Estado e Multiculturalismo: apontamentos sobre a questão indígena no Brasil

June 16, 2017 | Autor: Emanuel Lima | Categoria: Pluralismo Jurídico, Direitos Humanos, Multiculturalismo, Povos Indígenas, Pueblos indígenas
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ESTADO E MULTICULTURALISMO: APONTAMENTOS SOBRE A QUESTÃO INDÍGENA NO BRASIL

Emanuel Fonseca Lima Procurador do Estado de São Paulo Pós-graduando em Direito Ambiental pela PUC-SP

Introdução Por séculos o homem tentou infrutiferamente encontrar soluções para o problema da tolerância entre as diferentes culturas. Entretanto, em tempos de globalização, guerra contra o terrorismo, intensificação de fluxos migratórios e crises ambientais, a superação de tal desafio parece ainda mais distante. Por todo o globo pode se observar práticas de dominação cultural. Países desenvolvidos da Europa Ocidental, como França e Suíça enfrentam questões complexas referentes aos direitos de minorias ciganas e muçulmanas. O Marrocos, por sua vez, se vê diante de reivindicações dos sarauís, enquanto conflitos étnicos assolam toda a África Subsaariana e sudeste asiático. Diante de tal quadro, os olhos do mundo se voltam para o Brasil, promissora democracia sul-americana que há tempos já teria encontrado a fórmula de um Estado Multicultural. Entretanto, uma análise mais aprofundada da realidade brasileira revela um país marcado por um quadro histórico de preconceito (ainda que dissimulado), violência e exclusão. E os povos indígenas são o exemplo mais drástico e dramático dessa realidade. O presente trabalho tem como objetivo estudar a temática do multiculturalismo e da tolerância dos povos, fazendo, para tanto, uma análise da questão indígena e as alternativas que o Estado brasileiro pode se valer para solucionar tal problema. No primeiro item, busca-se traçar um panorama da questão da tolerância ao redor do globo. Em seguida, trabalha os principais desafios que o Estado brasileiro encontra para a promoção do multiculturalismo, desmistificando a ideia de “democracia racial”. Por fim, no terceiro item aborda a questão indígena, discorrendo sobre a relação entre tais povos e a sociedade brasileira, bem como os direitos que lhe são assegurados pela nova ordem constitucional, buscando, a partir daí, fornecer contribuições que também possam ser utilizadas por outros países e realidades no enfrentamento do desafio

da tolerância. 1. A diversidade cultural e o desafio da tolerância A convivência harmônica entre as diferentes culturas revela-se um espinhoso e ainda não superado desafio, que é agravado em tempos de globalização, crises econômicas e aumento do fluxo migratório de pessoas dos países mais pobres em direção aos mais ricos. Além disso, tal tarefa torna-se ainda mais árdua com o fenômeno das mudanças climáticas e surgimento dos “refugiados ambientais”. Vale apontar que nem mesmo os países de democracia mais consolidada não conseguiram enfrentar com sucesso o desafio de construção de uma sociedade aberta e tolerante. De acordo com o PNUD, os crimes de ódio e violência xenófoba, motivados por preconceitos raciais, religiosos ou étnicos, ainda são comuns na América do Norte e Europa. Em 2002 foram registrados 12.933 casos na Alemanha, 2.391 na Suécia, 3.597 no Reino Unido e 7.314 nos Estados Unidos (PNUD, 2004). Além das causas socioeconômicas, como a disputa por postos de trabalho, alguns autores encontram uma explicação psicológica para tais conflitos. Boechat (1999), por exemplo, aponta uma projeção da “sombra coletiva” em determinadas minorias, sendo tal arquétipo1 fortemente ativado “em psicoses de massa, como no neonazismo e no conflitos inter-étnicos”. Sustenta que, nesses casos, haveria um temor de dissociação, perda da identidade para o estrangeiro. Exemplos recentes podem corroborar tal assertiva. Na Suíça a proibição dos minaretes recebeu o apoio de 57,5% dos eleitores, temerosos de uma “islamização” do país e da perda de sua identidade. A França, por sua vez, envolveu-se com polêmicas referentes à expulsão de ciganos de seu território e à proibição de uso do véu islâmico, enquanto nos Estados Unidos o “Nuestro Himno”, versão em espanhol do hino nacional estadunidense, resultou em fortes reações contrárias (CUMMING-BRUCE, 2009; RUTENBERG, 2006). É possível encontrar casos graves de intolerância por todo o globo: os conflitos entre tutsis e hutus em Ruanda, a limpeza étnica em Kosovo e a violência entre hindus e muçulmanos na Índia e Paquistão são exemplos inegáveis de tal problemática. Necessário, ainda, ressaltar que os movimentos e políticas de dominação cultural implicam em um sério obstáculo à formação de uma sociedade de paz. Sabe-se, por 1

C.G. Jung define arquétipo como sendo o conteúdo do inconsciente coletivo, imagens primordiais, universais existentes desde tempos mais remotos que tomam forma a partir de sua conscientização, assumindo matizes que variam de acordo com as particularidades do indivíduo (JUNG, 2000)

exemplo, que em 2003, um de cada cinco grupos envolvidos em atos terroristas tinham objetivos relacionados à dominação religiosa ou limpeza étnica (PNUD, 2004). Isso evidencia que a convivência pacífica entre os povos passa necessariamente pela construção de uma sociedade multicultural, pautada pelo respeito à diversidade. É insofismável, portanto, a magnitude de tal problema. Em razão disso, é interessante que sejam tecidas algumas considerações a respeito de como o Brasil tem lidado com as questões relacionadas ao multiculturalismo, o que passará a ser feito a seguir. 2. Desafios do Multiculturalismo no Brasil É bastante difundida a ideia de que o Brasil é uma “democracia racial”, país livre de preconceitos de cor e no qual diferentes culturas e povos podem conviver harmonicamente. Seus problemas possuiriam causas eminentemente socioeconômicas, relacionadas à má distribuição de riquezas e não a conflitos culturais ou ao “racismo”. Entretanto, uma análise mais acurada da realidade brasileira comprova que tal assertiva não é verdadeira. A título de exemplo, pode-se mencionar que a taxa de homicídios entre homens brancos de 20 a 24 anos é de 102,3 para cada 100 mil habitantes, enquanto entre negros tal índice chega a ser mais de duas vezes maior, atingindo a marca de 218,5 a cada 100 mil habitantes. Estudos demonstram que a população de negros entre as vítimas de violência policial no Estado do Rio de Janeiro é três vezes maior que a de brancos. Necessário, ainda, destacar que o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) da população branca brasileira em 2000 era melhor que o da Croácia, enquanto o da negra era pior que o do Paraguai (PNUD, 2005). Além desse “racismo dissimulado”, o Brasil ainda enfrenta sérios problemas em relação ao reconhecimento das populações tradicionais e seus direitos culturais. Dentre tais conflitos, pode-se mencionar as polêmicas a respeito de critérios de autoidentificação, demarcação de territórios quilombolas, incidência de populações tradicionais em unidades de conservação, entre outros. Entretanto, em que pese a relevância de tais temas, para uma análise do multiculturalismo no Brasil o presente trabalho enfatizará a questão dos povos indígenas, grupos étnicos que apresentam maior contraste com o restante da sociedade brasileira, além de serem aqueles que, ao longo de sua história, suportaram maior carga de violência e exclusão.

3. A questão indígena 3.1. Etnocentrismo e Exclusão: os povos indígenas e o Estado Brasileiro O estudo da questão indígena demonstra que o Brasil ainda está longe de ser um país livre de preconceitos, no qual diferentes culturas podem conviver de forma harmônica. Ao contrário, revela a persistência de um quadro histórico de violência e exclusão. É possível identificar quatro premissas que sempre estão presentes, de forma isolada ou conjunta, nas práticas de dominação cultural dos povos indígenas: a inexpressividade demográfica, o etnocentrismo, o argumento desenvolvimentista e o mito de ameaça à integração nacional. Acredita-se que no século XVI habitavam o Brasil de 2 a 4 milhões de índios, pertencentes a mais de 1000 etnias distintas. Só na primeira metade do século XX desapareceram mais de 80 desses povos, tendo sido seu número reduzido de 1 milhão para 200 mil pessoas em razão de conflitos e epidemias. Atualmente, estima-se que a população indígena brasileira seja de cerca de 300 mil pessoas, o que corresponderia a pouco mais de 0,1% da população nacional (ISA, 2011). Essa baixa porcentagem na composição do quadro populacional brasileiro associada à difusão da ideia de que esses povos fazem parte de um passado remoto, já estando praticamente assimilados, levou a um processo de “invizibilização” do indígena, o que afeta a percepção social das questões a ele relativas e, consequentemente, a inserção de tal problemática nas principais preocupações do país. Outro fator digno de nota é a concepção etnocêntrica, fundada na ideia de que existiriam sociedades mais avançadas que as outras e que elas seguiriam uma escala evolutiva linear na qual passariam dos estágios mais primitivos aos mais desenvolvidos (DAMATTA, 1987, p. 95).

De acordo com tal corrente, a sociedade “ocidental” 2

representaria, dentre todas, o que há de mais evoluído, consistindo em um verdadeiro modelo a ser seguido pelas demais. Em razão disso, haveria um poder/dever de os povos mais “avançados” auxiliarem os menos “desenvolvidos”, que, por sua vez, deveriam se amoldar aos valores culturais e modelos político-econômicos dos primeiros (CELLA; DUARTE, 2008, p. 12). Esse etnocentrismo é claramente observado em inúmeros movimentos de 2

Para o presente trabalho, entende-se por “sociedade ocidental” aquela de tradição cultural eminentemente eurocêntrica. Trata-se de um conceito relacionado à herança cultural e não à localização física, razão pela qual dele estão excluídos os povos indígenas, ainda que habitem terras situadas no hemisfério ocidental

dominação cultural por todo o globo e a questão dos indígenas brasileiros não é uma exceção. Ainda no período colonial, ele poderia ser encontrado na justificativa “humanitária” para a exploração do trabalho escravo das populações autóctones, conforme se extrai de pronunciamento do bandeirante Domingos Jorge Velho: […] e se ao depois [de reduzir os índios] nos servimos deles para as nossas lavouras; nenhuma injustiça lhe fazemos; pois tanto é para os sustentarmos a eles e a seus filhos como a nós e aos nossos; e isto bem longe de os cativar, antes se lhes faz um irremunerável serviço em os ensinar a saberem lavrar, plantar, colher e trabalhar para seus sustento, coisa que antes que os brancos lho ensinem, eles não sabem fazer (VILLAS BOAS FILHO, 2006, p.78).

O ideal civilizatório também esteve presente após a independência, com a adoção de um modelo de Estado tipicamente burguês. Sob o pretexto de criar uma “sociedade de iguais”, as especificidades culturais dos autóctones foram duramente atacadas. Na visão dos dominantes, esse processo de assimilação, absorção ou integração era resultante do oferecimento das “conquistas do processo civilizatório”. Assim, buscava-se resgatar os indígenas de seu “primitivismo”, dando a eles a oportunidade de “evoluírem” para um estágio civilizacional mais avançado. Conforme ensina Souza Filho (1998, p.63), a “integração passou a ser o discurso culto dos textos e das leis, enquanto na prática, a cordialidade de integração se transformava na crueldade da discriminação”. Tal concepção, de matiz evidentemente etnocêntrico, persiste até os dias de hoje, conforme se extrai de comentários ao artigo 231 da Constituição Federal feitos por dois renomados juristas brasileiros: Em outras palavras, o constituinte brasileiro garantiu ao índio dez por cento do território nacional para que ele não evolua, visto que, para manter uma Disneyworld primitiva, preservará, todo seu ambiente pré-histórico, a fim de que suas crenças, costumes e tradições continuem os mesmos, proibidos de evoluir para os costumes civilizados do século XX/XXI, uma vez que o objetivo do constituinte foi preservar no tempo o atraso indígena. (BASTOS; MARTINS, 2004, p. 1049-1050).

Ainda de acordo com tais doutrinadores, os defensores do movimento indigenista lutam “para que os índios continuem sendo primitivos, peças de museu, devendo ser preservados em seu atraso civilizacional, para gáudio dos povos civilizados, que poderão dizer que no passado pré-histórico os homens viviam como os índios brasileiros” (BASTOS; MARTINS, 2004, p.1046).

A nova ordem constitucional ao reconhecer a proteção das especificidades culturais do indígena, implicaria, portanto, em um obstáculo ao dever moral de os povos mais “desenvolvidos” levarem os avanços da civilização aos mais “primitivos”, condenando-os a uma existência precária. Igualmente importante para compreensão da questão indígena é o argumento desenvolvimentista, que consiste na frequente associação do autóctone a um obstáculo ao progresso do país. Como bem ilustram as palavras de um ex-diretor do Museu Paulista, Hermann von Ihering, os povos indígenas consistiam em “um empecilho para a colonização das regiões do sertão que habitam”, razão pela qual defendia que “não há outro meio, de que se possa lançar mão, senão o seu extermínio”(RIBEIRO, 2004) Nos primeiros anos da República, a busca pelo “progresso” resultou em intensos conflitos entre indígenas e civilizados, muitos deles ocorrendo nas proximidades de grandes centros urbanos. A título de exemplo, pode-se mencionar a contratação de “bugreiros profissionais” por colonos italianos e alemães para tomar as terras dos Xokiéng do Paraná e Santa Catarina, os conflitos envolvendo botocudos do Espírito Santo e Minas Gerais e invasores de seus territórios ou então a luta dos Kaigang de São Paulo contra o avanço das Estradas de Ferro Noroeste em suas terras (MELATTI, 1986). Em tempos mais recentes, notadamente durante o regime militar, o índio foi considerado um empecilho ao progresso nacional, estando a política indigenista claramente subordinada a imperativos econômicos e políticos que tomavam a forma de grandes empreendimentos, tais como estradas, hidrelétricas, projetos de mineração e agropecuária. Tais projetos não raramente são viabilizados às custas dos direitos territoriais das comunidades indígenas, forma e condição indispensável à sua organização social (VILLAS BOAS FILHO, 2003). Também é recorrente o argumento de que a preservação das particularidades culturais e direitos territoriais dos povos indígenas implicariam em um risco à unidade nacional, a medida em que facilitariam a existência de movimentos separatistas. Tal argumento foi constantemente veiculado quando da homologação as terras dos Yanomami, do caso Raposa Serra do Sol ou nas controvérsias a respeito da internacionalização da Amazônia (LOUREIRO, 2010). Verifica-se, portanto, que a relação entre os povos indígenas e o restante da sociedade brasileira é marcada pela violência, etnocentrismo e exclusão. No entanto, se por um lado ela revela que a tolerância entre diferentes culturas é um problema ainda longe de ser superado no Brasil, por outro traz à tona discussões que transcendem os problemas dos grupos

étnicos envolvidos, fornecendo importantes contribuições para construção de um Estado Multicultural. Vale ressaltar que, para consecução de tal objetivo, a Constituição Federal de 1988 possui instrumentos de grande importância, como é o caso do reconhecimento, ainda que implícito, do direito fundamental à identidade étnica, que será melhor abordado a seguir.

3.2. O direito fundamental à identidade étnica e os povos indígenas 3.2.1. Uma crítica às concepções etnocêntricas O reconhecimento e proteção da identidade étnica pressupõe a superação de uma concepção etnocêntrica. Entretanto, a compreensão das críticas aos fundamentos dessa corrente de viés evolucionista só é possível mediante o estabelecimento dos conceitos de cultura e etnia. Para tanto, é importante esclarecer que inexiste consenso na definição desses vocábulos e que um maior aprofundamento do tema fugiria do escopo deste artigo. Assim, para o presente trabalho, pode-se conceituar cultura como sendo o conjunto de símbolos 3 de uma sociedade, compreendendo os padrões de comportamento, as instituições e os valores materiais e espirituais de um povo (JUNQUEIRA, 2008). Etnia, por sua vez, pode ser entendida como sendo uma comunidade humana culturalmente homogênea, que compartilha traços, tais como religião, língua, tradições e cosmovisão. A cultura, portanto, engloba as percepções que cada sociedade possui do mundo e de si mesma, abrangendo também as suas prioridades. Isso significa que valores, objetivos e cosmovisões podem variar bastante de um povo para outro, ou seja, o que é considerado primordial para a sociedade ocidental, pode não sê-lo para as demais. Com base nessa assertiva, é possível concluir que a noção de progresso usualmente adotada é arbitrária, na medida em que leva em consideração apenas as prioridades adotadas pelo Ocidente, como, por exemplo, o desenvolvimento tecnológico. Isso é até natural, já que “cada cultura afirma-se como a 'verdadeira' expressão da humanidade, desqualificando as demais, que não passam, no seu modo de ver, de imperfeitas, primárias; quando não, selvagens e bárbaras” (JUNQUEIRA, 2008, p. 17). Adotando-se outros critérios, a escala evolutiva pode ser totalmente alterada, modificando-se a

lista de países desenvolvidos e atrasados. Em razão disso,

DaMatta (1987) pondera como seria tal escala se o parâmetro adotado, como ocorre com as 3

Por símbolos entende-se tudo aquilo que confere um sentido ao homem, o que é criado socialmente, abrangendo costumes, regras e a própria sociedade (JUNQUEIRA, 2008)

sociedades tribais, fosse o controle negativo do mundo interno, das emoções antissociais como a sexualidade, inveja, ódio e desesperança, em vez do desenvolvimento tecnológico ou poder econômico. Necessário esclarecer que a crítica à amplamente disseminada concepção evolucionista não significa o desprezo pelas conquistas alcançadas pelo Ocidente, tais como importantes avanços tecnológicos, o sistema democrático ou a proteção das liberdades individuais e direitos sociais. Não se pretende, aqui, adotar um “etnocentrismo às avessas”, mediante a “demonização” da sociedade ocidental, mas sim defender que outras culturas também podem trazer contribuições importantes, merecendo, portanto, serem respeitadas Assim, cristalina a inconsistência das teorias que pregam a existência de uma hierarquia entre as diversas culturas, uma vez que são baseadas em critérios claramente arbitrários. Uma vez firmada tal premissa, é possível tecer maiores considerações a respeito do direito fundamental à identidade étnica, o que será feito no próximo item. 3.2.2. A identidade étnica como um direito fundamental

A cultura e os símbolos atuam de forma intensa na construção da estrutura psíquica e emocional de seus criadores. Tais elementos formam a cosmovisão de um determinado povo e é por meio da interação desta com as particularidades de cada indivíduo que são construídos seus valores, objetivos e forma de se relacionar consigo, com os demais e com o universo. Assim, pode-se afirmar que a construção da personalidade não é feita no isolamento, isenta de forças sociais, mas leva em consideração a interação de suas heranças genéticas, sociais, culturais e históricas (FREIRE, 1996). Cada ser humano guarda um forte vínculo com o grupo étnico ao qual pertence, com suas tradições, valores e cosmovisão. A essa relação de pertencimento dá-se o nome de “identidade étnica”. Assim, por direito à identidade étnica entende-se o direito fundamental de cada indivíduo preservar e vivenciar as particularidades culturais que o caracterizam, abrangendo aspectos como idioma, religião, modo de vida e organização social. Vale ressaltar que esse direito fundamental só tem sentido em situações de contato interétnico, possuindo caráter contrastivo, “forte teor de 'oposição' com vistas à afirmação individual ou grupal” (OLIVEIRA, 1976, p.24). É “a partir da alteridade, em qualquer modalidade, que se forma o senso de identidade e unidade cultural, o senso do 'nós' frente ao outro” (CENTURIÃO, 2002, p.42).

Devido ao relevante papel desempenhado na formação do indivíduo, a identidade étnica é objeto de proteção jurídica em diversos tratados internacionais. A título de exemplo pode-se mencionar o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art.27); Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas (art.1° e 2°, parágrafo único) bem como a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho, que dispõe sobre tal direito em relação aos povos indígenas e tribais. Tal direito recebeu status constitucional ao redor do mundo. Cada vez mais Estados têm se assumido como multiétnicos e pluriculturais, prevendo a proteção da identidade étnica em suas leis fundamentais, ainda que de forma implícita. É o caso, por exemplo, do México (artigo 2º), Nicarágua (arts. 89 e 90), África do Sul (Seção 31), Romênia (artigo 6º), Índia (artigo 29), entre outros. E o Brasil não foi exceção. Diferentemente das constituições sul-africana, romena e indiana, a brasileira não previu expressamente um direito fundamental à identidade. Isso, entretanto, não significa que ele não exista na ordem jurídica pátria. A própria lei fundamental brasileira prevê, no parágrafo segundo de seu artigo 5º, a possibilidade de existência de direitos decorrentes do regime e princípios por ela adotados. Logo em seu preâmbulo, reconhece a sociedade brasileira como sendo “fraterna, pluralista e sem preconceitos”. Já o caput do artigo 215 estabelece como sendo dever do Estado Brasileiro garantir “a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional”, bem como apoiar e incentivar a “valorização e a difusão das manifestações culturais”. Também é dever estatal, nos termos do parágrafo primeiro do mesmo artigo, a proteção das “manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. O artigo 216, por sua vez, estabelece em seu caput como sendo parte do patrimônio cultural brasileiro os “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Em seu inciso I, o aludido dispositivo normativo inclui como fazendo parte de tal patrimônio “os modos de criar, fazer e viver”. Pode-se mencionar, ainda, o artigo 231, especificamente voltado para os povos indígenas e que será melhor abordado no decorrer do presente trabalho. Não se pode olvidar que o reconhecimento e proteção das particularidades de um determinado grupo é o que distingue sua caracterização como minoria by will de uma

minoria by force4 (CANOTILHO, 2002). Trata-se da consagração do imperativo formulado por Santos (2003, p.458): “[...] temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”. Importante esclarecer que o reconhecimento da existência de diferentes grupos culturais não implica em qualquer ameaça à integridade nacional. Inexiste um tradeoff entre diversidade e unidade do Estado, até mesmo porque as pessoas podem e têm identidades múltiplas e complementares, tais como a etnicidade, língua, religião e cidadania (PNUD, 2004, p.02-03). O reconhecimento e proteção do direito à identidade étnica é elemento essencial para a construção de uma sociedade multicultural, na qual diferentes povos e culturas podem coexistir de forma pacífica e harmônica. No caso dos indígenas brasileiros, tal direito assume contornos diferenciados, razão pela qual será melhor tratado a seguir.

3.2.3. A proteção da identidade étnica indígena no Estado Brasileiro O debate a respeito da proteção da identidade étnica dos povos indígenas traz à tona complexas questões relativas ao preconceito. Este pode ser manifestado de variadas formas, podendo estas serem divididas em dois grandes grupos: as negativas e as positivas. As primeiras delas, são fortemente associadas ao etnocentrismo, vislumbrando o indígena como sendo bárbaro, primitivo, preguiçoso ou cruel. Tal visão é comum entre sertanejos, que buscam, por meio dela, justificar os baixos salários pagos aos índios, a invasão de suas terras ou toda sorte de violência contra eles praticada (MELLATTI, p.194). Não raro essa forma de preconceito também engloba um repúdio e vergonha pela herança indígena, atribuindo a ela o “atraso” do país e uma situação vexatória diante da comunidade internacional. A título de exemplo, pode-se mencionar os comentários de famoso jurista à legislação penal brasileira: Dir-se-á que, tendo sido declarados, em dispositivo à parte, irrestritamente irresponsáveis os menores de 18 anos, tornava-se desnecessária a referência ao “desenvolvimento mental incompleto”, mas explica-se: a Comissão Revisora entendeu que sob tal rubrica entrariam, por interpretação extensiva, os silvícolas, evitando-se que uma expressa alusão a estes fizesse supor falsamente, no 4

Por minorias by will deve-se entender aquelas que não não querem assimilar a cultura dominante, que desejam preservar suas características distintivas. As minorias by force, por sua vez, são aquelas que desejam ser incorporadas, no entanto, são segregadas pela maioria dominante (DOS ANJOS FILHO, 2008, p.)

estrangeiro, que ainda somos um país infestado de gentio (HUNGRIA, 1995, p.330-331). Além dessa vertente negativa, é possível vislumbrar um “preconceito positivo” em relação ao indígena, concebendo ele como sendo um indivíduo naturalmente bom, inocente e que vive em total harmonia com o meio ambiente. Tal concepção acaba por ser prejudicial ao autóctone, a medida em que implica no seu “engessamento” cultural, impedindo-o de adotar novas práticas e tecnologias, sob pena de “deixar de ser índio”. Necessário, nesse ponto, apontar que a cultura e, consequentemente, as etnias, possuem um caráter dinâmico, estando em constante mutação. Exemplo disso são os contatos interculturais, que permitem, por vezes de forma inconsciente, o intercâmbio de ideias, valores e comportamentos, provocando significativas transformações nos grupos envolvidos (GOMES, 2008). Ou seja, o fato de um indígena passar a fazer uso de recursos tecnológicos, não o descaracteriza como sendo índio. Outro ponto relevante a respeito da questão da proteção das especificidades culturais dos povos indígenas diz respeito ao processo de “transfiguração étnica” ao qual foram submetidos. Ribeiro(2004) ensina que ao longo de sua história de contato como o “civilizado”, o indígena tem sido submetido a coerções ecológicas, bióticas, tecnológico-culturais, sócio-econômicas e ideológicas que fazem com que sua cultura seja drasticamente alterada. Passa, então, a adotar os modos de vida dos civilizados, porém, sem se converter ou ser plenamente aceito como um, passando de uma situação de “índio tribal” à de “índio genérico”.

E foi justamente em razão disso, para evitar esse processo de perda de identidade étnica e suas trágicas consequências, que a Constituição brasileira estabeleceu no capítulo VIII de seu Título VIII disposições que visam proteger as especificidades culturais dos povos indígenas, reconhecendo no caput do artigo 231, por exemplo, seu direito originário às terras que ocupam, organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, todos eles desdobramentos do direito fundamental à identidade étnica. Assim, insofismável o reconhecimento e proteção do direito fundamental à identidade étnica dos povos indígenas. Conforme ensina Santili (2005), houve um rompimento com o paradigma integracionista, garantindo-se ao indígena o direito de permanecer como tal. Para melhor compreensão do tema, mostra-se conveniente uma análise mais aprofundada de dois importantes desdobramentos de tal direito, quais sejam, a territorialidade e a coexistência entre o ordenamento jurídico estatal e o dos povos indígenas, temas estes que passarão a ser abordados neste trabalho.

3.2.2. Cultura e territorialidade: a questão das terras indígenas Um dos desdobramentos mais importantes do direito à identidade étnica dos povos indígenas é o reconhecimento de seus direitos originários sobre as terras que ocupam. Vale ressaltar que, dada a complexidade e extensão do tema, é impossível abordá-lo com profundidade no presente trabalho. Entretanto, é necessário que sejam tecidas algumas considerações a seu respeito, especialmente no tocante à sua relação com as especificidades culturais do índio. A presença de autóctones e seu vínculo privilegiado com seu território e história dão uma dimensão ao problema do multiculturalismo no Brasil distinta da existente na Europa, onde a questão é centrada nos imigrantes e seus descendentes. Essa relação diferenciada entre os índios e as terras por eles ocupadas é de grande importância para a compreensão do tema. Vale, aqui, transcrever esclarecedor trecho de sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em caso envolvendo a comunidade indígena Mayagna Awas Tingini contra a Nicarágua: 149. Dadas as características do presente caso, é mister fazer algumas considerações a respeito do conceito de propriedade nas comunidades indígenas. Entre os indígenas existe uma tradição comunitária sobre uma forma comunal da propriedade coletiva da terra, no sentido de que a sua pertinência não é centrada no indivíduo, mas sim no grupo e sua comunidade. Os indígenas em razão de sua própria existência têm o direito de viver livremente em seus territórios; a estreita relação que os indígenas mantêm com a terra deve ser reconhecida e compreendida como a base fundamental de suas culturas, sua vida espiritual, sua integridade e sua sobrevivência econômica. Para as comunidades indígenas a relação com a terra não é meramente uma questão de posse e produção, mas um elemento material e espiritual do qual devem gozar plenamente, inclusive para preservarem seu legado cultural e transmiti-lo às gerações futuras.

Verifica-se, portanto, que a relação que os povos indígenas possuem com a terra não é meramente patrimonial. A terra é a base física de sua identidade étnica, permitindo a reprodução de sua cultura, razão pela qual, privar o índio de tal direito pode implicar em conseqüências desastrosas. Não foi por outra razão que a Constituição Federal, no parágrafo primeiro de seu artigo 231 considerou como sendo terras tradicionalmente ocupadas pelos índios “as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as

necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Dada essa essencialidade para preservação de sua identidade étnica e, consequentemente, proteção de sua dignidade, é possível dizer que o direito do indígena às terras que ocupa reveste-se de fundamentalidade material, razão pela qual pode ser considerado um direito fundamental, conforme interpretação dos caput e parágrafo primeiro do artigo 231 com o parágrafo segundo do artigo 5º da Constituição Federal. Além da questão dos direitos territoriais, há outro desdobramento de grande relevância da identidade étnica, qual seja, o reconhecimento do direito consuetudinário dos povos indígenas, tema esta que passará a ser abordado a seguir. 3.4. O pluralismo jurídico e o Direito dos Povos Indígenas O reconhecimento do direito consuetudinário dos povos indígenas pressupõe a aceitação de duas premissas, quais sejam, a ausência de monopólio estatal sobre a produção jurídica e a percepção do Direito como manifestação da identidade étnica. Entretanto, antes de qualquer consideração, é necessário esclarecer que existem várias vertentes de pluralismo jurídico, todas fulcradas em pressupostos muito distintos (REALE, 2000). Para o presente trabalho, adotar-se-á o conceito formulado por Rouland (2004, p.570), segundo o qual “[...] à pluralidade dos grupos sociais correspondem sistemas jurídicos múltiplos múltiplos arranjados segundo relações de colaboração, de coexistência, de competição ou de negação”. Uma vez determinada a vertente do pluralismo jurídico adotada, pode-se passar ao estudo da primeira premissa, qual seja, a ausência de monopólio estatal sobre a produção jurídica. Para tanto, é imprescindível estabelecer o conceito de norma jurídica. Ressalta-se que este não é unívoco, havendo uma infinidade de teorias que buscam defini-lo. Tendo em vista a sua clareza e precisão, adotar-se-á aquele formulado por Bobbio (2005), segundo o qual pode ser considerada jurídica a norma cuja execução é garantida por uma sanção externa e institucionalizada. Não se pode olvidar que quando o aludido autor fala em norma, não está se referindo às normas singularmente consideradas, mas ao ordenamento normativo tomado em seu conjunto. Ou seja, não é necessário que todas as normas desse ordenamento possuam sanção, bastando que o tenham a maioria delas (BOBBIO, 2005). Assim, cristalino que o Direito não é monopólio do Estado, já que este não é o único que pode estabelecer normas com sanções externas e institucionalizadas. Os diversos

ordenamentos jurídicos podem coexistir entre si, independentemente de previsão e reconhecimento pelo Direito Estatal, podendo manter com este uma relação de contrariedade, inclusive (BOBBIO, 1999). Exemplo dessa ausência de monopólio estatal da produção jurídica é dado por Faria (2002), ao defender que a globalização impôs ao Estado sérias dificuldades estruturais para resolução de conflitos, razão pela qual surgiram justiças paralelas, emergentes de espaços infra e supra-estatais, como é o caso das International Commercial Terms (Incoterms), princípios de uniformização de contratos de venda internacional formulados pelo Unidroit ou mesmo a Lex Mercatoria. Assim,a natureza do poder e o caráter do Direito não são atributos exclusivos de qualquer forma política, social ou jurídica específica (FARIA, 2004). A segunda premissa é que o Direito é uma das formas de manifestação da identidade étnica, já que está diretamente relacionado à cosmovisão de um povo, refletindo, dessa forma, suas concepções de certo e errado, justo e injusto. Em razão disso, é impossível compreender o fenômeno jurídico sem relacioná-lo a um sistema de valores que fundamentam as relações de homem para homem, com exigência de se fazer ou não fazer algo (REALE, 2000). Se os símbolos, as culturas e as tábuas de valores são variáveis conforme os grupos que os criam, é natural que as experiências jurídicas também o sejam. Tendo em vista essa diversidade de experiências, é possível afirmar que o Direito é o que “[...] cada sociedade ou alguns de seus grupos consideram como indispensável à sua coerência e à sua reprodução” (ROULAND, 2003, p.177). A respeito do tema, Stavenhagen e Iturralde (1989) ensinam que o Direito é uma parte da estrutura social e da cultura de um povo, consistindo em elemento básico de sua identidade étnica. A vigência do direito consuetudinário dos povos indígenas seria, dessa forma, essencial para a preservação e reprodução de suas culturas. Uma vez estabelecidas essas premissas, é possível fazer uma análise do reconhecimento do direito consuetudinário dos povos indígenas no Brasil, que, conforme ensina Wolkmer (2010), se pauta por mecanismos distintos do Direito Estatal. A constituição brasileira, ao contrário da mexicana (artigo 2º), não dispôs expressamente sobre o reconhecimento dos ordenamentos jurídicos indígenas. Este se deu de forma implícita, conforme se extrai de interpretação do caput do artigo 231 da Constituição Federal, em especial, quando este menciona a proteção de sua organização social, costumes e tradições.

No plano infraconstitucional, pode-se mencionar o Estatuto do Índio (Lei Federal 6.001/73), que possui disposições expressas a respeito do direito consuetudinário indígena em seus artigos 6º e 57. Pode-se, ainda, mencionar os artigos 8º e 9º da Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho, como sendo exemplo do expresso reconhecimento da coexistência entre os ordenamentos jurídicos indígenas e o estatal. Há que se ressaltar que a aplicação do direito consuetudinário dos povos indígenas não é ampla e irrestrita. Deve ela, assim como qualquer norma de proteção à cultura, respeitar os limites impostos pela dignidade da pessoa humana e pelos direitos fundamentais. O item do artigo 8º da Convenção 169 da OIT condiciona a aplicação desse direito à sua compatibilidade com os direitos humanos e fundamentais. Tal disposição também consta do artigo 9º do aludido tratado internacional. Já o Estatuto do Índio limita à aplicação da norma penal do autóctone aos casos em que as punições não se revistam de caráter cruel ou infamante, sendo vedada a pena de morte. A respeito dessa relação entre o direito estatal e o indígena, pode-se mencionar interessante precedente da Corte Constitucional da Colômbia (1994): [...]A autonomia política e jurídica reconhecida às comunidades indígenas pelo constituinte, por sua vez, devem ser exercidas dentro dos estritos parâmetros indicados pelo mesmo texto constitucional: em conformidade com seus usos e costumes, sempre e quando não sejam contrários à Constituição e a lei, de forma que seja assegurada a unidade nacional Assim, evidente o reconhecimento do direito consuetudinário dos povos indígenas, elemento essencial para proteção da identidade étnica de tais povos. Conclusão Fenômenos como a globalização, a crise ambiental, a guerra contra o terror, o aumento dos fluxos migratórios e as constantes crises econômicas recrudescem e dão nova roupagem a um antigo e não superado desafio: a construção de uma sociedade em que diferentes povos e culturas possam coexistir de forma harmônica e pacífica. Diante da disseminação de conflitos culturais, não raramente violentos, por todo globo e das tentativas infrutíferas dos países mais desenvolvidos resolvê-los, os olhos do mundo voltam-se para o Brasil, razão pela qual mostra-se necessária uma análise de como o Estado brasileiro tem lidado com tal problemática. A primeira constatação que se chega é a de que o Brasil está longe de ser

uma “democracia racial”. Ao contrário, é um país marcado por toda sorte de preconceito e violência.

Problemas

costumeiramente

apresentados

como

sendo

exclusivamente

socioeconômicos revelam uma faceta étnica, como é o caso da questão do negro e das populações tradicionais. Dentre todos os grupos, os povos indígenas são aqueles que apresentam maior contraste com o restante da sociedade brasileira, sendo submetidos, ao longo de sua história, a uma maior carga de violência e exclusão, muitas vezes praticadas mediante justificativas de cunho humanitário e desenvolvimentista. No entanto, a nova ordem jurídica estabelecida pela Constituição Federal de 1988 traz importantes instrumentos para reversão do quadro de dominação cultural ao qual o indígena tem sido submetido. O primeiro deles é o reconhecimento e proteção, ainda que de forma implícita, do direito fundamental à identidade étnica, direito este que é peça chave para construção de uma sociedade multicultural. Outro elemento de igual importância e que diz respeito a uma particularidade brasileira, é o reconhecimento de uma territorialidade específica, garantindose ao indígena direitos originários sobre as terras que ocupam. Observa-se que não se trata do reconhecimento de um direito meramente patrimonial, mas sim de uma relação diferenciada que o índio tem com a a terra que ocupa, fazendo dela a base física para reprodução de suas especificidades culturais. Um terceiro elemento é a aceitação do direito consuetudinário indígena, o que implica na superação de uma concepção clássica que vislumbra o Estado como detentor do monopólio sobre a produção jurídica. Além disso, com a adoção do pluralismo jurídico, vislumbra-se o Direito como sendo intimamente ligado à identidade étnica e cosmovisão de um povo. Por fim, observa-se que muitas aspectos da questão indígena podem transcender tais grupos étnicos, servindo de importante contribuição para solução de outros conflitos culturais. O direito à identidade étnica, por exemplo, é elemento essencial para construção de uma sociedade tolerante, podendo ser reconhecido em outras partes do globo. A territorialidade específica e o pluralismo jurídico, por sua vez, rompem com um paradigma etnocêntrico, na medida em que revelam que há outras formas, tão válidas como as adotadas pela sociedade ocidental, de relacionar-se com outros indivíduos, com a terra e com o próprio universo. Pode-se concluir, portanto, que se por um lado uma análise franca da realidade brasileira revela um grave quadro de preconceito e exclusão, por outro ela permite

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