narrativa de Piñon é dinâmica ao incorporar questões femininas como marcas de resistência ao patriarcado. Com tal peculiaridade, A doce canção de Caetana alcança o status de uma arte sem paradoxos e sem militância de haver apenas uma representação ideal, pois a obra de arte impede que se dogmatize o feminino no eu do socialismo linear do gênero, expondo sempre os resíduos e as rupturas de forma suplementar (Richard 2002: 167). Portanto, enfatiza-se o quanto a ópera é recepcionada de um lugar pósmoderno e atual, já que a originalidade de sua recriação enfatiza que “se dívida há, é do texto anterior com aquele que provoca sua redescoberta” (Carvalhal 2003: 65). Como visto até aqui, esse romance valoriza a perspectiva social da arte, por ser uma narrativa de revisão do lugar da mulher excluída. O tom paródico da luta da atriz e das prostitutas reforça sua peculiaridade de ser uma obra engajada com as causas femininas. Assim, o espaço narrado torna-se um referencial de renovação e de revisão das imagens e dos símbolos que são associados à atriz mambembe e às prostitutas. Dessa Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

243

Carlos Magno Gomes (UFS) PARÓDIA E QUESTIONAMENTO SOCIAL EM NÉLIDA PIÑON E LYA LUFT

forma, podemos dizer que, para além do jogo estético, há uma postura renovadora das representações da artista excluída. Com isso, o texto paródico não corresponde a uma mera repetição, nem tampouco a uma mimese da prostituição, ele representa algo mais e, ao ser produzido dessa forma, pode ser lido politicamente como um ato de resistência (Coutinho 2005: 165). Na sequência, analisamos como Lya Luft também se apropria do tom paródico em O ponto cego, ao mesclar o espaço da família patriarcal com a atmosfera de contos de terror.

A deformação da família Os romances de Lya Luft trazem características próprias de um texto paródico ao questionarem a tradição familiar. O espaço da casa está parodiado pelo uso de monstros e seres deformados, frutos da opressão do Pai. Vale lembrar que “a paródia atua como um expediente de elevação da consciência, impedindo a aceitação dos pontos de vista estreitos, doutrinários, dogmáticos de qualquer grupo ideológico” (Hutcheon 1989: 131). Em Luft, a paródia é usada de forma irreverente, pois preserva certa continuidade do gênero narrativo na descontinuidade do ponto de vista adotado no texto. O romance O ponto cego, de Lya Luft, apresenta uma versão paródica da família patriarcal ao descrever um narrador deformado pela opressão e personagens estereotipadas. Com tais opções estéticas, esse texto mostra uma “desnaturalização” da família patriarcal. O narrador é um menino que sofre de inanição. Narrar e se deformar se confundem na gênese desse romance. Assim, nessa versão paródica, os sentidos da construção ficcional se consolidam a partir do questionamento dos papéis masculinos e femininos. Em vez de um espaço propício para o crescimento do filho, a família o aprisiona na sua própria subjetividade. Nessa obra, o olhar questionador parte do menino deformado, que opta por ficar à margem da família: “ambíguo é muito mais sedutor do que o resolvido e o explicado. Eu para sempre preferiria o infiltrado, o insinuado, e o destilado” (Luft 1999: 92). A posição de fora do centro é mantida pelo narrador que se mostra um crítico de sua família. Com essa estratégia, o tom paródico está na forma como a tradição familiar é ironizada: “Para mim meu Pai era um deus, pois comandava os destinos, e minha Mãe o servia” (Luft 1999: 67). Como jogo narrativo, essa obra também brinca com o próprio conceito de texto por meio da metanarratividade que “reflete sobre o que se está contando e talvez convide o leitor a compartilhar de suas reflexões” (Eco 2003: 199). A presença do narrador menino, que se deforma enquanto faz referências à construção do texto, reforça a lógica da obra pós-moderna que “substitui o relacionamento autor-texto” pelo “leitor e o texto” (Hutcheon 1991: 166). Assim, ao explorar um narrador deformado, que brinca de construir ao mesmo tempo em que vai se destruindo, esse romance se torna ímpar e reforça o quanto o texto paródico funciona como parte de um jogo desmontável.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

244

Carlos Magno Gomes (UFS) PARÓDIA E QUESTIONAMENTO SOCIAL EM NÉLIDA PIÑON E LYA LUFT

Nesse sentido, Lya Luft apresenta a intensificação dos elementos paródicos em seus romances quando faz crítica ao sistema cultural opressor da mulher e do filho estranho. Em O ponto cego, a autora trabalha com a paródia de forma explícita e irônica, pois apresenta personagens que saem de um conto de fadas às avessas: um pai pirata, uma mãe fugitiva, uma irmã má, uma avó louca e um filho monstro. Dessa forma, a autora reafirma seu fôlego para exorcizar e satirizar a velha ordem familiar: “Minha Mãe tinha de ser a boa, aquele era o seu papel. Meu pai era dos maus, ele manejava o poder” (Luft 1999: 30). De forma contestadora, essa obra descentra a imagem do pai, pois embora esteja no melhor lugar do poder, ele se limita ao território da razão, ficando cego para outras fronteiras que seu olhar não alcança: “eu não queria ser como meu pai, que pensa que tudo controla mas deixa escapar o essencial” (Luft 1999: 16). Assim, com a sátira da família patriarcal, destacamos a importância da intertextualidade para a interpretação das diferentes imagens do narrador monstro e do pai pirata, personagens do imaginário de contos infantis. Essa intertextualidade pode ser vista como um processo de recepção, na qual “a originalidade deixa de ser um raio ou uma iluminação, transformando-se numa metamorfose ou alquimia” (Nitrini 2010: 142). Ao usar um narrador menino que brinca com a maldade do pai e a bondade da mãe, identificamos a metamorfose textual dos contos de fadas e dos próprios romances anteriores dessa escritora. Com tais diálogos, identificamos uma intertextualidade que abre a rede de conexões que o texto literário carrega (Nitrini 2010: 162) e nos possibilita diferentes olhares para a construção das identidades dentro da família patriarcal. Como parte do jogo proposto pelo narrador pós-moderno, aquele que brinca com a metanarratividade, o menino se perde na monstruosidade de seu corpo. Tal experimentação pode ser vista como marca de uma escrita contestadora que também é parte de uma nova experiência estética, pois o narrador se mostra perdido dentro do definido como uma “narração de olhares, de um olhar, história de invocações” (Luft 1999: 17). Ao romper com as marcações discursivas, o menino sai anunciando seu lugar de revisor cultural. Nesse jogo paródico, há a insegurança do receptor, à mercê do autor, da enunciação e do contexto: “Faz algum tempo comecei a narrar com minha voz de taquara rachada o que eu planejava e o que afinal aconteceu, o destinado e o premeditado. Mas isso não estava no meu roteiro” (Luft 1999: 97). Tal forma de se referir ao texto que está sendo escrito faz parte das estratégias dos textos pósmodernos que põem “em discussão seu estatuto” de diferentes formas e fazem da experimentação com novas linguagens uma prática constante do próprio fazer artístico (Vattimo 2002: 42). O narrador do texto de Luft, enquanto se nomeia dono de seu destino, apresenta-se também incapaz de definir sua posição no processo de monstruosidade: “cada dia sinto que fiquei alguns milímetros diferentes. Um pouco maior? Menor ainda? Se eu continuar crescendo, ao contrário do que projetei, mas minha pele não se esticar?” (Luft 1999: 15). Nesse processo metanarrativo, seu discurso incorpora

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

245

Carlos Magno Gomes (UFS) PARÓDIA E QUESTIONAMENTO SOCIAL EM NÉLIDA PIÑON E LYA LUFT

outros textos por meio do comentário irônico para ressaltar o caráter didático explícito dos textos paródicos (Hutcheon 1989: 40). Por exemplo, o uso do grotesco, como pano de fundo da paródia, indica o propósito dessa obra de recriação e subversão ideológica: “O que vai espirrar nas paredes, o que se vai derramar no chão: a merda ou o sonho?” (Luft 1999: 15). O fato de o menino assumir que parou de crescer mostra a particularidade do narrador limitado, que se nega a crescer para continuar escrevendo sua história: “Se eu me tornar adulto serei igual a eles, perdendo a minha perspectiva e sendo arrastado para fora do abrigo da minha pequenez: já não poderei tecer e tramar” (Luft 1999: 45). Tal valorização da fronteira textual sustenta a intertextualidade que pode ser lida a partir da rede de conexões que o texto literário carrega (Nitrini 2010: 162). Esse narrador monstruoso abre o texto às diversas significações quando subverte seu crescimento para narrar a particularidade de sua visão: “quem conhece mais a solidão do que alguém diferente, insuficiente, frustrante, alguém que fica de fora até no tamanho?” (Luft 1999: 82). Na perspectiva social, a paródia luftiana pode ser vista como um recurso de questionamento social dos papéis de gênero, pois não sugere apenas a beleza estética do texto, mas sua capacidade de questionar a opressão sofrida historicamente pelo filho estranho e por sua mãe. Nesse caso, o estilo paródico salta aos olhos e denuncia sua oposição ao passado cultural. Na perspectiva paródica, O ponto cego traz um diálogo com histórias de terror e funciona como um espaço deslocado da sociedade patriarcal. Suas opções estéticas sugerem que o imaginário dos contos de terror foi usado como resistência e questionamento da tradição patriarcal. Tal postura ganha destaque quando a mãe abandona o lar, mesmo tendo um filho doente: “Eu fui perdido de minha Mãe, pois naquele dia e nos próximos dias, sempre que me escondi ela não procurou por mim” (Luft 1999: 135). Ao mesmo tempo em que se declara monstruoso, tal narrador se mostra limitado para narrar. Essa intromissão autoral reproduz a fragmentação do estatuto artístico por meio da ironização do gênero literário explorado na estrutura do texto (Vattimo 2002: 42). Com isso, podemos dizer que a particularidade crítica desse romance está no fato de narrar o descentramento da mulher na família e a desconstrução do narrador. Por isso, o tom paródico fica mais explícito quando o narrador relata que sua mãe se salvou daquela família doente: “Ela ao menos se salvou no chamado da vida. Ela finalmente para si mesma disse: Sim” (Luft 1999: 152). Na perspectiva estética, o tom paródico destaca a capacidade metanarrativa do narrador que vai perdendo o controle de seu discurso e da escrita: “no fim terei duas saídas: explodir porque a pele ficou pequena demais, rebentar em merda ou sonho” (Luft 1999: 126). Tal deformação reproduz um sujeito paralisado e impossibilitado de reverter sua situação corporal, todavia consciente de sua capacidade de questionar as regras do sistema.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

246

Carlos Magno Gomes (UFS) PARÓDIA E QUESTIONAMENTO SOCIAL EM NÉLIDA PIÑON E LYA LUFT

Considerações finais As experiências de Nélida Piñon e de Lya Luft são exemplos do quanto a literatura brasileira contemporânea de autoria feminina incorporou a paródia como uma forma de contestar a tradição cultural imposta pelo patriarcado. Dentro da tradição brasileira, ainda podemos citar as obras de Clarice Lispector, Helena Parente Cunha, Marilene Felinto, Patrícia Melo e Conceição Evaristo, entre tantas outras, que usam a paródia como uma forma de questionamento dos papéis feminino ao mesmo tempo em que se voltam para os textos culturais e artísticos. Isso porque não perdem o contato com a realidade que as cerca, produzindo uma ficção contestadora das normas vigentes em uma sociedade excludente. Dessa forma, constatamos que a inclusão de questões sociais faz parte da proposta paródica da literatura contemporânea que não abre mão da intertextualidade, pois “as malhas do texto remetem também para fora de si, pois é provocação e convite à leitura” (Eco 2003: 218). Nesse sentido, o tom paródico é muito mais do contexto patriarcal do que das obras artísticas e culturais com as quais essas escritoras dialogam. Portanto, cada uma das resoluções estéticas comentadas neste ensaio: no caso de Piñon, a nova identidade para a atriz e suas amigas prostitutas; e, no de Lya Luft, a deformação do narrador que opta pelas margens da família, fazem parte de uma cultura feminista de questionamento da opressão sofrida pela mulher. Com isso, elas produzem uma literatura que questiona suas próprias interpretações e as interpretações dos outros (Hutcheon 1991: 230). Assim, podemos dizer que Nélida Piñon brinca e satiriza o enredo da ópera de Verdi ao mesmo tempo em que questiona o espaço social brasileiro. Em A doce canção de Caetana, ela descentra os valores patriarcais ao brincar com uma ópera que valoriza o amor de uma cortesã. Nesse mesmo sentido, a experimentação de Lya Luft é mais intensa, em O ponto cego, pois descentra a forma narrativa com um protagonista que vai se deformando enquanto perde o amor materno. Tais abordagens estéticas e sociais da família patriarcal insistem numa série de diferentes posições do espectador, em vez de pregar um olhar fixo. Com uma atriz e prostitutas que buscam uma identidade de artista e com uma Mãe que foge do espaço da casa, Piñon e Luft, respectivamente, preocupam-se com performances femininas que partem de um olhar local para reivindicarem seu espaço frente às narrativas totalizadoras, por isso confirmam a existência de significados ambíguos que subvertem a ideia de sujeito fixo e estável. As duas narrativas reforçam a fragmentação do espaço da família patriarcal. Tal postura do romance contemporâneo é feminista, ao priorizar o lugar da mulher, e pode ser vista como uma revisão da tradição ao fazer referências às “relações produtivas, do envolvimento da subjetividade no sentido e em valores” questionando de forma subjetiva as posições disponíveis para as mulheres (Hutcheon 1991: 206). Por serem paródicas, as duas obras analisadas buscam legitimação dessa arte que não se propõe original, todavia não negam seu papel social. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

247

Carlos Magno Gomes (UFS) PARÓDIA E QUESTIONAMENTO SOCIAL EM NÉLIDA PIÑON E LYA LUFT

Com isso, a literatura contemporânea ressalta que “não visa a um êxito”, mas sim “tornar problemático esse âmbito, ultrapassando, pelo menos momentaneamente, seus limites” (Vattimo 2002: 42). Com tal constatação, podemos concluir que Lya Luft e Nélida Piñon, dentro da tradição da literatura contemporânea, articulam o romance pós-moderno a partir de uma dicção híbrida em que suas opções estéticas funcionam como parte do questionamento ideológico da opressão patriarcal.

PARODY AND SOCIAL INQUIRY IN NÉLIDA PIÑON E LYA LUFT Abstract: This paper analyzes the parody as one of the main aesthetic devices of the Brazilian novel in the late Twentieth Century. Besides being satirical and critical, parody highlights the intertextuality as a legitimate artistic device of the postmodern novel. As corpus, we will analyze the use of parody as criticism to the patriarchal family in novels by Nélida Piñon and Lya Luft. Methodologically, concepts of parody and intertextuality proposed by Linda Hutcheon, Umberto Eco and Eduardo Coutinho are explored. Keywords: Intertextuality; Parody; Postmodern novel.

REFERÊNCIAS

CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. São Paulo: Ática, 2003. COUTINHO, Eduardo, F. Revisitando o pós-moderno. In : GUINSBURG, J. e BARBOSA, Ana Mae (orgs.). O pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, pp. 159172. ECO, Umberto. Ironia intertextual e níveis de leitura. In: ECO, Umberto. Sobre literatura. 2ª. ed. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2003, pp. 199218. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. ______. Uma teoria da paródia. Tradução de Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1989. LUFT, Lya. O ponto cego. São Paulo: Mandarim, 1999.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

248

Carlos Magno Gomes (UFS) PARÓDIA E QUESTIONAMENTO SOCIAL EM NÉLIDA PIÑON E LYA LUFT

RICHARD, Nelly. Feminismo e desconstrução. In: ______. Intervenções críticas. Tradução de Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: UFMG, 2002. NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: história, teoria e crítica. 3ª. edição. São Paulo: EdUSP, 2010. PIÑON, Nélida. A doce canção de Caetana. São Paulo: Record, 1997. SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2004. VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

ARTIGO RECEBIDO EM 01/03/2012 E APROVADO EM 17/03/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

249

A CONTEMPORANEIDADE DO OULIPO1 Jacques Fux (UNICAMP)2 Darlan Roberto dos Santos (FASAR/CL)3

Resumo: Este artigo tem como objetivo mostrar os diversos momentos da história do OULIPO, seus principais membros e como este grupo se comporta atualmente, face às suas propostas iniciais. No decorrer do texto, evidencia-se a trajetória do OULIPO, passando pela consolidação do grupo e aplicação sistemática e consciente da matemática como estrutura básica de suas contraintes. Também faz parte do presente trabalho, breve análise da obra de três célebres oulipianos – Ítalo Calvino, Jacques Roubaud e Georges Perec –, além da abordagem sobre o OULIPO lúdico na contemporaneidade. Palavras-chave: Oulipo; História; Matemática; Literatura.

Segundo Jacques Derrida: “um texto só é um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a regra de seu jogo. Um texto permanece, aliás, sempre imperceptível. A lei e a regra não se abrigam no inacessível de um segredo, simplesmente elas nunca se entregam, no presente, a nada que se possa nomear rigorosamente na percepção”4 (Derrida 1991: 7). Em 1960 o OULIPO – Ouvroir de Littérature Potentielle – levou ao extremo essa proposta de Derrida através da composição de textos baseados em restrições e regras. Em 2011 o OULIPO celebrou seus 50 anos de atividades e encontros mensais. Marcado por uma proposta de refundação da literatura, vários escritores e matemáticos fizeram (ou fazem) parte deste grupo, sendo que os mais conhecidos são: Raymond Queneau, Georges Perec, Italo Calvino, Jacques Roubaud, Marcel Duchamps. Porém, ao longo desses 50 anos 1 Este artigo contém partes e citações da tese “A matemática em Jorge Luis Borges e Georges Perec: um estudo comparativo” (2010) de autoria de Jacques Fux, autor deste presente trabalho. Apesar de se basear nessa tese, este artigo apresenta e propõe uma abordagem diferente do Oulipo, mostrando as diferentes fases e propósitos literários desde sua criação até o ano de 2010. 2 Pós-doutorando em Teoria Literária – Unicamp. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pela Université Charles-de-Gaulle- Lille 3. Agradeço ao CNPq pela bolsa de pós-doutorado e ao Márcio Seligmann-Silva pela supervisão. E-mail: [email protected]. 3 Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor da Faculdade Santa Rita (FASAR/CL). E-mail: [email protected]. 4 Todas as traduções desse artigo são de nossa autoria.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Jacques Fux (UNICAMP); Darlan Roberto dos Santos (FASAR/CL) A CONTEMPORANEIDADE DO OULIPO

de existência, três diferentes momentos podem ser identificados. Neste artigo pretendemos apresentar esses momentos concentrando-nos, sobretudo, nos seus últimos 25 anos de existência que fazem parte do período de maior produtividade e criação singular do grupo. A criação do OULIPO pode ser vista como resposta à contingência proposta pelo grupo surrealista. Raymond Queneau, antigo participante do Surrealismo, teve uma divergência com André Breton, o que resultou em seu afastamento do grupo. A partir desse momento, e juntamente com François Le Lionnais, propõe a criação de um grupo que trabalhe com literatura a partir de restrições (contraintes5), previamente pensadas. Esse primeiro momento é marcado pela produção de manifestos e pela consolidação teórica da proposta do grupo. Em seguida, com a entrada de Georges Perec, Italo Calvino e Jacques Roubaud, o grupo se popularizou e entrou em segunda e produtiva fase. Perec foi um dos principais difusores do grupo, escrevendo textos e livros com muitas contraintes. Sua paixão pela estrutura, pelos lipogramas, palíndromos, carrés e jogos vinculou seu nome ao OULIPO, e sua obra, à contrainte. Calvino também escreveu algumas obras, discutindo e aplicando as restrições impostas pelo OULIPO. Já Jacques Roubaud, matemático profissional, produziu e produz muitos trabalhos com grande suporte matemático. A partir de conceitos e problemas mais elaborados no campo da álgebra, Roubaud propõe um resgate aos manifestos e axiomas básicos da criação do OULIPO. Preocupado com o período estritamente lúdico após o desaparecimento de Perec e Calvino, Roubaud, juntamente com outro matemático membro do OULIPO, Olivier Salon, passou a convidar novos matemáticos e escritores a retomarem as diretrizes inicias do grupo. Assim temos uma nova fase de resgate do OULIPO, a partir de 2009, com a entrada da matemática profissional e escritora Michèle Audin.

A criação, propostas e manifestos do OULIPO Questionar a visão mítica de “poeta inspirado”, de “inspiração”, herdada dos românticos e utilizada como base pelos surrealistas, é o fundamento principal do grupo. “Só há literatura voluntária” (Queneau apud Le Tellier 2006: 8), afirma Queneau. Interessam ao OULIPO: a estrutura composta rigidamente, a pesquisa da presença dessa estrutura em obras anteriores e a criação e proposição de novas estruturas e possibilidades literárias. O OULIPO é um grupo “ludicamente sério ou seriamente lúdico” (Joly 2004: 845), já que trabalha com restrições e problemas que questionam a todo momento as possibilidades e potencialidades da literatura.

Uma contrainte pode ser entendida como uma restrição inicial imposta à escrita de um texto ou livro, sendo as mais básicas de caráter linguístico. Existem, porém, outras restrições artificiais, que podem ser de caráter matemático. François Le Lionnais era matemático profissional e Raymond Queneau era matemático amador; por isso a escolha dessas contraintes de natureza matemática. 5

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

251

Jacques Fux (UNICAMP); Darlan Roberto dos Santos (FASAR/CL) A CONTEMPORANEIDADE DO OULIPO

A partir de restrições e estruturas bem definidas e acordadas anteriormente, o OULIPO pretende potencializar o desenvolvimento de seus trabalhos, não os limitando como poderíamos supor em um primeiro instante. De acordo com Queneau: Uma outra ideia muitíssimo falsa que mesmo assim circula atualmente é a equivalência que se estabelece entre inspiração, exploração do subconsciente e libertação; entre acaso, automatismo e liberdade. Ora, essa inspiração que consiste em obedecer cegamente a qualquer impulso é na realidade uma escravidão. O clássico que escreve a sua tragédia observando um certo número de regras que conhece é mais livre que o poeta que escreve aquilo que lhe passa pela cabeça e é escravo de outras regras que ignora (Queneau apud Calvino 1993: 261).

A questão da combinatória matemática é essencial para Raymond Queneau já que a potencialidade, nessa perspectiva, é incerteza, mas não falta de precisão. Assim instaura-se a concepção inicial do grupo e sua ruptura com o Surrealismo. A partir de regras e restrições, sabe-se perfeitamente bem o que pode acontecer, mas não se sabe quando. Além de Queneau, François Le Lionnais foi responsável pela criação e difusão dos conceitos e estruturas básicas do grupo através de seus manifestos. Em seu primeiro manifesto, chamado LA LIPO, Le Lionnais nos convida a procurar em qualquer dicionário as palavras literatura potencial (OULIPO 1973: 15). Fatalmente, não encontraríamos nenhuma referência ao termo antes da formação do grupo. Um dos principais argumentos do OULIPO é considerar que temos contraintes inatas, seja qual for a natureza dos nossos escritos, dentre os quais as mais básicas são as contraintes de vocabulário, gramática e versificação. Assim François Le Lionnais nos pergunta o porquê de não utilizarmos e criarmos, então, novas contraintes, e imaginar novas fórmulas e conceitos, enfim, uma nova “potencialidade” para a literatura. Nasce neste momento o OULIPO, com o objetivo explícito de aplicar sistematicamente e cientificamente algumas contraintes – matemáticas – para a criação e desenvolvimento literário. Segundo Le Lionnais, a utilização da matemática, mais especificamente, das estruturas abstratas e axiomáticas da matemática contemporânea, permite uma grande possibilidade de exploração. Um novo mundo se abre, tanto para o autor quanto para o receptor. Da álgebra, podem ser utilizados conceitos de leis de composição; da Topologia, conceitos de textos abertos e fechados; da Teoria dos Números, a combinatória. Podem ser ainda utilizadas algumas linguagens computacionais e jogos matemático-literários. Em seus manifestos, Le Lionnais explica as duas linhas de pesquisa do grupo, a elas atribuindo os nomes de anoulipisme e synthoulipisme, indicativos das perspectivas analíticas e sintéticas de produção do grupo:

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

252

Jacques Fux (UNICAMP); Darlan Roberto dos Santos (FASAR/CL) A CONTEMPORANEIDADE DO OULIPO

Podemos distinguir, nas pesquisas que pretende começar o Ouvroir, duas tendências principais, torneadas respectivamente, acerca da Análise e da Síntese. A tendência analítica trabalha sobre as obras do passado, a fim de pesquisar as possibilidades que ultrapassaram frequentemente essas possibilidades que os autores tinham assumido. É, por exemplo, o caso do centon que poderia, me parece, ser revigorado por algumas considerações tiradas da teoria das Cadeias de Markov. A tendência sintética é mais ambiciosa; ela constitui a vocação essencial do Oulipo. Trata-se de propor novas vias desconhecidas dos nossos predecessores. É, por exemplo, o caso do Cent mille milliards de poèmes ou dos haicais booléens (Le Lionnais apud OULIPO 1973: 16).

Apesar de serem escritores que se encontram no centro da cultura e da literatura ocidentais, propõem a leitura de obras literárias da “periferia” e marginais. Essa periferia pode ser entendida e encontrada no caráter analítico do OULIPO, que se propõe a buscar e pesquisar, nas obras do passado, possibilidades e potencialidades não pensadas, a priori, pelos autores. O caráter sintético, aquele que busca criar novas formas de escrita com restrições, só é possível através da exploração e do esgotamento do caráter analítico, já que para descobrir novas vias é necessário não repetir o caminho percorrido pelos predecessores. Logo, a busca e a leitura de obras literárias da “periferia”, inicialmente, se faz necessária e obrigatória para atingir a escrita potencial, proposta pelo grupo, uma vez que é necessário saber o que é realmente novo e diferente. Assim, nas palavras de Jacques Bens, é necessário conhecer o presente e o passado, para potencializar o futuro: “para atingir o potencial (o futuro) é necessário partir do que existe (o presente)” (Bens apud OULIPO 1973: 32). Assim novos conceitos e proposições literárias surgem na criação deste grupo. Nesta primeira fase percebemos que o projeto tem suporte matemático (principalmente da análise combinatória) e é bem estruturado através dos axiomas e manifestos. Por ser uma inovação, chamou muito a atenção de importantes autores, iniciando assim um segundo momento histórico e bem mais produtivo. Apresentamos, em seguida, alguns importantes membros, as estruturas e jogos trabalhados na época de ouro do OULIPO.

Inovações de Calvino, Roubaud e Perec: a época de ouro Diante da nova possibilidade, da escrita conjunta e do reconhecimento de estruturas e restrições que já haviam pensado anteriormente, Jacques Roubaud, Georges Perec e Italo Calvino, entre outros, se juntam ao OULIPO e começam a produzir inúmeros trabalhos.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

253

Jacques Fux (UNICAMP); Darlan Roberto dos Santos (FASAR/CL) A CONTEMPORANEIDADE DO OULIPO

Calvino Calvino entra oficialmente no OULIPO em 1973 compondo alguns livros a partir de contraintes pré-concebidas. Mas, mesmo antes de sua entrada, já escrevia na mesma linha proposta pelo OULIPO. Por exemplo, o livro Se um viajante numa noite de inverno (1999a) pode ser lido como um hiper-romance que constrói sua narrativa seguindo um modelo previamente determinado, apresentado posteriormente pelo próprio autor nas obras conjuntas do OULIPO (1973). No artigo “How I wrote one of my books” (OULIPO 1995) Calvino apresenta a construção do seu livro, as relações estabelecidas entre os personagens de cada capítulo além da estrutura geral do livro. Em O castelo dos destinos cruzados (1994), constrói uma máquina narrativa literária segundo os moldes do OULIPO: “a ideia de utilizar o tarô como uma máquina narrativa combinatória me veio de Paolo Fabbri [...] o significado de cada carta depende de como ela se coloca em relação às outras cartas que a precedem e as que a procedem; partindo dessa ideia, procedi de maneira autônoma segundo as exigências do meu texto” (Calvino apud OULIPO 1981: 383-4). Calvino “compartilhava com o OULIPO muitas ideias e predileções: a importância das contraintes nas obras literárias, a aplicação meticulosa de regras de jogos estritos, o retorno aos procedimentos combinatórios, a criação de novas obras utilizando materiais já existentes” (Calvino apud OULIPO 1981: 384). Em As cosmicômicas (1992), o nome do personagem principal, Qfwfq, é um palíndromo, restrição bem conhecida pelo grupo. Neste livro, podemos vislumbrar conceitos e modelos físicos e matemáticos já que, a partir de conjecturas e leis físicas, o personagem palindromático recorda momentos marcantes de sua evolução juntamente com as dos universos. Jacques Jouet escreve sobre alguns livros de Calvino: Qfwfq é um bom exemplo da invenção axiomática de Calvino. Um personagem interessante, um personagem revelador será um personagem forçado, no sentido em que a contrainte que se exerce sobre ele parece, à primeira vista, uma deficiência, uma limitação de possibilidades, mas paradoxalmente se revela fecundo de, pela energia necessária, compensar a sua deficiência ele mesmo. É a criança num mundo adulto em A trilha dos ninhos de aranha, e as duas meias porções do Visconde partido ao meio, a inexistência mesmo do Cavaleiro inexistente ou a limitação voluntária em nível territorial do Barão nas árvores. Acontece que esses personagens impedidos são reveladores das causas de todo impedimento ou de toda tragédia. O Visconde (na sua parte boa) se recorda de sua antiga condição, diz: “Eu era inteiro, eu não compreendia” (Jouet 1997: 815).

Em As cidades invisíveis (1990a), O castelo dos destinos cruzados (1994) e Se um viajante numa noite de inverno Calvino faz uso explícito das restrições para compô-los. Por exemplo, em As cidades invisíveis, a contrainte está na construção, estrutura e nas relações entre os capítulos. Nos outros dois livros, essas contraintes são melhor desenvolvidas e muito mais difíceis de se identificar e se trabalhar. O próprio

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

254

Jacques Fux (UNICAMP); Darlan Roberto dos Santos (FASAR/CL) A CONTEMPORANEIDADE DO OULIPO

Calvino argumenta que se perdeu ao longo de todas as restrições impostas por ele próprio n’O castelo dos destinos cruzados. Neste livro, forma, leitura e escrita aparecem como movimentos intercambiáveis de um mesmo jogo narrativo e literário. A obra resultante passa a ser uma produção colaborativa entre autor e leitor. Aqui Calvino utiliza a proposta de Queneau: a análise combinatória como restrição no baralho de tarô. O autor utiliza essa estrutura criada como elemento propiciador da discussão, como mote para o jogo reflexivo sobre leitura e escrita (Moreira e Fux 2010). Para Calvino, alguns autores trabalham melhor diante de obstáculos do que se não os enfrentassem. Ele constrói, assim, sua visão e sua literatura, criando livros e discutindo essa criação sob contraintes, ao mesmo tempo em que produz obras sem os utilizar consciente ou explicitamente. Roubaud Jacques Roubaud, por sua vez, entra no OULIPO em 1966, convidado por Raymond Queneau, já vislumbrando uma nova fase da literatura potencial. Nos encontros mensais do OULIPO, nos quais os membros apresentam textos, livros e notas utilizando a contrainte proposta, o matemático profissional, escritor e poeta sempre participa compondo algo de consistência e coerência estruturalmente matemáticas, principalmente encontradas no campo da álgebra. Nos primórdios do OULIPO escreve o célebre artigo “La mathématique dans le méthode de Raymond Queneau” (OULIPO 1973), onde relaciona um sistema axiomático com a literatura, além de resgatar e fazer referência aos axiomas básicos de Euclides. Proposição 1: Ser matemático, para Queneau, é ser leitor de matemática. Proposição 2: Ser matemático, para Queneau, é ser amador em matemática. Proposição 3: O domínio privilegiado de Queneau, produtor de matemática, é a combinatória. Mais precisamente: a) particularmente a combinatória de números naturais e inteiros. b) não os problemas de enumeração mas aqueles de origem recursiva de sequências por procedimentos finitos, simples onde a aplicação gera a complexidade. Proposição 4: Essa combinatória se inscreve em uma tradição ocidental muito antiga, quase tão velha quanto a matemática ocidental. Proposição 5: A natureza das frases é incompleta e a combinatória de suas construções é mais da ordem do intricado que da concatenação, a substituição e a permutação de elementos que não podem ser separados. Proposição 6: Se comportar lado a lado com a linguagem, como se ela fosse matematizável; e a linguagem é, cada vez mais, matematizável numa direção específica. Proposição 7: A linguagem, se manipulada por um matemático, o é pois é matematizável. Ela é, portanto, discreta (fragmentar), não aleatória (disfarçadamente contínua), sem marcas topológicas, controlada em pedaços. Conjectura 1: A aritmética que se ocupa da linguagem produz textos. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

255

Jacques Fux (UNICAMP); Darlan Roberto dos Santos (FASAR/CL) A CONTEMPORANEIDADE DO OULIPO

Conjectura 2: A linguagem que produz texto produz a aritmética. Proposição 8: O trabalho do oulipiano é ingênuo. Proposição 9: O trabalho do oulipiano é divertido. Proposição10: O trabalho do oulipiano é artesanal Proposição 11: Os oulipianos, em seus trabalhos, sejam eles matemáticos ou não, ou ainda “e não”, satisfazem geralmente às condições das proposições 8, 9 e 10. Proposição 12: Uma boa contrainte oulipiano é um contrainte simples. Axioma: O contrainte é um princípio, não um meio. Proposição 13: O trabalho oulipiano é anti-acaso. Proposição 14: Uma contrainte é um axioma de um texto. Proposição 15: A escritura sob contrainte oulipiana é o equivalente literário de um texto matemático formalizado segundo o método axiomático. Proposição 16: A contrainte ideal só produz um texto. Proposição 17: Não há mais regras desde que elas tenham sobrevivido ao valor. Proposição 18: A matemática repara a ruína de regras (OULIPO 1981: 42).

O Axioma é o fundamento, a estrutura e o começo da criação de qualquer sistema lógico. Ele pode ser questionado, mas não é demonstrado; partindo dele, construímos as Proposições (ou Teoremas), que podem ser demonstradas a partir desses axiomas iniciais. As Conjecturas, pelo próprio nome, são suposições e hipóteses das quais ainda não se consegue provar nem a veracidade nem a falsidade. Para provar que uma conjectura é verdadeira, é necessário provar que ela vale para todos os elementos desse conjunto, e para prová-la falsa é necessário encontrar somente um contraexemplo. Se verdadeira, a conjectura torna-se um teorema, se falsa, não é nunca mais lembrada ou referida. Neste momento oulipiano, o sistema e a estrutura são bem delineados. Roubaud, como um verdadeiro matemático, fundamenta a estrutura que irá trabalhar ao longo de sua produção literária. Nesta fase, pode-se perceber a diferença na utilização das restrições matemáticas pelos membros do OULIPO. Roubaud, conhecedor profundo e profissional, compõe seus textos fundamentados numa base matemática sólida. Perec e Calvino, amadores da matemática, esgotam as possibilidades matemáticas conhecidas por eles. É importante ressaltar que neste instante a matemática, apesar das diferentes abordagens, é um assunto seriamente lúdico. O livro La Princesse Hoppy ou le conte du Labrador (2009), composto por Roubaud, apresenta uma estrutura matemática bem complexa. Narra a história de uma princesa, cujo nome faz referência à tribo indiana Hopi, e seus tios Eleonor, Aligoté, Babylas e Imogène, que passam o tempo fazendo complôs uns contra os outros. As mulheres, ao mesmo tempo, compotam,6 já que nunca estão presentes nos complôs dos homens. A princesa tem um labrador e fala uma espécie de francês que Do verbo em francês, comploter, que é fazer complôs, e compotent, que brinca com o fato de fazer o doce em compota.

6

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

256

Jacques Fux (UNICAMP); Darlan Roberto dos Santos (FASAR/CL) A CONTEMPORANEIDADE DO OULIPO

utiliza a contrainte Ulcérations, inventada por Perec, que consiste em recorrer somente às onze letras mais utilizadas na língua francesa: E S A R T I N U L O C. O texto é construído todo de acordo com um grupo algébrico de quatro elementos e uma relação matemática: comploter. Logo temos, por exemplo, quatro reis, quatro rainhas e as relações associativas e comutativas algébricas: A*B = B*A e A*(B*C) = (A*B)*C. Bem estruturado e tentando combater a contingência, o livro tem 153 parágrafos, o que corresponde à soma dos 17 primeiros números naturais (em referência ao livro de Queneau, Le Chiendent, que foi composto por 91 itens que representam a soma dos 13 primeiros números naturais) e pode ser lido também como uma história de álgebra que propõe 79 questões a serem respondidas. Assim é a regra de Saint Benoit a respeito dos complôs: Sejam três reis entre quatro: o primeiro rei, o segundo rei, o terceiro rei. O primeiro rei é não importa qual rei, o segundo rei é não importa qual rei (“o segundo rei pode ser o mesmo que o primeiro”, interrompeu Eleonor, “claro”, disse Uther), o terceiro rei é não importa qual rei. Então, o rei contra quem faz complô o primeiro rei quando ele visita o rei contra quem faz complô o segundo rei quando ele visita ao terceiro deve ser o mesmo rei precisamente contra quem faz complô o rei contra quem faz complô o primeiro rei quando visita o segundo, quando ele visita o terceiro. O.K., disse Uther, mas não é tudo. Quando um rei visitará um outro rei, eles farão complô sempre contra o mesmo rei. E se dois reis distintos visitam a um mesmo terceiro, o primeiro não fará complô jamais contra o mesmo rei que o segundo. Contra todo rei, enfim, farão complô ao menos uma vez ao ano na sala de cada um dos reis. Eu disse (disse Uther) O.K.? O.K., disse Uther e morreu (Roubaud apud OULIPO 1987: 23).

Dessa forma, Roubaud constrói o livro e, como numa construção matemática, explica detalhadamente as regras de complôs a fim de tentar evitar contradições e problemas internos ao sistema. Em “Indications sur ce que dit le conte” (OULIPO 1987: 28), Jacques Roubaud oferece mais regras e explicações, transpondo alguns conceitos da álgebra para a ficção literária. Ele utiliza conceitos algébricos e aritméticos para compor seus livros: nos poemas, utiliza os números como novas formas de métrica; nas prosas, escreve sobre a matemática utilizando os próprios conceitos matemáticos para criar seus textos. Roubaud inventou novas estruturas e potencializou a literatura. Ainda hoje produz textos com fundamentos matemáticos, o que destoa um pouco com os novos participantes e com as concepções iniciais do grupo. Perec Perec, por sua vez, entra oficialmente no grupo em 1967, quando já conhecia bem todos os acordos e estruturas do OULIPO. A partir do momento de sua união ao grupo, Perec se vê imerso em um mar de potencialidades e estruturas para explorar e trabalhar em seus livros. Ao se tornar membro do OULIPO, Perec esgota as inúmeras Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

257

Jacques Fux (UNICAMP); Darlan Roberto dos Santos (FASAR/CL) A CONTEMPORANEIDADE DO OULIPO

possibilidades de se trabalhar com restrições. Assim muitos de seus escritos utilizam palíndromos,7 lipogramas,8 xadrez, GO,9 lógica, anagramas.10 Por exemplo, escreve um livro inteiro sem o uso da letra e: La disparition, seu lipograma mais conhecido. Cria o maior palíndromo conhecido na época, composto de cinco mil palavras, “Palindrome” (Perec 1973: 97-102). No mesmo dia em que morre seu amigo e um dos criadores do OULIPO, Raymond Queneau, Georges Perec começa a escrever seu grande livro: A vida modo de usar (1989). Segundo Italo Calvino esse livro é: O último verdadeiro acontecimento na história do romance. E isto por vários motivos: o incomensurável do projeto nada obstante realizado; a novidade do estilo literário; o compêndio de uma tradição narrativa e a suma enciclopédica de saberes que dão forma a uma imagem do mundo; o sentido do hoje que igualmente feito com acumulações do passado e com a vertigem do vácuo; a contínua simultaneidade de ironia e angústia; em suma, a maneira pela qual a busca de um projeto estrutural e o imponderável da poesia se tornam uma só coisa (Calvino 1990b: 135).

De grande complexidade, repleto de enigmas, jogos e construído sob contraintes, o livro trata de diversas histórias de moradores de um mesmo prédio situado à 11 Rue Simon-Crubellier. Com o intuito de esgotar todas as possibilidades estruturais e matemáticas conhecidas por ele, Perec constrói romances de quase 600 páginas. O enredo gira em torno de três personagens principais e complexos: o excêntrico e rico Percy Bartlhebooth, o artista Gaspard Winckler e o pintor Serge Valène. Assim é apresentado um dos projetos centrais do livro: Durante dez anos, de 1925 a 1935, Bartlebooth se iniciaria na arte da aquarela. Durante vinte anos, de 1935 a 1955, percorreria o mundo, pintando, à razão de uma aquarela a cada quinze dias, quinhentas marinhas do mesmo tamanho, as quais representariam portos marítimos. Ao terminar cada uma dessas marinhas, ela seria enviada a um artista especializado (Gaspard Winckler), que a colaria sobre finíssima placa de madeira e a recortaria num puzzle de setecentas e cinquenta peças. Durante vinte anos, de 1955 a 1975, Bartlhebooth, de volta à França, reconstituiria, na mesma ordem, os puzzles assim preparados, à razão, novamente, de um a cada quinze dias. À medida que os puzzles fossem reorganizados, as marinhas seriam “retexturadas”, de modo que se pudesse descolá-las de seus suportes, transportá-las para os próprios locais onde – vinte anos antes – haviam sido pintadas e ali mergulhá-las numa solução

Um texto de tamanho indeterminado, cujas letras podem ser lidas da direita para esquerda ou ao contrário, como se vê em “AMOR – ROMA”. 8 Um texto que exclui uma ou mais letras do alfabeto. 9 Jogo chinês conhecido por sua complexidade e pelo grande número de combinações possíveis. 10 Transposição de letras de palavras ou de frases, a partir da qual uma nova palavra ou frase é formada. 7

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

258

Jacques Fux (UNICAMP); Darlan Roberto dos Santos (FASAR/CL) A CONTEMPORANEIDADE DO OULIPO

detergente da qual saísse apenas uma folha de papel Whatman, intacta e virgem (Perec 1989: 577).

Bartlebooth, um dos principais personagens do livro, alude a dois outros personagens literários: Bartleby, de Herman Melville, o homem da imobilidade que não deseja nada, que prefere não fazer; e Barnabooth, de Valèry Larbaud, o homem da viagem, que tem desejos errantes. Referenciar personagens literários é uma das muitas restrições impostas por Perec. Bartlebooth é um homem de grande riqueza e de indiferença face ao mundo, fazendo jus ao seu nome literário. Ele se propõe a elaborar um projeto de perfeição circular e ridículo. Pretende viajar bastante, registrar tudo o que puder e perceber e destruir todos os traços dessa grande e inútil jornada. Assim é descrito o projeto: Então Bartlebooth é Bartleby porque ele é completamente desesperado que está além do desespero. Ele é também Barnabooth, o bilionário, que quer organizar sua vida como uma obra de arte. A conjunção dos dois compõe um personagem que utilizaria toda sua vida, toda sua energia e toda sua fortuna para alcançar um resultado nulo. O projeto de Bartlebooth: aprender a pintar aquarelas, pintar as aquarelas, tê-las cortadas em puzzles por um artesão e, enfim, reconstruí-las. É perfeitamente louco e inútil. E é para mim a mesma imagem de escrever. Um esforço gigantesco por uma coisa que, uma vez terminado o livro, se evade completamente (Perec 2003: 82).

O projeto rigoroso e bem estruturado d’A vida modo de usar parte da exploração de três principais estruturas matemáticas: Bicarré latin orthogonal 11 d’ordre 10, la polygraphie du cavalier 12 e la pseudo-quenine13 d’ordre 10. A construção lógica e definida sob regras nos remete ao teor axiomático da matemática, referência aos fundamentos estruturais restritivos do OULIPO. Mas Perec, com toda sua genialidade e humor, ludibria e engana o leitor. Duas restrições impostas por ele são responsáveis pela trapaça: a contrainte falta e a contrainte falsa. Assim seu livro é estruturado para não realizar o projeto a que se propõe – o de controlar todas as possibilidades de escrita e leitura. O projeto falha: É o dia 23 de junho de 1975, e vão dar oito horas da noite. Sentado diante do puzzle, Bartlebooth acaba de morrer. Sobre a toalha da mesa, em algum lugar do céu crepuscular do quadringentésimo trigésimo nono puzzle, o vazio negro da única peça ainda não encaixada desenha a silhueta quase perfeita de um X. Mas a peça que o morto segura entre os dedos, já de há muito prevista em sua própria ironia, tem a forma de um W (Perec 1989: 578). Bicarré latin orthogonal de ordem n é a figura com n x n quadrados preenchidos com n diferentes letras e n diferentes números, cada quadrado contendo uma letra e um número. Cada letra aparece somente uma vez em cada linha e em cada coluna, assim como cada número. 12 Consiste em mover as peças do xadrez da forma como o “cavalo” se move. Há várias formas de se fazer isso, “varrendo” todo o tabuleiro, e por isso utiliza-se o estudo combinatório. 13 A ação de trocar a ordem de um determinado conjunto de coisas linearmente arranjadas. 11

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

259

Jacques Fux (UNICAMP); Darlan Roberto dos Santos (FASAR/CL) A CONTEMPORANEIDADE DO OULIPO

Calvino, Roubaud e Perec trabalham com estruturas matemáticas e discutem a todo o momento as inúmeras possibilidades e potencialidades que as restrições permitem. Neste segundo momento do OULIPO, há uma grande produção literária inovadora e importante. Aqui aparece verdadeiramente a utilização da matemática como contrainte, seja ela básica como nas obras de Perec e Calvino, seja ela bem mais profunda e trabalhada como nas obras de Roubaud. Consideramos que, posteriormente, essas inovações vão se perdendo e as novas restrições se tornam somente lúdicas, contrariando as diretrizes e os manifestos iniciais do OULIPO.

O OULIPO lúdico na atualidade Em 2009, o OULIPO publica sua nova antologia, que recebe o nome de Anthologie de l’OuLiPo (2009). Além dos encontros mensais, que atualmente acontecem na Biblioteca Nacional (BNF), e das apresentações públicas, quando são convidados para algum evento ou participação em ateliês de escrita, existe um encontro privado, do qual só os membros e alguns convidados do grupo participam. Eles se encontram para discutir, propor e criar novas contraintes. Nas palavras de Paul Fournel: Desde quase cinquenta anos que os oulipianos se reúnem fielmente a cada mês para almoçar ou jantar. No início de cada sessão, é atribuída uma ordem do dia que recebe a rubrica de criação. Se adviesse um dia que essa rubrica permanecesse vazia, a reunião seria anulada. Isso nunca aconteceu. Desde cinquenta anos, cada mês, um oulipiano ao menos traz uma criação à mesa. Ela pode ser fundada a partir de uma contrainte nova onde a criação será modelada, pode ser uma proposição nova de uma forma antiga e pode ser uma interpretação de uma contrainte conhecida (OULIPO 2009: 7).

Apesar dessas reuniões e das discussões acerca da criação e das restrições, o grupo começa a publicar sistematicamente trabalhos em que as contraintes se tornaram mais temas do que de fato restrições. Somente Jacques Roubaud continua a utilizar estruturas matemáticas. Por exemplo, partindo do tema “animais de pessoa”, Roubaud concebe poemas e textos com métricas e restrições matemáticas enquanto que os outros membros não matemáticos do grupo desenvolvem o tema de forma livre e, muitas vezes, seus trabalhos não apresentam nenhuma estrutura restritiva matemática (somente o tema “animais de pessoa”). Alguns desses textos podem ser encontrados no Anthologie de l’OuLiPo e nos fascículos vendidos nos encontros da BNF. Consideramos, portanto, que nesse terceiro momento o OULIPO perde seu caráter inovador e sua personalidade restritiva matemática, tornado-os somente lúdicos. Os oulipianos combatem as críticas, salientando que, em seus encontros particulares, sempre buscam trabalhar com a literatura e com as contraintes, Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

260

Jacques Fux (UNICAMP); Darlan Roberto dos Santos (FASAR/CL) A CONTEMPORANEIDADE DO OULIPO

tornando-os novamente seriamente lúdicos. Porém, preocupado com as críticas, e buscando resgatar os primórdios do OULIPO, Jacques Roubaud passou a convidar matemáticos como novos integrantes do grupo. No ano 2000, após assistir a uma conferência sobre Teoria de Números apresentada por Oliver Salon, Roubaud o convidou para os encontros e Salon acabou se tornando um dos membros mais ativos e participativos da atualidade. Em 2009, a matemática profissional e escritora Michèle Audin é convidada também por Roubaud para fazer parte do OULIPO. Audin, diferentemente de Salon que apesar de trabalhar com matemática não é um pesquisador, tem várias publicações no campo da Topologia Algébrica e vem se dedicando ultimamente à escrita de biografias de matemáticos célebres. Com isso podemos conjecturar uma nova fase vindoura do grupo, com novos membros e com novas possibilidades. Porém, apesar da entrada de novos participantes matemáticos no grupo, apenas Jacques Roubaud ainda continua preocupado com a literatura potencial a partir das contraintes estritamente matemáticas. Consideramos, até a presente data, que nem Audin nem Salon conseguiram resgatar as inovações e estruturas matemáticas propostas pelo encontro de Le Lionnais e Queneau. Audin é escritora de biografias sobre matemáticos e Salon é mais um divulgador do OULIPO. Também, atualmente, não encontramos escritores célebres como Perec e Calvino, responsáveis pela difusão das novas possibilidades de escrita. Assim só Roubaud continua a publicar poemas, livros e textos literários ainda com o mesmo vigor e com questionamentos acerca da possibilidade e da potencialidade literária; tão importantes temas e estruturas presentes na época de Perec e Calvino. Só o futuro nos dirá se o OULIPO ainda poderá resgatar as inovações apresentadas em sua fase inicial e a grande produção e repercussão em sua fase de ouro, ou se caminhará, como em sua última fase, em direção a uma literatura e produção estritamente lúdicas.

THE CONTEMPORANEITY OF THE OULIPO Abstract: The present article aims to describe different moments in the history of OULIPO, as well as its main members and how this group actually behaves in relation to its initial proposals. Throughout the text, the trajectory of the Oulipo is evidenced, from the consolidation of the group to the conscious and systematic application of mathematics as a basic structure of their contrainte. This article also presents a brief analysis of the work of three celebrated oulipiens – Italo Calvino, Jacques Roubaud and Georges Perec – and the playful approach of the Oulipo in the contemporaneity. Keywords: Oulipo; History; Mathematics; Literature.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

261

Jacques Fux (UNICAMP); Darlan Roberto dos Santos (FASAR/CL) A CONTEMPORANEIDADE DO OULIPO

REFERÊNCIAS

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990a. ______. As cosmicômicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ______. O barão nas árvores. São Paulo: Companhia das Letras, 1999a. ______. O castelo dos destinos cruzados. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. ______. Porque ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ______. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das Letras, 1999b. ______. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia da Letras, 1990b. DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1991. FUX, Jacques. “A matemática em Jorge Luis Borges e Georges Perec: um estudo comparativo”. Tese de Doutorado. Belo Horizonte: UFMG, 2010, 249p. ______. Literatura e Matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o OULIPO. Belo Horizonte: Tradição Planalto, 2011. JOLY, Jean-Luc. Connaissement du monde. Multiplicité, exhaustivité, totalité dans l'œuvre de Georges Perec. Thèse de doctorat sous la direction de Bernard Magné. Université de Toulouse Le Mirail. Avril 2004. JOUET, Jacques. L’homme de Calvino. Europe, n. 815, mars 1997. Disponível em: http://www.oulipo.net/document16292.html. Acesso em 07 fev. 2010. LE TELLIER, Herve. Esthétique de l’OULIPO. Paris: Le Castor Astral, 2006. MOREIRA, Maria Elisa R; FUX, Jacques. Uma rede que serve de passagem e sustentáculo. Letras Hoje, Porto Alegre, n.45, vol.2., 2010. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/7527. Acesso em 23 mar. 2011. OULIPO. Anthologie de l’OuLiPo. Paris: Gallimard, 2009. ______. Atlas de littérature potentielle. Paris: Folio essais, 1981. ______. La Bibliotèque Oulipienne. Paris: Editions Ramsay, 1987. v. 1. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

262

Jacques Fux (UNICAMP); Darlan Roberto dos Santos (FASAR/CL) A CONTEMPORANEIDADE DO OULIPO

______. La littérature potentielle. Paris: Folio essais, 1973. ______. OULIPO Laboratory. London: Atlas Anti Classics, 1995. PEREC, Georges. A vida modo de usar. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. ______. Palindrome. In: OULIPO. La littérature potentielle. Paris: Folio essais, 1973. p. 97-102. ______. Perec entretiens et conférences II. Editions: Joseph K./Centre National du Livre, 2003. ROUBAUD, Jacques. La Princesse Hoppy ou le Conte du Labrador. Paris: Absalon, 2009.

ARTIGO RECEBIDO EM 16/02/2012 E APROVADO EM 01/03/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

263

O NARRADOR DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS EM DUAS VERSÕES COMPLEMENTARES Felipe Oliveira de Paula (UFMG)1

Resumo: O objetivo do trabalho é demonstrar a aproximação entre os textos de dois críticos da obra de Machado de Assis, especificamente sobre a obra Memórias Póstumas de Brás Cubas (originalmente publicada em 1881), a saber: Roberto Schwarz, em Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis (1997); e Ronaldes de Melo e Souza, em O romance tragicômico de Machado de Assis (2006). Embora Melo e Souza diga ser problemática a noção de “narrador volúvel” utilizada por Schwarz, acredito que o seu texto muito mais a legitima do que a desconstrói. Palavras-chave: crítica literária; narrador; Machado de Assis.

Machado de Assis deve estar entre os escritores mais estudados da literatura brasileira e, de tempos em tempos, surgem novas leituras de sua obra que contribuem ora na cobertura de pontos que até então não tinham sido tocados, ora na compreensão, por outra perspectiva, de aspectos já estudados. No primeiro caso, da leitura que auxilia em pontos-chaves da obra que não foram explorados, pode-se pensar na relação do estudo de Sílvio Romero, em Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira, publicado inicialmente em 1897, com os textos curtos de Augusto Meyer, especificamente O homem subterrâneo, tornado público em 1935. Sílvio Romero fez uma análise pautada nos princípios cientificistas, o que o impediu de enquadrar os escritos machadianos no estilo literário da época, Positivismo ou Naturalismo. Para Romero (1992), influenciado por teóricos como Hennequin, Taine e Scherer, o romance machadiano deve ser entendido a partir da caracterização do povo brasileiro da época e a voz do romance está diretamente Estudante do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, área de concentração Literatura Brasileira, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestrando. E-mail: [email protected]. 1

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Felipe Oliveira de Paula (UFMG) O NARRADOR DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS EM DUAS VERSÕES COMPLEMENTARES

ligada à personalidade empírica do autor. Isto o faz pensar que Machado de Assis não consegue utilizar o ‘humour’ em seus romances por ser essa uma característica imanente apenas aos ingleses e não fazer parte da índole dos brasileiros; por conseguinte não está no caráter da pessoa de Machado de Assis, como fica evidente no trecho em destaque: “o temperamento, a psicologia do notável brasileiro não são os mais próprios para produzir o humour, essa particularíssima feição da índole de certos povos. Nossa raça em geral é incapaz de o produzir espontaneamente”. E Romero ainda sugere: “Oh! Sr. de Assis, volte a uma arte mais de acordo com a verdade e a sua própria índole” (Romero 1992: 162-163). Embora exposto de forma breve, pode-se perceber que Sílvio Romero sofre certa restrição interpretativa no que se refere à elaboração poética dos romances machadianos e conduz sua leitura com conceitos pré-estabelecidos. Vale lembrar, apesar dos pesares, que Sílvio Romero foi de grande valia na formação da crítica literária brasileira. Nesse sentido, Augusto Meyer (2008), um dos maiores críticos de Machado de Assis, com uma leitura impressionista muito mais preocupada em criar hipóteses do que comprovar teses, consegue esboçar aspectos que a fundamentação teórica de Romero não lhe permitiu alcançar. Meyer é responsável por apontamentos essenciais à obra de Machado que serão aprofundados mais tarde por críticos “acadêmicos”: a relação formal de Machado de Assis com Sterne e Xavier de Maistre, que foi analisada cuidadosamente no livro Riso e Melancolia, por Sérgio Paulo Rouanet (2007); e o capricho machadiano que foi transformado em regra de composição (Meyer 2008: 15), ponto de partida para Roberto Schwarz (1997) em sua análise do narrador machadiano. No segundo caso, leitura que aprofunda aspectos já levantados, mas com fundamentação teórica distinta, é possível destacar Roberto Schwarz, em Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis, e Ronaldes de Melo e Souza (2006), em O romance tragicômico de Machado de Assis2. Ambos se interessam nas formas internalizadas no romance e têm como ponto central o narrador. Roberto Schwarz entende a volubilidade do narrador como recurso técnico que dá vida e função ao problema histórico da sociedade brasileira, sem, contudo, condicionar Machado de Assis à estrutura social como fazem aqueles que praticam um tipo de sociologismo vulgar. Para Schwarz (1997: 162), a volubilidade do narrador, inicialmente vista como um recurso apenas literário, “muda de feição quando examinamos de perto o seu desempenho”, sendo possível uma relação da volubilidade de Brás Cubas com a inconstância da elite brasileira do século XIX. O antagonismo de classe, em particular no Brasil, seria a chave de estilo para se pensar a “mobilidade camaleônica do narrador” (Schwarz 1997: 187) em Memórias Póstumas

Vale observar que serão utilizados, além dos livros citados, dois artigos, um de cada crítico, que se encontram em Antonio Carlos Secchin (1988), mais o texto transcrito de uma mesa redonda realizada em 1980, da qual Schwarz fez parte, contida no livro Machado de Assis, organizada por Alfredo Bosi (1982). 2

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

265

Felipe Oliveira de Paula (UFMG) O NARRADOR DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS EM DUAS VERSÕES COMPLEMENTARES

de Brás Cubas, cuja primeira edição data de 1881. Roberto Schwarz opta por uma análise dialética que demonstra a correlação entre estrutura social e estrutura formal. Ronaldes de Melo e Souza (2006: 17), em O romance tragicômico de Machado de Assis, vê o narrador machadiano como um narrador mímico-dramático, “que difere sempre de si mesmo, que se despersonaliza a fim de personificar cada um dos papéis disponibilizados pela diversidade qualitativa da atuação histórica dos homens”. O crítico entende que não é possível uma caracterização do narrador por ver nele a representação de um “poeta camaleônico” (Souza 2006: 10) que se metamorfoseia a cada instante para melhor se adequar a um novo papel. Nesse sentido, para Souza, a relação dual do narrador, presentificada na relação do vivo e do morto, estrutura o procedimento antagônico da narrativa. “A consumada arte da narração de Brás Cubas se traduz na estrutura fugata de uma série de variações de uma mesma lei narrativa, que denominamos princípio geral da reversibilidade” (Souza 2006: 110). É na narrativa que os contrários convivem, um tendo relação de dependência com o outro, o sentido se harmoniza com o não sentido, o ser com o nada. Assim esse dualismo antagônico coexiste dando forma à narrativa de Brás Cubas. Melo e Souza considera o narrador singularizado como ator dramático que leva ao extremo a representação da alteridade e não concorda com Roberto Schwarz, que classifica o narrador machadiano como volúvel. Para Souza, o termo volúvel é questionável porque “pressupõe-se uma pessoa, particularmente uma pessoa sem personalidade”. Nesse viés, ficaria difícil a caracterização do narrador como uma pessoa, pois se trata de um “fingidor de toda persona correspondente a qualquer posição ideológica” (Souza 2006: 70). Embora o teórico diga ser problemática a noção de narrador volúvel utilizada por Schwarz, procurarei ressaltar os pontos de contato entre os dois críticos no que se refere ao narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Pretendo demonstrar que o texto de Souza muito mais contribui, com perspectiva diferente, para a ideia do narrador volúvel de Schwarz do que a deslegitima. Notar-se-á que os dois textos se complementam. Nesse sentido, a partir dos argumentos contrários de Souza ao narrador volúvel, esboçarei como uma leitura auxilia a outra para buscar uma abrangência maior da complexidade que é o narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Vale notar, antes de qualquer coisa, que as leituras de ambos têm contribuições essenciais para o romance machadiano e não é possível pensar a crítica machadiana e até mesmo um estudo sobre Machado de Assis sem antes compreender a tese de cada um. Dito isso, a proposta é evidenciar aspectos que estabelecem diálogos entre os textos, o que pode resultar no problema de qualquer leitura direcionada: deixar partes importantes de fora. Ronaldes de Melo e Souza (2006: 20) conceitua o narrador machadiano como mímico-dramático por ver nele a capacidade de outrar-se a cada instante, ou seja, dramaticamente o narrador é capaz de se tornar vários personagens. Essa metamorfose contínua faz com que o narrador se vista de múltiplas máscaras, não possibilitando a esquematização de alguma. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

266

Felipe Oliveira de Paula (UFMG) O NARRADOR DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS EM DUAS VERSÕES COMPLEMENTARES

Deste conceito de Souza é possível tecer duas observações quanto ao narrador volúvel de Schwarz: primeiro, a capacidade “camaleônica” de ser vários personagens, conforme a necessidade do momento também é reconhecida por Souza. Ambos os críticos realçam que a linguagem é moldada conforme o objeto a ser representado, isto é, o narrador está sempre outrando-se, logo a narrativa também muda, acompanhando as transformações do sujeito falante; a narrativa é mimética. Roberto Schwarz (1997) não se utiliza da mesma teoria que se fundamentou Melo e Souza, advinda da dramatização, mas também reconhece a constante mutação do narrador em vários personagens, como fica claro no seguinte trecho: “O que vemos é que, quase que de frase a frase, o narrador vai mudando de personagem. Quer dizer, num momento ele é metódico e esclarecido, noutro ele está na moda, noutro ele é irreverente...” (Schwarz 1997: 43). A segunda observação vem da consideração de Souza (2006: 20) ao afirmar que o narrador se utiliza de múltiplas máscaras. Assim como este autor pensa ser questionável o termo volúvel, como dito acima, também Schwarz (citado por Bosi), pelo mesmo motivo, prefere não utilizar a ideia de máscara, “eu considero problemática a utilização da noção de máscara porque naturalmente supõe que atrás dela exista a cara propriamente dita. E uma das grandes novidades do Machado de Assis é a ausência de uma cara atrás da máscara” (Bosi 1980: 334). Mesmo não chegando a um consenso sobre o melhor conceito para caracterizar o narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas, tanto Schwarz quanto Souza concordam que é nele que está contida a grande força “revolucionária” do livro. Roberto Schwarz (1997: 41) relaciona essa inovação com a situação histórica em que a sociedade brasileira se encontrava: o fim da escravatura e a transição de um sistema monárquico para um sistema republicano. Havia uma relação ambígua na estrutura social brasileira, pois, ao mesmo tempo em que a elite nacional se sentia pressionada para acompanhar as ideias progressistas vindas da Europa e se modernizar, entrando para a burguesia mundial em constituição, ela conservava o tipo de relacionamento colonial, privilegiando o clientelismo e a cordialidade. Dentro desse pensamento, observa-se que no Brasil houve uma espécie de liberalismo especial, um “desenvolvimento desigual e combinado”. Para tanto, vale a pena a citação de um trecho longo, mas muito esclarecedor: No que diz respeito ao ideário liberal, encontramos uma variação de apreciações correlata. Necessário à organização e à identidade do novo Estado e das elites, ele representa progresso. Por outro lado não expressa nada das relações de trabalho efetivas, as quais recusa ou desconhece por princípio, sem prejuízo de conviver familiarmente com elas. Daí um funcionamento especial, sem compromisso com as obrigações cognitiva e crítica do Liberalismo, o que abala a credibilidade deste último e lhe imprime, a par da feição esclarecida, um quê de gratuidade, incongruente e iníquo. Esta complementaridade entre instituições burguesas e coloniais esteve na origem da nacionalidade e até hoje não desapareceu por completo (Schwarz 1997: 37-38, grifos do autor).

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

267

Felipe Oliveira de Paula (UFMG) O NARRADOR DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS EM DUAS VERSÕES COMPLEMENTARES

Isto posto, entende-se que uma das genialidades de Memórias Póstumas está na internalização de uma peculiaridade objetiva das relações sociais do Brasil como nação, a partir da Independência, e utilizá-la na forma narrativa. Assim, a volubilidade do narrador é vista como constante desrespeito de alguma norma, ou para usar as palavras de Schwarz (1997: 54): “o escândalo das Memórias está em sujeitar a civilização moderna à volubilidade”; utiliza-se os elementos modernizantes na medida em que for conveniente para a aristocracia. A relação dialética entre norma e infração subsidia a volubilidade do narrador e pode ser percebida tanto no âmbito social quanto na esfera do individualismo. Já Ronaldes de Melo e Souza (2006: 78) demonstra que a grande “revolução” do narrador machadiano está na sua habilidade de conciliar as oposições antagônicas, possibilitada pela capacidade mimética de ser sempre o mesmo artista, mas nunca o mesmo personagem. Essa capacidade de se metamorfosear para representar o outro possibilita substituir toda oposição antagônica como oposição complementar, ou seja, o que poderia ser visto como excludente se torna coexistente na intriga, como a morte e a vida. O ponto central de O romance tragicômico de Machado de Assis gira em torno de constatar a ironia formal3 em cada romance de Machado. Nesse viés, “a ironia suprema do narrador machadiano decorre do reconhecimento de que o ser do mundo e do homem se manifesta como duplicidade originária, e não como unicidade ontoteológica” (Souza 2006: 35). No que se refere às Memórias Póstumas de Brás Cubas, Melo e Souza vê a técnica narrativa do defunto autor como uma invenção genuinamente machadiana, a qual possibilita a disjunção do narrador em duas partes: eu-narrador e eu-personagem, ora ele atua distanciado dos eventos, ora ele se metamorfoseia representando um ator emocionalmente envolvido pelos acontecimentos dramáticos. Desse artifício, passa a existir a grande novidade do romance de Brás Cubas: a simultaneidade de dois pontos de vista, o eu de agora e o eu de outrora. Sendo assim, a ironia do defunto autor consiste na exposição do “retrato de um personagem que se revela em seu próprio ser a natureza ambígua e reticente da condição humana” (Souza 2006: 118). O que permite dramatizar o conflito da voz do trágico e do cômico coexistindo em uma mesma consciência. Desse modo, Souza não consegue identificar o narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas com uma classe social, já que Brás Cubas, morto, desclassifica todos os personagens inclusive a si mesmo, como fica bem claro no capítulo XX intitulado “Bacharelo-me”, quando fala das matérias feitas no curso de Direito em Portugal: “estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel”, e continua: “Tinha conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um acadêmico estróina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo

Como o conceito ironia carrega vários sentidos, Souza tem a preocupação de cercar o termo embasando-se na ideia de ironia romântica, a qual tem a parábasis como figura central. Para maior aprofundamento sobre ironia ver Pierre Schoentjes (2003). 3

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

268

Felipe Oliveira de Paula (UFMG) O NARRADOR DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS EM DUAS VERSÕES COMPLEMENTARES

romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituições escritas” (Assis 1997: 78). Essa desclassificação do próprio eu – ao mesmo tempo em que pode ser visto como um “eu” diferente, pois se trata de um “eu de outrora”4 – pode ser identificada também no capítulo XXIV, “Curto, mas alegre”: “talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto” (Assis 1997: 94). Interpreta-se que a morte é o grande acontecimento que propicia essa maneira do narrador tratar a todos, inclusive a sim mesmo: “Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser!” (Assis 1997: 96). Neste ponto também é permitido manter uma relação com a tese de Schwarz (1997: 58) quando ele utiliza a ideia de “universalização da volubilidade”. Para o autor de Um mestre na periferia do capitalismo, a volubilidade não está apenas na esfera social, mas também na humana, na pessoal. Além da narrativa de Brás Cubas ser volúvel e “escorregadia”, também o é o ser humano em geral. O que inicialmente era possível perceber apenas no narrador e no personagem foi sendo aprofundado: a volubilidade “é o pendor permanente de todos; designaria, neste caso, uma insuficiência metafísica do ser humano. Por outro lado, não lhe faltam também as conotações de cor local, mais genéricas do que uma propensão de fulano ou sicrano, mas nem por isso universais” (Schwarz 1997: 59). Um exemplo de personagem volúvel, além de Brás Cubas, é Lobo Neves. Tal aspecto fica evidente quando Brás se encontra com Neves no corredor do teatro e diz: “Mas no intervalo seguinte, prestes a levantar o pano, encontramo-nos num dos corredores, em que não havia ninguém. Ele veio a mim, com muita afinidade e riso, puxou-me a um dos óculos do teatro, e falamos muito, principalmente ele, que parecia o mais tranquilo dos homens” (Assis, 1997: 252). Para manter as aparências, Lobo Neves conversa tranquilamente com Brás Cubas, chegando a assuntar naturalmente sobre Virgínia: “Cheguei a perguntar-lhe pela mulher; respondeu que estava boa, mas torceu logo a conversação para assuntos gerais, expansivo, quase risonho” (Assis, 1997: 253). Assim, Roberto Schwarz (1997: 70) demonstra que a volubilidade do narrador não pode ser determinada apenas pela estrutura social, pois ela é condição humana, é feição pessoal e é também característica histórica da sociedade brasileira. Todavia, o que sobressai na análise do crítico materialista é a volubilidade como característica da sociedade brasileira da época, “conotações de cor local”, sem, contudo, cair na falha de ser reducionista. É exatamente neste ponto que o estudo de Souza se mostra importantíssimo para compreender de outro modo o narrador machadiano. Pois o autor toma como partida, como já foi dito, o comportamento do narrador machadiano como ator 4 Nesse sentido o estudo de Juracy A. Saraiva (1993) também é de grande valia ao demonstrar uma disjunção formal existente em Memórias de Brás Cubas, entre narrador e personagem.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

269

Felipe Oliveira de Paula (UFMG) O NARRADOR DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS EM DUAS VERSÕES COMPLEMENTARES

dramático e relaciona-o à condição dual do humano. Enquanto Schwarz tem um olhar mais cuidadoso para a sociedade, Souza tem para a ambiguidade imanente no ser humano. Por último, mas não menos importante, vale salientar a consideração que Souza elabora sobre a elite social brasileira. Para o estudioso de Machado, o que Schwarz denomina “desigual e combinado”, isto é, a vivência conjunta da norma liberal burguesa internacional e do sistema escravocrata da oligarquia brasileira, nada mais é do que uma situação criada conscientemente pelos senhores interessados no escravismo para a produção interna e no liberalismo para a comercialização externa do produto do mercado liberal. O disfarce é uma exigência do comércio exterior. Dissimulando o que é e simulando o que não é, a elite brasileira do século XIX detém lucro duplicado, não gastando para produzir nem se desgastando para vender. No jogo cínico da dissimulação e da simulação, a oligarquia nacional nada tem de volúvel, porque se mantém sempre na mesma e única posição ideológica de dominação (Souza 2006: 27).

Neste sentido, pode-se denominar a sociedade brasileira como volúvel, pois ela não teria mudado de posição, apenas teria jogado “para a platéia”, exibindo máscaras para se manter no poder. Para tal argumentação, Souza utiliza um trecho de Bons Dias! e outro de Esaú e Jacó para comprovar que Machado de Assis tinha consciência de que nada modificara com a mudança do regime Monarquista para o regime Republicano, visto que o poder continuou sendo oligárquico. As observações de Souza são de grande valia também para elucidar partes do livro de Schwarz que, por deslize ou pela complexidade do estudo, possam ter passadas despercebidas; o mesmo ocorre quando se lê Schwarz e se volta ao texto de Souza, embora este não seja tratado diretamente por Schwarz. No primeiro capítulo do livro analisado, “Uma desfaçatez de classe”, Roberto Schwarz demonstra como a mão-de-obra dos ex-escravos deixava de ser uma sobrevivência passageira para fazer parte da engrenagem do sistema. As liberdades civis, além de não mudar os modos atrasados de produção, afirmava-os ainda mais, agora com pressupostos modernos. Conforme o crítico, essa especificidade se tornou lucrativa “em proveito da recém-constituída classe dominante nacional, a cujo adiantamento a sua continuidade interessava diretamente” (Schwarz 1997: 57). Noutro trecho no mesmo capítulo (Schwarz 1997: 41), lê-se que não era problema para a elite oligárquica ter que lidar ao mesmo tempo com a norma liberal e com a infração vinda do grande sistema escravocrata. Se a condição social do Brasil não obrigava a classe dominante a optar, “porque abrir mão de vantagens evidentes?”. Assim sendo, “a valorização da norma e desprezo da mesma era da natureza do caso”, promovidos e mantidos por interesses de “classes estáveis”. A partir disso, entende-se que a volubilidade e manutenção da situação social da elite brasileira do século XIX pode ser pensada ao lado da noção de “astúcia da razão cínica” da classe dominante, defendida por Souza.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

270

Felipe Oliveira de Paula (UFMG) O NARRADOR DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS EM DUAS VERSÕES COMPLEMENTARES

Conclusão Desse modo, estudando os dois críticos, compreende-se que não é possível caracterizar Brás Cubas apenas como uma fisionomia particular de classe, mas também não é possível deixar de fora tal relação. Se a classe dominante brasileira vai aonde o vento soprar mais forte, ou melhor, para onde houver mais lucro e menos esforço, sempre mudando de direção para sua manutenção no poder, é possível perceber essa capacidade de “desidentificação permanente” no narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Também uma leitura do ser humano que se limite a ver apenas uma versão se mostrará falha pela incapacidade de reconhecer a “dualidade ontológica do ser”, já que ele precisa ser pensado metafísica e historicamente. Roberto Schwarz e Ronaldes de Melo e Souza aprofundam estudos sobre o narrador machadiano com fundamentação teórica e objetivos diferentes. Grosseiramente falando, o primeiro volta-se para a relação exterior e o segundo para a relação interior. Nesse pensamento, a leitura de críticos com olhares diferentes nos ajuda a reconhecer a alta complexidade do narrador-personagem, defunto autor, de Memórias Póstumas de Brás Cubas.

THE NARRATOR IN MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS: TWO COMPLEMENTARY VERSIONS Abstract: This paper investigates the nearness between two experts in Memórias Póstumas de Brás Cubas, a Machado de Assis’ novel published in 1881. The specialists are: Roberto Schwarz, author of Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis (1997), and Ronaldes de Melo e Souza, who wrote O romance tragicômico de Machado de Assis (2006). Athough Melo e Souza complains about a Schwarz’s idea of “slippery narrator”, I believe Souza’s writing more legitimates it than refutes Schwarz. Keywords: literary review; narrator; Machado de Assis.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado. Obra completa. 3 vol. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. BOSI, Alfredo; GARBUGLIO, José Carlos; CUVELLO Mario; FACIOLI, Valentim. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982. MEYER, Augusto. Machado de Assis (1935-1958). Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

271

Felipe Oliveira de Paula (UFMG) O NARRADOR DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS EM DUAS VERSÕES COMPLEMENTARES

ROMERO, Silvio. Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira. Campinas: Unicamp, 1992. ROUANET, Sério Paulo. Riso e Melancolia: A forma shandiana em Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garret e Machado de Assis. São Paulo: Cia das Letras, 2007. SARAIVA, Juracy Assmann. Circuito das memórias em Machado de Assis. São Paulo: Edusp; São Leopoldo: Unisinos, 1993. SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Editora 34, 1997. SECCHIN, Antônio Carlos; ALMEIDA, José Maurício Gomes; SOUZA, Ronaldes de Melo. Machado de Assis: Uma revisão. Rio de Janeiro: In-Fólio, 1988. SCHOENTJES, Pierre. La poética de la ironia. Madrid: Cátedra, 2003. SOUZA, Ronaldes de Melo. O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006.

ARTIGO RECEBIDO EM 29/02/2012 E APROVADO EM 25/03/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

272

QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO Valeria Rosito (UFRRJ)1

Resumo: Se, de forma geral, os discursos referentes à “fragmentação” e “desterritorialização” do sujeito dominam a cena crítica na contemporaneidade, a prosa e a poesia de alteridades periféricas se produzem em contracorrentes temáticas e estéticas, impulsionadas por um eu alargado e plural e substantivado na referenciação histórica e territorial. A exemplaridade dessa tensão é examinada textualmente à luz do contexto histórico pós-ditatorial dos anos 80 e 90 do século XX, assim como da intensificação da escrita das margens nas duas primeiras décadas do século XXI. Palavras-chave: Crítica literária; Literatura brasileira contemporânea; Poesia brasileira contemporânea; Estudos subalternos.

Circunscrição temporal e delimitação do problema Antes da contextualização específica propriamente dita, apresentamos um exercício prévio de circunscrição do período chamado “contemporâneo” e das autorias denominadas “periféricas”, “marginais”, ou ainda “menores”. Tomamos como âncora teórica para a delimitação temporal das amostras em tela dois ensaios de Silviano Santiago, escritos a propósito da proximidade do milênio: “Democratização no Brasil, 1979-1981” (1998) e “O narrador pós-moderno” (2002). No primeiro, vale-nos a articulação do crítico entre o momento político de volta dos exilados políticos e o afloramento de uma tendência generalizada e de alcance aos nossos dias, de valorização dos gêneros documentais e de natureza autobiográfica. No segundo, interessa-nos a discussão do deslocamento da experiência (e, em consequência, da narrativa) da ação para a contemplação, um quadro também mais acentuado na experiência de culturas novas, modernizadas pela visualidade. Professora Adjunta de Literatura Brasileira, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto Multidisciplinar. Doutora em Literatura Comparada pela UERJ e Mestre em Estudos Literários pela SUNY-UB. Contato: [email protected]; [email protected]. 1

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Valeria Rosito (UFRRJ) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

No que tange à qualificação “periférica” (“marginal”, “menor”, “subalterna”) das autorias em tela, cabe evocar os termos de Deleuze e Guattari (1990), aplicáveis à pena de um Kafka, por exemplo, através dos quais se ressalta o contorno inexoravelmente político e anterior às questões de índole biográficas: “O triângulo da família está interconectado com outros triângulos – comerciais, econômicos, burocráticos, jurídicos – que determinam-lhes seus valores” (Deleuze & Guattari 1990: 59).2 Escrever das margens significa vivenciar, no limite, condicionantes culturais amplos responsáveis por formas de exclusão postas, ainda no rastro daqueles filósofos, “em termos de vida ou morte” (Deleuze & Guattari 1990: 60).3 No caso específico de nossas margens, nas quais questões complexas e singulares de raça e classe (e gênero) se imbricam, a visibilidade e o fortalecimento das vozes dos que foram historicamente silenciados não se restringe aos anos mais recentes de vigência da ditadura militar. Falam de um lugar muito mais longínquo no tempo e de uma condição de exclusão muito mais visceral, exigente da apropriação radical de códigos linguísticos e literários que torne possíveis as condições mínimas de diálogo e de pertencimento. Com o propósito de examinar como as formulações dessas subjetividades periféricas traduzem uma resposta consistente e contrária à noção dominante de dissolução do eu na pós-modernidade, a discussão proposta se organiza em duas partes. A primeira expõe sucinta e pontualmente efeitos dos anos ditatoriais sobre a produção das gerações ativas ou emergentes nos anos 80 e 90 e recorre, a partir das considerações de Marcos Siscar (2005) sobre a poesia contemporânea, a recortes poéticos daquelas décadas para ilustrar a “hipótese da fragmentação”. A segunda parte, mais adensada, se alicerça no exame de uma produção periférica da primeira década e começo da segunda década do século XXI, tendo em vista a procedência de classe, cor, e, ainda gênero de seus escritores. A hipótese aventada é a de que, na contracorrente ideológica da pós-modernidade, a lavra periférica parece evidenciar uma única certeza: a de que o espaço de constituição da primeira pessoa se faz agora no plural. Ou seja, ações biográfica e historicamente arraigadas em múltiplos gêneros literários dão mostras de um novo fôlego e resgatam o eu, necessariamente a reboque do nós.

De mordaças e de mercadorias O triênio destacado por Silviano Santiago, de 1979 a 1981, é marcado pela distensão política, após os longos anos ditatoriais, e pelo retorno dos exilados políticos. A lista dos mais vendidos na revista Leia Livros a partir de meados de 1981 Tradução minha do trecho em inglês “In this way, the family triangle connects to other triangles – commercial, economic, bureaucratic, juridical – that determine its values” 3 Paráfrase e tradução minha do trecho em inglês: “What in great literature goes on down below, constituting a not indispensable cellar of the structure, here takes place in the full light of day; what is there as a matter of passing interest for a few, here absorbs everyone no less than a matter of life and death.” 2

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

274

Valeria Rosito (UFRRJ) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

atesta um espantoso interesse do público leitor pela escrita testemunhal ou biográfica, expulsando os best sellers estrangeiros traduzidos da liderança nas vendas. São aqueles que voltam ao país, os autorizados a falar. O que viram, o que sofreram, sua ação passada e glória (precária), enfim, a expressão da experiência – derradeira, talvez, na história do pensamento utópico e da militância política. Idelber Avelar (2003) identifica nessas narrativas um caráter fortemente afeito ao espetaculoso, e, por isso mesmo, despolitizado, sob medida para a expiação de culpa da classe média “que foi ao paraíso” durante os anos de chumbo (Avelar 2003: 60-67). O crescimento e a diversificação do mercado editorial se confirmam também com a coincidente emergência, com base ainda na revista Leia Livros da mesma época, da lista dos mais vendidos infantil. Sintomática e confortavelmente, a pena de Ziraldo desliza da ancoragem política para o debut de personagens “maluquinhos”, referência longeva e ainda atual entre as crescentes classes consumidoras. Seja como for – catarse ou luto – interessa notar que a motivação essencialmente político-histórica da época forja um gênero na prosa de tendência à confissão, sustentado, no fronte ideológico, pela supervalorização das “falas de dentro” e do documentário (Rosito 2004) e, no fronte técnico, pelo desenvolvimento célere da tecnologia da comunicação e imagem. Na esteira de Santiago, ao narrador “pós-moderno” foi subtraída a experiência como ação, assim como a função de alimentar a tradição contando de si, restando-lhe apenas o consolo, à guisa de jornalista, da contemplação e da descrição da ação alheia. O paradoxo entre o confessar e o calar sobre si é somente aparente, pois talvez se deixe compreender à luz mesmo da exacerbação do espetáculo. Reduzido à contemplação do alheio, esse narrador-à-guisa-de-jornalista parece poder resolver o impasse da narrativa somente ao tornar-se outro, ao alienar-se, colocando-se a si próprio em espetáculo, como pontifica Walter Benjamin: “Na época de Homero, a humanidade oferecia-se em espetáculo aos deuses olímpicos; agora ela se transforma em espetáculo para si mesma. Sua auto-alienação atingiu o ponto que lhe permite viver sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem” (Benjamin 1994: 196). Ainda que não exclusivamente, a expressão daquele esgarçamento entre o eu e a malha coletiva mais ampla parece se fazer sonora sobretudo entre aqueles artistas e intelectuais que testemunharam a repressão dos projetos utópicos para os quais contribuíram diretamente, como as seções seguintes procuram elucidar.

“O poeta vai à feira” – ecos de Baudelaire no Brasil dos anos 80 Em Paris do Segundo Império, Walter Benjamin aponta que na lírica de Baudelaire o poeta vai à feira para identificar possíveis compradores para seus poemas – então já uma mercadoria entre tantas outras (Benjamin 1989: 29-30). Como sugerido em relação à prosa ficcional, parte significativa da poesia no Brasil encontra durante todo o decurso da década de 80 e início da década de 90 sinais generalizados de perplexidade, deflagrada, ironicamente, pela distensão política, assim como por sua absorção por um mercado em expansão, como já sugerido. Cumpre a lembrança Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

275

Valeria Rosito (UFRRJ) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

do ápice da implementação dessa nova lógica mercantil com o advento da era Collor, ao final dos anos 80. A respeito da alteração do status do poeta, impotente (e cooptado, talvez) diante da sedução do mercado, Ana Cristina Cesar em “A teus pés” (1984), já poetiza: O tempo fecha Sou fiel aos acontecimentos biográficos Mais que fiel, oh tão presa”! Esses mosquitos que não largam! Minhas saudades ensurdecidas por ciganas! O que faço aqui No campo Declamando aos metros versos longos e sentidos? Ah que estou sentida e Portuguesa, e agora não sou mais, veja, Não sou mais severa e ríspida: Agora sou profissional. (Cesar 1984: 18)

Além da consciência dessa profissionalização do artista, os próprios versos vêm “aos metros”, quantificados, aturdindo a sensibilidade da poeta, outrora “severa e ríspida” e “prendendo-a” aos acontecimentos biográficos, assim como às demandas da circulação de mercadorias. Se, por um lado, não se explicita um nexo causal entre biografismo e profissionalização, por outro, a associação entre os termos, em cotejo com os fenômenos testemunhais observados na prosa, prova-se capital para a compreensão dos efeitos do desmonte de projetos coletivos de que trata a seção anterior.

Mudez e mudança A perplexidade da geração silenciada se traduz ainda, na esfera da produção poética dos anos medianos da década de 80 até a década de 90, pela presença do silêncio, adensado e objetivado em linguagem, portanto inequivocamente produtivo. É de se notar sua natureza própria e localizada, distante do silêncio de simbolistas e parnasianos, que também intuíram e formularam uma poética auto-referencial, porém autônoma, interessada estreitamente na cadeia escorregadia e infinita de significantes. Aqui, no entanto, as cicatrizes políticas haviam sido severas e parece pertinente indagar se o “colapso” do pós-moderno não encontra nesses poetas uma expressão historicamente mais referenciada. Quatro poemas em quatro poetas atendem às exigências de demonstração, alguns dos quais presentes nas reflexões de Marcos Siscar (2005) sobre a poesia brasileira das últimas décadas do século XX. São eles o “Pós-Tudo” de Augusto de Campos, de 1985; e o “Apagar-me”, de Leminski, de 1983; “Collapso Linguae”, de Carlito Azevedo, de 1992; e “os insetos”, de Arnaldo Antunes, de 1992. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

276

Valeria Rosito (UFRRJ) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

Sobre o primeiro, é notório o ensaio de Roberto Schwarz (2002) em Que horas são? no capítulo intitulado “Marco histórico”. Na análise, o crítico sublinha a tensão criada pela polissemia e homofonia em torno de “mudo” e “extudo”, respectivamente. Como sói acontecer aos poemas concretos, suas possibilidades de fruição se intensificam se pelo menos dois dos nossos sentidos forem mobilizados: o da visão e o da audição. O grafismo próprio e essencial da poesia concreta, da qual Augusto de Campos foi um dos mais notórios expoentes, retorna nesse poemasíntese de época. Impulsionado outrora pelo desejo de mudança, o eu-lírico encontrase então perplexo, silente e “mudo” no momento pós-utópico, já em meados da década de 80, como a seguir constata-se: QUIS MUDAR TUDO MUDEI TUDO AGORAPÓSTUDO EXTUDO MUDO (Campos apud Schwarz 2002: 57)

“Mudo”, primeira pessoa do singular do verbo mudar e adjetivo sinônimo de silente, indiciam incerteza sobre alternativas ainda não realizadas nesse momento pós – seja ditadura, modernidade e/ou utopia. O detalhe de assinatura do poeta como parte do próprio poema, grafado igualmente em letras de forma, próprias dos cartazes, em tipos bem menores do que os do corpo do poema, sugere-se, segundo Schwarz, talvez como uma retomada do eu após sua pulverização com o fim das antigas utopias. Na mesma linha da tensão apagamento/reinscrição, dá-nos mostra Leminski (1981), ainda antes de Augusto de Campos, no célebre “Apagar-me”. Vejamos: apagar-me diluir-me desmanchar-me até que depois de mim de nós de tudo não reste mais que o charme (Leminski 1981: 63)

“Desmanchar-me”, no terceiro verso, e “charme”, no último, expõem o atrito. O substrato do eu, quem sabe um retorno arquetípico à noção de sujeito como “substrato” e “assujeitado” ao mundo, que se impôs mais forte do que o Sujeitopoeta sonhador de mudanças, acena tímido, talvez, para um reinício, uma fagulha de onde possa brotar um caminho novo, ainda pouco claro para esta geração.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

277

Valeria Rosito (UFRRJ) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

Em “Collapsus Linguae”, de 1992, Carlito Azevedo pontifica a questão da seguinte forma: Ninguém é o mesmo depois de um cataclisma Menos que espasmo, Mais que marasmo Fica aquela cisma. (Azevedo 1992 apud Siscar 2005)

Mudanças e revoluções, embutidas no “cataclisma” sugerido, oscilam entre a paralisia própria do “marasmo” e a convulsão consequente, restando, afinal, a “cisma”, a interrogação suspensa ao fim do poema, sem respostas. A homofonia sugestiva de sisma, com “s”, aponta para clivagem e divisão, e engrossa o caldo das incertezas forjadas pela poesia deste momento histórico. Marcos Siscar é mais cauteloso ao restringir a “degradação dos valores político-poéticos” a somente parte dos poetas dessa geração, identificando inflexões de outra natureza. Atenta ainda para o pertencimento de Carlito Azevedo a uma geração mais jovem de poetas, mas nem por isso menos confortável no impasse enfrentado por suas gerações antecessoras e utópicas. Em seus termos, “Se valores tais como “nacionalidade”, “subjetividade”, “experimentação”, “novo”, etc. não são mais totalmente adequados ao sentido dos projetos dos novos poetas, estes também não estão em condições de oferecer respostas gerais. E, no entanto, a cisma está presente” (Siscar 2005). Sabidamente, Augusto de Campos foi figura de proa nas vanguardas concretistas, política e historicamente partícipe do investimento desenvolvimentista dos anos 50. A noção de pertencimento da época se sustentava ainda nos conceitos de Estado-nação e, inegavelmente, passava pelo ímpeto da construção e consequente deferência à arquitetura, tanto por parte da intelligentsia e da classe artística, como por parte do Estado. Não ao acaso os cinquenta anos em cinco testemunharam a aliança ímpar entre ambos, cujo corolário se erige com a construção de toda uma cidade, a capital federal dos sonhos de uma era. Se naquela década a “estética do significante” postulava uma poética inteiramente imanente, auto-referencial, cerebral e geometrizante, com aversão e expurgo de elementos subjetivos (e, portanto a projeções do eu), seus herdeiros já entram em cena mais dubitativos. Debutam no rescaldo da utopia frustrada e, se não se quedam paralisados e mudos, como seus antecessores mais velhos, avançam com muito mais cautela e evitam julgamentos definitivos. Arnaldo Antunes, por exemplo, crítico, compositor e músico, com produção notável em poesia visual, comenta em uma entrevista de 2006 sobre a recepção surpreendentemente conservadora acerca do poeta “híbrido”, aquele que, como ele e adentrado no século XXI, parece ousar um trânsito frouxo entre gêneros e multimídias: “lá vem o roqueiro querendo escrever poesia”, aos olhos da crítica “letrada”, ou “não me venha com papo cabeça”, por parte dos egressos da música popular (Ferreira 2008:1). A expressão de incerteza, seja em relação aos volteios da Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

278

Valeria Rosito (UFRRJ) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

razão, seja em relação aos sentidos e à paixão, é assim organizada no poema “os insetos”, integrante do livro As coisas (1992), também de sua autoria: Parecem rochas mas são ni nhos de cupins. Parecem fru tos mas são colmeias Parecem nuvens mas são enxames Parecem longe mas são pe quenos. Parecem mortos mas estão quietos. parecem terra mas estão vivos Parecem letras nos livros. Parecem inofensivos. Parecem grandes Mas estão perto. Parecem lerdos mas estão quietos. Pa recem ser mas são incertos. (Antunes 1992: 85)

Aqui e agora, um enigma irresoluto sobre uma ontologia oculta (de que se fala?) – desfaz a dicotomia entre o ser e o parecer, diluindo, por incorporação silábica, o próprio “ser” no significante “incerto”, como parecem sentir algumas gerações de artistas em atividade no terceiro milênio.

Eu versus nós: calos falantes A contra-palavra à distopia pós-moderna só pode se proferir, como já sugerido, das margens para o centro. A produção que nos interessa, se resposta dialógica à entropia herdada de final de milênio, procede de literatos e poetas social, racial e, por isso, mercadologicamente periféricos. Articulam-se, no concurso entre história e estética, manipulam tecnologias e códigos linguísticos com maestria (seja pela coroação de esforços autodidatas ou pelo ingresso na cena acadêmica) e, há muito mais tempo do que a intelligentsia, não se iludem com promessas de pertencimento formuladas de cima para baixo, ao custo do comprometimento de suas causas. Conhecem o fracasso do projeto de nação antes mesmo que a globalização ditasse ao mundo a nova cartilha da “desnacionalização”. Em suma, recriam-se numa memória que inclui apropriações da tradição (e da literatura) ocidental, assim como resgatam aquelas tradições e referências que lhes foram usurpadas ao longo dos séculos de formação da brasilidade. Para restringir a discussão à exemplaridade mínima exigida pelo recorte proposto, elegemos três penas de uma geração cuja produção literária e poética se notabiliza em vários gêneros na virada do milênio. Trata-se da lavra de Conceição Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

279

Valeria Rosito (UFRRJ) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

Evaristo, Sérgio Vaz e Rogério Batalha. Naturalmente, a medida dessa notoriedade não pode corresponder à sua projeção na mídia hegemônica ou a seu ingresso nas academias, pois, afinal, perguntaria Gayatri Spivak (2010): “será mesmo que os subalternos podem falar?”. Como aponta Silviano Santiago no ensaio de que já nos valemos (1998), os procedimentos etnográficos vêm fortalecendo a crítica cultural no Brasil nos últimos trinta anos, e ampliando a discussão, em outros fóruns, de objetos tradicionalmente menos “nobres” ao beletrismo. É conhecida, e hoje mais problematizada, a desqualificação apriorística pela crítica literária de objetos e sujeitos que em nada deixam a dever em complexidade àqueles cuja precedência lhes foi outorgada por razões de classe, cor e/ou gênero, prioritariamente ao valor de sua lavra. É na clave do resgate desse “passado-dívida” que fala Conceição Evaristo. A escritora imbrica na recordação sua história pessoal com a dos seus, trabalhando uma estética na qual o biografismo se torna condição sine qua non para uma autoria que se quer sofisticada, coletiva e plural e, de novo, em paridade com a da tradição “culta”. Em suas palavras, ela vem de uma “estirpe” de lavadeiras negras de Minas Gerais, tendo passado, ela própria, por condições sociais adversas no Rio de Janeiro, onde estabeleceu residência há várias décadas. Acadêmica, prosadora e poeta, Conceição teve seu romance Ponciá Vicêncio adotado no vestibular da UFMG pouco tempo após sua publicação, no final da primeira década do milênio, escreveu Becos da Memória, uma autobiografia romanceada e, recentemente, em 2011, o livro de contos Insubmissas Lágrimas de Mulheres. Os extratos de que nos ocuparemos procedem da coleção de poemas, intitulada Poemas da Recordação e Outros Movimentos, de 2008. Aqui a poeta dá intenso movimento ao conceito de re-cordação nos termos de Emil Staiger (1992), qual seja, o de levar direto ao coração a experiência da poesia. Recordar, nesta poesia, é também, como em Walter Benjamin sugere a respeito da História, não somente “conhecer o passado como ele de fato foi”, mas “apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (Benjamin 1994: 224). Portanto, o conceito de recordação se deflagra como por uma reação visceral e involuntária, e se encorpa num processo narrativo mnemônico complexo para o qual concorrem o lembrar e o esquecer. Dos quarenta e quatro poemas constitutivos do livro, quase trinta por cento se modelam no feminino desde os seus títulos: “Da menina”, “Da velha à menina”, “Fêmea-Fênix”, “Do sangue do nosso ventre”, “Os olhos das mulheres não dormem”, “Amigas”, entre outros. Dois eixos básicos, portanto, emanam de sua poesia: um sentido da História não-linear, onde sobressaem a negritude e o feminino; e a relação com um eu coletivo, insistimos, que resiste à dissolução pós-moderna, respondendo, consistentemente, às dúvidas apresentadas pela geração “pós-tudo”. “Malungo-brother-irmão’, traduz em três línguas, quibundo, inglês e português, a superposição histórica que nos leva do trabalho escravo do negro desenraizado e apartado, a uma irmandade arcaica e mais inclusiva do que a proposta de nação legado pelas Luzes: No fundo do calumbé Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

280

Valeria Rosito (UFRRJ) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

nossas mãos ainda espalmam cascalhos nem ouro nem diamante espalham enfeites em nossos seios e dedos [...] No fundo do calumbé nossas mãos sempre e sempre espalmam nossas outras mãos moldando fortalezas esperanças, heranças nossas divididas com você: malungo, brother, irmão. (Evaristo 2008: 39)

Mais uma vez, o conceito de história tal como significativo para os vencidos, justapõe termos particulares de línguas estranhas entre si, irmanadas, no entanto, para a semântica da fraternidade, alargando e ressignificando o conceito ocidental de nação. Figurações e estratégias formais resultam num esmero estético que traduz referências externas na lógica interna de sua composição poética. Observemos um recorte do poema “Amigas”: Amigas Trago na palma das mãos não somente a alma, mas um rubro calo viva cicatriz do árduo refazer de mim Trago na palma das mãos a pedra retirada do meio do caminho [...] Tenho a calma de uma velha mulher recolhendo seus restantes pedaços. E com cuspo grosso de sua saliva uma mistura agridoce a deusa artesã, cola, recola, lima e nina o seu corpo Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

281

Valeria Rosito (UFRRJ) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

mil partido. E se refaz inteira por entre a áspera intempérie dos dias. (Evaristo 2008: 28-29)

Alusões ou referências um passado poético lavrado por Drummond e Bilac irrompem na releitura de Conceição Evaristo, e posicionam a “deusa artesã” negra e bela em seu embrutecimento físico em paridade com seus antecessores masculinos consagrados. Se seu conterrâneo mineiro para diante da pedra no caminho, esse eu lírico, biográfica e historicamente marcado pela escravização, remove o entrave e prossegue. A pedra, que no primeiro caso se traduz por uma constatação abstrata das dificuldades ao longo de toda e qualquer existência, ganha concretude e especificidade na voz daqueles a quem sempre coube o fardo próprio e o alheio. É franco também o contraste com o poeta de Bilac em “A um poeta”. Este trabalha “longe do estéril turbilhão da rua/Beneditino, escreve! No aconchego/Do claustro, na paciência. No sossego/ Trabalha, e teima, e sofre e sua” (Bilac [1919] 2010). Desconhecedora do sossego e do aconchego experimentados pelo parnasiano que se isola para criar, a poeta negra não “esconde os andaimes”; ao contrário, mostra os “calos e as cicatrizes”. Conhecedora que é dos verbos e nomes da tradição que a ignorou, “Cola, recola, lima e nina”, em dupla fertilidade: na procriação – pois nina – e na contrapartida métrica ao “trabalha e teima, e lima, e sofre, e sua” de seu predecessor monástico notório.

Eu versus nós: vida em verbo É também como Colecionador de Pedras, título de um dos poemas da coletânea homônima (2007), que Sérgio Vaz coloca o polegar na história, reiterando uma de suas expressões recorrentes. A ficha catalográfica de suas publicações trai a tensão, ainda sem síntese, entre o “periférica”, qualificativo da coleção que integra, e o “brasileiro/a”, que adjetiva a palavra-chave “literatura”, que ainda se quer nacional, e, daí, brasileira. O poeta paulista, taboanense da serra de coração e fundador da Cooperifa – Cooperativa Cultural da Periferia, em São Paulo – declaradamente vê poesia na vida. Participa, sistematicamente, da transmutação de vida em verbo em crescentes debates e oficinas pelas escolas e associações que visita com regularidade. Sua produção vem recebendo o entusiasmo da crítica atenta aos movimentos culturais que prosperam na aurora do milênio e que se forjam entre os “batidões” dos bares, as “quebradas” e, claro, as muitas pedras no caminho. Não desconhece nem rejeita, no entanto, projetos conjuntos com o Estado, já que abraça também ações parceiras referenciadas em seu recém-lançado livro de crônicas Literatura, Pão e Poesia, de 2011. Auto-nomeando-se “corsário das ruas”, manifesta-se “incomodado pela beleza do mar” (Vaz 2011: 174). Feiúra e brutalidade, ao contrário, são ressignificados numa forma de engajamento que equaciona beleza a tudo que verdadeiramente vital – portanto, histórico, biografável e, necessariamente para este poeta, pautados pela dor e pela fome, como entrevisto no “Banquete Lírico”: Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

282

Valeria Rosito (UFRRJ) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

Ontem faminto almocei um livro do Neruda com molho lírico à Cecília, bebi toda a poesia do Quintana e, de sobremesa, Drummond – delícia! Ainda belisquei uns sonetos do Vinícius enquanto esperava o jantar, Clarice. De nada adiantou: a fome só fez aumentar. (Vaz 2007: 41)

Entre o roncar literal do estômago vazio e a ilusão da saciedade pelas letras (belas!) reverenciadas nos seis primeiros versos, o poeta nato da periferia paulista, reafirma, na economia dos dois últimos versos, como quem acorda de um sonho, a inutilidade e, por isso mesmo, a gratuidade da poesia, que literalmente, para nada serve. Valida assim, como no manifesto de abertura do livro de crônicas, que o serviço social que presta com arte-arma-verdade “não revoluciona o mundo”, mas paradoxalmente “exercita a revolução” (Vaz 2007: 41). Observe-se n’ “O Milagre da Poesia”, a precedência e simultaneidade do ser-poeta em todos os primeiros versos, que vão anunciando uma miríade de “ocupações”, cruamente dissonantes das múltiplas escolhas embutidas no “que que eu vou ser quando crescer” – engenheiro, médico, operário, assassino, em gradação decrescente entre estrofes, conforme prestígio social, e encadeamento e repetição do primeiro ao segundo verso e do segundo ao terceiro verso de cada estrofe: Sou poeta e como poeta posso ser engenheiro, e como engenheiro posso construir pontes com versos para que pessoas passam passar sobre rios ou apenas servir de abrigo aos indigentes. [...] Sou poeta e como poeta posso ser assassino, e como assassino posso esfaquear os tiranos com o aço das minhas palavras e disparar versos de grosso calibre na cabeça da multidão sem me preocupar com padre, juiz ou prisão. (Vaz 2007: 22-23)

A ambivalência e intensidade semântica do verbo “poder”, também reiterado em todas as estrofes, se abre como possibilidade e anuência, permissão ressonando Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

283

Valeria Rosito (UFRRJ) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

incomodamente tanto a inocência do acaso quanto a contundência da omissão. Notese, finalmente ainda a produtividade da heresia, muitas outras vezes expressa por um ceticismo corajoso, que também lhe urge à ação, a única certeza de que se vale e última palavra da estrofe de fechamento do mesmo poema, que se encerra à guisa de exortação: Sou poeta e como poeta posso ser Jesus, e como Jesus posso descrucificar-me e sem os pregos na mão e os fanáticos nos pés andar livremente sobre terra e mar recitando poesia em vez de sermão. Onde não tiver milagres, ensinar o pão. Onde faltar a palavra, repartir a ação. (Vaz 2007: 23)

Concernem-lhe as possibilidades de ser e do ser, sem predicativos ou expressões de finalidade, furtadas aos que, por origem (cor e/ou gênero) não exercitam escolhas, a despeito de nutrirem sonhos, mas que, socialmente são impedidos que estes deem passagem àquelas.

Eu versus nós: mirra e merda Poeta, letrista e professor de literatura, Rogério Batalha vem circulando sua poesia, especialmente a não musicada, em edições do autor, como é o caso de dois de seus livros Malícia e Bazar Barato, de 1998 e 1999, respectivamente. Melaço, de 2002, tem edição da Bizu Editora. Parte de seus escritos também pode ser encontrada em blogs como o http://letras-poetaletrista.blogspot.com/. Assim como Vaz, Rogério Batalha encontra sua matéria-prima na “cidade fundida”, título de um de seus poemas – na Rio de Janeiro feia, na Rio de Janeiro suja, porque “fundida” entre o elegante Leblon, de um lado do túnel, e o chacinado Vigário Geral, do outro, lados nada partidos entre si, promiscuamente intercomunicantes. O “cerol fino” de sua lavra poética não poupa nenhuma das instituições bem intencionadas, acostumadas a abraçar a Lagoa Rodrigo de Freitas na zona sul carioca, com camiseta branca e tarja preta na manga, pedindo paz. “Sinto muito”, poetiza em “Poema Afroreggae”, um dos mais longos de Melaço: [...] Minha música não tem nada Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

284

Valeria Rosito (UFRRJ) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

Nada a ver com qualquer tipo piegas de amor É o que é dita sem sabor Volto a dizer Minha música Não tem cor, não tem musa e quer tão somente, passar o cerol [...] (Batalha 2002: parte 1)

A poesia de Batalha parece brotar do osso raspado por detrás da sinuosidade do português: melaço – assim mesmo, palavra também “fundida”, entre a doce gosma e a acre solidez do metal. A ausência de liames entre seus versos dificulta a organização de sentidos (azeitar a sintaxe, afinal, pode também ser um atenuante vil ao horror do irrepresentável). Palavras soltas e recorrentemente repetidas em mutações paronímicas e geração de aliterações, atropelam-se a si mesmas e a nós, leitores, na velocidade de que quem corre pela vida: [...] Na marra, amarra, não morre Pedra pedra Penha penha Penhasco Onde se fia, afia essa faca-fado. Rochedo rochedo Lapa lapa Máquina Deus, quem escondeu seus sóis? (nenhuma voz) Vulto, sombra, susto Krupp mudo Soco-susto Pontudo! [...] Que papelão, essa parecença com os urubus, essa Tortura mafiosa, E esse alicate a carcomer nossa lira. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

285

Valeria Rosito (UFRRJ) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

[...] (Batalha 2002: parte 1)

Além da repetição lexical, a constelação terminológica, organizada em torno de pedras, penhas, lapas e penhascos, se ressignifica como nomes próprios na cartografia fluminense, onde a natureza rochosa permanece indiferente diante das mutações humanas e abandono histórico sofrido pelo centro e pelos subúrbios cariocas, possíveis terras do poeta-Prometeu: Lapa, Rocha e Penha, com maiúsculas. Abruptos saltos de um a outro verso, como filme sem continuidade, nos subtraem a sintaxe a fio de faca, imagem recorrente, como a da pedra, no “PoemaAfroreggae”, elaborado a propósito da chacina de Vigário Geral. É por justaposição imagética (e continuidade do desespero) que o poeta do século XXI se une ao condoreiro do século XIX, para também escrever a História a contrapelo, nos moldes de Walter Benjamin, como evidenciam os extratos de “Vozes d’África”: Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes Embuçado nos céus? [...] Qual Prometeu tu me amarraste um dia Do deserto na rubra penedia — Infinito: galé! ... Por abutre — me deste o sol candente, E a terra de Suez — foi a corrente Que me ligaste ao pé... (Castro Alves [1868] 2012)

A interpelação a Deus no poema do século XXI, como no poema de 1868, se queda sem resposta. No passado, como no presente, as perguntas aos gritos referenciam o que foi ocultado ao eu-lírico: a resposta para seu sofrimento, a marca na epiderme que o escraviza, por sua diferença, há dois mil anos. Lá, Deus, ele mesmo, se furta; aqui, no presente, a metonímia na figuração de “seus sóis” realiza a aproximação ideológica do ocultamento e da crueldade divina. Do deserto bíblico e escaldante, metáforas para abutre e corrente, a tortura perdura no presente, com os urubus e o alicate a “carcomer a lira”. Diante da agudeza da dilaceração, pode-se perguntar como (ou se) se afiguram para os eus, “filhos bastardos dessa pátria” (nada gentil), horizontes de transformação. A par da estética cerol fino do poeta, há de se observar que o conectivo, cuja ausência no corpo do poema foi assinalada, é aposto ao fim de sua primeira e de sua sétima e última parte, para introduzir uma concessiva, “E mesmo assim, Afroreggae”, referenciando o movimento cultural comunitário deflagrado exatamente a propósito da chacina. Choca-se com a antecedência de uma alternância longa, entre um bordão-disparo “podrepodre” com os particípios “desarranjado, Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

286

Valeria Rosito (UFRRJ) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

quietado, imobilizado, derramado, terminado, extraviado, insultado, degolados, dilacerados, extirpados, assassinados, retalhados, encerrados, empacotados” (partes 6 e 7). A concessiva reforça a crença na resistência da poesia - cerol fino cortante que deve ser “Para remar/Capinar/Amar amar/Resistir, jamais recuar” (parte 1). Pontifica o poeta em “mirra e merda” que “costurar/mirra e/merda/é o que mais me interessa!” (Batalha 2002). Entre os calos e cuspo grosso da deusa artesã em Conceição Evaristo, os feios e brutos em Sérgio Vaz, e o negrorazul do cós ao cu em Rogério Batalha, somos golpeados por três dicções tão distintas quanto irmanadas pela renovação da poesia e dos gêneros no Brasil. Partilham um trânsito fluido entre poesia, prosa poética, letras musicadas, contos, romances e crônicas, conquistando uma inserção corajosa e sofisticada no vértice entre estética e História.

Considerações finais O debate na crítica literária no último quarto de século redunda, basicamente, na exposição de uma crise interna – crise da crítica. Uma crise longeva, cujo início pode ser demarcado no concurso de duas viradas: a política e a estética, na passagem dos anos 70 para os anos 80, sob a égide da lógica de mercado. Para as gerações que assinaram os projetos de construção de um Brasil moderno e inclusivo, com forte apelo das utopias de esquerda, as duas últimas décadas do século XX encontram-nos mudos e paralisados, às voltas com um eu esgarçado e desarticulado de projetos coletivos. Muitos buscam o auto-exílio e outros, os atrativos do mercado crescente. O fenômeno da globalização veio ressignificar o conceito de nação e a obrigar uma guinada também na direção de uma inclusão social diferente daquela sonhada pelos utópicos. Seja como for, artistas, literatos e poetas periféricos, lato sensu, a despeito dos fetiches perversos alimentados pelo mercado e pela indústria cultural, conquistam espaço na cena estética e na própria academia, conhecedores que são da longuíssima luta a ser ainda travada. Propõem reformulações de linguagens, códigos, padrões e gêneros, de forma a proporcionar uma nova visada a temas antigos. A julgar pelas amostras examinadas, essas gerações que afloram na passagem do século XX para o século XXI, respondem à dinâmica histórica e aos desafios estéticos com engajamento político e criatividade surpreendentes, fato que acrescenta novas facetas às versões consolidadas sobre a natureza contemplativa da pós-modernidade. Provam serem capazes, como poucas gerações “letradas de berço”, de um diálogo produtivo com o passado literário e poético de que foram excluídos, inserindo-se, com suas marcas, recordações e tradições, na produção de uma nova memória em que se incluem e pela qual devemos ser todos lembrados.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

287

Valeria Rosito (UFRRJ)

288

QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

WHAT I IS THAT? – PROSE AND VERSE FROM MIRACLE TO MARKET Abstract: If on a broad stand, discourses referring to the subject’s “fragmentation” and “deterritorialization” are mainstream on the contemporary critical scene, marginal othernesses are produced upstream on theme and aesthetic fronts, propelled by an enlarged and plural I and sustained on historically and territoriallygrounded references. The exemplary nature of that tension in Brazil is textually examined under the light of post-dictatorial context of the 80’s and the 90’s in the 20th century, as well as of the growing writing by the margins in the first two decades of the 21st century. Keywords: Literary criticism; Contemporary Brazilian literature; Contemporary Brazilian poetry; Subaltern studies.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Arnaldo. As coisas. São Paulo: Iluminuras, 1992. ______. Entrevista com Arnaldo Antunes. O Correio da Bahia 07 dez.2006. Disponível em: Acesso em: 17 jan. 2008. AVELAR, Idelber. Alegorias da derrota: a ficção pós-ditatorial e o trabalho do luto na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. BATALHA, Rogério. Melaço. Rio de Janeiro: Bizu, 2002. BENJAMIN, Walter. “Paris do segundo império”. In: ______. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas, vol. 3. Trad. José Martins Barbosa e Hermenson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 9-101. ______. “Sobre o conceito da história”. In:______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura; obras escolhidas, v.1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 165-196. BILAC, Olavo. “A um poeta”. [1919] Disponível Acesso em: 20 fev. 2012.

em:

CASTRO ALVES, Antônio Frederico de. Vozes d’África. [1868] Disponível em: Acesso em: 20 fev. 2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

Valeria Rosito (UFRRJ) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

CESAR, Ana Cristina. A teus pés. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. Disponível em: Acesso em: 20 fev. 2012. DELEUZE, Gilles & GATTARI, Félix. What is minor literature? In: FERGUSON, Russell; GEVER, Martha; MINH-HA, Trinh T; WEST, Cornel, Eds. Out there: marginalization and contemporary cultures. New York; Cambridge; London : The New Museum of Contemporary Art; The MIT Press, 1990, p. 59-70 (v.4) EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008. (Coleção Vozes da Diáspora Negra, v.1). LEMINSKI, Paulo. “Apagar-me”. In: ------. Não Fosse Isso e Era Menos. Não Fosse Tanto e Era Quase. Curitiba: 1981, p. 63. Disponível em: Acesso em: 20 fev. 2012.

ROSITO, Valeria. Cinema cidadão e gênero ‘denúncia’: o caso Cidade de Deus. Revista Rio de Janeiro, n. 12, jan-abril 2004. _______. Poesia contemporânea em Arnaldo Antunes: ventando as palavras, alforriando as coisas. Interletras (Dourados) v. 1, p. 1-9, 2008. SANTIAGO, Silviano. “Democratização no Brasil, 1979-1981”. In: ANTELO, Raúl et al. Declínio da arte, ascensão da cultura. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1998. ______. “O narrador pós-moderno”. In: ______. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 44-60. SCHWARZ, Roberto. “Marco histórico”. In: ______. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 57-66. SISCAR, Marcos. A cisma da poesia brasileira. Trad. Milena Magalhães e Marcos Siscar. Revista de Poesia e Cultura, Ateliê Editorial, ano 5, n. 8-9, 2005. Disponível em: Acesso em: 20 fev. 2012. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010. STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1972. Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

289

Valeria Rosito (UFRRJ) QUE EU É ESSE? – PROSA E VERSO DO MILAGRE AO MERCADO

VAZ, Sérgio. Colecionador de pedras. São Paulo: Global, 2007. ______. Literatura, pão e poesia. São Paulo: Global, 2011.

ARTIGO RECEBIDO EM 26/02/2012 E APROVADO EM 14/04/2012.

Estação Literária Londrina, Volume 9, p. 1-290, jun. 2012 ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL

290

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.