Estadão Noite_O Estado de São Paulo #52 - Novo Começo ou Volta ao Passado?

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QUARTA-FEIRA, 09.12.2015

FABRÍCIO H. CHAGAS BASTOS* Novo começo ou volta ao passado?

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agner Iglecias publicou ontem neste Estadão artigo de título ‘Geopolítica mundial e o cenário eleitoral na América Latina’, tratando do panorama das eleições da Venezuela e, mais amplamente, das questões que os realinhamentos eleitorais/políticos promovem na América Latina. Contribuo ao debate, discordando do autor. Iglecias insere as mudanças recentes ocorridas na Venezuela (com o oposicionista Mesa Unidad Democrática atingindo quase 2/3 dos votos na Assembleia Nacional) e na Argentina (com a vitória de Macri) em um ‘movimento mais amplo’ de países que ‘ousaram distanciar-se da órbita de Washington no decorrer da última década e meia’. Fala de expectativa da Casa Branca para ‘comemorar os êxito de seus aliados locais representados pela oposição de direita ao governo Dilma’, o que seria também válido para os outros dois países mencionados há pouco. Ainda, ‘as vitórias obtidas na Argentina e na Venezuela não dei-

xam de ser muito importantes para o país mais poderoso do planeta e para seu objetivo de reconquistas das posições perdidas no tabuleiro internacional’. Se tivesse escrito o artigo ali pelo meio da década de 1980, minha breve resposta não faria sentido algum, e o argumento de Iglecias estaria perfeitamente balizado no espaço e no tempo. Hoje, parece uma reminiscência das velhas desculpas para as falhas e insucessos da esquerda de matriz soviético-sindical que floresceu na América Latina ao longo das últimas décadas do século XX, e que acabou por desembocar nos governos de orientação social e, ao mesmo tempo, voltados ao mercado, que lideraram a região a partir do começo dos 2000 - a chamada Onda Rosa (ou Pink Tide). De fato, o que assistimos é um realinhamento, mas não nos moldes daquele visto durante muitos anos pela região, no quais existia um ‘alinhamento automático’, ou como disse ex-chanceler argentino Guido Di Tella ‘de relações quase carnais’ com os Estados Unidos. De fato, Washington não tem nada que ver com o que se passa na América Latina. Bem da verdade, não está lá muito interessada nas mudanças que ocorrem na região, mantendo um distanciamento respeitoso e cordial. O livro ‘18 Dias’, de Matias Spektor, é bastante ilustrativo. FHC e Lula trabalharam juntos para que George W. Bush compreendesse e aceitasse as modificações a serem promovidas pela transição tucano-petista no País. Uma

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vez estabelecido o canal, o país transformou-se em interlocutor regional privilegiado de Washington. A diplomacia brasileira passou a trabalhar para evitar o avanço de qualquer tipo de problema político regional que pudesse vir a contaminar a boa reputação que a América Latina adquirira ao longo do período. Soma-se a isso o fato de a Casa Branca ter alterado figuras-chave na condução dos assuntos hemisféricos, alocando personagens que de fato entendem o que se passa na região. Thomas Shannon Jr. pode ser apontado como um dos responsáveis pela ‘diplomacia discreta’ empreendida e por seus resultados - como define o editorial do New York Times em 13 de agosto deste ano, ‘In Latin America, Quiet Diplomacy Bears Fruit’ [Na América Latina, a diplomacia discreta dá frutos]. De modo bastante direto: os EUA depois dos sucessivos desastres militares têm mais com o que se preocupar; leia-se terrorismo, Oriente Médio e correlatos. Washington parece finalmente ter entendido que a América Latina tem sua dinâmica própria, respeita isso e mudou sua postura de intervenção para colaboração. Confia no Brasil como interlocutor regional e entende que não precisa mais ‘esticar o porrete’ a cada soluço na região. Do ponto de vista das políticas nacionais, a reorganização de forças atende, sobretudo, a dois imperativos: i) a ausência de reformas estruturais para sustentar os avanços sociais levados a cabo com os abundantes recursos do

boom de commodities; e ii) o déficit democrático que se manteve mesmo sob governos com diferente orientação ideológica. Durante quinze anos nos valemos dos altos preços das commodities para expandir empregos, ampliar distribuição de renda, produzir benefícios sociais, reduzir a pobreza entre outros. Ao mesmo tempo, e exatamente pela concentração em exportar primários, protegemos setores não-competitivos, e como moeda de troca política estruturamos blocos de poder conservadores incentivando oligopólios e oligarquias. Uma vez baixada a boa maré de riqueza fácil, sobraram a corrupção endêmica, a ausência de investimento racional e competitivo, regulação deficiente, desindustrialização e uma neodependência - mal que a velha esquerda tanto usou como mote de contra-ataque para suas plataformas eleitorais. Apesar dos distanciamentos e aproximações entre os EUA e a América Latina ao longo da década e meia transcorrida, a qualidade das relações melhorou muito. Falar em ganhos geopolíticos e recuperação de ‘legitimidade global da grande potência’ é restringir a visão do mundo a um maniqueísmo antiquado, é o mesmo que voltar ao passado. Castrar o engajamento latino-americano nos assuntos do mundo e submetê-los à vontade de um senhor imperial. Não acontece mais. Os problemas latino-americanos não mais dizem respeito ao vizinho acima do Rio Grande. O que precisamos

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é de massa crítica e ferramentas para produzir reformas que evitem a associação direta entre democracia e cleptocracia, de nos equiparmos como ideias úteis, para que o progresso não trave na ‘velha’ esquerda ou na ‘nova direita’. O que interessa é ir adiante. O caminho até aqui foi longo, e há de ser maior se quisermos produzir um novo começo.

FABRÍCIO H. CHAGAS BASTOS É PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E ESTUDOS LATINO AMERICANOS DA SCHOOL OF POLITICS AND INTERNATIONAL RELATIONS DA AUSTRALIAN NATIONAL UNIVERSITY E ENDEAVOUR RESEARCH FELLOW DO AUSTRALIAN NATIONAL CENTRE FOR LATIN AMERICAN STUDIES DA MESMA INSTITUIÇÃO. DOUTOR PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. E-MAIL: [email protected]

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