ESTADOS FALHADOS: AMEAÇAS À SEGURANÇA INTERNA E EXTERNA DOS ESTADOS - IX CURSO DE MESTRADO EM DIREITO E SEGURANÇA

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IX CURSO DE MESTRADO EM DIREITO E SEGURANÇA

CRIMINALIDADE ORGANIZADA TRANSNACIONAL E ESTADOS FALHADOS: AMEAÇAS À SEGURANÇA INTERNA E EXTERNA DOS ESTADOS

João Miguel P. Almeida Costa Lisboa, Julho de 2012 Trabalho desenvolvido no âmbito de avaliação curricular no Mestrado em Direito e Segurança na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Criminalidade Organizada Transnacional e Estados Falhados

Criminalidade Organizada Transnacional e Estados Falhados: Ameaças à Segurança Interna e Externa dos Estados

1- Introdução 2- Momentos Evolutivos no Séc. XX 3- Estados Falhados a. Conceptualização b. Índice de Estados Falhados (relatório de 2012) c. Razões do falhanço de um Estado d. Consequências do falhanço de um Estado 4- Crime organizado a. Definição e variantes conceptuais b. Relação com Estados Falhados 5- Europa e a relação entre Criminalidade Organizada e Estados Falhados a. Estratégia Europeia de Segurança b. Estratégia conjunta UE-África c. Peacebuilding; Statebuilding; Nationbuilding; 6- Conclusão

João Miguel Almeida Costa Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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“The rise and fall of nation-states is not new, but in a modern era when national states constitute the building blocks of world order, the violent disintegration and palpable weakness of selected African, Asian, Oceanic, and Latin American states threaten the very foundation of that system.”

Robert I. Rotberg, The Failure and Collapse of Nation-States.

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1- Introdução Um fenómeno globalizante que quebrou fronteiras tanto físicas como administrativas, fomentou e alimentou outros, como a crescente influência de entidades não-estatais, tanto coletiva como individualmente, nas relações internacionais hodiernas. Torna-se especialmente ilustrativo dessa realidade o exemplo da UE com a sua dependência infraestrutural a nível de transportes e energia, infraestruturas essas controladas, não por Estados soberanos, mas por empresas multinacionais – com capacidade para pôr em cheque a independência de um Estado.1 2 Observando a generalidade do mundo classificado como “em desenvolvimento” podemos identificar a pobreza e a falta de cuidados de saúde que intensificam um cenário de doenças e epidemias mortíferas a larguíssima escala, como naturais promotores de preocupações de segurança. Estima-se que 3 mil milhões de seres humanos vivem com menos de 2€ por dia. De fome ou subnutrição, morrem 45 milhões de pessoas por ano. A SIDA consolidou o seu lugar na História da Humanidade como uma das mais devastadoras pandemias de que há memória, contribuindo para a ruína de sociedades. Certas áreas do continente Africano continuam a empobrecer continuamente ilustrando, em muitos casos, como a hecatombe económica e social de uma região está intimamente ligada a problemas políticos e conflitos que interminavelmente vilipendiam as suas próprias populações com atrocidades indescritíveis.3 Partindo dessa realidade empírica, observada através dos interesses de Segurança dos Estados que compõe a União Europeia, propõe-se que este artigo consiga demonstrar que os Estados Falhados estão intimamente ligados à proliferação de fenómenos de criminalidade organizada transfronteiriça. 1

Pense-se nos cíclicos conflitos diplomáticos sobre o fornecimento de gás natural à UE por grandes empresas do Leste Europeu – predominantemente Russas – em alturas críticas de vagas de frio capazes de pôr termo à vida de uma significativa multiplicidade de pessoas. 2 “(…) interdependence forms the underlying principle of this relationship and creates both sensitivity and vulnerability for the interdependent parties, thus carrying the sperms of both conflict and cooperation.” Hazakis, Konstantinos e Proedrou, Filippos, EU-Russia Energy Diplomacy: the need for an active strategic partnership, Collège d’Europe, Abril de 2012. 3 “Somalia seems wracked by a religiously themed civil conflict between the internationally backed but feckless transitional government and the Islamist militia al-Shabab. Yet the fighting is being nourished by the same old Somali problem that has dogged this desperately poor country since 1991: warlordism. Many of the men who command or fund militias in Somalia today are the same ones who tore the place apart over the past 20 years in a scramble for the few resources left -- the port, airport, telephone poles, and grazing pastures.” – Gentleman, Jeffrey, Africas Forever Wars, Foreign Policy em Fevereiro de 2010. João Miguel Almeida Costa Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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2- Momentos evolutivos A II Guerra Mundial, teve como uma das principais características a participação, mais ou menos direta ou voluntária, de países de todos os pontos do globo, tanto mais que os diversos teatros de guerra tiveram lugar Europa, Norte de África, Médio Oriente, Pacífico Sul (Sudeste Asiático), sendo seguro afirmar que se conseguem verificar as principais mutações geopolíticas a nível global, com a confirmação da perda de hegemonia, até então Europeia, para uma realidade bipolarizada, consagrada historicamente como Guerra Fria. Aquando da Guerra Fria, verificava-se uma claríssima bipolaridade de poder entre dois blocos políticos: o Ocidental, liderado pelos Estados Unidos da América (EUA), e o Bloco de Leste, encabeçado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Embora estes dois blocos nunca tenham entrado em conflito armado de forma direta, muito por dissuasão nuclear4, desde o final da II Guerra Mundial até ao ano de 19915 registam-se teatros de guerra por todo o planeta, num conceito de proxy wafare6 em que as doutrinas ocidentais e de leste combatiam pelo controlo de uma nação, região ou continente. Com essa regionalização de conflitos vemos como efeitos diretos o armamento de populações em países subdesenvolvidos, a criação e fomentação de conflitos internos e intensificação de fações7, alguns dos quais escalaram muito além das suas fronteiras iniciais, como tornou evidente a relação de Osama bin-Laden com as forças norteamericanas no Afeganistão aquando da invasão pela URSS. O Afeganistão é hoje considerado um Estado falhado, sem qualquer margem de dúvida sobre o assunto, com uma profunda e quase irresolúvel questão sobre produção e tráfico

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Nuclear deterrence ou Mutual Assurence Destruction (MAD); A queda do Muro de Berlim (09/11/1989) é celebrada como o momento final da Guerra Fria, mas apenas a dissolução da URSS em 25/12/1991 poderá servir como data formal para o final desse período (1947-1991) – Gaddis, John Lewis, The Cold War: A New History, 2005; 6 Proxy wars poderá traduzir-se como “Guerra de subsituição” – Guedes, Marques Armando, aula de Mestrado em Direito e Segurança, 26 de Outubro de 2011; 7 Afeganistão (1979-1989), Líbano (1975-1990), Angola (1975-1991), Hughes, Gerraint, My Enemy’s Enemy: Proxy Warfare in International Politics, 2012; 5

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de droga8, tanto que hoje está no centro do debate sobre a descriminalização de estupefacientes9. Desde o final da Guerra Fria que se vive um fenómeno de abertura de fronteiras e barreiras à circulação tanto de pessoas como de bens da mais variada espécie, provocando uma necessária evolução na forma como se encara o conceito de Segurança que, à semelhança de tantas outras realidades neste mundo profundamente interligado e globalizado, deixou de ter uma perspetiva dualista em função de uma inegável dinâmica integrada, em que as anteriores margens dualistas se diluem e complementam. Hoje especialmente para os povos da Europa comunitária, há uma ligação inegável entre segurança interna e segurança externa, que impede que sejam analisadas como realidades distintas e estanques. Os fluxos de trocas comerciais e de investimento, o desenvolvimento tecnológico e disseminação de regimes democráticos trouxeram paz e liberdade a muitos povos, ao passo que para outros, este fenómeno de globalização que caracterizou o final do século XX, não trouxe muito mais do que injustiças e frustração de expectativas.

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“quase metade do PIB resulta da produção da papoila do ópio, matéria prima, designadamente, de muita da heroína que se consome nos países ao seu redor e na Europa”, Canas, Vitalino, Segurança e Droga no Afeganistão: Chegou a altura de novas alternativas, 9 Inkster, Nigel; Comolli, Virginia – Drugs, Insecurity and Failed States: The Problems of Prohibition, 2012. João Miguel Almeida Costa Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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3- Estados Falhados a. Conceptualização Embora seja deveras complicado compartimentalizar num segmento espácio-temporal a problemática dos Estados Falhados, seguramente se poderá afirmar que surge historicamente desde o momento da criação do Estado Moderno, tendo sido, no entanto, especialmente exacerbada em três momentos concretos no século XX: o fim da 2ª Guerra Mundial em 1945, o fim do colonialismo europeu ao longo das décadas de 1950 e 1960 e mais próximo da realidade presente, o fim da Guerra Fria.10 Utilizando, desde já, os ensinamentos de Marcello Caetano sobre o assunto basilar, “a noção de Estado é a de um povo fixado num território, de que é senhor, e que dentro das fronteiras desse território institui, por autoridade própria, órgãos que elaborem as leis necessárias à vida coletiva e assegurem a respetiva execução.”11 No entendimento deste autor, sendo algo que se aceita sem grandes querelas doutrinárias, os fins do Estado apresentam-se como sendo: Segurança, Justiça e BemEstar Social. É a finalidade desta conceptualização social – assegurar estes predicados de modo a que os membros dessa mesma sociedade consigam desenvolver-se e prosperar. A principal responsabilidade do Estado é o fornecimento de determinados bens e serviços à população, sendo o mesmo avaliado em função dessa sua capacidade de fornecimento e garantia, sendo a sua função primordial a Segurança – a manutenção do monopólio do uso exclusivo da força – edificando-a face a ameaças internas ou externas, assegurando a manutenção da ordem interna.

b. Índice de Estados Falhados (relatório de 2012) A avaliação dessas capacidades é possível pela quantificação de diversos fatores, através de metodologias de parametrização interdisciplinar de pesquisa qualitativa bem como quantitativa de modo a apurar valores indicativos e descritivos da realidade da

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“Since the end of the Cold War, weak and failling states have arguabily become the single most important problem for international order”, Fukuyama, Francis, State-building: Governance and World Order in the 21 st Century”, 2004. 11 Caetano, Marcello, Curso de Ciência Política e Direito Constitucional, volume I, 1959. João Miguel Almeida Costa Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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amostra predefinida. A metodologia utilizada pela organização Fund for Peace é denominada por CAST (Conflitct Assessment System Tool)12. Através de um extenso estudo de milhares de documentos, com uma triangulação de fontes de modo a permitir independência e isenção, o sistema CAST consegue apurar o perfil de um país analisando-o por doze indicadores diferentes cujos resultados são quantificados numa escala de 0 a 10 pontos, sendo que zero é indicativo de menor pressão (negativa) naquela determinada área e quanto mais próximo do valor 10, tanto piores serão as condições daquele Estado nessa determinada área. Esses indicadores podem ser de ordem Social e Económica (manifestações demográficas, situações de refugiados, desenvolvimento económico desnivelado, tensão e violência sectária, migração, níveis de empobrecimento), tanto como Política e Militar (legitimidade do Estado, serviços públicos fornecidos, respeito pelos Direitos Humanos, garantia de segurança interna, clivagem de classes sociais, intervenção externa). São esses13 os critérios que nos indicam como estão os Estados a cumprir com as suas responsabilidades mais gerais (segurança, legitimidade política, oportunidades económicas e bem-estar social14), e que se traduzem numa representação gráfica de quatro níveis e respetivos subníveis: 1) Alert:  Very High Alert;  High Alert;  Alert; 2) Warning:  Very High Warning;  High Warning;  Warning; 3) Stable:  Less Stable;

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“CAST is a flexible model that has the capability to employ a four-step trend-line analysis, consisting of (1) rating 12 social, economic, and political/military indicators; (2) assessing the capabilities of five core state institutions considered essential for sustaining security; (3) identifying idiosyncratic factors and surprises; and (4) placing countries on a conflict map that shows the risk history of countries being analyzed.”, Foreign Policy, The Failed States Index 2007: Methodology, Junho de 2007. 13 Analysis of Failed State Index 2012, p. 12, Fund for Peace. 14 Patrick, Stewart, Weak States and Global Threats: Assessing Evidence of “Spillovers”, 2006. João Miguel Almeida Costa Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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 Stable;  Very Stable; 4) Sustainable:  Sustainable;  Very Sustainable; Como definição, não se poderá avançar com algo que seja oficialmente aceite, mas tomaremos como ponto de partida a definição oferecida pelo Department for International Development15 do Governo Britânico: serão Estados Falhados aqueles cujos Governos não podem ou não conseguem prosseguir e cumprir com as suas principais funções para com a maioria do seu povo, incluindo os mais pobres – “Governments that cannot or will not deliver core functions to the majority of its people, including the poor.”, acrecentando: “The most important functions of the state for poverty reduction are territorial control, safety and security, capacity to manage public resources, delivery of basic services, and the ability to protect and support the ways in which the poorest people sustain themselves.”

No relatório dessa organização, referente ao ano de 2012, verifica-se a repetição no melhor como no pior de 2011, o que está longe de significar que se mantiveram todas as posições, até porque foi o ano com algumas das mais dramáticas alterações neste índice. A Finlândia foi considerada pelo segundo ano consecutivo como a melhor representação possível daquilo a que o conceito de Estado Moderno se propõe ser – no fundo, um Estado operante e que cumpra com as suas finalidades e funções. Por outro lado, consolidam-se as piores posições neste índice, sendo que nove dos dez piores Estados nesta tabela, ocupam posições idênticas às do ano imediatamente anterior, sendo ainda mais grave no caso da Somália – ocupa pelo quinto ano consecutivo a última posição do Índice de Estados Falhados da Fund for Peace. Uma das situações que dificulta a correta definição do conceito de Estado Falhado é haver situações como a da Somália, que obrigam a criar uma exceção agravada para melhor descrever uma descrição objetivamente pior do que Estado Falhado – o conceito de Estado Colapsado. 15

www.dfid.gov.uk

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“A Somália encaixa na perfeição na descrição anterior – o colapso do Estado (ou a sua inexistência), a falta de perspectivas económicas, a inexistência de uma verdadeira nação (o território “nacional” é, de facto, controlado em grande parte pelos grupos tribais), a herança histórica, as tradições culturais (que, como já constatámos, consideram desprestigiante que os homens pratiquem determinado tipo de actividades), tudo isto concorre para que as actividades produtivas sejam abandonadas por outras (muito) mais lucrativas, como a pirataria.”16

c. Razões do falhanço de um Estado “State failure is man-made, not merely accidental nor fundamentally – caused geographically, environmentally, or externally. Leadership decisions and leadership failures have destroyed states and continue to weaken the fragile policies that operate the cusp of failure.”17 Não se poderão apontar as mesmas razões a cada situação de falhanço de Estado, até porque não existe um único caminho para atingir o patamar de State Failure, devendo, por isso mesmo, ser retratado como uma realidade complexa. No entanto, algumas poderão ser apontadas como sendo as causas mais comuns: a) Processo de descolonização seguido de guerra de autodeterminação; b) Incapacidade de construção de uma identidade estatal sólida; c) Ingerência externas por outros agentes internacionais; d) Conflito interno de grandes proporções – incapacidade de manutenção de ordem pública interna e de conduta regida por quadros legais legitimamente aplicados. Assim, um Estado pode falhar tanto por força de invasão de uma força externa18, como por divisões internas, tanto na luta pelo poder do Estado como separatistas19, mas também

por

situações

de

emergência

humanitária

ou

colapso

económico.

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Valentim, Carlos Manuel; Barros, Miguel Monteiro de; Cunha, Pedro Barge, Somália: um quebra-cabeças para a construção de uma nova ordem mundial no século XXI, Jornal de Defesa e Relações Internacionais, Novembro de 2010; 17 Rotberg, Robert, When States Fail: Causes and Consequences, Princeton University Press; 18 Geórgia, 2008; 19 Guerra Civil na Costa do Marfim na sequência das eleições presidenciais em 2010 (Alassane Ouattara e Laurent Gbagbo), e a Guerrilha dos Tigres pela Libertação da Pátria Tâmil, no Sri Lanka; João Miguel Almeida Costa Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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Independentemente das bandeiras que se brandam, dos contornos de cada situação, das agravantes ou atenuantes, tratar-se-á sempre de um persistente e gradual percurso de decadência institucional, política e económica. “Nation-States fail when they are consumed by internal violence and cease delivering positive political goods to their inhabitants. Their governments lose credibility, and the continuing nature of the particular nation-state itself becomes questionable and illegitimate in the hearts and minds of its citizens.”20

d. Consequências de um Estado Falhado Constatar-se-á ao observar os dados sobre um Estado Falhado que as razões pelas quais certo Estado falhou, e as consequências desse mesmo falhanço, podem ser muito facilmente confundidas. Quando o Estado falha em cumprir as suas principais funções, nomeadamente de garantir a Segurança do seu povo no seu próprio território uma situação de emergência humanitária, a título de exemplo, poderá encontrar-se tanto na origem como no resultado dessa mesma situação. Uma situação de guerra civil não explode sem haver descontentamento popular para aderir a determinado movimento paramilitar – caso contrário, estaríamos perante uma situação de banditismo21 ou warlords22. Um Estado Falhado caracterizar-se-á como sendo uma região de elevada tensão social, profundamente afetada por conflituosidade entre fações que se guerreiam, ou por via de insurreições populares, agressivas manifestações de descontentamento popular e um contínuo fluxo de incredulidade face aos seus Governos ou à identidade de Estado no seu todo. Em todo o caso, provoca uma profunda ferida do tecido social desse mesmo Estado, que poderá advir não tanto da intensidade do conflito ou da calamidade, mas sim pela sua duração no tempo23, dado que não haverá qualquer exemplo de Estado Falhado que não

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Rotberg, Robert, op. cit. Observe-se a este efeito a situação no Uganda com as forças rebeldes comandadas por Joseph Kony, que espalharam terror pelas populações no norte do Uganda como nas populações dos países vizinhos – República Democrática do Congo e no Sul do Sudão. 22 Comandantes militares ou paramilitares que, pelo uso de força ou intimidação não autorizada, impõem as suas regras à população civil, face à impotência de um Estado em manter a ordem pública interna. 23 Guerra Civil em Angola, que durou entre 1975 e 2002; 21

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demonstre discórdia entre a sua população, seja por motivos étnicos, religiosos, ou qualquer outro vetor de heterogeneidade, pois nenhum Estado falha por compreender uma determinada panóplia de diversidade social (étnica, religiosa, cultural). No entanto, é seguro afirmar que o falhanço de um Estado advém da incapacidade de construir uma nação com essa mesma coleção de diversidades socioculturais. Uma consequência direta do Estado Falhado é a sua caracterização como um conjunto de instituições falhadas: incapazes de servir o fim para que foram edificadas – à semelhança do próprio Estado. Nestas instituições poderemos algumas das mais óbvias e que estão ligadas à Saúde, Segurança e Educação. Se um sistema de educação de um Estado não funcionar, não haverá forma de suportar as infraestruturas necessárias ao seu desenvolvimento, ou até mesmo a sua autossuficiência – "illiteracy is a condition that denies people opportunity."24 – denotando uma má gestão dos seus recursos naturais. A iliteracia é um problema grave, cuja responsabilidade é inteiramente do Estado e se atingem hoje números alarmantes.25 Quando se trata de temáticas relativas ao falhanço das instituições de Saúde, apontam-se como consequência do falhanço de um Estado o aumento da mortalidade infantil, a insuficiência de instituições de cuidados de saúde para lidar com situações de pandemias26, e uma natural queda na esperança média de vida da população. Recentrando-nos na temática que se quer abordar neste texto, haverá que referir que um Estado Falhado representa uma oportunidade económica sem igual – mas apenas para os privilegiados. Pela falta de regulação, fruto do falhanço das instituições de Estado, as classes mais privilegiadas do próprio Estado, bem como elementos externos ao mesmo, podem aproveitar-se da situação, seja através de mecanismos financeiros ou espoliação patrimonial.

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UNESCO. Education for All Global Monitoring Report 2010: Reaching the marginalized. UNESCO, Fevereiro de 2010. 25 Na região Sub-Sahariana, mais de 1/3 da população adulta não sabe ler - UNESCO Institute for Statistics. “Adult and Youth Literacy: Global Trends in Gender Parity.” UIS Fact Sheet, Setembro de 2010, n.º 2. 26 “Sub-Saharan Africa remains the region most heavily affected by HIV worldwide, accounting for over two thirds (67%) of all people living with HIV and for nearly three quarters (72%) of AIDS-related deaths in 2008” – UNAIDS – relatório de 2009. João Miguel Almeida Costa Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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A corrupção torna-se o efeito mais evidente e, possivelmente, mais humano de todos os efeitos decorrentes da qualidade de governance27 praticada, pois revela a verdadeira fragilidade de uma população e a fraqueza das instituições do Estado em providenciarem e cumprirem com as suas funções atribuídas. "Corruption is the enemy of development, and of good governance. It must be got rid of. Both the Government and the people at large must come together to achieve this national objective”28 Com um sistema judicial permeável e corrompível, com as forças de segurança subornáveis, um Estado – mais ou menos próximo do conceito de Estado Falhado – permite que possam ser circundadas as regras que pautam a vida naquela determinada sociedade, sendo mais um dos fatores que conduzem ao persistente processo de decadência institucional e política de uma nação. “Bad governance – corruption, abuse of power, weak institutions and lack of accountability – and civil conflict corrode States from within. In some cases, this has brought about the collapse of State institutions. (…) Collapse of State can be associated with obvious threats, such as organized crime or terrorism. State failure is an alarming phenomenon, that undermines global governance, and adds to regional instability.”29

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O conceito de governance encontra-se ligado ao processo de tomada de decisões e sua respetiva implementação. Good governance exige que um processo de tomada de decisão respeite: 1) participação, 2) estado de direito, 3) transparência, 4) capacidade de resposta, 5) consensos orientados, 6) equidade e inclusão, 7) Eficácia e eficiência, 8) responsabilidade. – adaptado de UNESCAP – What is Good Governance. 28 Patribha Patil, discursando ao abandonar o cargo de Chefe de Estado da República da Índia em 25 de Julho de 2012. 29 Solana, Javier, A secure Europe in a better world – the European Security Strategy, “Civilian Perspective or Security Strategy?”, Bruxelas, Dezembro de 2003; João Miguel Almeida Costa Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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4- Crime Organizado A Europa é um dos principais alvos da criminalidade organizada. É uma ameaça predominantemente de natureza interna, mas com uma inegável dimensão externa: narcotráfico, tráfico de seres humanos, imigração ilegal, tráfico de armas, tudo em circuito transnacional, representa grande parte das actividades criminais de certas organizações. Tais atividades estão muitas vezes ligadas a Estados Falhados ou próximos desse conceito. O lucro conseguido pelo tráfico de estupefacientes vai promovendo a erosão das estruturas e instituições de Estado nos países produtores de droga30, e é no vazio de poder legitimado, na ausência de controlo do território, que o Estado Falhado surge como terreno fértil para a proliferação de atividades de criminalidade, especialmente de criminalidade organizada. Refere-se o que diz Stewart Patrick em obra já citada, “Weak state are said to provide ideal bases for transnational criminal enterprises involved in the production, transit or trafficking of drugs, weapons, people and other illicit commodities, and in the laundering of the profits from such activities.”

a. Definição e variantes conceptuais ““Organized criminal group” (…) a structured group of three or more persons, existing for a period of time and acting in concert with the aim of committing one or more serious crimes or offences established in accordance with this Convention, in order to obtain, directly or indirectly, a financial or other material benefit.” Esta é a definição consagrada pela Convenção de Palermo das Nações Unidas31, no documento que se propunha a promover o combate mais eficaz ao fenómeno de criminalidade organizada transnacional. No enquadramento jurídico nacional, transmutou-se a Convenção de Palermo pela seguinte forma: 30

Caso paradigmático dos cartéis colombianos que afastaram e substituíram o Estado na construção e manutenção de escolas, hospitais e vias de comunicação. 31 Alínea (a) do artigo 2.º da Convenção das Nações Unidades contra a Criminalidade Organizada Transnacional – Palermo, 2000. João Miguel Almeida Costa Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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 Resolução da Assembleia da República n.º 32/2004, de 2 de Abril: Aprova, para ratificação, a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, o Protocolo Adicional Relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças, e o Protocolo Adicional contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea, adotados pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 15 de Novembro de 2000.

 Resolução da Assembleia da República n.º 1/2008: Aprova a Convenção do Conselho da Europa Relativa à Luta contra o Tráfico de Seres Humanos, aberta à assinatura em Varsóvia em 16 de Maio de 2005.  Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro: Estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira e procede à segunda alteração à Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro, alterada pela Lei n.º 90/99, de 10 de Julho, e quarta alteração ao Decreto-Lei n.º 325/95, de 2 de Dezembro, alterado pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de Novembro, e pela Lei n.º 104/2001, de 25 de Agosto, retificada pela Declaração de Retificação n.º 5/2002, de 6 de Fevereiro.  Lei n.º 19/2008, de 21 de Abril: Aprova medidas de combate à corrupção e procede à primeira alteração à Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro. O Crime Organizado apresenta-se como uma realidade que atravessa fronteiras terrestres e marítimas, que se desloca pelo mundo fixando-se nas diferentes áreas geográficas do globo, mas de forma tão dissimulada que apenas é detetado quando se encontra a atuar numa região há um lapso de tempo considerável.32 Tal expressão surge na linha do que é defendido por José Manuel Anes: “os políticos dos diversos países, na sua maioria, só dão atenção às suas manifestações visíveis e esquecem ou ignoram as suas dimensões invisíveis, subterrâneas, e permanentes que vão corroendo sociedades”.33

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http://www.sis.pt/ccorganizada.html Anes, José Manuel – Organizações criminosas: Uma introdução ao Crime Organizado, 2010.

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A nível conceptual revela-se profundamente complicado apontar uma definição mais consensual de organização criminosa, sendo uma questão já com décadas de discussão, mas por complicado que seja, como refere Howard Abadinsky34, há traços comuns que podem identificar uma organização criminosa (em ambiente nacional, não transnacional), a saber: 1. Não tem objetivos políticos; a. Apenas o lucro e o poder; 2. Tem uma estrutura hierarquizada; a. Tem uma estrutura de poder verticalizada, com, pelo menos, três diferentes níveis de autoridade; 3. Limitada a membros selecionados; a. Por ligações familiares, étnicas, culturais ou subculturais por semelhanças no registo criminal de cada um dos seus membros; 4. Fenómeno de subcultura; a. Por vezes, refere-se igualmente como “submundo do crime”, membros destas organizações criminosas olham para si mesmos como sendo diferentes da das pessoas que vivem na sociedade convencional – logo, julgam-se impuníveis pelas regras dessa mesma sociedade convencional; 5. Procura perpetuar-se; a. De modo a manter a subcultura, para que, redundantemente, a subcultura mantenha a estrutura e a organização.35 6. Demonstra propensão para utilização de violência física; a. No seio de um grupo criminal organizado, fenómenos de violência são deveras comuns sendo mesmo considerado como um dos primeiros recursos para resolução de questões.36 7. Monopolística; a. Procura não apenas a sobrevivência, mas a hegemonia sobre todos os rivais numa particular área geográfica ou num sector de atividade criminal ou eventualmente legítima, ou mesmo em ambas simultaneamente. 34

Abadinsky, Howard – Introduction to Organized Crime, p. 3, 9ª Edição, 2010 Cressey, Donald, Theft of the Nation: The Structure and Operations of Organized Crime in America, 1969. 36 Abadinsky, Howard, p. 4, op.cit. 35

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8. Ópera sob regras e regimes explícitos e próprios. a. Um grupo criminoso, tal como qualquer outra organização, tem o seu próprio conjunto de regras e mandamentos, cujo cumprimento é esperado dos seus membros, sob pena da tão disponível violência. Contudo, a definição apontada pela UE sobre o conceito de criminalidade organizada é: “a structure association, established over a period of time, of two or more persons, acting in a concerted manner with a view to committing offences which are punishable by deprivation of liberty or a detention order (...) whether such offences are an end in themselves or a means of obtaining material benefits and, where appropriate, of improperly influencing the operation of public activities”37. José Manuel Anes fornece onze critérios para definir este fenómeno: 1. Colaboração de mais de duas pessoas; 2. Tarefas específicas atribuídas a cada uma delas; 3. Num período de tempo suficiente, longo ou indeterminado; 4. Com uma forma de disciplina e controlo; 5. (com pessoas) suspeitas de terem cometido infrações penais graves; 6. Atuando a um nível internacional; 7. Recorrendo à violência ou a outros meios de intimidação; 8. Utilizando estruturas comerciais ou do tipo comercial; 9. Dedicando-se ao branqueamento de capitais; 10. Exercendo influência sobre meios políticos, meios de comunicação, Administração Pública, Poder Judicial ou a economia através de alguns agentes de mercado; 11. Atuando pelo lucro ou pelo poder; Como episódio marcante para a criminalidade transnacional é comummente apontado o final da Guerra Fria e a abertura de fronteiras a nível global, conjugado com o boom do fenómeno da Globalização, contudo será profundamente enganador referenciar criminalidade organizada transnacional apenas a esses fatores. Os grupos criminais mais conhecidos a nível mundial são: Yakusa, provenientes do Japão, Máfia Siciliana, de Itália, os cartéis de droga colombianos de Medellin e Cali, a 37

Joint Action 98/733/JAI, de 21 de Dezembro de 1998.

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Máfia Russa, as Tríades, da China e os grupos criminosos (milícias armadas) da Nigéria. É a estes grupos que remontam as origens mais conhecidas de criminalidade organizada. É um fenómeno que granjeia que uma verdadeira universalidade, sendo capaz de influenciar diretamente estruturas políticas e económicas fortes, como Japão, Rússia, Itália e China, bem como de outros Estados, não necessariamente falhados, mas profundamente permeáveis e corrompíveis: México, Panamá, Colômbia, Tailândia, Moçambique e Angola.

b. Relação entre Crime Organizado e Estados Não será correto apontar o fenómeno de criminalidade organizada como algo de recente na História, mesmo após o surgimento de Estados modernos, pois semelhante denominação poderia ser utilizada para grupos dedicados ao banditismo ao longo dos tempos, mas será inegável que tem vindo a proliferar um fenómeno de criminalidade organizada transnacional, especialmente exacerbado pela final da Guerra Fria, abertura de fronteiras, desenvolvimento tecnológico e Globalização, tanto na vertente económica, como social – decorrente de movimentos migratórios. A criminalidade organizada no seio de um Estado é, como se expôs infra, uma realidade não recente, mas que merece o reconhecimento como fenómeno moderno pela sua mutação, pelo seu crescimento e expansão, nomeadamente pelo seu carácter transfronteiriço, transnacional ou mesmo intercontinental. Um Estado poderá igualmente ser cúmplice deste fenómeno crescente, e não bastará pensar muito além do caso de Guiné-Bissau como Narco-Estado38 pelas suas características geoestratégicas – costa ocidental do continente africano surge como o ideal entreposto de distribuição para o tráfico, nomeadamente de estupefacientes provindos da América do Sul com destino à Europa.

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UNODOC – Guine-Bissau: A New Hub for Cocaine Traficking, Viena

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Tomando posição sobre o que escreve Phil Williams40 a corrupção é a principal ferramenta de uma organização criminal, dado que com isso consegue adulterar e modificar o normal e expectável funcionamento de uma instituição, dos seus agentes de Estado, de modo a poderem atuar livremente e em conluio com o Estado ou seus agentes (de estruturas económicas, administrativas, policiais ou até mesmo militares), numa relação que revela ser de mútuo interesse, evitando o recurso à violência – não deixando esta, em momento algum, de estar subjacente. Sugere o autor norte-americano que se formule um quadro de quatro categorias41 para o papel de um Estado perante a criminalidade organizada: 

Home States



Host/Market States



Transshipment States



Service States

Como Home State identifica-se o Estado que é considerado como sendo a base da operação, onde existe um elevado grau de impunidade para a prática destas atividades, circulando livremente após se terem neutralizado os mecanismos de controlo por corrupção sistemática que vai enfraquecendo o próprio Estado, as suas estruturas

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“Major Narco Trafficking Routes and Crop Areas” GPO item 751981AI (R00350) 1-00, Central Intelligence Agency (CIA) 40 Williams, Phil – Crime and Corruption: The Role of State Collusion, 2000; 41 Estado originário ou de base; Estado destinatário; Estado de entreposto logístico; Estados de Serviços; João Miguel Almeida Costa Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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económicas e políticas – a título de exemplo, a atividade de produção e exportação de cocaína na Colômbia. Host ou Market State, será o Estado a que se destinam os bens, representando, portanto, um mercado. São por norma Estado que possuem mercados lucrativos para as organizações criminosas. Raro será o Estado que não seja entendido como destino para algum bem ou serviço ilícito, pelo que apenas se poderá apontar diferenças por um grau de facilidade e permeabilidade. Quanto mais evoluído e seguro for um Estado, maior será a atenção que presta ao combate da criminalidade, logo a corrupção existirá nos agentes das instituições de controlo fronteiriço e alfandegárias. Transshipment States, Estados cuja relevância geoestratégica aliada à fraqueza das suas instituições permite que sejam utilizados como pontos de passagem e distribuição dos serviços e produtos ilícitos com destino aos Host ou Market States. Por terem instituições e agentes mais permeáveis e corrompíveis, os Estados em vias de desenvolvimento são o alvo preferencial destas organizações, por aí conseguirem uma maior liberdade de circulação e impunidade. Service States é a categoria de Estado destinada a classificar aqueles que são utilizados para perpetrar crimes de natureza económica ou financeira, caracterizando-se por deterem um sistema financeiro evoluído, capaz de movimentar e esconder capitais. São conhecidos como paraísos fiscais pela facilidade em realizar transferências bancárias de grandes quantias de dinheiro, cuja origem e destino nunca é justificada, nem os seus intervenientes identificados diretamente. Constituem uma verdadeira problemática no branqueamento de capitais, por lançarem uma nuvem sobre o rasto do dinheiro ao permitirem a utilização de shaddow companies que, por relações fiduciárias, escondem a verdadeira origem dos capitais.

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5- Europa e a relação entre Criminalidade Organizada e Estados Falhados

a. Estratégia Europeia de Segurança Pode ler-se na primeira parte do n.º 1 do artigo 83.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, alterado pelo Tratado de Lisboa: “O Parlamento Europeu e o Conselho, por meio de diretivas adotadas de acordo com o processo legislativo ordinário, podem estabelecer regras mínimas relativas à definição das infrações penais e das sanções em domínio de criminalidade particularmente grave com dimensão transfronteiriça que resulte da natureza ou das incidências dessas infrações, ou ainda da especial necessidade de as combater, assentes em bases comuns.” Daqui se poderá retirar que a criminalidade organizada constitui uma ameaça à economia e a sociedade europeia reconhecida pelas instituições União Europeia e que as mesmas se propõem combater. A resposta da União Europeia na luta contra o crime organizado adapta-se à complexidade do fenómeno, visando: . tráfico de seres humanos; . tráfico de armas; . tráfico de droga; . criminalidade económica e financeira; . corrupção; . branqueamento de capitais; . cibercrime; . criminalidade ambiental; A abordagem integrada que norteia a ação da União inclui tanto a prevenção como a repressão. Esta última assenta sobretudo numa cooperação eficaz entre os serviços dos Estados-Membros, especialmente os serviços policiais, incluindo a troca de informações e a entreajuda em matéria de apreensões e confiscos. A luta contra a criminalidade organizada é global, tocando inúmeros domínios de ação e políticas da União.42

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http://europa.eu/legislation_summaries/justice_freedom_security/fight_against_organised_crime/index_pt.htm

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b. Parceria UE-África De igual modo, o falhanço de Estados e das suas instituições está identificado como um fenómeno preocupante e correlacionado com a proliferação de criminalidade organizada.43 No âmbito da Estratégia de Segurança Europeia, Javier Solana identificava o falhanço dos Estados vizinhos à UE como um problema que poderia afetar os Estados Membros de forma mais direta do que indireta: “Neighbours who are engaged in violent conflict, weak states where organised crime flourishes, dysfunctional societies or exploding population growth on its borders all pose problems for Europe.” Haverá, no entanto, que ver além das fronteiras imediatas dos Estados Membros da UE. Embora não se possa dizer que se aplique à generalidade dos Estados, serão relativamente notórias as relações, geralmente, privilegiadas que se detêm com alguns Estados Africanos por decorrência da colonização. Com o exemplo Português da CPLP ou a Commonwealth Britânica, há países que têm facilidade na ligação com Estados que, em caso de falhanço, podem constituir ameaças para a segurança da UE. Vários destes Estados começaram como falidos, tendo muitos terminado como falhados. Em Abril de 2000, realizou-se no na cidade do Cairo a primeira Cimeira UE-África, na qual foi aprovado um plano de ação que realça seis grandes domínios globais: 

As questões económicas (designadamente a cooperação e a integração económica regional em África).



A integração de África na economia mundial.



O reforço da relação entre comércio e desenvolvimento a nível internacional, que constitui um dos objetivos da parceria, a fim de assegurar que a liberalização económica contribua para reduzir a pobreza.



O respeito e a proteção dos direitos humanos, os princípios e as instituições democráticas, o Estado de Direito, assim como a boa governação.

43

Solana, Javier, A secure Europe in a better world – the European Security Strategy, “Civilian Perspective or Security Strategy?”, Bruxelas, Dezembro de 2003; João Miguel Almeida Costa Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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A consolidação da paz, a prevenção, a gestão e a resolução de conflitos em África.



As ações no domínio do desenvolvimento para atenuarem a pobreza (nos sectores da educação, da saúde e da segurança alimentar, por exemplo)

Esta estratégia propõe uma parceria estratégica para a segurança e o desenvolvimento entre a UE e a África. Articula-se em torno de elementos-chave para assegurar o desenvolvimento sustentável, tais como a paz e a segurança, uma governação judiciosa e eficaz, o comércio, a interconexão, a coesão social e a viabilidade ecológica. Foram lançadas novas iniciativas, nomeadamente uma iniciativa em matéria de governação e uma parceria euro-africana em matéria de infraestruturas, que foi lançada em Julho de 2006. Trata-se, portanto, de uma cooperação que vise o fortalecimento do Estado de Direito, de modo a consolidar e a tornar mais eficientes as instituições desses Estados, evitando o seu colapso. Assim, poderão contribuir de forma mais ativa na prevenção de fenómenos de criminalidade organizada, o que, numa visão europeia, é do interesse da UE e dos seus povos.

c. Fortalecimento dos Estados Concluindo-se sem particulares dúvidas que o caminho contrário ao falhanço de um Estado é a promoção do fortalecimento tanto das instituições do Estado como do próprio Estado em si, algumas fórmulas podem ser avançadas, embora a sua concretização se reserve em níveis de elevada complexidade e individualidade – tão simplesmente, cada é um caso.44 O caminho para o fortalecimento dos Estados é composto de três fases essenciais: (1) Peacebuilding; (2) State-building; (3) Nation-building.

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A realidade Africana não é a realidade do Pacífico Sul: arecuperação e fortalecimento do Sudão, especialmente do Sudão do Sul, ou de Timor-Leste teve contornos absolutamente distintos, desde logo por questões securitárias e volatilidade social. João Miguel Almeida Costa Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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“Peacebuilding involves a range of measures targeted to reduce the risk of lapsing or relapsing into conflict by strengthening national capacities at all levels for conflict management, and to lay the foundations for sustainable peace and development”45 Terá como finalidade a resolução de conflitos armados, recorrendo a atores externos (Nações Unidas), tomando forma em projetos de DDR (Desarmamento, Desmobilização e Reintegração) – destinados a antigos combatentes, reduzindo o número de efetivos militares, redução ou eliminação de armas de pequeno porte e minas antipessoais. Tem a coordenação pela Comissão de Consolidação de Paz das Nações Unidas (UN Peacebuilding Comission),46 criada em 200547 pela Assembleia Geral do Conselho de Segurança e pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. É, essencialmente, no decurso de uma missão de peacebuilding que se consegue tomar o pulso à situação de uma região e, contextualizando o clima histórico, social, cultural, e económico passar para o passo seguinte, de Statebuilding. Sobre o conceito de State-building, antes de se avançar para a própria definição, chamar-se-á atenção para Francis Fukuyama: “While we know much about statebuilding, there is much that we do not know, particularly about transferring strong institutions to developing countries. We know how to transfer resources, people, and technology, but well-functioning public institutions require habits of mind and operate in complex ways that resist being moved.”48 Utilizando

a

definição

avançada

pela

Organização

para

a

Cooperação

e

Desenvolvimento Económico (OCDE), “State-building is an endogenous process to enhance capacity, institutions and legitimacy of the state driven by state-society relations. Positive state-building processes involve reciprocal relations between a State that delivers services for its people and social and political groups who constructively engage with their State”49

45

Conceptual basis for peacebuilding for the UN system adopted by the Secretary General’s Policy Committee in May 2007; 46 http://www.un.org/en/peacebuilding/ 47 Resoluções A/60/180 e CS-1645 48 Fukuyama, Francis – ‘The Imperative of State-building’, Journal of Democracy 15/2 (2004) pp.17–31 49 Relatório OCDE-DAC 2008; João Miguel Almeida Costa Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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A promoção deste processo de construção ou reconstrução de Estados – que deveria ser um processo endógeno, procurado, promovido e conseguido pela própria população de um Estado por via das suas instituições – pode ser fomentada por agentes externos num momento posterior à obtenção de paz, sendo este o instrumento que, verdadeiramente, consolida a paz numa nação. Terá como objetivos diretos a garantia de funções básicas e fundamentais por parte do Estado (Segurança, Saúde, Educação) e uma governação democrática e legítima, respeitando os Direitos Humanos e procurando a construção de uma identidade nacional. Trata-se, portanto, do reforço das capacidades dos Estado na prossecução das suas funções de modo a que se mantenha independente e seguro, permitindo um ambiente de desenvolvimento económico e bem-estar social. Ao contrário do processo de State-building, com uma multiplicidade de visões e intervenções em microescala, o processo de Nationbuilding procura unificar cidadãos de várias identidades, etnias, religiões e culturas, em torno de uma identidade nacional, reforçando o Estado viável, legítimo e estável, evitando conflitos sociais e tensões. No International Dialogue on Peacebuilding and Statebuinding, a OCDE identifica50 dez desafios que geralmente se colocam a tais processos: 1) Inexistência de uma visão comum sobre a mudança entre os detentores do poder desconectada sociedade civil. Deficiente análise do contexto social e do conflito em causa; 2) Falta de confiança entre países em desenvolvimento e os parceiros para o desenvolvimento; 3) Sobreposição desarticulada de planos que impedem a criação e a visão de uma identidade nacional unificada, e má gestão de prioridades de curto, médio e longo prazo; 4) Excesso de centralização na resolução de problemas, deixando regiões por intervencionar, excluindo-as dos processos de desenvolvimento;

50

Dili Declaration: A New Vision for Peacebuilding and Statebuilding, OCDE, Abril de 2010 – http://www.oecd.org/document/5/0,3746,en_21571361_43407692_45717509_1_1_1_1,00.html João Miguel Almeida Costa Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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5) Desconsideração pela proteção de mulheres e crianças em conflitos armados, bem como pela participação de mulheres no processo de peacebuilding; 6) Não se presta atenção suficiente ao crescimento económico e criação de empregos, especialmente para as camadas mais jovens da população; 7) Estipulação de prazos irreais para as reformas, débil capacidade em implementar os planos e ineficácia no desenvolvimento das capacidades; 8) Necessidade de fortalecer as ligações no desenvolvimento dos sectores chave da sociedade (crescimento económico, segurança, justiça e boas práticas governativas – good governance); 9) Incapacidade de produzir dados e estatísticas que retratem e reportem de forma fidedigna sobre a implementação dos processos e planos de desenvolvimento; 10) Dificuldades de financiamento por falta de instrumentos financeiros que permitam previsões de retorno financeiro a parceiros internacionais ou mesmo nacionais;

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6- Notas Finais O Estado Falhado surge hoje como um sério desafio na Nova Ordem Mundial, uma inegável ameaça transnacional. O carácter transfronteiriço dessa ameaça surge de duas formas possíveis: instabilidade regional decorrente desse desequilíbrio de segurança – seja na sua forma mais visível, dos fluxos migratórios massivos ou mesmo crises de refugiados – ou da possível utilização desses mesmos Estados como plataformas logísticas ou de produção pelos novos agentes internacionais (grandes grupos económicos e financeiros – branqueamento de capitais e delitos financeiros – organizações criminosas, grupos terroristas). Quer se pense em Narco-Estados (Colômbia, enquanto produtor e exportador, ou GuinéBissau, como entreposto de distribuição), ou em tráfico de armas, ou tráfico de seres humanos – imigração ilegal, lenocínio, escravatura sexual – ou mesmo em paraísos fiscais, todos estes exemplos constituem uma profunda ameaça à Segurança de um Estado Moderno A fórmula que as instituições internacionais propõem51 para evitar ou resolver essa problemática é interessante, a vários níveis. Tanto na óptica de prevenção de calamidades no plano securitário, seja tanto a nível de práticas criminosas como terroristas, como naquilo a que se propunha que fosse a Nova Ordem Mundial – de prosperidade e de paz. No entanto, haverá (1) que reconhecer os erros do passado, quer decorram de deficientes processos de descolonização, de crises humanitárias, de catástrofes naturais e ineficácia da resposta das autoridades, (2) procurar conhecer a realidade do local, da zona, do país, da região, os seus problemas e potenciais, (3) cooperar no desenvolvimento continuado desse mesmo Estado ou conjunto de Estados, com fito ao fortalecimento de Estados, promoção de Paz e respeito pelos Direitos Humanos. A vertente que este trabalho foi dedicou à criminalidade organizada pretende demonstrar que é um fenómeno capaz de promover uma erosão profunda nas instituições de um Estado (pense-se como as práticas de produção e venda de ópio estão enraizadas no povo Afegão52), com uma tremenda capacidade de afetar todos os

51 52

Peacebuilding, Statebuilding e Nationbuilding; Vide Canas, Vitalino; Inkster, Nigel, ambos op cit.

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domínios de um Estado, especialmente por via da corrupção dos seus agentes, ou sociedade civil em geral, resultando num abalo à ordem interna e enfraquecendo o Estado de Direito. Quanto à correlação entre os fenómenos de Estados Falhados e atividades ligadas a criminalidade organizada, será inegável pela recoleção de dados empíricos recolhidos, pelos esforços que se constatam e pelo reconhecimento que tem merecido da parte de agentes internacionais de grande relevo (Organização das Nações Unidas, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, União Europeia, etc). Face ao que se procurou expor neste texto, será apropriado referir que a comunidade internacional tem o dever de fazer frente a fenómenos desta natureza, procurando combater de forma eficaz a criminalidade organizada (pelo efeito destrutivo que tem a nível interno nos Estados, mesmo que fortes e estáveis), procurando igualmente cooperar

no

desenvolvimento

e

ajudar

no

fortalecimento

dos

países

em

desenvolvimento, Estados Falhados, Fracos ou em vias de falhar, pois será uma contribuição no interesse de todos.

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