Estamos, ou não, preparados para uma Justiça dialógica?

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Estamos, ou não, preparados para uma Justiça dialógica?

Por: Tiago Gagliano Pinto Alberto.

Audiências públicas, cooperação em processos intersubjetivos ou meramente objetivos, contraditório efetivo, livre convencimento racional motivado, decisão lastreada em argumentação racional que efetivamente considere e aprecie os argumentos sustentados pelas Partes, entre outras diretrizes de comportamento estatal de índole participativa figuram como exemplos do que atualmente se convencionou denominar "Justiça dialógica".
Tendo como base normativa as sec. I e 33 da Carta de Direitos Canadense, que, respectivamente, determinam que os direitos estabelecidos na Carta se encontram sujeitos às limitações que resultem justificadamente demonstradas em uma sociedade livre e democrática; e que, instituindo o que se convencionou chamar de "cláusula não obstante", permitiu ao legislador insistir na validade de normas tidas como inconstitucionais pelo Poder Judiciário, a Justiça dialógica inaugura uma forma diversa de conceber as atividades estatais, nomeadamente no campo judicante. Se, até então, decisões foram produzidas sob a lógica binária da adjudicação ou não do direito postulado e, por outro lado, os Poderes constituídos centraram seus esforços e atenção na sistemática da disputa, bem representada pela formatação do sistema de freios e contrapesos, doravante à adoção da concepção dialógica da Justiça, ou, em termos mais gerais, da própria democracia, o diálogo e a cooperação figurarão nos holofotes do exercício dos direitos previstos (ou não) pela Carta da República.
Arrefecidos em seu mister pela diuturna disputa, os Poderes constituídos, por sugestão desta concepção, precisam encontrar uma trégua para que a democracia possa então ser exercida à plenitude. Os Autores que apostam, para tanto, no caráter dialógico da aplicação dos direitos adjudicados compreendem que a sociedade alcançou um ponto tal de complexidade em que a permanência da lógica do conflito não poderá mais dar fluxos às necessidades cotidianas. E, em especial no ambiente judicante, já não se poderia pensar, para estes Autores, na aplicação do direito pura e simples, despida da compreensão de sua formatação prévia, situação para a qual o Poder Judiciário não prescindiria de auxílio da sociedade, quer para a formação da decisão, quer para a sua implementação.
De fato, situações que demandam, por exemplo, decisões de caráter estruturante, manipulativas, aditivas, com ablação postergada ou diferida, gerenciamento de políticas públicas, formação de precedentes a partir de um caso de alta indagação, ou de condão frontal e inquestionavelmente políticos reclamam movimentação diversa da Justiça ao que desde sempre efetivado em atenção às regras vigentes. Em verdade, a questão é mais profunda. Ao que parece, alcançamos um ponto de complexidade dos conflitos em que a adjudicação do direito cede passo à formação do direito a ser adjudicado, que, legitimamente ou não, está se dando em terreno jurisdicional. Assim é que, para tanto, o Poder Judiciário necessitará ter outro ponto de mirada ao apreciar as questões conflituosas.
Nesse cariz – e precisamente para corrigir distorções que poderiam ser originadas da subtração de legitimidade popular pelo aparelho judicante – a Justiça tida como dialógica oferece um ponto de virada, postulando ao Poder competente para a solução dos litígios (o que é diverso de sua compreensão como órgão de mera adjudicação de direitos) que tome a situação em sua inteireza e a resolva também no mesmo quadrante, sem descurar da necessária participação da sociedade para conferir legitimidade ao produto final – dialógico – a ser alcançado.
Postas assim as coisas, resta indagar se e em que medida esta proposta se adequa ao ambiente brasileiro. Aqui temos particularidades dignas de nota e que, se não ajustadas, tampouco propiciarão sequer a compreensão da proposta apresentada, o que dirá, então, a sua efetivação.
Em primeiro lugar, não há um pacto semântico acerca do que se compreende como Justiça dialógica. As ideias contidas na literatura especializada, que, aliás, não é vasta ainda, não fornecem elementos para a sua definição, sistematização e, principalmente, aplicação. Em assim sendo, a formatação do caráter dialógico da aplicação da Justiça fica ao talante de quem a pretenda, se pretender, utilizar, adequando-a aos seus pontos de vista e, quiçá, invocando-a apenas como uma forma, algo turva, de nada modificar.
Por outro lado, inexistem, tampouco, procedimentos a serem seguidos aptos a garantir que a construção do raciocínio que baseará o julgamento seja efetivamente dialógico. No Supremo Tribunal Federal, por exemplo, audiências públicas, um dos exemplos de aplicação dialógica da Justiça, não contam com a participação ativa de todos os Ministros e, mesmo aos que se encontram presentes, não há qualquer garantia de que as discussões levadas a cabo no ato representarão alguma influência na construção do raciocínio capaz de formatar a decisão. Há, ainda, a curiosa figura do "Plenário virtual", que funciona na base do "quem concordar, permaneça como está". A sistemática de construção dos votos também em nada auxilia a proposta apresentada: temos o que se compreende como "onze ilhas" e não, o que seria de se esperar, ambiente em que o debate encontre posição de prevalência e a solução final seja da Corte e não de cada um dos Ministros. E, finalmente, o excesso de casos esperando por julgamento praticamente inviabiliza a construção de uma solução dialógica e debatida à exaustão em ao menos mínima parte dos conflitos apreciados.
Nas Cortes de base, a situação não é diversa. A quantidade infinita de litígios apresentadas ao Poder Judiciário pela sociedade, que, diga-se de passagem, também é extremamente conflituosa e ultra litigante, dificultam o funcionamento eficiente das Cortes, fazendo com que a Justiça dialógica não passe de uma quimera em um mundo ideal. No primeiro grau, a questão se torna mais desesperadora. Juízes trabalhando à exaustão para fazer frente às metas, produzindo sentenças como quem se livra de algo que lhe faz mal e, por conseguinte, distribuindo justiça à moda de fornadas, propiciam ambiente exatamente diverso ao que se espera para a aplicação da teoria preconizada.
A legislação tampouco auxilia. De fora parte a hiperinflação legislativa e o travamento burocrático de entes e instituições públicas que dificultam em muito qualquer desfecho que prime pelo diálogo e/ou solução consensual em alguma medida, mínima que seja, ainda temos a considerar que o parco regramento que, de alguma forma, incentiva o caráter dialógico na solução de conflitos não encontra aplicação prática. O CPC/15, por exemplo, trouxe diversos mecanismos consensuais e formas de participação da sociedade, mas, o que se vê na prática, são ordinarizações de procedimentos como decorrência da ausência de meios, sobretudo administrativos, para propiciar a efetiva implementação da mudança, como, por exemplo, a efetiva capacitação de conciliadores, ou a formação de um quadro de auxílio ao magistrado para fazer frente aos conflitos multitemáticos. Ou seja, muda-se para nada mudar.
E, por fim, há a questão da ideologia. Acostumados a uma ideia de controle coercitivo entre Poderes constituídos, em que a regra é a relativização de normas e limites constitucionais, há certa resistência aos operadores do direito quanto à mudança de perspectiva, do conflito ao diálogo, da obtenção de um comando à construção de um consenso, da ordem à sugestão, da adjudicação do direito à construção do direito a ser adjudicado.
Ao que se pode perceber, ou estamos muito atrasados na visão e aplicação das soluções dialógicas, judiciais ou não, ou estamos tratando de algo que, por ora, não encontra ressonância no ambiente pátrio. Não gostaria de parecer pessimista em relação ao tema, que me é muito caro e interessante, mas não há como deixar de compreender que a sua aplicação será individualmente feita, sem maior respaldo geral.
Fica, portanto, um apelo sobretudo ao STF e ao STJ para que passem a adotar parâmetros dialógicos em suas decisões, recomendando-os aos demais Tribunais; mas que, efetivamente, sejam factíveis e viáveis, sob pena de a proposta, muito rica e democrática, não ultrapassar o campo de uma breve ilação sem correspondência na prática.




Os Autores a que se faz referência são, entre outros, os mencionados por Roberto Gargarella em: GARGARELLA, Roberto. Por una justicia dialógica. El Poder Judicial como promotor de la deliberación democrática. Buenos Aires: Siglo veintiuno editores, 2014.

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