Estácio e o trabalho com o mito: um estudo de caso

May 28, 2017 | Autor: Leandro Cardoso | Categoria: Latin Epic, Epic poetry, Imitatio, Flavian Epic
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UNESP



UNIVERSIDADE

ESTADUAL

PAULISTA

Faculdade de Ciências e Letras – Araraquara – Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários

XVI SEMINÁRIO DE PESQUISA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS 20 e 21 de outubro de 2015

TRABALHOS COMPLETOS

Juliana Santini Vivian Carneiro Leão Simões Daniel Ricardo Vícola (Orgs.)

ISBN 978-85-8359-028-6 XVI Seminário

Araraquara

p. 1- 498

2015

XVI SEMINÁRIO DE PESQUISA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS Realização Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários

Coordenação do PPG – Estudos Literários Juliana Santini (Coordenadora) Brunno V. G. Vieira (Vice-Coordenador)

Assessoria Seção Técnica de Pós-Graduação FCLAr/UNESP

Comissão Organizadora Juliana Santini Brunno V. G. Vieira Aparecido Donizete Rossi Marco Aurélio Rodrigues

Vivian Carneiro Leão Simões Daniel Ricardo Vícola Gabriele C. Borges de Morais

Comitê Científico Adalberto Luis Vicente (UNESP) Aparecido Donizete Rossi (UNESP) Brunno V. G. Vieira (UNESP) Diana Junkes Bueno Martha (UFSCar) João Batista Toledo Prado (UNESP)

Juliana Santini (UNESP) Karin Volobuef (UNESP) Luiz Gonzaga Marchezan (UNESP) Maria Lúcia Outeiro Fernandes (UNESP) Rejane Cristina Rocha (UFSCar)

Comissão de Trabalho (Organização e monitoria) Juliana Santini Brunno V. G. Vieira Marco Aurélio Rodrigues Vivian Carneiro Leão Simões Daniel Ricardo Vícola Beatriz Torres Claudimar da Silva Felipe Carmargo Mello Gabriele Borges de Morais Giovanna Guimarães

Jéssica Angeli Joana Borges Junqueira Jonatan Smith Manoelle Gabrielle Guerra Moacir Faber Calarga Nathália Scotuzzi Sérgio Perassoli Stéfano Stainle Raimara Menezes

Editoração (Caderno de Resumos e Trabalhos completos) Juliana Santini Vivian Carneiro Leão Simões Daniel Ricardo Vícola

Escritório de Pesquisa Selma Chiareli José Luis Freza

Diagramação Vivian Carneiro Leão Simões

Impressão Gráfica UNESP Dario G. Pessoa de Azevedo José Luiz Mem * A revisão gramatical e os conteúdos veiculados pelos textos destes Trabalhos completos são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores.

Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (16. : 2015 : Araraquara, SP) Trabalhos completos do XVI Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários / XVI Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários; Araraquara, 2015 (Brasil). – Documento eletrônico. - Araraquara : FCLUNESP, 2015. – Modo de acesso: . ISBN 978-85-8359-028-6 1. Literatura. 2. Pesquisa. 3. Pós-graduação. I. Título Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da FCLAr – UNESP.

Trabalhos Completos do XVI Seminário de Pesquisa

ESTÁCIO E O TRABALHO COM O MITO: UM ESTUDO DE CASO83 Leandro Dorval Cardoso D-PG-FCLAr/UNESP, CAPES [email protected] Prof. Dr. Brunno V. G. Vieira (FCLAr/UNESP) Para Ernst Cassirer, o mito e a arte, assim como a linguagem e a ciência, por exemplo, partilham de uma mesma característica: são formas simbólicas de plasmação de fenômenos em objetos da compreensão, ou seja, são perspectivas por meio das quais o homem atribui contornos específicos àquilo que experiencia. Um fato importante para seu pensamento sobre as formas simbólicas é que elas partilham, de acordo com o próprio autor, de uma mesma origem, uma vez que surgem da “consciência mítica” – ou do “pensamento mítico” –, uma forma de entendimento do mundo que se manifesta nos homens diante da experiência do desconhecido. Essa consciência, por sua vez, configura-se como a forma primeira de conceitualização do mundo, por meio da qual o homem abre a realidade experienciada a si mesmo, tornando possível sua vivência nela (CASSIRER, 1972, p. 23-4). De acordo com Cassirer, essas formas simbólicas que, em sua origem, configuram-se como uma unidade, separam-se gradativamente conforme cada uma delas, a seu modo, tende a concretizar as imagens formadas pela consciência mítica em objetos próprios. Sendo assim, então, se o mito tende às configurações mítico-religiosas, a linguagem, por sua vez e influenciada pelo logos, tenderia sempre à denotação, à concreção de signos meramente conceituais. Nessa mesma lógica, a arte se realiza como a forma simbólica que orienta a experiência para uma configuração estética, buscando sempre a criação de um objeto que se oferece à apreciação do espírito, livre de qualquer obstáculo imposto pelo logos ou pelas configurações mítico-religiosas: na arte, a palavra e a imagem mítica “são apenas ligeiro éter, em que o espírito se move livremente e sem obstáculos” (CASSIRER, 1972, p. 116). Há, porém, uma diferença no processo de concreção levado a cabo por essas duas formas simbólicas, mito e arte, e que deve ser mencionada. O mundo do mito, ao contrário do que se costuma achar, não é um mundo irreal ou derivado, pois é nele que o homem inicia sua vida antes

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Este artigo foi desenvolvido a partir do trabalho apresentado à disciplina Mito e Poesia, do Programa de PósGraduação em Estudo Literários da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara, ministrada pelo Prof. Dr. João Batista Toledo Prado no primeiro semestre de 2015. O trabalho contou, ainda, com a orientação do Prof. Dr. Brunno V. G. Vieira.

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de que sua consciência se desenvolva a ponto de percebê-lo como uma complexidade de objetos empíricos. Por esse motivo, há um pressuposto de crença sem o qual o mito perde seu fundamento: se os objetos plasmados pelo mito não são reais, ou ainda, se eles não formam a realidade mesma onde vive o homem, então nem o mito, nem a realidade existem (CASSIRER, 1944, p. 101). Por outro lado, a existência ou não de seus objetos é, para a arte, uma questão indiferente, e isso porque, em nossos julgamentos estéticos,“nós não estamos preocupados com o objeto como tal, mas com a pura contemplação desse objeto” (CASSIRER, 1944, p. 186-7). Sendo assim, em comparação com o trabalho do mito, o trabalho da arte não consiste na invenção ou na concreção de objetos, mas em um ato posterior a esse, qual seja, a sua externalização, uma personificação “não simplesmente em um meio material específico – em argila, bronze ou mármore –, mas em formas sensíveis, em ritmos, em padrões de cor, em linhas e desenhos, em formas plásticas” (CASSIRER, 1944, p. 197). A plasmação do mundo levada a cabo pela arte, então, diz respeito, mais do que tudo, à criação de formas sensíveis ao julgamento estético. Nesse sentido, no trabalho que ora se apresenta, o que se busca é investigar como Estácio atribui novos traços a uma história da mitologia grega já bastante explorada pelos seus precedentes, de modo a oferecer a seus leitores uma possibilidade de experiência intensificada desse objeto. Além disso, o que aqui se busca é mostrar como Estácio manipula, a partir da tradição poética em que ele se insere, a história dos sete generais contra Tebas para explorar a potencialidade significativa do mito e, assim, intensificar a percepção estética do objeto. Sendo assim, passemos então a análise do episódio escolhido. *** No primeiro canto da Tebaida (v. 197-247), Júpiter, cansado dos insistentes pedidos para que interferisse nos assuntos os quais nem mesmo as Fúrias resolviam, decide-se por castigar Tebas e Argos, cidade onde se exilara Polinices, tendo sido acolhido por Adrasto não somente como hóspede, mas também como genro. Para isso, ordena a Mercúrio (v. 292-302) que desça aos infernos e que traga de lá o velho Laio, pai de Édipo, para que o ancião transmita ao seu neto Etéocles uma mensagem que provocará a ira entre os herdeiros do trono tebano: uma vez que os descendentes de Édipo haviam decido alternar-se anualmente no comando de Tebas, exilando-se em outro lugar aquele que estivesse em seu ano sabático, Júpiter ordena a Etéocles que, ao final do período acordado entre eles, negue o trono a seu irmão, Polinices. Na sequência do evento, no início canto segundo (v. 1-133), Mercúrio retorna dos infernos acompanhado pela sombra Laio, logo após o que se apresenta a cena em que Laio transmite a mensagem divina a seu neto. Esse episódio, que compreende as cenas da subida da sombra de Laio e da transmissão da mensagem, foi introduzido 223

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por Estácio no mito que lhe serve de base: em nenhuma das outras obras que tratam do Ciclo Tebano e que restaram ao nosso conhecimento há uma cena que possa corresponder a essa. Não se trata, porém, de simples inclusão episódica, mas, como quero aqui demonstrar, da exploração das potencialidades significativas do mito. Estácio atribui os motivos da guerra dos sete contra Tebas a duas esferas de personagens, a humana, de modo especial na figura de Édipo, e a divina, na figura de Júpiter. A ação de Édipo que configura sua relação direta com as causas da guerra diz respeito à maldição que o labdácida lança contra seus filhos por crer que fora por eles desrespeitado (1.74-8): … Das vistas privado e sem trono, não tentaram guiar-me e conter-me a tristeza os que, qual seja o leito, gerei; mas, soberbos, em meu fresco mortório, quanta dor!, os reis insultaram as trevas e as queixas paternas.84

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Júpiter, por sua vez, cansado de acorrer aos homens para resolver os delitos dos quais as Fúrias não dão conta (1.214), aceita as queixas de Édipo e permite aos fados a execução da vingança paterna, castigando, para isso, Tebas e Argos. Para dar início, então, à manipulação dos homens para que sua vontade se cumpra, o deus envia seu filho aos reinos de Hades para que traga à terra alguém que possa pôr seu plano em ação: é, então, a decisão que Jove tomou que dá ensejo à inclusão do episódio envolvendo Laio e Etéocles, o que acaba por estabelecer um vínculo entre o episódio e o enredo do poema. Estácio também reforça, assim, a influência divina na ação, bem como a presença do mundo inferior em Tebas: enquanto, no primeiro canto, é Tisífone quem se assoma à terra e se lança sobre a casa de Édipo (1.123-5), agora é a vez de Laio, sombra que vaga rejeitada pelas margens do Letes. Além disso, o episódio também reforça o fato de que tanto as divindades são responsáveis pela ira que recai sobre Tebas, como o próprio sangue parente, já que, após cumprir a ordem de Jove, para a qual Laio se disfarçara de Tirésias, ele se revela a Etéocles como sendo o seu avô e, ainda no sonho, verte o seu sangue sobre o neto, abrindo a ferida mortal que lhe causara seu próprio filho (2.120-134): Disse e, partindo – agitam as claras estrelas 120 os corcéis do sol –, ramos e velos da fronte tirou e, avô confesso, junto ao neto atroz se deitou; o pescoço aberto em sangue então desnuda e inunda o sono co' a chaga vertendo.85

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No original: orbum uisu regnisque carentem / non regere aut dictis maerentem flectere adorti, / quos genui quocumque toro; quin ecce superbi / – pro dolor! – et nostro iamdudum funere reges / insultant tenebris gemitusque odere paternos. (As citações dos trechos em latim foram feitas a partir da edição de D. R. Shackleton Bailey (STATIUS, 2003).

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Vinculado ao enredo e concorrendo para a construção de sentidos do poema, o episódio constrói-se, ainda, de acordo com uma das principais características da obra estaciana, a imitatio. Ainda que as cenas que o compõem não encontrem paralelos em nenhuma das obras restantes do ciclo tebano, do ponto de vista de sua construção há claras relações com trechos de Sêneca, por exemplo, em especial com a subida da sombra de Tântalo, no Tiestes (v. 1-121), e com a da sombra de Tiestes, no Agamemnon (v. 1-56). Essas relações podem ser estabelecidas, contudo, não somente por se tratarem de ascensões de sombras dos infernos para a terra, mas também por outras semelhanças bastante significativas. No que diz respeito à sombra de Tântalo, tanto os motivos que o levaram a ser condenado pelos deuses, como a função a ser desempenhada por sua sombra na terra chamam à atenção. As versões sobre a sua condenação, de acordo com Grimal (2005), são várias, mas a que Estácio parece ter considerado diz respeito àquela em que Tântalo, bem quisto pelos deuses e constantemente aceito entre eles durante os banquetes, ao buscar uma oferenda que pudesse compadecê-los da fome que aplacava o seu reino, ou porque os desafiava para testar-lhes a clarividência, teria sacrificado Pélops, seu filho, e o servido aos súperos em um guisado. Reconhecendo, porém, a carne servida, os deuses não só não o comeram, como também castigaram Tântalo após devolver a vida a Pélops. Sendo assim, ainda que a natureza do crime se altere, visto que o filicida em Sêneca é substituído por uma vítima de parricídio em Estácio, ambas as personagens cumprem o mesmo papel, qual seja, semear a discórdia entre os seus herdeiros para que os seus antigos reinos se fendam sob a égide de um nefas. No que diz respeito à sombra de Tiestes do Agamemnon de Sêneca, as relações são, no mínimo, igualmente intensas. Tiestes é neto de Tântalo – tendo sido, então, atormentado pela sombra do avô – e irmão de Atreu, ambos filhos de Pélops. Quando jovens, os dois foram convencidos por sua mãe, Hipodâmia, a matar Crisipo, seu meio-irmão, filho de Pélops e de Axíoque, uma ninfa. Depois de mais velhos, tomados de ódio um pelo outro, cometeram diferentes crimes. Atreu, enciumado pela relação de sua esposa com o seu irmão, matou três dos filhos de Tiestes e os serviu em um jantar ao próprio irmão; Tiestes, seguindo as orientações de um oráculo, gerou um filho – Egisto – com sua própria filha para que este o vingasse pelo crime do irmão. Com isso, pode-se dizer que o ódio e o nefas conduziram crimes extremamente ferozes – desde o assassinato de parentes até o incesto em diferentes formas – nas três histórias que se cruzam na cena da ascensão em Estácio: é como se, a cada nova relação descoberta, as possibilidades de

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No original: dixit, et abscedens (etenim iam pallida turbant / sidera lucis equi) ramos ac uellera fronti / deripuit, confessus auum, dirique nepotis / incubuit stratis; iugulum mox caede patentem / nudat et undanti perfundit uulnere somnum.

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significação fossem potencializadas. Agindo assim, então, Estácio não só aumenta o poder simbólico do seu mito-base como também intensifica ainda mais as relações entre os mitos relacionados à Casa de Édipo e aqueles da Casa dos Tantálidas. Cumpre destacar, ainda, algumas das relações que podem ser estabelecidas a partir da outra cena que compõe o episódio – o recado de Laio e a consequente reação de Etéocles. Há, na Eneida virgiliana, diferentes passagens que podem ser vinculadas à cena de Estácio, mas três delas merecem destaque. No canto primeiro, escreve Virgílio, logo após revelar um prodígio para o seu filho, Vênus se retira deixando no ar um cheiro de ambrosia, pelo que Eneias prontamente reconhece a divindade de sua interlocutora. Em Estácio, porém, aquele que revela não é deus nem deixa no ar um perfume que lhe denuncie a deidade, mas sombra indigna do inferno que deixa um rastro de sangue sobre o seu parente, anunciando o futuro e afirmando, com isso, a danação da família. Pelo contraste, nesse caso, Estácio chama à baila a cena de Virgílio e, dessa forma, marca a diferença das mensagens reveladas: se a ambrosia de Vênus confirma a boa notícia revelada, pois saíram vivos da tempestade que os empurrou à costa cartaginesa os companheiros de Eneias, o sangue de Laio denuncia o horror dos eventos futuros. No canto segundo da Eneida (2.268-95), Heitor surge em sonho para Eneias, carregando ainda as feridas que causaram-lhe a morte, tal como Laio, mas para dizer a seu pátrio companheiro que deixe a cidade, e não para que ali permaneça, mesmo que contrário à lei, como o faz Laio com Etéocles: se o glorioso passado de Troia volta em sonho para alertar o presente e o futuro da cidade – Eneias é um sobrevivente da guerra fadado a dar continuidade a Troia – de modo a garantir o futuro do reino, o passado nefasto de Tebas alerta aquele que representa o presente da cidade para que se levante contra o irmão, o que acabará com a permanência do reino em mãos labdácidas. Há, no sétimo canto do épico virgiliano, um outro sonho que pode ser aqui considerado. Nele, Alecto, evocada por Juno e disfarçada em Cálibe, uma velha sacerdotisa, busca inflamar Turno contra Eneias para, assim, retardar a construção da nova Ílio (7.413-70). Eis, pois, algumas das relações que podemos apontar aqui: um ser do mundo inferior, disfarçado em um sacerdote, ou sacerdotisa, busca inflamar um mortal para que este se oponha a um reino insurgente – o de Eneias, em Virgílio, o de Polinices, em Estácio. Além disso, outros traços do comportamento tanto de Alecto, como de Turno podem ser comparados àqueles de Laio e Etéocles. Tanto a Erínia quanto o avô vêm à terra para que se cumpra a vontade de um olimpiano – Juno e Júpiter, respectivamente. Disfarçadas, como vimos, após inflamarem seus interlocutores, ambas as personagens revelam sua verdadeira identidade: Laio se despe dos ornamentos sacerdotais que o disfarçavam e se revela o avô de Etéocles (Theb., 2.121-2); Alecto, por sua vez, se irrita com 226

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o pouco caso de Turno durante o sonho e revela a ele sua aparência horripilante (A., 7.445-8). Após as revelações, tanto um como a outra deixam algo para os que dormem, pois Laio deixa em Etéocles o seu sangue, despertando assim o neto, e Alecto afirma trazer a Turno a guerra e a morte (7.455) – ao que, por fim, ele acorda. Ambos os mortais, então vigilantes, apresentam um comportamento algo delirante, fora do comum, ilustrado pelos narradores de cada um dos épicos por um símile – uma semelhança formal bastante interessante: o tebano é comparado a uma tigresa (2.128-33); Turno, a uma caldeira de bronze sobre chamas (7.462-9): Tal tigresa que, ouvindo rumor de caçantes, encrespa as manchas, o torpor inerte expulsa cobiça a guerra, solta a boca, afina as garras, irrompe contra as tropas e aos feros filhotes na boca um homem traz expiando: tal, por ira, o chefe lança a guerra contra o irmão ausente. (Theb., 2.128-33)86 Qual da undante caldeira, quando ao bojo lígnea flama se aplica estrepitosa, a água enfurece e ferve, em bolhas salta; fúmea espumando a enchente, sem conter-se transborda e vai-se em túrbidos vapores. Ao rei manda informar que a paz violou-se, 465 (A., 7.462-9)87

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*** Sendo assim, para concluir, pode-se dizer que Estácio, trabalhando a partir da tradição poética de seu tempo e manipulando alguns de seus elementos, constrói um episódio que, inserido em um mito já bastante conhecido da antiguidade greco-latina, não só se relaciona de maneira profunda com o enredo e as principais características de seu épico, mas também potencializa os significados e os afetos envolvidos no seu poema. Com esses novos contornos, então, seu público pode travar contato com uma obra que, apesar de recontar uma história, o faz com traços que tornam possíveis outras experiências dessa “mesma” história. BIBLIOGRAFIA CASSIRER, Ernst. An essay on man:an introduction to a philosophy of human culture. Nova Iorque: Doubleday & Company, 1944. 86

No original: qualis ubi audito uenantum murmure tigris / horruit in maculas somnosque excussit inertes, / bella cupit laxatque genas et temperat ungues, / mox ruit in turmas natisque alimenta cruentis / spirantem fert ore uirum: sic excitus ira / ductor in absentem consumit proelia fratrem. 87 Tradução de Manuel Odorico Mendes (VIRGÍLIO, 2008). No original: magno ueluti cum flamma sonore / uirgea suggeritur costis undantis aëni / exsultantque aestu latices, furit intus aquai / fumidus atque alte spumis exuberat amnis, / nec iam se capit unda, uolat uapor ater ad auras. / ergo iter ad regem polluta pace Latinum / indicit primis iuuenum et iubet arma parari, / tutari Italiam, detrudere finibus hostem.

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CASSIRER, Ernst. The philosophy of symbolic forms. Vol. 2: mythical thought. Tradução de Ralph Manhein. New Haven: Yale University Press, 1955. CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. Tradução J. Guinsburg e Miriam Schnaiderman. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas. Primeira parte: a linguagem. Tradução de Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. GANIBAN, Randall. Statius and Virgil: the Thebaid and the reinterpretation of Aeneid. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Tradução de Victor Jabouille. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. SMOLENAARS, J. J. L. Statius Thebaid VII: a commentary. Nova Iorque: E. J. Brill, 1994. STATIUS, Publius Papinius. Thebaid: books I-VII. Editado e Traduzido por D. R. Shackleton Bailey. Cambridge: Harvard University Press, 2003. VIRGÍLIO. Eneida Brasileira: tradução poética da epopéia de Públio Virgílio Maro. Tradução e notas de Manuel Odorico Mendes; org. Paulo Sérgio de Vasconcellos et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. VESSEY, David. Statius and the Thebaid. Cambridge: Cambridge University Press, 1973.

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