ESTADO E CONSTITUCIONALISMO NA CONTEMPORANEIDADE

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ESTADO

E

CONSTITUCIONALISMO

NA

CONTEMPORANEIDADE1 Jonny Lucas Farias da Silva2 SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Do Constitucionalismo Liberal ao Social; 3. Novo Constitucionalismo e Estado Democrático de Direito. 3.1. Apontamentos históricos; 3.2. A universalidade dos Direitos Humanos; 3.3. O Estado Democrático de Direito e o paradigma constitucional contemporâneo; 4. Conclusão; 5. Bibliografia.

1. Introdução O advento do Estado na Modernidade é uma síntese do acúmulo histórico caracterizado pela ascensão da burguesia como classe social e a consolidação do capitalismo como um novo modo de produção em detrimento do feudalismo. Despertada pelo Renascimento e seu resgate da filosofia greco-romana, a construção do Estado Moderno é pontuada pelo Absolutismo e pelo Iluminismo, movimento que animará as lutas antiabsolutistas e os valores liberais da burguesia ascendente,

concebendo

à

História

a

origem

do

Constitucionalismo Liberal.

1

Referência bibliográfica da publicação originária deste artigo: SILVA, Jonny Lucas Farias da. ESTADO E CONSTITUCIONALISMO NA CONTEMPORANEIDADE. In: SILVA, Adriano Nascimento da (org.). Temas de crítica ao direito. Maceió: EDUFAL, 2015, pp. 201-222. 2 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Supervisor Judiciário no Tribunal de Justiça de Alagoas. Endereço eletrônico: .

O arremate final da crise da primeira fase do movimento constitucionalista

assinala

sua

transição

para

o

Constitucionalismo Social, sob os auspícios dos direitos sociais, econômicos e culturais e da reorientação do papel do Estado como promotor de ações destinadas ao bem-estar. É no bojo das lutas revolucionárias e das revoltas populares que demarcaram o protagonismo social e político das classes trabalhadoras que se forma o Estado Social – Welfare State, síntese das agudas contradições sociais vivenciadas ao longo do século XIX e das conflagrações despertadas pela Primeira Guerra Mundial, período intercalado pela breve intermitência que antecedeu a Segunda Guerra Mundial. As consequências político-jurídicas da barbárie e da violência beligerante que destruiu países e massacrou milhões de pessoas é o registro histórico das cicatrizes legadas pelas duas grandes guerras mundiais, cenário do qual desponta o legítimo reclame pelo estabelecimento de uma nova ordem fundada na Dignidade da Pessoa Humana e nos Direitos Humanos indissociáveis e de projeção universal. É no cenário da universalização de direitos que se estabelece um novo paradigma de constitucionalismo, cujo âmago, residente na Dignidade da Pessoa Humana e nos Direitos Humanos, fundamenta a Constituição do Estado Democrático de Direito.

2. Do Constitucionalismo Liberal ao Social A primeira fase do constitucionalismo moderno – denominada liberal – atribuiu às cartas constitucionais um caráter limitadamente declaratório e anunciativo (DALLARI, 2010, pp. 135-136), sem ferramentas jurídicas concretas e instituições políticas concebidas para lhes dar efetividade no plano dos conflitos da sociedade. De maneira geral, esses documentos encartavam a definição do sistema político, a divisão de órgãos estatais e a prescrição de atribuições de entes da Administração Pública, numa lógica de demarcação prestacional negativa da atuação do Estado no âmbito das relações privadas e dos interesses do individualismo patrimonialista (DALLARI, 2010, p. 136). A ordem jurídica refletia, portanto, o alcance da expectativa liberal-burguesa, e mesmo a enunciação de direitos fundamentais assinalava mais uma retórica ética de premissas ideais do que uma obrigação estatal proativa no sentido de materializar signos românticos como liberdade, igualdade e fraternidade. Dalmo de Abreu Dallari enfatiza esse aspecto quando lembra: “Um sinal expressivo dessa fragilidade jurídica era a exigência de uma norma de lei ordinária, geralmente ‘regulamentadora’, para dar eficácia e justiciabilidade aos preceitos constitucionais” (DALLARI, 2010, p. 136).

As lutas sociais empreendidas ao longo do século XIX e início do século XX constituíram aspecto fundamental no processo de tomada de consciência das massas exploradas e não contempladas pela ordem assentada no constitucionalismo liberal. As colunas políticas e institucionais desse Estado se sustentavam em distorções socioeconômicas abissais, no bojo das quais os movimentos insurrecionais ganhavam adesão e legitimidade popular, com maior razão em virtude dos constantes golpes e manobras contra a frágil e limitada democracia (MARX, 2012, pp. 13-14). Decisivamente, o momento histórico que demarca uma guinada na concepção de Estado e do modelo constitucional em vigor

é

a

Primeira

Guerra

Mundial,

deflagrada

pelo

imperialismo de diversas potências a serviço do capital monopolista, o que engendrou um conflito sem precedentes em função de suas consequências devastadoras (HORTA, 2011, p. 120). O término da Primeira Grande Guerra aponta para uma nova situação política em que a democracia social se institucionaliza em consonância com um estado intervencionista produtor de bens e serviços num capitalismo amadurecido (HORTA, 2011, p. 120).

No caso da Alemanha, o movimento revolucionário que culminou na Assembleia Constituinte de Weimar produziu a primeira Constituição dotada de conteúdo socializante de efeitos práticos. Esse fato dará as condições para uma reviravolta no campo da teoria jurídica sobre o significado das cartas fundamentais, em detrimento das tradicionais teorias civilistas eivadas da ideologia individualista, privatista e patrimonialista (DALLARI, 2010, p.138). O legado dessa nova modalidade de Estado se funda na dimensão concretizada do bem-estar social (Welfare State) a partir de sua atuação intervencionista e promocional, à medida que, a um só tempo, atua no domínio econômico e proativamente age como garantidor da ampliação do mercado de trabalho para incorporação de mão de obra desempregada, realizando investimentos na oferta de bens e serviços (STRECK; MORAIS, 2004, pp. 70-72). A atuação do Estado na assistência aos desamparados, as oficinas públicas para instrução e absorção da massa desempregada, as leis relativas à segurança e ao trabalho de menores etc. confluem para tornar a exploração assalariada uma matéria de direito de público, mitigando, desse modo, o reino da plena liberdade contratual cujo fiel da balança pendia invariavelmente para o lado economicamente mais poderoso (STRECK; MORAIS, 2004, p. 59). Eis a fórmula da

participação efetiva do poder público como agente dinâmico do mercado capitalista. O Estado social, assim, adquire uma legalidade inspirada em atitudes constantes da lei e da administração executiva na realização da ideia social de Direito, tendo sido sob a égide de sua atuação no domínio social que se legaram à humanidade os chamados

direitos

fundamentais

de

segunda

geração,

consistentes em direitos econômicos, sociais e culturais (HORTA, 2011, p. 157). A tendência encampada no início do século XX orientou o direito constitucional no sentido de tornar objeto de normas jurídicas não apenas os órgãos do Estado e seus instrumentos políticos, mas também as relações econômicas e sociais. Esse novo dimensionamento do conteúdo das constituições trouxe consigo interpretações conflitantes sobre o conceito de uma Constituição, seja em sua dimensão material ou formal (HORTA, 2011, p. 143). Signo decisivo dos embates sobre a apropriação do sentido da Constituição do Estado social traduziu-se nas querelas entre Hans Kelsen e Carl Schmitt. Schmitt aponta a forma política do Estado de Direito configurado em democracia parlamentar como um equívoco

burguês, baseado na despolitização do Estado e na idealização da lei (SCHMITT, 1996, p. 08). Sua contundente crítica ao parlamentarismo e à lei como expressão formal do poder soberano servirá, tempos depois, à conformação jurídico-política de uma teoria capaz de conferir legitimidade ao totalitarismo nazista. O propósito de sua teorização é o enfraquecimento da Constituição de Weimar e o aniquilamento

das

minorias

e

grupos

hipossuficientes

mobilizados na perspectiva da ampliação de direitos e no combate às desigualdades, apresentando como resposta a eliminação física do desigual como condição para o alcance da homogeneidade social (SCHMITT, 1996, p. 10). Tendo manifestado descrença com o Estado Social e formulado crítica mordaz contra o parlamentarismo da democracia liberal, Schmitt apresentará um novo arcabouço teórico para explicar a origem de uma ordem jurídico-política. Para ele o fenômeno do Direito se funda na exceção, que radica na autoridade de um soberano que possui, em última instância, o poder de decisão, conforme ele mesmo define: “soberano é quem decide sobre o estado exceção” (SCHMITT, 1996, p. 87). Comentando a propósito, Gilberto Bercovici explana que na compreensão de Schmitt a fundação de uma ordem é um atributo que pertence a quem detém a soberania, qualidade de

um sujeito que não se deixa limitar pela ordem que ele próprio estabelece (BERCOVICI, 2004, pp. 65-66). Dito de outro modo, em Schmitt o poder de decisão, que possui natureza política, é o eixo fundamental do fenômeno jurídico. Sua perspectiva é a de que a autoridade do soberano se localiza num nível superior ao do direito, numa fórmula em que a exceção enquanto exercício do poder sem normatividade é que funda a própria ordem normativa (MASCARO, 2012, p. 411). Seguindo esse raciocínio, o soberano não é investido de poderes e competências formais a partir das regras de direito. O soberano não está jungido a limitações normativas nem é constituído por derivação da vontade da norma. A verdade do direito é a força de sua decisão. Dessa maneira, tratando-se da relação entre direito e Estado, a soberania não reside na Constituição como fonte das competências e atribuições dos agentes públicos. A soberania, ao revés, antecede a Constituição e a estabelece – ou a suspende – segundo seu poder de exceção (MASCARO, 2012, p. 412). Indubitavelmente a prédica schmittiana serviu de arcabouço teórico para a legitimação da supremacia do titular do poder executivo nos regimes de exceção que se instalaram, dentre outros casos, na Alemanha nazista e na Itália fascista. Sua crença no Estado-força abalroava os fundamentos da democracia liberal-burguesa e apontava para o estabelecimento de regimes

totalitários fundados numa dimensão política sem limitações normativas ao poder do soberano. A teoria de Hans Kelsen, em sentido oposto, assenta-se no formalismo da disciplina normativa como o fundamento de uma ordem jurídica. Sem detalhes mais profundos, fato é que, enquanto para Schmitt o “guardião da Constituição” estaria personificado no chefe de Estado, para Kelsen essa incumbência pertence ao Tribunal Constitucional (HORTA, 2011, p. 151). Nessa seara, são dignas de destaque as formulações de Hans Kelsen a respeito do sistema jurídico-normativo. Sua teoria do normativismo jurídico consagrou a importância da Constituição como norma superior e estabeleceu como fundamento último da ordem jurídica a ideia de norma fundamental hipotética. Essa norma pode ser apreendida como sendo a noção geral de justiça vigente numa sociedade, síntese do conjunto de regras consuetudinárias e comportamentos gerais admitidos como justos e benéficos para o coletivo, de que modo que essa abstração tem existência, inicialmente, como produto da consciência das pessoas. É a partir dela que o legislador formulará um conjunto de regras escritas, na trilha das práticas e valores identitários dessa coletividade, que consistirá no sistema jurídico-normativo superior (DALLARI, 2010, p. 303).

A positivação dessas premissas gerais compartilhadas pela coletividade se revela na Constituição como base legitimadora de todo o sistema normativo, de modo a que todas as leis integrantes de certo ordenamento jurídico devam guardar compatibilidade com aquele documento fundamental (KELSEN, 2009, pp. 215-247). Malgrado o edifício teórico kelseniano tenha sido denominado como “normativismo jurídico” e tenha igualmente suscitado várias restrições relacionadas à dimensão abstrata dos elementos que aponta como fundamento de uma Constituição, fato é que o conceito de Constituição como norma jurídica superior

será

massivamente

compartilhado

por

constitucionalistas após a Segunda Guerra Mundial, sendo oportuno afirmar que a integração dos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos aos sistemas jurídicos positivos dos Estados deve-se bastante às suas formulações (DALLARI, 2010, p. 304). Nesse sentido, conforme registra Dalmo de Abreu Dallari, o novo constitucionalismo apontará como fundamento do poder constituinte uma norma fundamental universal, derivada do princípio que proclama respeito à superioridade do valor da vida humana, premissa cuja validade jurídica impõe ao próprio constituinte sua observância, o que sedimenta a projeção universal da Dignidade da Pessoa Humana como elemento

fundante de qualquer ordenamento (DALLARI, 2010, pp. 304305). A essência desse novo modelo de Constituição se assenta na normatização da ordem econômica e social, não somente da dimensão político-institucional dos órgãos e elementos do Estado. Em razão das vicissitudes experimentadas na Primeira Grande Guerra, a fundação de constituições posteriores se norteia

pela

garantia

de

princípios

da

justiça

e

da

regulamentação do espaço econômico de maneira a promover existência digna para todos. 3. Novo Constitucionalismo e Estado Democrático de Direito 3.1. Apontamentos históricos A República de Weimar, em cujo âmago trazia as reivindicações dos movimentos operários e populares pela ampliação de direitos e promoção de bem-estar, fracassou retumbantemente no intento de conciliar as agudas contradições sociais da Alemanha. No resto do globo, no ocaso da década de 1920, quando as nocivas consequências da Primeira Guerra Mundial

pareciam

debeladas



hiperinflação,

falências,

desempregos em massa –, adveio a maior crise econômica mundial que capitalismo já houvera experimentado: o crash de 1929, sucedido por dez anos de profunda depressão, pobreza, desespero e intensas lutas sociais (TRINDADE, 2011, p. 169).

A ascensão de Adolf Hitler ao poder em 30 de janeiro de 1933 demarca a vitória estratégica da grande burguesia alemã que afiançou e financiou o movimento de extrema-direita protagonizado pelo Partido Nazista, cujo discurso arrebatador pleiteava a vingança nacional do povo alemão contra as humilhações sofridas pelas potências capitalistas ocidentais, exigia a recuperação do espaço vital do Estado alemão e proclamava a unidade dos povos germânicos contra “raças inferiores” e toda a sorte de adversários políticos e minorias sociais – comunistas, judeus, ciganos etc. A exaltação do Estado-nação

e

a

promessa

de

recuperação

gloriosa

mobilizavam os anseios dos setores médios em crise e dos desempregados

que

temiam

a

expansão

da

miséria

(TRINDADE, 2011, pp. 170-171). Tratou-se da mais gigantesca crise dos Direitos Humanos de toda a História, tanto por sua extensão, intensidade e diversificação das atrocidades cometidas quanto pela concepção de negar a validade de direitos fundamentais a milhões de pessoas. Tal ideologia tanto repelia o conceito segundo o qual todas as pessoas seriam naturalmente titulares de direitos (visão jusnaturalista) como as diferentes concepções, dentre as quais a marxista, segundo as quais essa titularidade resultava de um processo histórico de lutas e conquistas sociais.

É na perspectiva de superação dos horrores da guerra, da violência dos regimes autoritários e das constantes ameaças à paz que despontará o movimento internacional pelo resgate dos Direitos Humanos, desta feita, sobre novos fundamentos. 3.2. A universalidade dos Direitos Humanos Se a Segunda Guerra significou a rejeição da titularidade da condição humana, a violação do respeito à vida e o totalitarismo como paradigma de Estado, a contemporaneidade deveria fundar um novo referencial ético para uma ordem internacional baseada na pessoa humana como valor-fonte do Direito e tendo um efetivo sistema de proteção internacional a tais direitos. É também nessa perspectiva que se desenvolve a crítica ao positivismo e ao corolário de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos, circunscrito à formalidade de textos normativos. Trata-se de resgatar à memória que o nazifascismo ascendeu ao poder de acordo com a legalidade e promoveu a barbárie em nome da lei (PIOVESAN, 2013a, pp. 41-42). De qualquer sorte, a incontestável consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos se situa em meados do século XX, após a Segunda Guerra Mundial. Sua proeminência

decorre

em

reação

às

impactantes

monstruosidades legadas pelo nazismo e pelos ataques nucleares, somando-se à crença de que tais violações poderiam e deveriam ser evitadas com a instituição de um efetivo sistema

internacional protetivo de direitos humanos (PIOVESAN, 2013b, p. 189). A Carta das Nações Unidas em 1945 demarca uma nova ordem global baseada em modelos de conduta norteados pela manutenção da paz e segurança internacional, desenvolvimento de relações amistosas, cooperação internacional no plano econômico, social e cultural, padrão internacional de saúde e proteção ao meio ambiente, encartadas em uma inovada governança mundial fundada na proteção dos direitos humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em 10 de dezembro de 1948, foi aprovada por 48 Estados, ressalvadas 8 abstenções. A inexistência de objeções traduz um consenso de valores que se projeta universalmente, que se bifurca, simultaneamente, num código de ética e numa plataforma comum de ação (PIOVESAN, 2013b, p. 209). O documento estabelece uma ordem pública global cuja base é a dignidade humana como síntese de direitos iguais e inalienáveis, extensíveis a todos os cidadãos de qualquer país, independentemente

de

etnia,

religião,

sexo

ou

credo

(PIOVESAN, 2013b, p. 212). A primazia do valor da dignidade humana, tornado paradigma e referencial ético, constitui-se em legítimo superprincípio do constitucionalismo contemporâneo, no âmbito

local, regional e global. Cuidando-se de tema de interesse internacional, a proteção dos Direitos Humanos se aporta em duas características: (i) a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado; e (ii) a consolidação de que todo ser humano é sujeito de direito e deve ser protegido internacionalmente (PIOVESAN, 2013a, p. 44). É nesse panorama que a Declaração de 1948 inaugura o entendimento contemporâneo de Direitos Humanos, composto pela universalidade e indivisibilidade. Universalidade por reclamar extensão universal em razão de que a condição humana é o requisito único para sua titularidade. Indivisibilidade porque a preservação dos direitos civis e políticos é condição para a proteção dos direitos sociais, econômicos e culturais e viceversa, de modo que, quando um deles é violado, os demais também o são. Assim, os Direitos Humanos tornam-se um todo indivisível, interdependente e interrelacionado (PIOVESAN, 2013a, p. 45). Questão fundamental para a garantia dos Direitos Humanos reside no estabelecimento de regimes democráticos que tenham íntimo compromisso em assegurá-los. A Declaração de Direitos Humanos de Viena e a Declaração de 1948 já afirmavam a interdependência entre direitos, democracia e desenvolvimento. Trata-se da compreensão de que o regime efetivamente mais compatível com a proteção dos Direitos

Humanos é o democrático, sem o qual não seria possível asseverar a proteção desses direitos (PIOVESAN, 2013a, pp. 4647). Aliado ao valor da dignidade humana e à democracia, o direito ao desenvolvimento também emerge como uma demanda global fundada numa ética solidária. É a reivindicação da justa repartição equitativa das riquezas socialmente produzidas como garantia da promoção do bem-estar social e econômico mundial, tanto o mais se considerarmos o desolador cenário de nossos tempos: um quinto da população mundial detém riqueza superior a quatro quintos do restante; a renda dos 1% (um por cento) mais ricos supera a renda dos 57% (cinquenta e sete por cento) mais pobres; a mortalidade infantil nos países mais pobres é 13 (treze) vezes maior que nos países ricos; a mortalidade materna é 150 (cento e cinquenta) vezes maior nos países

em

desenvolvimento

quando

comparados

aos

industrializados; a falta de água limpa e de saneamento básico mata 1,7 (um vírgula sete) milhão de pessoas por ano – sendo 90% (noventa por cento) crianças, razão pela qual a pobreza continua sendo a maior causa mortis do mundo (PIOVESAN, 2013a, p. 47). Pode-se dizer que o processo de compartilhamento de valores comuns pertencentes a toda humanidade desenvolveu-se ao longo de três fases distintas. A primeira ancorava-se no

jusnaturalismo moderno, concebido pela obra dos filósofos liberais do nascente constitucionalismo, dos quais se destaca John Locke. O segundo momento reside na tradução da teoria filosófica liberal em documentos escritos pelo legislador, como ocorre nas Declarações de Direitos dos Estados Unidos e da Revolução Francesa, o que demarca a passagem da teoria à prática, do direito pensado para o direito realizado. É a Declaração Universal de 1948 dá início a uma terceira fase, na qual a afirmação dos direitos é universal e positiva. Os direitos de toda a humanidade que transcendem fronteiras geopolíticas e que exigem deveres prestacionais em face da comunidade e do Estado que os tenham violado. (BOBBIO, 2004, pp. 29-30). Contudo, a Declaração de 1948 é apenas o início da caminhada pela efetivação de direitos que ainda não se logram realizados, mas constantemente ameaçados, de diversas formas, pela tirania e opressão. Eis o alerta que nos faz Norberto Bobbio: Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados (BOBBIO, 2004, p. 25).

3.3. O Estado Democrático de Direito e o paradigma constitucional contemporâneo Na alvorada do século XX a chamada “questão social” ganhou ênfase no campo da teoria do Estado e do constitucionalismo.

Era

uma

decorrência

das

profundas

desigualdades sociais e abismos econômicos que demarcavam as injustiças de uma sociedade de classes cuja superestrutura jurídico-política acentuava os valores burgueses das Revoluções liberais que pontuaram os séculos anteriores (DALLARI, 2010, p. 310). As trágicas consequências advindas da Segunda Guerra Mundial fomentaram amplos movimentos no sentido da proclamação de uma ordem internacional de direitos e valores fundados na dignidade da pessoa humana, cujo resultado será a Declaração

Universal

dos

Direitos

Humanos

de

1948

(DALLARI, 2010, p. 312). À Declaração Universal se seguiram diversos pactos e acordos internacionais elencando direitos econômicos, sociais e culturais, orientados pelos valores do humanismo, mas não sem intensos embates. Nesse sentido, em 1966, a ONU aprovou dois Pactos Internacionais de Direitos Humanos: o Pacto dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aos quais amplos países aderiram, à exceção dos

EUA, que só aderiram ao Pacto dos Direitos Civis e Políticos (DALLARI, 2010, p. 313). Eis

o

contexto

em

que

surge

um

novo

constitucionalismo, de orientação humanista, que busca o reconhecimento e a garantia dos direitos fundamentais de todos os seres humanos, sem admitir discriminações e sem excluir garantidas (DALLARI, 2010, p. 313). Em síntese, a noção de universalidade legada pelo novo constitucionalismo inspirado em direitos fundamentais enuncia uma espécie de denominador mínimo comum às legislações e cartas constitucionais de qualquer país. A nova categoria de direitos fundantes do Estado Democrático elenca como titulares não apenas o indivíduo, mas a família, o povo, a nação, coletividades regionais, grupos étnicos e a própria humanidade. Trata-se daquilo que boa parte da literatura denominará de direitos de terceira geração, que não se esgotam num rol exaustivo, mas que podem ser descritos, de maneira geral, como direito à paz, ao desenvolvimento, ao meio-ambiente, à informação, à qualidade de vida, à informática, ao patrimônio comum (histórico, artístico, ambiental e paisagístico), do consumidor, enfim, direitos de solidariedade que unem a todos na abrangência de sua universalidade (HORTA, 2011, pp. 223225).

A partir da metade do século XX, o Direito já ultrapassava os limites formais do positivismo jurídico. O novo constitucionalismo

ergue-se

como

avanço

do

processo

civilizatório que introduz no ordenamento jurídico as ideias de justiça e legitimidade, promovendo uma reaproximação entre Direito e ética, fazendo migrar, da filosofia para o mundo jurídico, os valores compartilhados por uma comunidade democrática e respeitante dos direitos fundamentais da pessoa humana (BARROSO, 2009, pp. 327-328). O que definitivamente demarca a originalidade dessa nova quadratura histórica da dogmática jurídica é o atributo da normatividade como elemento dos princípios, refletindo a ideologia da sociedade, seus valores, fins e postulados básicos, dando unidade e harmonia ao sistema, promovendo a integração de suas partes e servindo à resolução de tensões normativas internas (BARROSO, 2009, p. 329). Esse momento histórico demarca o desprestígio do positivismo lógico-normativo descompromissado de conteúdo material. A nova abordagem proposta leva à positivação do conteúdo axiológico

no topo

da hierarquia normativa,

compreendo a mudança do paradigma da mera subsunção da lei produzida pelo legislador ao uso da ponderação como técnica de decisão entre valores constitucionais eventualmente conflitantes. Tal postura elege os princípios como norma jurídica residente no

ápice do ordenamento, a partir da qual deve-se verificar a adequação das regras e a pertinência das leis ordinariamente concebidas pela atividade legiferante. Pode-se esboçar, em suma, que a concepção filosófica desse positivismo ético se assenta na crítica ao legalismo e ao formalismo, na positivação constitucional de premissas axiológicas dotadas de eticidade, na crença da força normativa da Constituição e no compromisso com a dignidade da pessoa humana (MARMELSTEIN, 2013, pp. 11-12). Nessa configuram

perspectiva, como

normas

os

direitos

jurídicas

fundamentais

se

constitucionalmente

previstas, fundadas da limitação do poder do Estado e na dignidade humana, eixo central do Estado Democrático de Direito. A dignidade humana, como base axiológica dos direitos fundamentais, expressa-se no respeito à autonomia da vontade, no respeito à integridade física e moral, na não coisificação do ser humano e na garantia do mínimo existencial à sobrevivência. Tal é a ideia básica de dignidade humana como atributo inerente à condição do ser humano (MARMELSTEIN, 2013, pp. 16-18). Seguindo na compreensão dimensional dos direitos fundamentais, Paulo Bonavides alerta para os efeitos perversos da globalização do neoliberalismo na virada do século XXI, cujos postulados de dissolução dos Estados nacionais, debilitação da soberania popular e despolitização da sociedade

servem aos anseios do capital monopolista internacional e às hegemonias privadas supranacionais, o que põe em risco a efetiva proteção aos direitos fundamentais (BONAVIDES, 2009, pp. 19-21). Em contraposição à expansão econômica dos interesses predatórios do mercado e de seus agentes, Bonavides propõe a globalização política dos direitos como normatividade jurídica universal, lastreados numa quarta dimensão que garanta o direito à democracia, à informação e ao pluralismo e, como alerta para os conflitos interimperialistas e ao poderio do complexo industrial-militar que ameaçam a soberania dos povos, encampa o direito à paz como elemento de uma quinta dimensão de direitos fundamentais (BONAVIDES, 2012, pp. 589-598). No Estado Democrático de Direito se desperta a perspectiva da atuação estatal no sentido de realizar um modelo de desenvolvimento baseado num projeto solidário voltado à melhoria da qualidade de vida do indivíduo e de toda a coletividade. Seu papel transformador baseia-se na compreensão das relações comunitárias e das coletividades difusas como sujeitos de direitos que partilham de destinos comuns. Agregando valores democráticos ao direito positivado, o novo modelo de Estado repensa os postulados básicos liberais da certeza e da segurança jurídicas para direcionar o ordenamento no sentido da garantia e da implementação do futuro, e não para

preservação do passado. Essa fórmula provoca o perceptível deslocamento do eixo gravitacional do Poder Executivo e do Legislativo para o Poder Judiciário (STRECK; MORAIS, 2004, p. 98). A essência democrática do Estado implica uma incessante mutação e ampliação de seus conteúdos, de modo que o caráter formal e sistêmico da regra jurídica transita para um ordenamento edificado sobre princípios e valores que otimizam a atividade estatal no sentido da promoção do bem comum e da modificação substancial das relações sociais, tendo em vista que o próprio Estado se torna agente concreto para protagonizar a efetivação dos direitos fundamentais. Dessa maneira, a dinâmica de sua atuação supera a normatividade estática em nome do conteúdo hierárquico superior de valores positivados que, a todo instante, se relacionam dialeticamente com as interjeições e aportes das forças sociopolíticas vivas da comunidade (STRECK; MORAIS, 2004, pp. 98-99). A Constituição, ao abrir as portas da ordem jurídica para a apreensão de expectativas e anseios de matiz política, econômica e social, elege a lei, enquanto expressão do direito positivo, como desdobramento da substância constitucional e seu artífice transformador da sociedade, operando as mudanças sociais democráticas acalentadas pela sociedade. Em suma, o Estado Democrático de Direito possui como tarefa fundamental

a superação das desigualdades sociais e regionais e a instauração de um regime democrático capaz de realizar a justiça social. 4. Conclusão Ao longo do tempo, fatores diversos e de ordens distintas confluíram

para

o

nascedouro

de

sociedades

políticas

organizadas segundo regras e prescrições normativas encartadas num documento de natureza político-jurídica, fundante de cada forma societal então estabelecida. O Liberalismo apontava neste documento a síntese dos valores da individualidade e da supremacia da liberdade, da proteção à vida e da propriedade, signos históricos da ascensão da burguesia como classe dirigente e hegemônica dos processos revolucionários da libertação antiabsolutista. Nascia o Estado Liberal e a primeira dimensão de direitos fundamentais. Outro século de guerras, insurreições populares e aspirações revolucionárias, encampadas pela alma política das camadas e classes sociais expurgadas da direção das revoluções liberais, exploradas pela condição do assalariamento e da venda da força de trabalho, resultou no advento de uma nova ordem jurídico-política assentada na garantia da igualdade e na asseguração de direitos sociais, econômicos e culturais para desvalidos e despossuídos em geral. Eis que surge o Estado Social e a segunda dimensão de direitos fundamentais.

As marcas indeléveis que maculam a História da humanidade apresentaram-nos, porém, o horror da guerra global, o holocausto judeu e racial, a hecatombe nuclear e a aniquilação de milhões de seres humanos. Impôs-se, a bem da continuidade da espécie humana e da demarcação histórica de uma época a ser superada, mas jamais esquecida, a encartação de um núcleo normativo e axiológico basilar que afirmasse a Dignidade da Pessoa Humana e anunciasse, como ordem imperativa, o respeito a Direitos Humanos Universais. O advento da Organização das Nações Unidas como projeção de uma assembleia global de povos e nações e a Declaração Universal dos Direitos Humanos despontam como síntese histórica desse processo de longa gestação, cujas raízes se fincam nas conquistas legadas pelo Constitucionalismo Liberal e Social. Os auspícios de uma nova ordem fundada na Dignidade da Pessoa Humana e nos Direitos Universais demandaram a reconfiguração do Estado em razão de problemas apresentados por um mundo economicamente globalizado e constantemente ameaçado pela tenuidade da paz, em que as desigualdades sociais e econômicas se intensificam e o modelo das democracias

representativas

evidentes de esgotamento.

ocidentais

demonstra

sinais

É na quadratura desafiadora do enfrentamento às iniquidades socioeconômicas, às opressões e à marginalização política e cultural de povos e grupos étnicos que ao Constitucionalismo

Contemporâneo

torna-se

imperiosa

a

assunção das tarefas de transformação do status quo e de afirmação dos direitos fundamentais. 5. Bibliografia BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7.ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente – Atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad.: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial. 3.ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 27.ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012. DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na vida dos povos: da Idade Média ao Século XXI. São Paulo: Saraiva, 2010. HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito. São Paulo: Alameda, 2011.

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