ESTATUTO ONTOLÓGICO E FUNÇÃO EDUCATIVA DAS IMAGENS EM PLATÃO

June 2, 2017 | Autor: D. Figueiras Alves | Categoria: Plato, Filosofia da Educação, Mitologia, Educação, Platão, Teorias Da Imagem
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DANIEL FIGUEIRAS ALVES

ESTATUTO ONTOLÓGICO E FUNÇÃO EDUCATIVA DAS IMAGENS EM PLATÃO

CAMPINAS 2016

DANIEL FIGUEIRAS ALVES

ESTATUTO ONTOLÓGICO E FUNÇÃO EDUCATIVA DAS IMAGENS EM PLATÃO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutor em Educação, na área de concentração de Filosofia e História da Educação.

Orientador: Profª. Drª. Lidia Maria Rodrigo

O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO DANIEL FIGUEIRAS ALVES, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. LIDIA MARIA RODRIGO

CAMPINAS 2016

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): FAPESP, 2011/17429-4; FAPESP, 2014/06895-2

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca da Faculdade de Educação Rosemary Passos - CRB 8/5751

AL87e

Alves, Daniel Figueiras, 1983AlvEstatuto ontológico e função educativa das imagens em Platão / Daniel Figueiras Alves. – Campinas, SP : [s.n.], 2016. AlvOrientador: Lidia Maria Rodrigo. AlvTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. Alv1. Platão. 2. Educação. 3. Imagem. I. Rodrigo, Lidia Maria,1949-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: Ontological statute and educational function of the images in Plato Palavras-chave em inglês: Plato Education Image Área de concentração: Filosofia e História da Educação Titulação: Doutor em Educação Banca examinadora: Lidia Maria Rodrigo [Orientador] Ignacio García Peña Samuel Mendonça Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo Roberto Akira Goto Data de defesa: 29-02-2016 Programa de Pós-Graduação: Educação

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

ESTATUTO ONTOLÓGICO E FUNÇÃO EDUCATIVA DAS IMAGENS EM PLATÃO

Autor: Daniel Figueiras Alves

COMISSÃO JULGADORA: Orientador: Profª. Drª. Lidia Maria Rodrigo Prof. Dr. Ignacio García Peña Prof. Dr. Samuel Mendonça Prof. Dr. Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo Prof. Dr. Roberto Akira Goto

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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Ao meu pai Aparecido e à minha mãe Helena.

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais e irmãs pelo apoio e pelos esforços sem medida. Agradeço à professora Lidia Maria Rodrigo pela exímia orientação e por toda a ajuda prestada ao longo desses anos. Agradeço ao professor Ignacio García Peña, meu anfitrião na Universidade de Salamanca – Espanha, pela acolhida e pelo amparo acadêmico. Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp pelo financiamento e pelo suporte técnico impecável, bem como ao contribuinte paulista.

Agradeço ao parecerista anônimo da Fapesp, que, apesar de oculto, contribuiu de forma significativa para o andamento do projeto. Agradeço aos amigos e colegas de curso: Maria das Dores Mazziero, Laisa Guarienti, André Camargo, Henrique Lima, Sarah Machado, Volmir von Dentz, Simão Zambissa, Aline Bagetti, Flora Athayde, Yung-chi Tseng e, especialmente, Tatiana Bagetti, Agida Santos e Christian Lindberg, por tornarem meu caminho até a defesa desta Tese menos sofrido. Agradeço aos membros do Grupo Paideia – Unicamp, professores e colegas, como um todo; aos funcionários do programa de Pós-Graduação da FE, com especial atenção à Nadir Camacho e à Rita Preza; às professoras Angela Santi, Aline Monteiro e Maja Vargas, pelas discussões frutíferas nos encontros do Grupo Lise – UFRJ; ao professor António Mesquita pela recepção na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e ao professor Walter Kohan – UERJ, pelo gentil acolhimento em suas aulas. Agradeço, também, aos membros titulares e suplentes, tanto dessa banca de defesa de doutorado quanto à do exame de qualificação, pela leitura atenciosa e cuidadosa da Tese e pelas relevantes e válidas contribuições para seu aperfeiçoamento. Agradeço a você que se dispôs a ler este texto e, de alguma forma, confiou no conteúdo do meu trabalho. E, por fim, à Lei Mística do Sutra de Lótus: Nam-Myoho-Rengue-Kyo.

Esta pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP – processo nº 2011/17429-4 e processo nº 2014/06895-2.

RESUMO

A problemática inicial, que originou boa parte das inquietações presentes nesta Tese, pode ser sintetizada pela seguinte pergunta: de que modo as imagens seriam capazes de nos educar? Para respondê-la, contudo, é necessário darmos um passo atrás, isto é, retornarmos às bases que sustentariam a solução dessa questão. Tomamos Platão como referencial teórico para nossa discussão, a qual fora organizada em três capítulos. O primeiro deles pretende situar a educação pelas imagens dentro de um percurso educativo, ilustrado na República, de modo que as imagens, devido ao seu caráter sensível e estético, consistem na etapa inicial. O segundo capítulo dedica-se ao exame do estatuto ontológico das imagens sob três abordagens ou modos: de imitação, de conhecimento e de moralização. As imagens, sendo representações sensíveis dos objetos inteligíveis, estão mais próximas da verdade e das Formas do Bem, esse aspecto se verifica quanto mais simétricas elas se encontram em relação a tais objetos. O terceiro e último capítulo visa apresentar o modo pelo qual as imagens são capazes de incutir ou extrair da alma determinada moralidade, orientando esta para uma boa e correta conduta em benefício do Estado.

Palavras-chave: Platão. Educação. Imagem.

ABSTRACT

The initial problem of the discussing issues in this thesis can be summarized in the following question: how could images educate us? To answer it, however, it is necessary to take a step back, which is to return to the roots that sustain the solution of this question. This thesis is based on Plato’s theoretical framework, which is being divided into three chapters. The first chapter inserts the education through the images within an educational route, which is illustrated in the Republic. Images due to its sensitive and aesthetic character mark the initial stage of this route. The second chapter is dedicated to the examination of the ontological statute of images in three approaches or ways: imitation, knowledge and moralization. The images, which are sensitive representations of intelligible objects, are closer to the truth and the Form of the Good when more symmetrical these objects. The third chapter shows how images are able to introduce or extract the moral virtues in the soul. These images guide the soul to good and proper conduct to the State.

Keywords: Plato. Education. Image.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ………………………………………………………………………. 11 CAPÍTULO I: O percurso educativo e a teoria do conhecimento na República …...... 16 1 – A proposta educativa de Platão na República …………………………….……… 16 2 – Sentido educativo da teoria do conhecimento ……………………………………. 33 2.1 – Os modos de conhecimento na exposição da linha segmentada ……………….. 34 2.2 – Os modos de conhecimento na alegoria da caverna ………………………….… 38 3 – Sentido do percurso educativo proposto na República …………………………… 42 CAPÍTULO II: Estatuto ontológico das imagens …………………………………..… 50 1 – Imagem como mímesis …………………………………………………………… 55 2 – Imagem como dóxa ………………………………….…………………………… 63 3 – Imagem como areté ……………………………………….……………………… 74 CAPÍTULO III: Sentido da educação imagética em Platão ………………………….. 83 1 – Educação como processo de reminiscência da alma …………...………………… 83 2 – Interdependência entre imortalidade e reminiscência na compreensão do sentido educativo das imagens ………………………………………………………...……… 92 2.1 – O mito de Er na República: elogio didático-moralizador à vida justa …..……… 94 2.2 – O mito da parelha alada no Fedro: anamnese como delírio divino ………...….. 101 3 – O processo educativo mediado pelas imagens …………………………………... 112 CONSIDERAÇÕES FINAIS …………………………………………………..…… 121 REFERÊNCIAS …………………………………….………………………………. 126

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INTRODUÇÃO

Ao longo das próximas páginas, trataremos de um conjunto de questões e temas relativos, mais especificamente, ao campo da Educação (especialmente, à área de Fundamentos da Educação) do que, propriamente, ao campo da Filosofia. Embora o referencial teórico esteja, majoritariamente, composto por obras clássicas da Filosofia (os diálogos de Platão e, também, comentadores importantes) é para os problemas diretamente relacionados à atividade ou intento educativo que o foco dessa pesquisa está voltado. A problemática inicial, que originou boa parte das inquietações presentes nesta Tese, pode ser sintetizada na seguinte pergunta: de que modo as imagens seriam capazes de nos educar? Para respondê-la, contudo, é necessário darmos um passo atrás, isto é, retornarmos às bases que sustentariam a solução dessa questão, tal como colocada. Ademais, para além desse exercício, teríamos, ainda, que justificar sua validade epistemológica. Seria, pois, uma pergunta válida ou pertinente à Educação? Antes de buscarmos aclarar os modos ou maneiras que tornariam possível uma educação por imagens (seu modus operandi), faz-se necessário averiguar a possibilidade de realização do mesmo. Em outras palavras: é possível uma educação por imagens? Se sim, qual sua fundamentação, propósito, ou mesmo, contexto? Encontramos a viabilidade dessa fundamentação nos textos de Platão. Embora o conjunto de sua obra não contemple uma discussão específica em torno da educação pelas imagens, podemos extrair dele elementos e ideias que sustentam a nossa tese de que: sim, as imagens educam! Tal afirmação pode ser verificada ao se levar em conta a concepção platônica, inserida no contexto da História da Educação, da qual somos herdeiros. As imagens carregam em si a potencialidade de educar e o fazem sob circunstâncias específicas, voltadas para um público e para determinada finalidade. Consideramos que os escritos de Platão podem nos ajudar a explicitar o sentido da educação, enxergada aqui como um processo gradual de formação do indivíduo, remontando a noção de percurso educativo. A riqueza filosófica presente nos textos de Platão é demasiado profunda. De seu texto (e contexto) filosófico, podemos retirar um interessante material teórico para discutir questões relacionadas ao campo da Educação, tais quais: a formação moral e intelectual, os critérios de verdade ou bondade, a função do conhecimento, das imagens e da opinião no intento pedagógico, dentre outras. Pensar tais questões em (ou com) Platão, mesmo que demarcadas pela estrutura, pelo discurso, e pelas regras estipuladas pelo filósofo em seus textos, consiste em mergulhar num exame ou ensaio muito denso e profícuo sobre determinados assuntos e

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problemas relativos à Educação que, para nós, educadores, interessam – ou deveriam interessar. A proposta inicial desta Tese, nascida enquanto projeto de pesquisa, considerou a divisão deste trabalho em três partes ou momentos; transformados, ao final, em capítulos. Cada um deles está a cargo de verificar, no texto de Platão, o movimento lógico que conduziu ou orientou a construção dos argumentos que deram suporte à hipótese da pesquisa. De forma sucinta, desejávamos comprovar a seguinte proposição: “existem imagens, dotadas de um conteúdo moral, capazes de influenciar a nossa conduta e tendenciar nossa vontade para uma determinada escolha”. Tínhamos em mente, como principal ilustração desse caráter educativo na modernidade, as fábulas de La Fontaine, em que, ao final de cada uma delas, havia uma “moral da estória” específica para acentuar ou coroar a mensagem pretendida. Contudo, não precisamos avançar até o período moderno para identificar as bases desse pensamento. As fábulas de La Fontaine consideravam as peculiaridades da infância, pois já havia na época em que foram escritas a noção de infans (sem voz). No entanto, os gregos do período clássico compreendiam essa mesma etapa da vida como uma condição inferior da existência humana, em que os indivíduos (futuros adultos) ainda eram fracos e incapazes de se defenderem ou de articularem ideias; e, assim como as mulheres, eram excluídos da cidadania. A infância grega (paidiá), tal como percebida na época, entendia a criança como um ser inferior ao adulto, um indivíduo em miniatura, alguém débil. Nesse sentido, não havia, por extensão, uma concepção educativa específica para esse público, tal como foi proposto por Rousseau no Emílio (1762), por exemplo. Platão não sugeriu um conteúdo exclusivo, eminentemente voltado para a formação das crianças e dos jovens, mas, tão somente, fez um recorte da tradição, separando o adequado do inadequado para esses mini-educandos. Esta Tese está estruturada de forma a tentar corroborar a hipótese de pesquisa já descrita, verificando, no texto filosófico, passagens e conceitos que a fundamentem. Partimos do caráter mais geral do pensamento platônico, incluindo o seu contexto histórico e as tensões que originaram sua concepção educativa, para o âmbito particular: a resposta à questão da educação pelas imagens. A breve descrição dos capítulos, logo em seguida, visa informar o leitor sobre o sentido do itinerário proposto, de modo a antecipar boa parte do conteúdo nessa espécie de síntese comentada. No primeiro capítulo, trataremos do percurso educativo proposto por Platão na República. A escolha desse diálogo, como base para a compreensão das etapas da formação sensível e intelectual dos cidadãos se deve, sobretudo, à posição de centralidade da República em relação às questões pedagógicas, morais e políticas. Além disso, é nessa obra em que estão

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concentrados os principais temas da filosofia platônica. O diálogo consiste, assim, no alicerce teórico para as especulações (posteriores) em torno de assuntos mais específicos: a ontologia das imagens e a educação imagética. Não obstante, Platão também aborda a temática da educação em outros escritos, tais como as Leis, o Protágoras e o Mênon, por exemplo. Contudo, não poderíamos tomá-los como base para explicitar o percurso educativo platônico, pois a melhor configuração dele (sua estrutura lógica) encontra-se disposta na República, em especial, nas passagens da alegoria da caverna e do símile da linha segmentada. Essa noção de percurso educativo surge a partir da verificação de que a formação dos educandos, tal como sugerem os Livros II e III da República, é algo que se dá por etapas. Nosso intento de validar tal noção (não utilizada pelo filósofo no texto) esbarra nos limites que a interpretação do diálogo nos permite alcançar. Ao passo que desejamos atribuir a Platão a ideia de uma educação pautada por etapas, e a isso damos o nome de “percurso educativo”, nossa compreensão dela, por sua vez, se vê atrelada ao que o filósofo realmente escreveu em seu texto. A noção de percurso é, assim, um artifício empregado na Tese para concentrar e denominar (dar corpo) o sentido educativo pensado por Platão (com início, meio e fim). Tal processo resulta, pois, de uma liberdade de interpretar o texto. A primeira parte deste capítulo tem como objetivo situar as imagens (localizar sua posição) dentro do percurso educativo, bem como destacar sua função epistemológica e atuação pedagógica. No segundo capítulo, examinaremos o estatuto ontológico dessas mesmas imagens, isto é, o grau de proximidade e semelhança entre elas e o Ser do objeto (modelo, Forma ou Ideia). Para isso, identificaremos e interpretaremos aquilo que Platão compreende por “imagem”, tendo como base alguns de seus escritos, dentre eles Crátilo, Sofista, A República, Carta VII, Parmênides, Protágoras e o Banquete. A palavra “imagem”, assim traduzida para a língua portuguesa, bem como outras igualmente relacionadas aos elementos visuais ou imaginários, tais como pintura, metáfora, reflexo e sombra, geralmente, aparecem nesses textos relacionadas a dois termos gregos, eikon e eidolon. Neste momento da Tese, tentaremos jogar luzes à singularidade desse conceito (agregador de múltiplos elementos) no conjunto dos diálogos, particularmente, no que tange ao seu papel educativo. A imagem, tal como a interpretamos, será a peça fundamental para a construção dos argumentos em torno da formação sensível. Essa construção, por sua vez, passa pela desconstrução (ou revisão) dos dualismos imputados a Platão pela História da Filosofia. O Parmênides e o Sofista foram, quanto a isso, decisivos para a compreensão do caráter intermediário da imagem. Condição essa, que tornará possível (pelo caráter flexível da imagem) a junção e edificação de diferentes partes e conceitos platônicos. Grosso modo, a imagem seria a argamassa ontológica

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capaz de mediar as diferentes realidades epistemológicas. Este segundo capítulo é, de longe, o mais denso (talvez, até mesmo, exaustivo) de todos. Nele trataremos do “núcleo duro” da filosofia platônica. A compreensão das questões relativas ao conhecimento e ao Ser é capital para a demarcação da posição e da condição das imagens dentro do percurso educativo (capítulo I) e a verificação do modus operandi da educação imagética (capítulo III). O exame acerca do estatuto ontológico das imagens, conforme anunciado, privilegiará três aspectos centrais do pensamento platônico: a mímesis como representação, o conhecimento como dóxa e a moralidade como areté, os quais, tomados um a um, estão relacionados com a potência educativa das imagens. A discussão proposta pelo capítulo três dá ênfase à explicitação do modo pelo qual essas imagens poderiam educar a alma, ou ainda, demonstrar, com base em diversos diálogos e passagens dos textos de Platão, a maneira como determinadas imagens infundiriam algumas virtudes nos indivíduos. Por sua vez, esse procedimento imagético de formação moral mantém um forte vínculo com duas qualidades inerentes à alma humana; a primeira delas, a condição de imortalidade e; a segunda, a possibilidade de rememorar conhecimentos anteriormente apreendidos (anámnesis). O texto principal a ser utilizado nessa etapa da pesquisa é o diálogo Fedro. Nele encontramos os elementos primordiais para uma discussão em torno do caráter educativo (e erótico) das (belas) imagens e seu impulso moralizador. No entanto, para além desse diálogo, utilizaremos, ainda, A República, o Fédon, o Mênon e o Banquete. Pretendemos extrair de cada um deles respostas para o problema da educação, notadamente, sobre a potência educativa das imagens e da sua capacidade de moralizar a alma. Diferentemente da tônica que demarcou a investigação no capítulo II (examinar o “núcleo duro”), o último capítulo exigirá do leitor uma espécie de cumplicidade em torno do caráter mítico-religioso do discurso platônico. Utilizaremos dois mitos para introduzir o leitor no universo (psicológico) de Platão. Não entraremos no mérito da crença ou não do filósofo sobre o conteúdo de seus argumentos. O importante será verificar a intencionalidade em atribuir ao mito um lugar de destaque dentro do discurso, por vezes, atuando em paralelo à razão; e, outras vezes, até mesmo, superando-a (enquanto fonte de conhecimento acreditado). A partir desse conteúdo mítico (também de sua estrutura), formularemos as bases para a compreensão do modus operandi da educação pelas imagens. Para finalizar essa apresentação, reiteramos que o intuito deste trabalho consistiu em apoiar-se na teoria platônica, de modo a tomar emprestado seu pensamento, para refletir sobre a Educação. Durante os anos de escrita desta Tese, tendo o filósofo como companhia diária e permanente, indicando caminhos e abrindo novas perspectivas para entender o fenômeno da

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educação; correr-se-ia o risco, talvez, de cair na tentação (hýbris) de tomar por nossas as suas palavras. Nosso exercício de investigação teve que lidar com essa sedução; esquivar-se do canto doce das Sereias que quase enfeitiçaram Odisseu. Há muitas passagens e argumentos (especialmente míticos) em que não foi possível concordar com Platão, contudo, considerá-los e, mais, ainda, entender a lógica e o movimento do pensamento que lhe conferem sustentação é um procedimento para o qual chamamos a atenção e destacamos como profundamente válido para a compreensão do filósofo. Seu tempo e espaço não são os nossos; o contexto histórico que recebeu e concebeu Platão também está implícito nas entrelinhas de seus argumentos.

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CAPÍTULO I: O percurso educativo e a teoria do conhecimento na República

1 – A proposta educativa de Platão na República

A proposta educativa de Platão, no diálogo A República, é bastante ampla e abrangente, abarca desde questões diretamente relacionadas à formação básica das crianças e dos jovens, incluindo a seleção do conteúdo com base na tradição, até a formação última do filósofo-governante. Poderíamos considerar que, de forma indissolúvel, ela encontra-se intimamente relacionada às preocupações ou problemáticas em torno da política. Platão, enquanto planeja e sugere modelos pedagógicos e procedimentos para a educação dos indivíduos, tem em mente, sobretudo, resolver os problemas do Estado. Tais problemas, comumente recorrentes em sua época, versavam, geralmente, a respeito da capacidade intelectual e, especialmente, da conduta moral dos governantes. Nesse aspecto, proporcionar as condições necessárias para a boa formação, tanto intelectual como moral, dos cidadãos seria uma tarefa da educação. Tomando isso como eixo norteador, observamos que a educação dentro da República converge para dois pontos: para a política e para a boa convivência entre os cidadãos que compõem o Estado. A tradutora da versão portuguesa de A República, Maria Helena da Rocha Pereira, comenta, na introdução da obra, que o termo “República”, o qual dá título ao livro, deve ser compreendido em sua própria etimologia e, com vistas a uma melhor contextualização, deve, ainda, ser retomado em seu momento histórico particular, a Atenas do século IV a.C.. Dentro desse panorama, a palavra que confere título à obra platônica, “Politeia”, possui o seguinte significado: “constituição ou forma de governo de uma pólis ou cidade-estado”, reunindo em torno de sua acepção, “tudo o que diz respeito à vida pública de um Estado, incluindo os direitos dos cidadãos que o constituem” (2001, p. XLVII). Segundo Pereira, foram os romanos que traduziram o termo do grego para seu equivalente latino “Respublica”, ou seja, a coisa pública, algo que pertencente a todos os cidadãos. Desse modo, o termo não designa, apenas, uma determinada forma de governo, mas, de um modo geral, abrange todas elas. Para Jaeger (2001, p. 749-750), o pensamento de Platão orientou-se, desde o início, para os problemas inerentes ao bom cumprimento das leis e das normas dentro do Estado. A tirania, a corrupção das regras ou a degeneração moral dos governantes, por

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exemplo, são problemas (ou desvios de uma organização perfeita e ideal) muito graves dentro dessa comunidade política. A constituição do Estado e toda a sorte de conflitos que emanam dela foram aspectos políticos que marcaram profundamente o pensamento de Platão. Não obstante, é visível, dentro do conjunto geral de sua obra, o espaço concedido às reflexões e às discussões em torno desse tema. O testemunho deixado pelo filósofo na Carta VII demonstrou que o problema do Estado, ou os problemas relativos ao Estado, eram de ordem concreta e, necessariamente, passavam pela questão do governo. Tais problemas tinham como origem principal a degeneração política provocada, especialmente, pela catastrófica conduta moral e intelectual de seus governantes. Platão chama a atenção para a necessidade de uma conduta fi losófica para os ocupantes do cargo: Por fim, cheguei à conclusão de que as cidades do nosso tempo são mal governadas, por ser quase incurável sua legislação, a menos que se tomassem medidas enérgicas e as circunstâncias se modificassem para melhor. Daí, ter sido levado a fazer o elogio da verdadeira filosofia, como proclamar que é por meio dela que se pode reconhecer as diferentes formas de justiça política ou individual. Não cessarão os males para o gênero humano antes de alcançar o poder a raça dos verdadeiros e autênticos filósofos ou de começarem seriamente a filosofar, por algum favor divino, os dirigentes das cidades (Carta VII, 1975, 326 a-b).

A degradação das cidades-estados gregas, conforme mencionado na passagem acima, teve como causa principal a incapacidade do seu mandatário de exercer um bom governo, bem como sua negligência para com os assuntos públicos. Grande parte da crítica platônica aos Estados existentes em sua época tinha como foco a desastrosa atuação dos seus líderes e legisladores. Platão faz referência direta a Dionísio, governante de Siracusa, pólis mais importante da Sicília grega. Segundo menciona o filósofo, na Carta VII, Dionísio exercia um governo tirânico, despótico e incompetente na manutenção da ordem social. O regime da tirania, tal como Platão o compreendeu, consiste não especificamente como forma brutal de governo – sanguinário e truculento – , mas como um tipo de poder absoluto concedido a alguém que se utiliza de meios ilícitos e imorais para governar. O tirano é, assim, um líder ilegítimo. Dionísio era o tipo de governante que Platão queria distante de sua utópica República, posto que, tal como foi descrito na Carta VII, contrariava, em grande parte, tudo aquilo que Platão almejava para sua Cidade ideal. Sob a óptica platônica, estaria depositada no filósofo (pela contemplação das verdades inteligíveis) e não no tirano a possibilidade real e efetiva de transformar o Estado concreto, politicamente decadente, num Estado justo. O triunfo

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político do Estado dependeria, assim, da permanência do filósofo no cargo de governante. Entretanto, perguntaríamos, por que, para Platão, a solução dos problemas do Estado dependeria de um governo filosófico ou de um governante-filósofo? A resposta mais provável seria a de que a autonomia e a solidez política estariam condicionadas à capacidade pessoal de um grande líder, ao seu nível intelectual e ao seu caráter moral incorruptível. Nesse aspecto, Platão deposita suas expectativas no papel a ser desempenhado pelo melhor dentre os cidadãos, o aristocrata da razão, para a eficaz e correta condução das questões do Estado. Na República (2001, 475 b-c), veremos que o filósofo é descrito como alguém que deseja a sabedoria em sua totalidade, ou ainda, pretende acercar-se dela e buscar compreendê-la segundo uma epistemologia voltada para a contemplação das Ideias. O filósofo mantém uma atitude de philía – amizade – pela sabedoria, sophia. Daí advém uma das acepções do termo filosofia: desejar de forma desinteressada o saber, ou seja, desejar o conhecimento em sua forma autêntica e pura. Tal qualificação cabe muito bem ao indivíduo que Platão deseja colocar no poder. O Estado necessitaria, portanto, de filósofos no governo para a concretização de um governo comprometido com o saber e com as virtudes mais elevadas, principalmente, com a justiça. “O filósofo é o único homem apto a governar o Estado; pois, só ele contemplando as essências eternas, é capaz de modelar a pólis terrestre com base na Ideia de justiça” (Gobry, 2007, p. 114). Para Platão (Rep., 2001, 500 c-502 a), o Estado concreto, a pólis terrestre, deveria tomar como paradigma a Cidade ideal, isto é, o modelo político em sua condição pura de conhecimento e constituída no mundo das Ideias, sem qualquer contaminação dos vícios e deficiências do mundo sensível. Somente o filósofo-governante possuiria as qualidades intelectuais necessárias para apreendê-la enquanto Ideia e implementá-la na concretude da esfera corruptível, isto é, nas cidades-estados existentes no cotidiano da época. Seria, desse modo, por meio do governo filosófico, que seriam mantidas a estabilidade política, pelo empreendimento e o cumprimento de leis justas e racionais, bem como a continuidade sucessória de líderes interessados em cuidar da coisa pública, da respublica. O filósofogovernante teria por tarefa adequar o ideal ao concreto, ou seja, tentar reproduzir a Cidade desenhada na República nos Estados e nas Constituições políticas existentes na época. Na República, o filósofo propõe uma nova concepção de Estado, a qual consiste em um espaço regido por um conjunto de leis fundamentadas na razão e no conhecimento puro das Ideias. Contudo, a fundamentação desse Estado perfeito não

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deveria tomar como referencial as formas de governos existentes em sua época, tais como as cidades-estados já instituídas. Apesar da simpatia e admiração por regimes políticos mais austeros (especialmente a Constituição de Licurgo – um dos fundamentos da pólis espartana), Platão não enxerga nessas estruturas políticas, nem em Atenas, nem em Esparta e menos ainda em Siracusa, modelos de organização viáveis para a implementação de seu projeto de Estado justo. A politeia platônica somada a seu sentido de coisa pública, a respublica romana, sempre estiveram orientadas para o interior da psykhé, da alma humana, tendo nela seus fundamentos epistemológicos e ontológicos. Assim, as bases para a construção dessa nova pólis firmaram-se, de forma sólida e inabalável, às mesmas estruturas que constituem o humano, tornando-se parte dele. O Estado de Platão versa, em última análise, sobre a alma do homem. O que ele nos diz do Estado como tal e da sua estrutura, a chamada concepção orgânica do Estado, onde muitos veem a medula da República, não tem outra função senão apresentar-nos a imagem reflexa e ampliada da alma e de sua estrutura respectiva. E nem é numa atitude primariamente teórica que Platão se situa diante do problema da alma, mas antes numa atitude prática: na atitude do modelador de almas. A formação da alma é a alavanca com a qual ele faz o seu Sócrates mover todo o Estado (Jaeger, 2001, p. 751-752).

É nessa atitude modeladora da alma que repousa, majoritariamente, o sentido educativo proposto na República. A origem do modelo político adotado por Platão ou o objeto primordial de tal modelo estão inseridos nas estruturas da alma humana, de modo que examinar a constituição da alma no interior do indivíduo resultaria numa compreensão da composição do Estado e vice-versa. O exercício para a criação da Cidade ideal é interior, ou seja, deve partir de uma observação ou de um estudo voltado para a mais profunda análise da psykhé. O Estado deve estar em consonância com as mesmas regras que regem a constituição humana, para o filósofo, inclusive, essa Cidade não seria mais do que uma projeção ampliada das mesmas estruturas funcionais que atuam na alma. Recordemos, pois, da tríplice divisão feita por Platão nesse diálogo com respeito às classes ou às categorias sociais, são elas: os governantes, os guardiões e os produtores, sendo cada uma delas gerenciada pelos caracteres intrínsecos da alma de cada um desses indivíduos. A função da educação no interior desse panorama político seria a de modelar as almas. A educação, em seu sentido essencial, estaria em sintonia com esse projeto de extrair do interior humano o conteúdo necessário para a edificação do Estado. Da mesma maneira que um ceramista confere forma ao barro, transformando o em vaso, a verdadeira educação tenderia, por fim, a moldar a alma até torná -la filosófica. O Estado, por sua vez, necessita de almas filosóficas para bem geri-lo. Para

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Jaeger (2001, p. 888-889), trata-se de um processo de conversão filosófica da alma, ou seja, uma atividade de direcionamento da natureza humana para uma finalidade específica: formar o governante. A educação surge, assim, como uma tentativa de caráter prático para a solução de problemas políticos concretos, especialmente, no que tange à questão da formação do governante por intermédio de ações efetivas no campo da educação. Nesse sentido, colocar no poder os filósofos como legítimos dirigentes ou transformar os governantes dessas cidades-estados em filósofos seria, na percepção de Platão, a garantia para a instalação de um governo justo. É visível que Platão deposita uma grande expectativa na formação moral e intelectual dos cidadãos a ponto de fazer deles autênticos aristocratas da razão. Em função dessa importância, a educação tem sido um tema de frequente recorrência na República, estando, sem dúvida, inserida organicamente no seio da proposta política para a constituição do Estado, tal como o planejou Platão. Esse Estado disporia da educação, por sua vez, entendida como um projeto ou conjunto de ações para a formação dos cidadãos (Crombie, 1990, p. 213), como seu instrumento de controle e organização política. Não há possibilidade de compreender a paideia, a educação humana, em sua forma ampla, sem contextualizá-la no projeto político da politeia platônica, ou sem levar em consideração as estruturas presentes no interior da alma humana. A atitude modeladora de almas comporta-se, assim, como uma estratégia do Estado. No entanto, em que consiste para Platão o Estado? O Estado, tal como idealizado pelo filósofo na República, é constituído como uma comunidade de indivíduos que se unem em prol da satisfação de suas necessidades mais orgânicas, tais como a alimentação e a segurança. Assim, segundo teoriza o filósofo, o surgimento das cidades tem como razão principal a possibilidade de, por meio de uma organização política, sanar grande parte das necessidades mais primordiais dos seres humanos. Uma cidade tem a sua origem, segundo creio, no fato de cada um de nós não ser autossuficiente, mas sim necessitado de muita coisa. Ou pensas que uma cidade se funda por qualquer outra razão? (...) Assim, portanto, um homem toma outro para uma necessidade, e outro ainda para outra, e, como precisam de muita coisa, reúnem numa só habitação companheiros e ajudantes. A essa associação pusemos o nome de cidade (Rep., 2001, 369 b-c).

Os indivíduos habitantes dessa cidade deveriam permanecer dispostos em três classes sociais hierarquicamente distintas: os produtores, os guardiões e os governantes. Cada uma dessas classes seria responsável pela execução de determinadas tarefas dentro

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do Estado. Aos produtores, caberiam as atividades de comércio, manufatura e agricultura, as quais se caracterizam por ser de caráter manual, visando suprir as necessidades materiais da comunidade. Aos guardiões, caberia a defesa do espaço territorial frente aos inimigos externos e a manutenção da ordem pública dentro do s limites geográficos, tarefas que equivalem, dentro dos Estados modernos, à dos soldados e da polícia. Aos governantes, por sua vez, caberia a condução do Estado, ponderando racionalmente e instituindo leis voltadas para o bem geral da comunidade, tendo p or princípio ideal e norteador da conduta moral a dikaiosýne, isto é, a justiça. No Estado projetado por Platão, os indivíduos não possuiriam o mesmo status de igualdade política, haveria uma hierarquia rigorosa organizada segundo a capacidade intelectual e a moralidade de cada um deles. Platão considera que tais diferenças são naturais e inatas nos indivíduos. Os governantes deveriam, pois, considerar tais qualidades como força, destreza, inteligência, beleza, dentre outros atributos, para selecionar os indivíduos para as funções que lhes caberiam realizar. Platão empreende em seu texto uma legitimação de caráter religioso e metafísico daquilo que considera como desigualdades naturais dos indivíduos. Por meio do mito das raças, o filósofo pretende convencer seu interlocutor de que tais qualidades inatas aos seres humanos resultariam, na verdade, da composição metálica que cada indivíduo levaria em sua alma por designação e vontade dos deuses. Essa concepção mítica não era algo novo para os gregos daquela época, muito antes de Platão assimilá-la na República, essa crença de almas metálicas já estava presente na cultura tradicional, como em Hesíodo, de modo que pode ser vista, grosso modo, como algo amplamente aceito na época de Platão: Vós sois efetivamente todos irmãos nesta cidade – como diremos ao contar-lhes a história – mas o deus que vos modelou, àqueles dentre vós que eram aptos para governar, misturou-lhes ouro na sua composição, motivo porque são mais preciosos; aos auxiliares, prata; ferro e bronze aos lavradores e demais artífices. Uma vez que sois todos parentes, na maior parte dos casos gerareis filhos semelhantes a vós, mas pode acontecer que do ouro nasça uma prole argêntea, e da prata, uma áurea, e assim todos os restantes, uns dos outros (Rep., 2001, 415 a-b).

Platão estabelece, pois, uma hierarquia entre as classes sociais apoiando -se numa justificativa mítica, a qual, perfeitamente, condiz com suas pretensões para o Estado. Segundo conta a tradição poética, a alma de todos os indivíduos é constituída por espécies de metais, tais quais ouro, prata, ferro e bronze. Na ocasião do nascimento desses seres mortais, os deuses depositaram, em cada um deles, uma quantidade específica de determinado metal. A combinação dos metais e sua quantidade na alma de

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cada ser seria a métrica natural para delegar funções no ambiente da sociedade. Desse modo, os indivíduos que possuem ouro nas almas ou, ainda, aqueles que possuem mais ouro do que outro metal na sua constituição anímica, por exemplo, deveriam com por a classe dos governantes, pois, naturalmente, fariam parte de uma raça áurea, superior por excelência. Os que tiveram suas almas forjadas com prata iriam compor a classe dos guardiões, intermediária. Já os indivíduos que não apresentassem nenhum dos do is metais preciosos em sua constituição anímica, mas ferro e bronze, por exclusão, deveriam compor a classe dos produtores, o nível mais elementar da sociedade. Para constituições anímicas diferentes, seriam necessários, também, modelos educativos igualmente diferenciados. A educação tradicional, pautada pela poesia e pela oralidade, foi durante muitos séculos (desde 800 a.C. até o período áureo ateniense), o grande modelo pedagógico entre os gregos. Platão sustenta um quadro de pretensas desigualdades naturais a partir de elementos internos da tradição e pretende, imbuído dessa ideia, fundamentar a sua proposta educativa. Notamos, no texto platônico, a inversão de um raciocínio discursivo, de modo que a criação de argumentos visa justificar a postura política de Platão, tendo em vista as qualidades ou atributos naturais da alma humana. O filósofo parece atuar num sentido contrário ao que propõe, pois lança mão de um mito e faz uso de elementos da crença popular, tal como a menção ou retomada de aspectos do mito das raças de Hesíodo, para incutir no seu interlocutor a ideia de que a organicidade ou a naturalidade do Estado está em consonância com o cosmos do qual todos fazemos parte. Para imprimir em seu leitor a ideia anteriormente referida, o projeto político platônico tende a ser colocado como objeto teleológico ou como finalidade última, sendo desenhado como uma necessidade a ser alcançada, tendo em vista seu caráter universal e necessário. Nesse sentido, o pressuposto da natureza humana, como fonte e origem do Estado, assemelhar-se-ia muito mais a uma estratégia discursiva do texto. Estratégia que tenta, sobretudo, nos convencer da organicidade política e das estruturas naturais desse Estado, do que, propriamente, da busca por sua autêntica fundamentação epistemológica e da clareza de sua ontologia. Ao assumirmos que o sentido da educação platônica tende para a formação do bom cidadão para as específicas atividades internas do bom Estado, ou ainda, para a transformação do indivíduo humano em um ser político obediente à razão e ao filósofogovernante, poderíamos nos questionar a respeito do tipo de educação que o Estado deveria fornecer para seus súditos. Estamos cientes de que, dada as desigualdades naturais, advogadas por Platão, nem todo habitante do Estado estaria capacitado a

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governá-lo. Além disso, tornar-se filósofo não é algo que estaria ao alcance de qualquer indivíduo e, seguindo a lógica platônica, apenas uma minoria teria tal capacidade. Desse modo, de qual espécie ou modelo de educação estaríamos tratando, haja vista que o Estado necessita de que todos os cidadãos recebam, pelo menos, um grau mínimo de instrução? A proposta educativa platônica já, aqui, assume seu caráter aristocrático. Contudo, a aristocracia que Platão pretende educar não é a mesma que a tradição retratou em suas epopeias. Aquela, por sua vez, tinha em vista a formação do guerreiro viril, do nobre dotado de conhecimentos bélicos e preparo físico para as constantes batalhas entre as tribos gregas. O aristocrata platônico não é outro, senão, o ser pensante, ou seja, o sábio que reconhece sua ignorância, mas que busca supri -la por meio do conhecimento. Outro predicado que pode ser atribuído por este aristocrata é o de portar um horizonte e um norte voltado ao mundo das Ideias. De acordo com a proposta educativa de Platão, para os indivíduos ou classes diferentes são necessários modelos de educação igualmente diferenciados e adequados às suas naturezas. Essa atividade de ensino, de caráter público e ministrada pelo Estado, não pode ser identificada como um direito cidadão, pois a noção de direito universal à educação é um conceito recente. No período clássico, mesmo nas cidades mais liberais, como Atenas, berço da democracia e centro de convergência das artes e do comércio, a educação estava vinculada ao tempo de ócio, scholé, característica do estilo nobre e aristocrata. Com o advento da sofística, esse círculo de atuação ampliou-se para a classe do demos detentora de bens materiais – os metecos. Faziam parte do currículo formativo dessa nobreza as instruções militares e a formação pela ginástica e pela música; contudo, esse modelo pedagógico não era uma atividade voltada para a educação geral dos habitantes da cidade-estado. Segundo Platão, a deliberação sobre os assuntos educativos d eve ser da alçada do filósofo estadista – o filósofo-governante. Caberia ao governante, por exemplo, decidir o que deve ou não ser oferecido às crianças, aos jovens e aos adultos. Além disso, caberia a ele, ainda, a seleção de quem deve ou não ser instruíd o para realização de determinada atividade. A educação, como qualquer outro tema estratégico do Estado, deve ficar sob o comando do governante, visto que ele é o indivíduo que possui maior conhecimento e melhor discernimento sobre os assuntos mais importan tes relativos à pólis (Rep., 2001, 379 a). E, como se faz para que os filósofos assumam o governo ou os governantes se tornem filósofos? Educando os habitantes do Estado, de modo que neles seja infundido, aflorado e naturalizado o desejo por um bom governo, um governo justo. O ideal de

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justiça deve ser lapidado dentro da alma de todo indivíduo que compõe o Estado, independente da função que ele assuma na sociedade. O procedimento educativo consiste em fomentar, nos indivíduos, as condições espirituais e, no Estado, as condições materiais. Isso possibilitaria, por sua vez, a criação das condições para a implementação e a manutenção de um regime político estável e sóbrio. Para Platão, a educação é uma atividade que se articula em duas frentes: na configuração das classes sociais dentro do Estado – uma macro educação, e na orientação das atividades da alma – uma micro educação, modeladora das almas. Platão enxerga uma equivalência entre as potências da alma e as estruturas do Estado. A educação é uma atividade que ocorre no interior dos indivíduos e se exterioriza na organização política do Estado. Este é um reflexo, uma projeção ampliada daquilo que acontece na alma humana. Acompanhando a lógica dessa fisiologia, se a alma estiver saudável, o Estado, seguramente, prosperará politicamente. A educação deve, em benefício do Estado, corrigir as deficiências da alma humana tornando o indivíduo excelente. Essa noção de excelência ou virtude, areté, deriva do próprio modo de vida do aristocrata, o áristos. Essa virtude, num sentido moral, é aquilo que força a alma para o bem, para seu sentido natural e orgânico. A educação promove, internamente, a harmonia entre as potências que constituem a alma humana. Na República (2001, 429 e-441 c), Platão “distingue três espécies de virtudes. Em função das potências da alma e das classes sociais”. Vejamos de que modo o filósofo distingue essas potências, as quais serão três: 1) concupiscência, epithymía, “que tem sede no ventre e preside a vida vegetativa; 2) o coração, thymós, que tem sede no peito e preside a vida afetiva (...) e, por fim, 3) a razão, lógos, que tem sede na cabeça e preside a vida intelectual” (Gobry, 2007, p. 20). No âmbito interno, a educação estabelece o controle da racionalidade sobre as partes concupiscível e irascível, organizando as partes da alma de forma a conduzi-las em direção à justiça. Assim, a estabilidade política do Estado depende da equilibrada organização interna na alma do indivíduo. A justiça se manifesta, inicialmente, dentro do indivíduo, como uma espécie de saúde da alma, e, depois, se exterioriza nas estruturas do Estado. As potências da alma, quando adequadamente organizadas, conferem condições para que os indivíduos possam realizar suas atividades dentro do Estado, desempenhando suas funções da melhor maneira possível, ou melhor, de forma excelente. Essa harmonia entre os papéis e as virtudes, Platão denomina justiça (Rep., 2001, 439 d). A justiça, dikaiosýne, é a harmonia entre as outras virtudes da alma. Ela também

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é o resultado da perfeita ordenação tanto das potências da alma quanto das três classes sociais. Uma alma torna-se justa quando permite que a razão a domine e a conduza. Do mesmo modo, um Estado se torna justo quando permite que o governante filósofo o governe. Na alma, a potência racional deve se sobrepor à potência irascível, assim como o guardião deve obedecer ao governante. Platão definirá a temperança, sophrosýne; a coragem, andreía e a sabedoria, sophia, ao longo do diálogo. Dessa forma, “a temperança é uma espécie de ordenação, e ainda o domínio de certos prazeres e desejos” (Rep., 2001, 430 e). É a virtude que tem o papel de regular a concupiscência, característica própria da classe dos produtores. A coragem regula o coração, a vida afetiva, e é própria dos guardiões. A sabedoria, própria dos governantes, regula a razão e, por ser a mais elevada, comanda as demais virtudes (Gobry, 2007, p. 20). O propósito da educação é, assim, a manutenção da dikaiosýne, por meio da alma ou por meio do Estado justo. Essa virtude tem sua origem na alma e seu fim no Estado. Por meio de soluções dispostas no mundo das Ideias – por paradigmas ideais que orientam nossas ações, os governantes-filósofos deverão sanar os problemas políticos concretos no Estado. A Ideia de justiça constitui um desses paradigmas, assim como outras virtudes similares. Diz Sócrates: “Creio que a nossa cidade, se de fato foi bem fundada, é totalmente boa (...). É, portanto, evidente que é sábia, corajosa, temperante e justa” (Rep., 2001, 427 e). Essas são as quatro virtudes cardeais, conhecidas desde os tempos antigos pelos gregos. A justiça como harmonização das partes, das virtudes e das classes, manifesta concretamente o destino natural do Estado e da própria alma humana. Nesse sentido, a educação é um processo de conversão: abandonar o modo de vida injusto e instaurar a harmonia e a dikaiosýne como seus elementos norteadores. As atividades anímicas individuais e particulares possibilitam a estabilidade política na macro esfera. A razão deve reinar soberana nessas duas instâncias assegurando que a alma obedeça à sua natureza; essa, por sua vez, explicitada pelo mito das raças. Uma alma justa é aquela que permite que a razão a guie, desempenhando, assim, seu papel dentro da engrenagem política de forma excelente. A razão é a parte superior da alma, assim como o governante é a figura superior do Estado. A justiça também consiste na obediência ao que é racionalmente superior. A educação, nesses termos, é política, na medida em que tem como função conferir às almas suas bases morais e intelectuais, tornando o indivíduo apto ao exercício de seu papel político. Essa participação se concretiza, por meio das classes sociais, organizadas em torno de suas funções e sempre em benefício do Estado (Alves, 2010, p. 38-40).

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O período específico de formação para cada classe social e o tipo de instrução que lhe deve ser oferecido é um longo assunto tratado por Platão na República, sobretudo nos Livros II, III e VII. Segundo o filósofo, essa formação deve ter início ainda na infância e se estender até a plena maturidade intelectual, por volta dos cinquenta anos de idade. Todas as crianças nascidas no Estado, inclusive as do sexo feminino, deverão receber um tipo de instrução básica, elementar, até a idade de sete anos. Platão não deixa explícito nessa parte do diálogo qual deveria ser a proposta educativa para esse público iniciante; no entanto, ele nos apresenta uma série de preceitos sobre o que se deve ou não ensinar às crianças. Ainda em idade pueril, devem ser submetidas à educação geral, a qual é promovida para todas as crianças, tal formação visa moldar a moralidade e dotá-las de condições para seguirem com os estudos de nível abstrato. Quando são adolescentes e crianças, deve empreender-se uma educação filosófica juvenil, cuidando muito bem dos corpos, em que se desenvolvam e em que adquiram a virilidade, pois eles são destinados a servir à filosofia. À medida que avançam na idade, em que o aluno começa a atingir a maturidade, devem intensificar os exercícios que lhe dizem respeito; quando as forças os abandonarem, e os puserem à margem da política e da guerra, então devem deixar-se pastar em liberdade, como os animais sagrados, e não fazer mais nada, a não ser como passatempo, se se quiser que vivam felizes e que, depois de alcançarem o termo da vida que lhes coube, entrem na posse do destino no além que está à sua altura (Rep., 2001, 498 b-c).

De acordo com a proposta educativa disposta na República, o Estado deve assegurar que todas as crianças recebam o mesmo tipo de formação até a idade dos sete anos. Após essa idade, todas elas serão submetidas a uma rigorosa avaliação em que somente as que apresentarem aptidões físicas, morais e intelectuais permanecerão recebendo educação do Estado. As crianças, de ambos os sexos, deverão ser educadas juntas, num ambiente em que os governantes possam observar de perto o percurso dessa formação. Platão considera que, todas as crianças nascidas na cidade, são filhas do Estado, ou ainda, pertencem a ele. Os filhos e filhas de todas as classes, ainda bebês, deverão ser afastados de suas famílias, de modo a adaptar a criança ao convívio comunitário. Essa primeira seleção visará, ainda, escolher, dentro do conjunto de todas as crianças da cidade, quais irão compor a classe dos produtores e quais pertencerão à classe dos guardiões. As crianças reprovadas no exame de seleção serão encaminhadas para as atividades profissionais, passarão a fazer parte da classe dos produtores e nela permanecerão por toda a vida. Cada uma delas, a julgar pelo seu perfil e pela sua aptidão, será designada ao cumprimento de uma tarefa específica no Estado. Para Platão, cada indivíduo é capaz de

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executar apenas uma atividade com perícia; por isso, requer-se a especialização em determinada tarefa e não a atuação em múltiplas funções. Assim, um ceramista consegue executar com habilidade somente a função que lhe cabe: fabricar utensílios de argila e, dessa forma, executará seu papel de forma justa, única e excelente. Cada indivíduo ocupa sua posição exercendo não mais que a sua profissão; pois, segundo diz Platão: “penso também que, em primeiro lugar, cada um de nós não nasceu igual ao outro, mas com naturezas diferentes, cada um para a execução de sua tarefa” (Rep., 2001, 370 a-b). Para a classe dos produtores, parcela que realiza os trabalhos manuais e o comércio, bastará uma formação inicial geral e comum a todas as crianças. Esse tipo de instrução abarca os conteúdos gerais da cultura oral e pretende infundir a temperança como virtude preponderante na alma dos educandos. A temperança, por sua vez é a virtude própria da classe dos produtores, apesar de não estar restrita a eles. Para Platão, os guardiões e os governantes, igualmente, devem adquirir a temperança, cuja aquisição se dá ao longo da instrução geral recebida por todas as crianças. O domínio dos prazeres e do excesso de riquezas constitui um valor fundamental e desejável não apenas para os produtores. Platão é consciente dos riscos de se permitir que os produtores percam a medida daquilo que é verdadeiramente necessário para a vida na cidade. Assim, quando se aprende a lidar com os desejos, submetendo-os sempre ao julgo da razão (sua potência anímica superior), há, para Platão, no âmbito do Estado, o pleno funcionamento das atividades vitais, que será materializado no bom governo. Os produtores são comparados, na República (2001, 375 a), a rebanhos de gado ou de ovelhas. A existência dessa classe está condicionada ao cumprimento de funções voltadas para o trabalho manual, para a produção de bens materiais e de riquezas. Essa classe não dispõe de tempo livre para o desenvolvimento moral e intelectual, indispensáveis à aristocracia. Além disso, não oferece riscos ao regime político pelo fato de não ter preparo militar, mas, apenas, instruções elementares voltadas para o cumprimento de suas tarefas técnicas. Por se tratar da camada mais inferior do Estado, de alma concupiscível e opinião facilmente influenciável, Platão deseja mantê-los constantemente dependentes da defesa, por parte dos guardiões, e do comando, por parte dos líderes. Rebanhos, de acordo com a alegoria platônica, sejam eles constituídos por ovelhas ou bois, podem ser controlados sem maiores dificuldades pela força física e pela ofensiva de cães de guarda obedientes e treinados, de modo que os guardiões desempenhariam esse papel sem maiores dificuldades, seguindo a ordem de seus pastores governantes. Não é do interesse do Estado a continuidade da formação da classe dos produtores, porque isso seria algo perigoso para a estabilidade política. Platão julga que a massa não é

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capaz de pensar os problemas e as questões do Estado e que, portanto, deve ser permanentemente vigiada e conduzida. Não é do interesse dos governantes estabelecer um equilíbrio de forças entre a massa dos produtores e as elites guardiãs e governantes. Além disso, ao oferecer uma instrução mais prolongada aos produtores, eles teriam menos tempo e disposição para o cumprimento de suas obrigações produtivas. Se os produtores não trabalhassem, a aristocracia teria de fazê-lo e isso, segundo a ordem natural das coisas, não seria algo que competiria aos nobres. O trabalho era considerado uma atividade degradante na antiguidade, uma tarefa a ser cumprida pelos escravos ou pelos estrangeiros da cidade. A equitação, os treinos militares, o estudo da música e dos poetas eram atividades típicas da aristocracia – modelo de educação tradicional, paideia antiga. A vida ociosa, a scholé – da qual deriva o termo escola – significava, para o grego clássico, o principal fator de diferenciação entre os indivíduos e entre as classes. O ócio era tido como um direito natural da aristocracia, garantido mais pela sua superioridade física, moral e intelectual, do que pelos bens materiais (Austin; Vidal-Naquet, 1972, p. 106). Após essa primeira seleção, tem início a etapa de formação preparatória para a classe dos guardiões. A partir desse momento, somente as crianças e os jovens com potencial para o cargo de governo receberiam a educação do Estado. Durante todo esse período de formação propedêutica, dos sete aos vinte anos de idade, os discípulos frequentariam os espaços designados a um tipo de instrução apropriada para sua idade e profissão. Essa primeira etapa teria por objetivo a formação física e moral desses jovens e crianças. É, essencialmente, nessa fase da vida do discípulo, que ele, sob os cuidados dos mestres preceptores, teria maior propensão em moldar sua moralidade e sua constituição física. Entre os sete e os vinte anos de idade, receberia uma formação básica e preparatória, pautada pela música e pela ginástica – nos moldes da antiga divisão estabelecida pela tradição: música (mousiké), para a formação da alma e ginástica (ginastiké), para o fortalecimento do corpo (Rep., 2001, 376 e). O tempo dedicado à educação musical deve ser mais prolongado que o treinamento físico, pois Platão considera que a alma deve receber maiores cuidados do que o corpo. Além disso, a formação moral da alma deve ter seu início muito antes da ginástica. Desse modo, somente ao final dos dezessete anos de idade, após o período musical, o educando tomaria contato com as atividades físicas. Essa primeira etapa, sensorial e moralizadora, pretende estabelecer os fundamentos morais na alma dos guardiões. Trata-se, ainda, de uma condição necessária para a continuidade dos estudos, em um nível cada vez mais abstrato, ou seja, a formação intelectual dos governantes. A educação pelos conteúdos da tradição é de caráter cívico e militar, tendo como objetivo inculcar certos valores imprescindíveis para a boa atuação dos

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guardiões dentro do Estado, principalmente, a coragem (andreía) enquanto virtude hegemônica. Para Platão, a educação da alma, promovida pela música, requer maiores cuidados e atenções, devido à condição de superioridade e imponência da alma (psykhé) em relação ao corpo (sóma). A música, entendida aqui como arte das Musas ou conjunto geral da poesia grega, visa promover a formação moral da alma do jovem guardião. Platão exige que se comece pela formação da alma, isto é, pela música. No sentido lato da palavra grega mousiké, esta não abrange apenas o que se refere ao tom e ao ritmo, mas também – e até em primeiro lugar, segundo o acento platônico – a palavra falada, o lógos (Jaeger, 2001, p. 768).

Todas as referências à boa ou à má conduta são exemplificadas por meio da cultura tradicional, especialmente pela poesia homérica. O caráter musical desse modelo educativo tradicional está atrelado, principalmente, às raízes de uma oralidade poética que remonta à literatura e à sonoridade de um modo geral, aspectos culturais que ma rcaram decisivamente a paideia grega. Devido ao seu teor aprazível, sedutor e principalmente educativo, a literatura deveria ser vigiada e controlada por regras e limites, de modo a infundir na alma do guardião apenas os elementos apropriados, tais como a virtude da coragem, da valentia, bem como a irrestrita obediência aos governantes. A música detém, dentro do texto platônico, uma função propedêutica, qual seja: conferir à alma dos guardiões as bases morais e sensíveis para a continuidade dos estudos no nível abstrato. Na República (2001, 377 b), Platão assume que, somente a música é capaz de penetrar no espírito e infundir nele as atitudes nobres e essenciais para o desenvolvimento do seu caráter intelectual; por isso, a educação musical deve ser ministrada numa etapa anterior ao desenvolvimento intelectual, por meio de conteúdos e exercícios abstratos, como os estudos matemáticos. A música deveria, ainda, ser anterior ao fortalecimento do corpo, o qual se dá por meio da ginástica. O motivo para essa predileção pelos estudos musicais (pelo menos numa idade inicial do discípulo) consiste na atuação do conteúdo musical para o estabelecimento, na alma dos guardiões, de um conjunto de valores morais basilares para a execução de suas funções, especialmente, no que tange à identificação do bom e do belo, distinguindo-os dos vícios e caracteres inferiores. A educação musical é preparatória para a assimilação do conhecimento científico, verdadeiro e inteligível, que, somente, poderia ser alcançado por uma alma justa, ou ainda, por um indivíduo capaz de verificar nas ações, nos objetos e nas instituições o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, o que é virtuoso e aquilo que é nocivo. Sobre o aprimoramento dessa habilidade de averiguar qualidades,

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Platão propõe o desenvolvimento da capacidade intelectiva. Assim, somente poder-se-ia conhecer o Bem, sendo bom ou identificando-o com propriedade nas instâncias do mundo sensível. O corpo, por sua vez, ainda que inferior à alma, é um instrumento essencial para a defesa do Estado, sobretudo, contra os inimigos externos e os dissidentes internos. Por isso, o guardião deve ter como requisitos elementares boa saúde e adequado preparo físico para o exercício de sua função. A ginástica, como segunda parte dessa primeira etapa educativa, teria como função não apenas a promoção da saúde e o fortalecimento do corpo, mas também a prática do estímulo da potência irascível da alma do guardião. O irascível deve sempre estar submetido à razão, embora Platão deseje que os guardiões do seu Estado sejam educados de forma austera e rigorosa. A prática da ginástica deve começar por volta dos dezessete anos e seguir até os vinte anos de idade, visando fortalecer o elemento colérico nos jovens e também tornar o guardião mais corajoso diante das adversidades no cumprimento de sua função bélica. Passada essa primeira etapa de instrução, haverá outra avaliação entre os jovens guardiões, a fim de selecionar os melhores para a continuidade dos estudos. Os jovens física e moralmente mais bem preparados para as atividades de defesa e mais intelectualmente capacitados para as atividades mais abstratas continuarão nos estudos, enquanto os demais alunos serão designados para a execução de tarefas de menor importância no Estado. A segunda etapa educativa consiste numa formação mais elevada dos aspirantes ao governo do Estado. Trata-se de um conjunto de instruções de nível intelectual que começa aos vinte e um anos e se estende até os cinquenta. Em um primeiro momento, por um período de dez anos, o discípulo deverá tomar contato com as ciências matemáticas: a aritmética, a geometria, a estereometria ou geometria dos sólidos, a astronomia e a harmonia musical. Nessa segunda etapa, todos os conhecimentos anteriormente adquiridos durante a etapa educativa propedêutica seriam estudados na sua essência pelas ciências matemáticas e pela dialética. A educação matemática atuaria, pois, na formação da cognição, situando-se num estágio intermediário entre a sensibilidade e a pura abstração. Aos jovens selecionados e maiores que vinte e um anos, seriam apresentadas as ferramentas para a criação de hipóteses sobre a essência dos objetos sensíveis, isto é, seriam exibidos a tais jovens conhecimentos em sua forma pura, Ideias ou paradigmas. O objetivo desses estudos é desenvolver no guardião habilidades inteligíveis por meio do gradual afastamento do sensível e aproximação do caráter inteligível das Ideias quantificado pelos números. A matemática é o prelúdio da ciência a que o filósofo deve ter acesso, isto é,

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da dialética, graças à qual o filósofo pode chegar a conhecer a essência das Ideias. Por quê? Porque os entes matemáticos não são Ideias. Eles são entes relativos. As Ideias, pelo contrário, são realidades qualitativas e absolutas. De fato, os números um, dois, três, não importa qual seja o número, só tem uma realidade, ou seja, aquela que está relacionada a outro número (...). Do mesmo modo, uma figura geométrica pode representar uma superfície delimitada que esteja relacionada com outra. Por exemplo, um círculo pode conter um quadrado, um triângulo ou o inverso. As Ideias representam as realidades absolutas, às quais nada poderíamos cercear ou reduzir, tais como as Ideias de belo, de justo, de homem e de cavalo atribuem a tudo que é belo, justo, homem e cavalo suas qualidades de beleza, de justiça, de humano e de equino (Piettre, 1989, p. 28-29).

O valor da matemática, como ciência preparatória para a dialética, consiste em conduzir o raciocínio para os números em si mesmos, independentemente das unidades sensíveis, isto é, da quantidade de objetos concretos. Em relação à geometria, por exemplo, o exercício do raciocínio não está voltado para a figura geométrica, nem, tampouco, para sua representação, mas voltado está à possibilidade de se obter relações geométricas independentes dos objetos geométricos representados. A relevância dessa ciência, assim como da matemática como um todo, está em seu caráter puramente intelectual, dissociado dos sentidos. A matemática e a geometria permitem o raciocínio sobre elementos perfeitamente idênticos. Os números e as figuras iguais são possíveis, somente, devido à existência inteligível desses entes matemáticos, os quais são concebidos pela intuição intelectual ou pela ciência das Ideias. Num segundo momento, dar-se-ia a iniciação aos estudos da dialética, disciplina ministrada unicamente para aqueles que demonstrassem capacidade intelectiva e compreensão da natureza abstrata dos objetos matemáticos. Por meio da dialética, o discípulo seria introduzido ao conhecimento puro das coisas, à sua essência, à sua Ideia original. Essas essências ou Ideias, por sua vez, somente poderiam ser alcançadas mediante o uso da razão dialética, isto é, sem o intermédio dos sentidos ou de qualquer instrumento passível de materialidade. As hipóteses matemáticas servem como instrumentos intermediários para o preparo intelectual do discípulo, provisórias, importantes para os estudos da dialética – ciência filosófica. Na geometria, poderíamos tomar como exemplo o caso das formas geométricas. Há a forma em si mesma, isto é, o círculo em si mesmo, a Ideia de triângulo, retângulo, etc. – objetos puros do conhecimento, e, também, suas representações: o desenho de um triângulo, o formato cilíndrico de um vaso, ou ainda, a linearidade de um traço. Nesse sentido, afirma-se que: “O filósofo vai além das hipóteses consideradas, pois ele se interroga sobre o que seja um círculo, um triângulo, um quadrado, o número um ou dois, um número par ou ímpar. Em resumo, ele raciocina no absoluto” (Piettre, 1989, p. 29).

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A dialética deve ser ministrada aos melhores guardiões durante um período de aproximadamente cinco anos, imediatamente após outra seleção, quando o discípulo tiver completado os trinta e um anos de idade. Nessa altura da vida, espera-se que ele já tenha alcançado maturidade intelectual suficiente para lidar com a pura abstração. Além da maturidade, também lhe é exigida capacidade cognitiva, de modo a buscar compreender a natureza em si mesma das coisas. Os estudos abstratos e, sobretudo a dialética, pretendem desenvolver nos guardiões sua máxima virtude, a sabedoria. Essa virtude é característica da classe dos governantes, devendo ser cultivada nas almas dos eleitos por um tipo de educação superior – filosófica. A sabedoria é tida por Platão como a virtude mais elevada. Essa é própria do filósofo, no auge de sua maturidade intelectual. A posse do saber confere condições ao governantefilósofo para o comando político da Cidade. A sabedoria não pode ser introduzida na alma dos indivíduos, tal como um recipiente que se enche com água, uma vez que ela não é uma virtude externa a eles. Assim, é somente por meio de um paciente, longo e gradual aprimoramento da capacidade intelectiva que os indivíduos poderiam desenvolvê-la. A sabedoria situa-se no âmbito do intelecto e é inacessível à maioria dos cidadãos. Aos cidadãos incapazes de desenvolver a intelectualidade, restam as “virtudes populares”, cujo desenvolvimento requer uma sólida formação introdutória, à classe dos produtores, além da música e da ginástica, própria dos guardiões (Scolnicov, 2006, p. 18-78). Em seguida, pelo último período de quinze anos, estes guardiões de maior grau terão de desenvolver a prática da dialética, até que, finalmente, aos cinquenta anos de idade, deverão se submeter ao último exame de suas vidas e, se aprovados, serão promovidos ao posto de governante do Estado, filósofo-governante ou rei-filósofo. Esse é o último estágio do modelo educativo proposto por Platão, cuja duração é de quase toda uma vida e representa o coroamento da formação filosófica. A formação do governante é o auge da educação platônica, visto que, para Platão, somente esse indivíduo – ou categoria social – possui condição intelectual e moral para dissolver e solucionar os entraves ou problemas referentes à atividade de gerir e legislar o Estado. O governante-filósofo, em vista dessa formação especial recebida e sob essa perspectiva de superioridade hierárquica, estaria em melhores condições – senão exclusivamente habilitado – de contemplar os objetos puros do conhecimento, sejam eles referentes ao saber e à cultura, sejam eles relativos às questões específicas da política, tal como a essência ou os fundamentos das leis e das virtudes. Pela razão de conhecer as verdadeiras leis, a Lei em sua forma ideal, enquanto modelo paradigmático, esse governante teria melhor acesso a uma sabedoria política ou a uma prudência necessária para comandar a

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vida pública do Estado. O objetivo final da proposta educativa de Platão e aquilo que lhe confere sentido é, como referido anteriormente, a formação do filósofo-governante, ou ainda, preparar a classe dos aristói políticos para o suprimento das necessidades de comando do Estado. Sua educação é distinta e superior à dos demais cidadãos, demandando mais tempo para ser efetivada, pois, até que esse aprendiz da dialética consiga fazer uso da razão sem o intermédio dos sentidos, levam-se muitos anos. Na República (2001, 416 c), Platão especifica que o tipo de formação ministrada à classe superior deve considerar a importância da função a ser desempenhada por esses futuros governantes e, com isso, exige que sejam tomados maiores cuidados. A finalidade é dotar esses cidadãos de condições morais e intelectuais para a perfeita governança, pois, somente com legisladores e chefes de Estado moralmente bons e intelectualmente sábios, haveria harmonia dentro do espaço da comunidade política. Para tal logro, é necessário um tipo de educação para a excelência. O filósofo-governante destaca-se como peça principal dentro deste arranjo político, visto que goza de formação privilegiada e de caráter moral e intelectual superior, é ele quem deve deliberar pela coisa pública.

2 – Sentido educativo da teoria do conhecimento

A seção anterior enfocou a proposta educativa de Platão, suas etapas formativas de caráter aristocrático e hierárquico, bem como seus conteúdos e disciplinas. A proposta visa, fundamentalmente, solucionar os problemas do Estado mediante a formação do quadro de governantes. O intento de materialização do Estado ideal, isto é, a tentativa de regular as leis e as regras políticas tomando por base e diretriz as Ideias, é algo que somente poderia ser empreendido pelo governante-filósofo. Ele é, assim, tido como um personagem essencial para a execução dessa proposta política. O governante, virtuosamente sábio, estaria apto a deliberar sobre os rumos da política bem como a prescrever uma boa legislação de forma sábia. Por participar do mundo das Ideias, o filósofo, conhecedor dos paradigmas ideais, concentraria as qualidades fundamentais para esse intento. Platão defende, em sua teoria das Ideias, que tudo aquilo que existe no mundo sensível seria uma cópia deturpada do mundo inteligível. No caso das questões relativas à política, por exemplo, certamente deveria haver um modelo ideal de Estado, o qual se caracterizaria por ser perfeito, imutável e incorruptível. Este modelo ideal poderia ser tomado como paradigma pelos filósofos-governantes. Assim, tendo em vista que

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devem existir leis perfeitas, cabe a esse governante contemplá-las e tentar, de alguma forma, aplicá-las em seu Estado concreto. Tanto a proposta educativa quanto a própria noção de Estado, sua legislação e divisão social, repousam em bases ideais. Na República, o paradigma epistemológico é a Ideia. A realidade inteligível e universal, característica do mundo inteligível, é o que confere respaldo e horizonte para a proposta educativa de Platão, tendo em vista que a fundação desse Estado ou Cidade ideal deve ter com base e justificativa o universo das realidades verdadeiras, sendo que a justiça, em sua forma pura, é a virtude essencial a ser buscada e mantida. A teoria do conhecimento serve de fundamentação não apenas à constituição ideal de Estado, mas, também, à proposta educativa empreendida para sua sustentação política. A solução dos problemas do Estado, por meio da educação, não se justifica apenas como uma necessidade prática, de governabilidade, mas, principalmente, pela sua validação epistemológica. A justificativa de Platão não é somente pragmática, ou seja, moralizar o Estado garantindo o governo filosófico. A educação se legitima, também, pela ação de manter a justiça no Estado e na alma dos indivíduos, trata-se de uma ação afirmativa que visa garantir o destino natural do Estado e da alma, corrigindo, assim, alguns possíveis desvios ou obstáculos. Mas, o que é o conhecimento para Platão? “O conhecimento é um processo psíquico mediante o qual uma alma, ao perceber um objeto, tem condições de dizer o que ele é. (...) O conhecimento é uma capacidade, uma potência da alma, dynamis” (Brisson; Pradeau, 2010, p. 25). Para Platão, o conhecimento humano está estruturado em níveis distintos e hierárquicos, dispostos numa espécie de percurso. Os primeiros dois níveis estão relacionados aos órgãos sensíveis, enquanto os dois últimos são de ordem inteligível. Essa estruturação é ilustrada na República pelas passagens da linha segmentada e da alegoria da caverna. Em ambas as passagens, o conhecimento parte de um nível sensível (primário) da cognição e segue em direção ao tipo mais elaborado do saber científico. Tanto na linha quanto na alegoria, são os elementos imagéticos e concretos que fornecem as bases sensoriais para o conhecimento. Da mesma forma, são as hipóteses matemáticas e as Ideias que propiciam a matéria-prima para a inteligibilidade. O conhecimento tem início na observação das imagens e alcança sua forma mais elaborada por meio da ascensão ao mundo das Ideias. O símile da linha e a alegoria da caverna ilustram essa condição gradual do conhecimento, bem como suas etapas.

2.1 – Os modos de conhecimento na exposição da linha segmentada

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A passagem que se refere à linha segmentada ocupa a parte final do Livro VI da República (2001, 509 d-511 e). Ela consiste na exposição de Platão sobre os quatro modos do conhecimento, os quais segundo o filósofo, encontram-se organizados de forma hierárquica e sistemática. O nível mais elementar de todos está na apreciação das imagens e o mais elevado ocupa-se da ascensão às Ideias. A linha segmentada é uma representação simbólica que Platão utiliza para ilustrar sua teoria do conhecimento (Piettre, 1989, p. 35-36). A linha é cortada em duas seções desiguais, respeitando uma linearidade e hierarquia entre as etapas do conhecimento humano. As etapas do conhecimento apresentam-se distribuídas ao longo de uma linha, cujo nível mais primordial de cognição encontra-se na fase da apreciação das imagens e, o auge dessa cognição, no aceso direto às Ideias ou às Formas essenciais. Na República (2001, 509 d-e), o personagem Sócrates propõe ao seu interlocutor, Gláucon, imaginar o esquema de uma linha seccionada que compreende, em suas partes, todos os modos ou faculdades do conhecimento. A linha promove uma esquematização do conhecimento, tendo em vista os quatro gêneros dos objetos que afetam a alma. Há uma divisão entre modos de conhecimento e objetos do conhecimento, segundo o critério da visibilidade e da invisibilidade. Os dois primeiros objetos do conhecimento, pertencem ao mundo sensível e os dois últimos, ao mundo inteligível.

Mundo sensível A

B

Mundo inteligível C

D

E

eikasía pístis diánoia nóesis |___________|_______________|___________________|__________________________| imaginação crença conhecimento intuição intelectual discursivo Os seguimentos, conforme podem ser visualizados na ilustração acima, estão dispostos de maneira ordenada, segundo os critérios apresentados por Platão na referida passagem do diálogo A República. Devido à hierarquia estabelecida entre os níveis de conhecimento, tais seguimentos não possuiriam o mesmo comprimento, sendo, portanto, representados ao longo da linha de forma proporcional à sua importância ou ao grau de realidade. Diante dessas informações, fazemos notar que a linha está dividida em dois segmentos: o primeiro, denominado sensível e, o segundo, inteligível. Essa divisão primordial propõe ao espectador quatro modos ou meios de se conhecer os objetos do conhecimento, tendo, por início, a percepção sensível da coisa dada e finalizando com a aproximação a esse objeto, por meio do

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pensamento puro. Os objetos sensíveis são todos aqueles pertencentes ao mundo sensível, concreto, visível e palpável. Os objetos inteligíveis, por sua vez, só podem ser mensurados pela racionalidade, não pelos sentidos. Tais objetos pertencem ao mundo inteligível, invisíveis e imateriais. A distância AE corresponde à extensão completa da linha, isto é, abrange todos os quatro modos de conhecimento. A distância AC comporta somente os modos de conhecimento sensíveis: a imaginação (AB) e a crença (BC). A distância CE abrange os modos de conhecimento inteligíveis: o conhecimento discursivo (CD) e a intuição intelectual (DE). A imaginação é a faculdade do conhecimento mais baixa na escala hierárquica da linha segmentada. Ela toma como objetos do conhecimento aquilo que Platão compreende por imagens. Diz o filósofo: “Chamo imagens, em primeiro lugar, às sombras; seguidamente, aos reflexos nas águas, e aqueles que se formam em todos os corpos compactos, lisos e brilhantes, e a tudo o mais que for do mesmo gênero” (Rep., 2001, 509 e-510 a). É por meio da imaginação que a alma é capaz de representar as imagens, da mesma forma que o pintor reproduz, mediante pinceladas, as formas e as cores de determinado objeto concreto. A crença é o modo de conhecimento que compreende os objetos concretos, “abrange a nós, seres vivos, e todas as plantas e toda a espécie de artefatos” (Rep., 2001, 510 a). A Pístis possui um sentido que se aproxima daquilo que compreendemos por confiável ou confiança; é, assim, a convicção fundamentada na materialidade percebida pelos sentidos. Para Platão, esse modo de conhecimento, embora superior à imaginação, pelo fato de estar mais próximo do modelo ideal, é insuficiente para revelar a essência dos objetos. A imaginação e a crença, enquanto modos de conhecimento mais elementares do aparato humano, proporcionariam ao observador tão somente a contemplação sensível dos objetos por meio de suas sombras e imagens (visíveis e aparentes); as quais são a suposição acreditada da existência desses objetos. Essas duas faculdades cognitivas pertencem ao universo dos simulacros, isto é, da não verdade; por isso são incapazes de penetrar na essência dos mesmos. Segundo a classificação traçada por Platão, a imaginação está num nível ainda mais baixo do que a crença, pois somente é capaz de proporcionar uma representação deturpada de um objeto concreto, portanto, nem a crença e, menos ainda, a imaginação são fontes confiáveis de conhecimento. Como resultado da percepção sensível, elas possibilitam a opinião, um tipo de conhecimento relativo e intermediado pelos órgãos do sentido. Dóxa ou opinião é um termo geralmente utilizado por Platão como contraposição ao conhecimento científico. O verbo doxazein e o nome dóxa são identificados como uma atividade valorativa ou interpretativa do conhecimento, em função da sua referência ao objeto

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material (sensível). No Teeteto (1973, 189 a-190 b), a opinião não se afirma em si mesma; não justifica sua existência em fundamentos científicos, mas na fé. Por meio da opinião, o objeto tem seu valor cognoscível amparado pela crença, isto é, pela confiança de que aquilo que fundamenta determinada coisa é verdadeiro. A alma incorre num autoengano e permite-se crer na existência real de coisas que não podem ser provadas, mas somente acreditadas (Crombie, 1979, p. 39-40). O conhecimento discursivo e a intuição intelectual são modos de cognição superiores, ambos possibilitam a investigação de conhecimentos de forma mais aproximada e mais imediata ao objeto ideal, bem como estão inseridos num modelo epistêmico de conhecimento e se opõem à opinião. O conhecimento científico tem por interesse investigativo o ser do objeto, sua Ideia ou essência. A epistéme, por fazer referência ao objeto tal como ele é (em si mesmo, por natureza, o Ser) mantém-se mais próxima de descobri-lo ou de conhecê-lo em profundidade (Rep., 2001, 477 b). O conhecimento discursivo procede por meio da construção de hipóteses fundamentadas nos objetos matemáticos. Por meio dele, é possível a criação de teorias a partir de representações geométricas ou numéricas. Para Platão, “aqueles que se ocupam da geometria, da aritmética e das ciências do gênero, admitem o par e o ímpar, as figuras de três espécies de ângulos e outras doutrinas irmãs destas” (Rep., 2001, 510 c). Assim, parte-se da figura, unidade numérica ou forma geométrica, em direção ao conhecimento puro. Essas representações não correspondem ao Ser dos objetos, embora estejam mais próximas dele. São elementos racionais intermediários que operam por identidade e semelhança. Conforme vimos anteriormente, os mesmos números e as idênticas figuras geométricas permitem ao conhecimento discursivo estabelecer hipóteses. Tais elementos mantêm entre si as mesmas características, sem qualquer alteração, por exemplo: o número um é idêntico ao número um. Somente por meio da identidade 1 = 1 é possível ao conhecimento discursivo elaborar hipóteses. Os objetos das ciências matemáticas ocupam uma posição singular dentro da teoria do conhecimento platônica: não são Ideias, pois necessitam de representação; nem imagens, posto que imagens são cópias imperfeitas de um objeto concreto, distintas desse objeto e irregulares entre si. A intuição intelectual, o mais elevado nível da hierarquia epistemológica platônica, é o modo do conhecimento superior por excelência. É a razão intuitiva, própria do filósofo. Por meio da intuição intelectual, a alma é capaz de contemplar (ou tentar captar) a essência dos objetos, de modo que: “A nóesis adquire sentido preciso na República (...). Constitui o segundo estágio da ciência, ou seja, o ápice do conhecimento, ao qual o sábio chega como

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termo da dialética” (Gobry, 2007, p. 95-96). O último segmento da linha compreende o mais perfeito modo do conhecimento humano, a nóesis. Nesse estágio, já não há mais a necessidade de qualquer intervenção sensível (sem o uso dos sentidos). A intuição intelectual toma como objetos do conhecimento somente seus elementos inteligíveis. Trata-se do processo da dialética, tal como Sócrates o descreveu: Aprende então o que quero dizer com o outro segmento do inteligível, daquele que o raciocínio atinge pelo poder da dialética, fazendo das hipóteses não princípios, mas hipóteses de fato, uma espécie de degraus e de pontos de apoio, para ir até aquilo que não admite hipóteses, que é o princípio de tudo, atingindo o qual desce, fixando-se em todas as consequências que daí decorrem, até chegar à conclusão, sem se servir em nada de qualquer dado sensível, mas passando das Ideias umas às outras, e terminando em Ideias (Rep., 2001, 511 b-c).

A intuição intelectual permite à alma a criação de hipóteses puramente abstratas, ou seja, sem qualquer necessidade de serem tais hipóteses amparadas pelas representações matemáticas. Por isso, hipóteses verdadeiras. Essas hipóteses são aquilo que torna possível o conhecimento científico em sua forma mais autêntica e direta. Sem o uso de elementos intermediários, a razão opera pela pura contemplação das Ideias.

2.2 – Os modos de conhecimento na alegoria da caverna

A apresentação da alegoria da caverna tem início logo nas primeiras linhas do Livro VII da República. A alegoria dá continuidade ao que foi anteriormente esquematizado, por meio da linha segmentada, e ilustra imageticamente a condição humana e o papel do filósofo no mundo sensível. Quando o personagem Sócrates diz: “imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a seguinte experiência” (Rep., 2001, 514 a), ele toma a condição humana como o ponto de partida para uma discussão em torno da função da educação e da necessidade de se formar o filósofo-governante para a solução dos problemas do Estado. A condição humana, defendida por Platão no contexto da República (2001, 514 a), é a de que a alma (psykhé), parte humana inteligível, encontra-se presa ao corpo (sóma), parte humana sensível. Essa seria, talvez, a mesma condição do prisioneiro dentro da caverna, de modo que o papel educativo do filósofo consistiria em libertá-lo de seus grilhões sensíveis. A exemplificação, em forma de alegoria, do prisioneiro numa habitação subterrânea, tal qual uma caverna, acentua o caráter de ignorância dos seres humanos, cegos e encarcerados pela

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ilusória convicção de que conhecem a verdade. As sensações são incapazes de desvelar a essência das coisas. Os sentidos não são fontes confiáveis de conhecimento, mas os seres humanos, tais como os prisioneiros retratados na alegoria, estão plenamente convencidos de que o que estão enxergando é, na verdade, a realidade. Contudo, aquilo que denominam de realidade não passa de uma mera encenação de sombras projetadas na parede da caverna pela luz da fogueira localizada atrás dos imóveis prisioneiros. “Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoço, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente” (Rep., 2001, 514 a). A situação de clausura em que se encontra a alma humana dentro do corpo não é um fator de impedimento para seu aperfeiçoamento, pois, enquanto seres dotados de habilidades intelectivas, teríamos as condições (em potencial) para dar o primeiro passo em direção à saída da caverna. As restrições imputadas aos prisioneiros não se constituem como impedimento definitivo. O destino das almas, encarnadas num corpo, é buscar libertar-se dessa sua condição de ignorância. A imaterialidade da alma a direciona para o alto, para um nível de saber mais elevado, isto é, para a investigação daquilo que está para além dos sentidos. A própria condição humana é um fator limitante; porém, não impeditivo para a obtenção do conhecimento. Por isso, em Platão, poderíamos considerar a educação como um processo de conversão da alma para uma direção distinta e oposta ao sensível. Sendo ela imaterial, deve buscar os objetos em sua forma imaterial. Para Platão, os humanos estariam propensos a se satisfazerem com imagens, mesmo sendo estas mais obscuras e apagadas em relação às Ideias. São as imagens que confortam a visão do prisioneiro dentro da caverna, embora falsas, ou parcialmente enganosas, de certa maneira, satisfazem as necessidades mais elementares dessa condição humana. Depois que o prisioneiro se solta dos grilhões que o prendem à parede, caminha em direção à saída da caverna e fita com os olhos a luz que se projeta em sua direção, nunca mais poderá voltar a ser o mesmo, sua alma já foi parcialmente convertida. A luz do sol é muito forte e fere seus olhos. O prisioneiro, atado à sua condição humana (a alma encerrada no corpo), sente-se desconfortável com essa situação que se lhe apresenta. O conhecimento é demasiadamente desconfortável para uma alma habituada à ignorância. Olhar as imagens é algo mais cômodo do que o excesso de luz perturbando sua retina (Crombie, 1979, p. 76-77). A luminosidade proveniente da parte de fora da caverna – a luz da razão, a Ideia do Bem, desorienta momentaneamente a visão do prisioneiro, tal como o efeito provocado pela súbita claridade incidindo sobre nossos olhos, acostumados à escuridão. Contudo, aos poucos, a cegueira provocada pelo excesso de luminosidade cede lugar à possibilidade de ver os

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objetos da forma como eles realmente são, isto é, como Ideias ou essências do objeto em si mesmo. A luz revela com toda nitidez e clareza os detalhes que, até então, o prisioneiro nem supunha existir. Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes, na verdade, são mais nítidos do que os que lhe mostravam [dentro da caverna] (Rep., 2001, 515 e).

A educação consiste neste procedimento de saída da caverna, ela é uma atividade árdua e desconfortável, tal como o trajeto até a saída da caverna. Seu papel é o de conferir condições morais e intelectuais para o aperfeiçoamento da natureza humana. Platão pretende tornar os cidadãos de sua pólis ideal (o Estado imaginário ou imaginado) em indivíduos melhores, especialmente naquilo que suas naturezas estão habilitadas a executar. A educação, em seu aspecto epistemológico, pretende aperfeiçoar o aparato cognitivo humano, a fim de evitar, o quanto possível, o apreço pelo engano, ou ainda, a predileção pela opinião e o senso comum, em detrimento do conhecimento verdadeiro e inteligível. O próprio Platão se encarrega de interpretar esta alegoria. Para saber o que significa, é só relacioná-la com o que procede, isto é, com a alegoria do sol e com a proporção matemática das gradações do ser. A caverna corresponde ao mundo visível e o sol é o fogo cuja luz se projeta dentro dela. A ascensão para o alto e a contemplação do mundo superior é o símbolo do caminho da alma em direção ao mundo inteligível (Jaeger, 2001, p. 885).

A educação, interpretada enquanto atitude modeladora da alma, atuaria na condução, elevação e aprimoramento de uma natureza humana preexistente, a qual, para isso, necessita ser melhorada. A alegoria da caverna encena em sua narrativa mítica uma profunda reflexão sobre teoria do conhecimento. A epistemologia, conforme mencionamos no começo desse segundo item, é aquilo que confere sustentação ao projeto educativo de Platão na República. Por isso, tanto o percurso do prisioneiro como a progressão dos modos de conhecimento na linha, dão conta de explicar ou direcionar os rumos da proposta educativa platônica. A caverna encerra em seu interior, escuro e misterioso: as imagens, as sombras e os reflexos dos objetos do conhecimento. São as sombras projetadas na parede e as vozes encenadas das marionetes que se ocupam de iludir os prisioneiros, ocultando deles a realidade disposta no exterior da caverna. Nessa situação, esses homens contam como única fonte de conhecimento a insuficiente iluminação, proveniente da fogueira que projeta, nas paredes desse espaço, um confortável e aprazível engano. A fogueira, ao iluminar os objetos, revela neles apenas uma parte do que parecem em realidade. Essa luminosidade parcial oferece à alma uma impressão sensível, ou ainda, uma opinião fundamentada na aparência. A luz do

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fogo consiste na ilustração do primeiro modo de conhecimento, a imaginação, e essa, por sua vez, proporciona ao observador tão somente a contemplação sensível dos objetos por meio de suas sombras e imagens visíveis. Tais sombras e imagens, para Platão, são as aparências ou a suposição acreditada da existência desses objetos. O sol é a personificação do modo mais elevado de conhecimento, a intuição intelectual. Sol e fogueira representam, assim, na alegoria, os níveis extremos do conhecimento humano. Na República (2001, 508 b-c), Platão promove outra comparação com a imagem do sol: “é o sol, que eu considero filho do Bem, que o Bem gerou à sua semelhança, o qual Bem é, no mundo inteligível, em relação à intuição intelectual e ao inteligível, o mesmo que o sol no mundo visível em relação à vista e ao visível”. Para ele, o sol está para o mundo sensível assim como o Bem está para o mundo inteligível. A luz do sol ilumina os objetos sensíveis e deles faz projetar imagens e sombras. O sol é comparado à Ideia de Bem e, da mesma maneira que difunde luz sobre os objetos concretos (durante o dia), para que possam ser vistos pelos olhos, a Ideia do Bem difunde a intuição intelectual (momento da razão) sobre os objetos cognoscíveis. Segundo essa alegoria, a caverna mantém os prisioneiros em uma vida pautada pelo uso limitado da racionalidade, não fazendo, nesse sentido, diferenciação entre o ilusório e a realidade. Eles creem ter acesso ao conhecimento verdadeiro; contudo, levam uma existência regulada pelo engano. O percurso do prisioneiro em direção ao exterior da caverna representa a ascensão da capacidade cognitiva, partindo do mundo sensível em direção ao mundo inteligível. As etapas desse percurso podem ser relacionadas com os quatro modos de conhecimento apresentados pelo símile da linha (Lloyd, 2003, p. 186-187). O primeiro modo, a imaginação, corresponde à situação de aprisionamento e a observação das figuras na parede interna da caverna. Tudo aquilo em que o prisioneiro crê como coisas verdadeiras são apenas esboços pouco nítidos que os objetos sensíveis projetam diante dele. Após soltar-se de seus grilhões, o prisioneiro passa a ver o que está à sua volta de forma menos obscura. Ainda dentro da caverna, ele é capaz de ver a forma dos objetos sensíveis iluminados pela luz da fogueira; assim, ele percebe, por meio da faculdade da crença, que aquilo que estava sendo projetado na parede não é a realidade das coisas, mas a sombra de objetos que possuem formas, dimensões, cores, etc. Essas duas etapas do conhecimento sensível se dão dentro da caverna. A luz que ilumina os objetos é fraca, provém do fogo e, apesar de mostrar muitas informações sobre os objetos concretos, não pode revelar a essência dos mesmos. Embora o prisioneiro ainda não tenha discernimento sobre o que existe lá fora, pois ele ainda não viu os objetos sob a

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iluminação do sol, ele é capaz de formular hipóteses e presumir algo a respeito. Temos, assim, o modo de conhecimento discursivo. Ao caminhar em direção à entrada da caverna, a luz externa (do dia, solar) passa a incomodar a sua visão, a ponto de, momentaneamente, cegá-la. Para Platão, a luz do sol representa a intuição intelectual e confere ao sujeito a possibilidade de conhecer os objetos, ou ainda, vê-los por meio dos olhos da alma. O conhecimento discursivo e a intuição intelectual são etapas cognitivas que se dão fora do ambiente da caverna. Para Platão, existe uma distinção epistemológica muito clara entre a percepção do que está dentro e do que está fora desse espaço. Logo em seguida à sua saída da caverna, esse prisioneiro se depara com objetos sensíveis iluminados pela luz do sol, mais claros e contrastados do que quando iluminados pela fogueira. Os objetos, animais e plantas, são agora apresentados em toda sua nitidez e vivacidade. O prisioneiro percebe, assim, que o que viu até então foi um esboço da realidade formado por sombras e pela iluminação insuficiente de tais objetos. Fora da caverna, os objetos passam a ser revelados, em toda sua intensidade, pela luz que emana do sol. Essa luz solar, da mesma maneira que a intuição intelectual (proveniente da Ideia do Bem), são a causa ou fonte de todo o nosso conhecimento científico.

3 – Sentido do percurso educativo proposto na República

Na República, Platão propõe procedimentos pedagógicos que se articulam sob a forma de um percurso educativo. Tais procedimentos constituem-se de etapas, com início, meio e fim; que, por sua vez, confundem-se com aquilo que foi anteriormente apresentado pelo esquema da linha segmentada. Trata-se, pois, de um percurso que se realiza gradualmente, passo a passo, partindo de um estágio primitivo do conhecimento humano, situado no âmbito das impressões sensíveis, atravessando o campo da moralidade e se deslocando em direção à finalidade última do processo educativo: a plena formação intelectual. O início do percurso educativo contempla os aspectos sensoriais – a aísthesis, termo grego que dá origem à palavra estética – e refere-se à percepção pelos sentidos. Nessa primeira etapa educativa, todos os cidadãos pertencentes ao conjunto geral da comunidade deverão ser instruídos de modo a melhor desenvolverem sua capacidade de percepção sensível. Platão considera que tal faculdade de sentir – a sensibilidade – pura e simplesmente, não é uma qualidade que diferencia humanos e animais, haja vista que o tato, o olfato, a visão, a audição e o paladar não são instrumentos exclusivamente nossos, mas, também, dos seres irracionais. Platão

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acredita, no entanto, que depurando o aparato sensível humano, poder-se-ia verificar nos objetos sensíveis algum resquício da Ideia ou do conhecimento puro que o originou. Além disso, tomando contato com esse objeto, seria possível, inclusive, retomar, por meio da percepção sensorial, os elementos de uma moralidade originária, isto é, própria e apriorística transmitida pela imagem desse objeto. Esse procedimento fica melhor evidenciado quando nos damos conta de que, observando ou ouvindo (sendo afetados sensivelmente) os exemplos oferecidos pela cultura, tais como a imagem dos heróis ou os relatos da poesia, poderíamos ser influenciados pela moralidade implícita neles. Retomando a questão dos sentidos, todos os indivíduos, assim como outros seres não humanos, dispõem de um aparato sensitivo mediador entre a sua percepção (relativa ao indivíduo, sujeito) e o que está fora dela (o mundo que o cerca). Interessa-nos, aqui, examinar o sentido da educação humana e, não, o adestramento dos animais; contudo, para o filósofo, há que se partir da condição imposta pelo corpo à alma, condição humana esta que se configura como nível mais elementar e primitivo, de modo a mostrar que não estamos tão distantes dos seres irracionais. Segundo definições utilizadas por Platão em alguns de seus textos, é a capacidade cognitiva aquilo que nos diferencia dos demais; nós, os “bípedes implumes”, “detentores da arte política”. No Teeteto, o filósofo diferencia os homens dos animais no que concerne à faculdade cognitiva. Logo, desde o nascimento, tanto os homens como os animais têm o poder de captar as impressões que atingem a alma por intermédio do corpo. Porém, relacioná-las com a essência e considerar a sua utilidade, é o que só com o tempo, trabalho e estudo conseguem os raros a quem é dada semelhante faculdade (Teet., 1973, 186 b-c).

Dessa forma, o tipo de instrução inicial não deve ser de caráter sofisticado. O mesmo deve acompanhar os limites cognitivos humanos. Por meio da apreensão sensível, nos é permitida, somente, uma compreensão restrita, parcial e indireta da realidade. A eikasía, enquanto faculdade rudimentar do conhecimento, apenas tateia superficialmente as realidades inteligíveis, ou melhor, as imagina. O corpo, por seus dispositivos sensitivos, atua nessa mediação entre os objetos do mundo sensível e a alma. Para Platão, esse tipo de conhecimento sensível não é da mesma ordem racional que o conhecimento inteligível. A apreensão dos objetos sensíveis pelos sentidos proporciona um saber acreditado, fundamentado na dóxa, sem a devida correspondência direta para com o objeto real; por isso, inferior à epistéme. Além disso, a apreensão dos objetos sensíveis – considerada falha por Platão – limita-se ao particular, ao efêmero e ao circunstancial, pois está relacionada ao modo como o indivíduo percebe o mundo. Somente por meio da contemplação

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intelectual dos objetos inteligíveis, ou seja, por meio das Ideias, é que o conhecimento verdadeiro será passível de verificação em sua realidade ontológica mais elevada. Essa contemplação não pode ser sensível, visto que os sentidos não podem contemplar tal realidade. O autêntico saber não é algo que pode ser impresso externamente na alma, mas algo que lhe é latente, já está inserido nela. Esse tipo de conhecimento só pode se dar mediante anámnesis, ou reminiscência. (Brisson; Pradeau, 2010, p. 65-66). O percurso educativo é melhor evidenciado quando retomamos aquilo que já foi exposto anteriormente em relação à alegoria da caverna e à linha segmentada. Essas duas passagens da República exprimem, com propriedade, o sentido de linearidade e de gradatividade da formação proposta por Platão para a aristocracia do Estado. Ambas tratam da hierarquização do conhecimento, da clareza ou obscuridade de seus objetos cognoscíveis. Os objetos do mundo sensível estão, pois, relacionados à aísthesis e os objetos do mundo inteligível, vinculados à anámnesis. Contudo, a compreensão do sentido do percurso educativo extrapola o caráter epistemológico, posto que, aquele trata de questões referentes às faculdades do conhecimento e não pode ser explicitado exclusivamente por meio de critérios da cognição e da teoria do conhecimento; por isso, ele deve incorporar o elemento humano nessa compreensão. Conforme mencionamos anteriormente, é para os problemas do Estado que o empreendimento educativo deve voltar-se, isto é, todo o esforço de formar os cidadãos deve ter como objetivo último solucionar ou dissolver tais embaraços, especialmente, com relação à atuação dos governantes. Na República (2001, 369 b), o Estado nasce a partir de carências individuais concretas e materiais. Há, para Platão, um gradual acúmulo de necessidades fundamentais, de caráter sensível, a serem supridas pelas estruturas sociais e pelas atividades desempenhadas por seus cidadãos. A reunião de indivíduos, em torno de uma sociedade primária, teria, por função, num primeiro momento, proteger tais sujeitos das ameaças externas e prover essa comunidade de alimentos para sua subsistência. Entretanto, esse agrupamento primário, ao longo do tempo, buscou organizar-se de maneira cada vez mais complexa, a ponto de instituir, para si, a necessidade de um gerenciamento político mais elaborado. Para além das funções subalternas, tais como a produção de bens materiais e a defesa desse espaço, há, também, a figura daquele que exercerá o comando de todo esse sistema – nosso já conhecido filósofo-governante. Nesse sentido, a educação, ou o intento de formar e conformar os indivíduos para o desempenho de seus papéis numa sociedade complexa, aparece como mais uma necessidade incrementada no interior dessa comunidade política. A estruturação das classes sociais, bem como o respectivo cumprimento de suas

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funções políticas – com especial atenção ao papel do governante – é, para Platão, um dos motivos principais da atividade educativa. Os problemas relativos ao funcionamento do Estado são de caráter concreto, quer dizer, encontram-se dispersos nos embates e na desorganização do mundo sensível. Tais problemas permeiam o espaço corruptível e, embora a solução deles esteja situada numa esfera inteligível, é para a concretude que a educação se volta. O Estado concebido na República é pautado por critérios de seleção e classificação rigorosos. Esse Estado é dividido por classes sociais hierarquizadas, que, por sua vez, receberiam dele uma educação pautada em dois aspectos fundamentais: o primeiro deles consiste na seleção de um conteúdo específico e o segundo aspecto consiste na educação voltada para uma determinada idade. Apesar de Platão estabelecer regras para a formação dos indivíduos e das classes, bem como uma série de restrições sobre o conteúdo e a forma daquilo que a poesia deve abordar ou não, devemos considerar tal postura mais como um conjunto de preceitos e recomendações do que, propriamente, uma proposta inflexível sobre como se deve educar essa comunidade. O Estado, imaginado pelo personagem Sócrates, na República (2001, 376 e), conforme ele próprio menciona, é um processo em construção, “a invenção de uma história”. Por vezes, em algumas passagens dos diálogos, notamos que o tom da narrativa platônica assume um caráter imperativo; no entanto, de uma maneira geral, o discurso filosófico propõe ilustrar mais o universo das possibilidades para o êxito do Estado e da convivência entre seus cidadãos, do que impor as condições para lograr tal benefício. Nesse ponto, insistimos que Platão sugere alguns procedimentos pedagógicos, isto é, conselhos pautados em virtudes, como sabedoria e prudência, especialmente, que visam atuar ou exercer a atividade de educar as crianças, os jovens e os adultos. Boa parte desses conselhos leva em consideração a adequação do conteúdo à idade, bem como a classe social e a função a ser desempenhada por cada um desses sujeitos nessa sociedade. De acordo com a idade e com a classe, serão estabelecidos conteúdos educativos apropriados ao público. Além disso, existe ainda a preocupação quanto ao interesse das crianças pelo aprendizado. Para Platão, as crianças não devem ser coagidas aos estudos, pois, diferentemente do preparo físico, a educação da alma não admite a assimilação da cultura ou das virtudes por meio da força, assim, é necessário empreendê-la com naturalidade e, até mesmo, com prazer. (...) toda a iniciação prematura na cultura espiritual tropeça com um obstáculo enorme: a falta de interesse da criança em aprender. Esta falta de interesse não se pode combater pela coação, pois não há nada de mais oposto à essência profunda da cultura livre que o aprender pelo medo servil a um castigo. A coação pode empregar-se nos exercícios físicos, pois não lhes entorpece a eficácia, mas o saber imposto à alma não adere a ela (Jaeger,

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2001, p. 915).

Platão reconhece os limites cognitivos, físicos, emocionais e intelectuais dos educandos e, em função disso, estabelece uma divisão das etapas educativas. Ele considera, por exemplo, que às crianças devem ser ministradas disciplinas mais aprazíveis, mediadas por imagens; ao passo que, para o público adulto, tal conteúdo deve privilegiar o desenvolvimento intelectual. Os momentos iniciais da educação estão submetidos aos aspectos cognitivos da idade infantil. As etapas do conhecimento serão relacionadas à faixa etária dos educandos ao longo do processo pedagógico. Assim, a infância se configura como a fase decisiva na educação do cidadão, pois, nessa etapa, o espírito do educando encontra-se mais propenso a ser moldado de acordo com o tipo de educação que lhe for conferida. A infância é um degrau fundador na vida humana, a base sobre a qual se constituirá o resto. Como veremos, a educação da infância tem projeções políticas: uma boa educação garante um cidadão prudente. Esse primeiro degrau não tem características próprias muito definidas, está associado à possibilidade. É certo que há naturezas mais dispostas que outras para a virtude. Mas também é verdade que uma boa educação pode corrigir uma má natureza e que uma educação inadequada faz estragos nas melhores naturezas (Kohan, 2003, p. 17).

A maturidade é o período em que o cidadão, depois de adulto e moldado pela instrução moral recebida ao longo da juventude, tomará contato com uma educação de caráter intelectual, capaz de desenvolver sua racionalidade. Essa última é, segundo Platão, o tipo de educação que, efetivamente, atuará na alma como fator de conversão desta para a contemplação dos objetos em sua essência. Trata-se, assim, não da etapa propedêutica, a qual abarca a música e a ginástica, mas da propaideia, isto é, das ciências dos números ou das matemáticas. Segundo Jaeger (2001, p. 897), a ginástica refere-se ao mundo do que nasce e do que morre, ao florescimento e à decadência e a música limita-se a produzir na alma um ritmo e uma harmonia, mas sem lhe infundir nenhum saber.

Será por meio da educação dialética, o coroamento da paideia platônica, bem como por meio da prática desse estudo, que o percurso educativo será encerrado. É notável a natureza evolutiva e hierárquica dessa educação (enquanto percurso) profundamente aristocrática. Assim sendo, o percurso educativo pode ser compreendido como uma sucessão linear e gradual de estágios que visam a formação do filósofo para o comando de todas as atividades do Estado. O sentido desse percurso não está dado de forma direta na República; encontra-se disperso no corpo do diálogo. Temos, nas passagens que tratam da linha segmentada e da alegoria da caverna, bem como na classificação etária dos educandos (discutidas

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anteriormente), subsídios que fundamentam sua orientação e finalidade. A primeira fase de formação dos educandos será precedida pela instrução geral, a qual será ministrada pelo Estado a todas as crianças que ainda não tenham completado os sete anos de idade. Somente os educandos selecionados para os estudos propedêuticos, isto é, os aspirantes à classe dos guardiões, receberiam esse tipo de educação intelectual. Como comparação, podemos situar essa fase educativa como a percepção das imagens pelo prisioneiro dentro da caverna, bem como a primeira etapa da faculdade do conhecimento na linha segmentada, a eikasía. Tais crianças e jovens (dos sete aos vinte anos de idade), assim como os prisioneiros imobilizados, comportar-se-iam como ingênuos espectadores de imagens. Em vez de compreenderem a essência das coisas, dariam créditos às aparências sensíveis, aos fantasmas ou aos simulacros, isto é, a tudo aquilo que mantém relação com os fenômenos do mundo sensível (phainómenon). As sombras projetadas na parede da caverna já seriam, por si mesmas, suficientemente convincentes para essas mentes despreparadas e ingênuas. Para Platão (Rep., 2001, 596 e), essas imagens são aparências desprovidas de existência real, isto é, são objetos do mundo sensível que não possuem uma essência própria. São cópias de outras cópias, são representações sensíveis que a faculdade do conhecimento humano mais primitiva, a imaginação, é capaz de perceber e acreditar (depositar fé). Com o passar dos anos, o aparato cognitivo da criança vai se aperfeiçoando e sua capacidade sensitiva reage de forma mais apurada aos estímulos sensíveis. Ainda nessa fase do conhecimento, a educação encontra-se submetida à aísthesis e se dá de acordo com as possibilidades desse indivíduo em perceber o mundo sensível. Na alegoria, é esse o momento em que o prisioneiro liberto de seus grilhões enxerga os objetos do interior da caverna. Mesmo sem realmente conhecê-los, ele já é capaz de visualizar os objetos que estão à sua volta. A luz da fogueira ilumina os objetos, exibindo, parcialmente, suas formas. Nessa etapa educativa, a alma das crianças e dos jovens, assim como os prisioneiros na alegoria, está atada aos grilhões sensíveis do corpo. O contato da alma com o mundo material se dá pelos órgãos sensitivos e, para que esses educandos possam prosseguir em seus estudos, será necessário, antes, aperfeiçoarem esse aparato cognitivo. Os discípulos podem visualizar, ouvir ou tocar os objetos sensíveis; mas não conseguem compreender nada para além de sua materialidade. Depositam crença, pístis, não mais nas figuras, nos fantasmas ou nas sombras projetadas no fundo da caverna; porém, nos próprios objetos materiais. Podemos relacionar essa fase sensorial educação aos estudos da ginástica, período de formação do corpo, o qual vai dos dezessete aos vinte anos. O princípio de saída da caverna, isto é, o momento em que o prisioneiro toma os

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primeiros contatos com os objetos iluminados pelo sol, equipara-se ao momento inicial do processo de formação dos governantes. Nessa fase, a qual se alonga dos vinte e um aos trinta anos de idade, os jovens guardiões tomam os primeiros contatos com um tipo de educação de caráter abstrato, a propaideia. Eles ainda não ingressaram na classe dos governantes e, para que isso possa vir a acontecer, terão que percorrer um longo e árduo caminho até merecerem o título de filósofo-governante. Embora Platão já antes se tivesse pronunciado contra a concentração dos estudos filosóficos num período de poucos anos e na primeira mocidade, isto não quer dizer que ele renuncie à pretensão de a formação intelectual do homem começar em tenra idade. É logo na própria infância que o ensino das ciências matemáticas, a propaideia, deve começar (Jaeger, 2001, p. 915).

A idade recomendada por Platão para os estudos matemáticos é a dos vinte aos trinta anos de idade, de modo que se prolongaria por um período de, aproximadamente, dez anos (Rep., 2001, 498 a). Contudo, por força da necessidade ou mesmo pela importância dos estudos dialéticos na vida do filósofo, o início das atividades intelectuais pode ser antecipado. A formação matemática pretende conferir a esses jovens os instrumentos intelectuais necessários para a primeira abordagem abstrata sobre os objetos. Traçando um paralelo entre a alegoria, o símile da linha e a educação; a luminosidade solar atua sobre os objetos sensíveis do mesmo modo que as ciências matemáticas sobre os objetos inteligíveis. A luz do sol ilustra aquilo que Platão denomina por conhecimento discursivo ou diánoia. Os objetos que o sol ilumina são comparáveis aos números e às formas geométricas. Assim, a luz do sol, ao iluminar os objetos sensíveis, revela neles seus contornos, cores e formas de maneira clara e objetiva. Ainda não é possível aos discípulos ver a essência dos objetos, embora possam fazer uso dos meios adequados, como é o caso das hipóteses matemáticas, capazes de ordenar tais objetos sensíveis segundo parâmetros racionais. Fora da caverna, os objetos podem ser melhor compreendidos pela faculdade do conhecimento discursivo. Essa etapa marca a passagem da percepção sensível para a investigação racional, superior e inacessível àqueles que não possuem condições cognitivas. Na etapa da educação dialética, as representações sensíveis, as hipóteses matemáticas e toda a gama de intermédios entre o sujeito e a essência dos objetos seriam descartadas. O discípulo contaria, unicamente, com a intuição intelectual, a nóesis, como guia epistemológico. Para Platão, somente alguns poucos discípulos teriam capacidade de prosseguir nos estudos dialéticos (dos trinta aos trinta e cinco anos de idade), pois, mesmo muitos daqueles que obtiveram formação pelas ciências matemáticas, não necessariamente estariam habilitados para uma formação puramente abstrata. Esses, de acordo com Platão,

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permaneceriam ocupando a função de guardiões – guardiões-mestre. Na alegoria da caverna, trata-se do momento em que o prisioneiro, já plenamente adaptado às condições de luminosidade, encontra-se capacitado a olhar diretamente para o sol, sua retina já estaria acostumada à luminosidade excessiva das Formas inteligíveis. O sol, na alegoria, é a representação da própria Ideia de Bem (Agathón); metáfora platônica para o que há de mais perfeito e excelente: “a essência do Bem é o objeto da ciência mais elevada” (Gobry, 2007, p. 11). É para o Bem que a visão inteligível do filósofo governante deve estar orientada. Além dos cinco anos dedicados aos estudos dialéticos, Platão recomenda para seus futuros governantes, a experiência da prática da dialética por mais um período de quinze anos. Se o caminho para a aquisição das virtudes populares é árduo; será, ainda, mais dificultoso o desenvolvimento da virtude intelectual, da sabedoria, na alma daqueles que almejam o cargo de governante. A educação é o único meio de ascensão dos indivíduos ao governo. Somente os melhores e mais bem preparados teriam acesso ao comando do Estado e os que não conseguissem alcançar essa teleologia seriam incorporados (aproveitados) em funções menos nobres. O processo de formação humana é comparável ao processo de saída do prisioneiro de dentro da caverna. A alegoria é, por conseguinte, uma metáfora dessa formação. O percurso do prisioneiro é similar ao dos educandos. A execução da função de governo é comparável à tarefa do prisioneiro, que, após ter visto as coisas claramente iluminadas pelo sol, retorna à caverna para libertar seus antigos companheiros. Para isso, serão necessários muitos anos de estudos e de prática da dialética, tudo isso antecedido por outros anos de preparação sensível e moralização da alma no decorrer da infância e da juventude. Assim, o percurso educativo é o esforço pedagógico que se prolonga, como uma linha, ao longo de toda uma vida, em benefício de retirar as mentes de escuras cavernas.

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CAPÍTULO II: Estatuto ontológico das imagens

O diálogo Crátilo nos apresenta uma cena em que Platão expõe, de maneira pontual e didática, a capacidade da imagem de produzir (ou induzir) em seu espectador o engano na alma. Esse engano, pois, leva em consideração o grau de simetria entre a imagem e o objeto que ela representa. Na passagem referida, Sócrates e Crátilo discutem a ontologia das imagens enquanto representações mais ou menos parecidas (simétricas) com o objeto ao qual se referem (modelo). Sócrates, grosso modo, quer saber de Crátilo se sua imagem (uma pintura idêntica) seria da mesma ordem ontológica de sua pessoa (modelo dessa pintura). O problema, tal como colocado no texto, remete à seguinte pergunta: a imagem e seu objeto compartilham ou não de uma mesma e igual realidade? Ou ainda, eles (imagem e objeto), por mais semelhantes, pertencem ao mesmo plano ontológico? (...) se fossem postos juntos dois objetos: Crátilo e a imagem de Crátilo [Kratylos kaí Kratylos eikon], e uma divindade não imitasse apenas a tua figura e tua cor, como fazem os pintores, mas todas as entranhas iguais às tuas, emprestando-lhe o mesmo grau de ductilidade e calor, além de movimento, alma e raciocínio, tal como em ti, em uma palavra: tudo exatamente como és, e colocasse ao teu lado essa duplicata de ti mesmo: tratar-se-ia de Crátilo e uma imagem de Crátilo [eikon Kratylon], ou de dois Crátilos [dyo Kratyloi]? (Crát., 1973, 432 b-d).

No entanto, Crátilo parece ignorar que uma imagem, por mais fiel e simétrica que ela seja em relação ao objeto representado, é sempre uma imitação. Da mesma forma, ele não leva em consideração o problema dos universais e da multiplicidade. Um objeto (modelo, Ideia, paradigma) é Uno, universal, necessário, imutável; as imagens, por sua vez, são o contrário disso. Para um mesmo objeto, é possível uma infinidade de representações mais ou menos simétricas a ele; imagens podem ser idênticas umas das outras. Para Crátilo, tratar-seia (erroneamente) do mesmo ser duplicado: dois Crátilos e não apenas um, acompanhado de sua exímia reprodução. Esquematicamente, teríamos a seguinte situação: Cimagem = Cobjeto → 2C. Isto é: Crátilo representado, imagem (Cimagem), estaria, segundo essa falsa compreensão, plenamente identificado à pessoa de Crátilo (Cobjeto); resultando, assim, em dois Crátilos (2C) de uma mesma realidade ontológica. Para Platão, é a verossimilhança, com sua verdade plausível e admissível, a causadora da ilusão e do engano. Os profissionais do engano, apáte, tais como os pintores, escultores, poetas e sofistas (dotados de um virtuosismo da técnica mimética), seriam capazes de confundir até mesmo o observador mais atento. Boa parte do Livro X, da República, tratou

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desse tema; além dele, outros diálogos e passagens também nos serviram como uma espécie de advertência às artimanhas desses profissionais da ilusão. Para Platão, cada objeto, coisa ou ser é dotado – por seu criador – de uma essência una e imutável que o distingue dos outros seres. Essa característica ontológica é somente de Crátilo e de ninguém mais. Assim, o ser de Crátilo não pode ser duplicado, pois só existe um Crátilo, verdadeiramente real, e sua imitação, bem ou mal executada, é apenas uma imagem. O diálogo toma sequência pela seguinte fala de Sócrates: Como vês, amigo, precisamos não somente procurar um critério de verdade para as imagens, diferente do que há pouco nos referimos, como também na afirmativa de que a imagem deixa de ser imagem, se algo lhe for acrescentado ou subtraído. Ou não percebes o quão longe estão as imagens de possuir todas as propriedades originais que elas imitam? (Crát., 1973, 432 c-d).

Percebemos, nessa cena, que o estabelecimento de critérios ontológicos para a imagem é apontado, pelo próprio Platão, como uma necessidade impreterível. É preciso, assim, assentar o sentido da imagem num terreno sólido, firmado na ontologia; depois disso, será possível tratar dela e de todas as suas implicações, de forma segura e clara. Dito isso, seguiremos com nosso propósito de investigar o estatuto ontológico das imagens, buscando parâmetros que esclareçam e lancem luz sobre o tema. Talvez, a pergunta mais importante e urgente a ser respondida, neste capítulo, seja a seguinte: O que é a imagem? Seguida, imediatamente, por outra: qual o grau de proximidade entre a imagem e o Ser, ou ainda, qual sua medida ontológica? Adiantamos que tais questões, apesar de serem objetivas e diretas, não são fáceis de serem respondidas. Além disso, uma resposta contundente do tipo: todas as imagens são isto ou as imagens dizem exatamente aquilo! não seria honesta de nossa parte. A imagética, mesmo vista pelo recorte platônico, é, ainda assim, muito ampla, profunda e por diversas vezes conflitante. Platão, em algumas ocasiões de seus textos, se posicionou a respeito do tema. Dentro do conjunto de sua obra, podemos encontrar fragmentos que nos orientam para a obtenção de respostas para as duas questões levantadas; no entanto, não podemos fazer afirmações categóricas; mas, tão somente, delimitar melhor esse recorte. A imagem é algo demasiadamente amplo, fluido, intermediário; ampara-se em elementos não racionais e não objetivos (religiosos e metafísicos, por vezes) para validar-se. É, de certo modo, frequente a aparição do termo “imagem” nos escritos platônicos. Muitas vezes, aquilo que se traduziu do grego para as línguas modernas e se apresenta nos textos como a palavra “imagem” não designa exatamente a mesma coisa. Essa tradução da

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palavra imagem leva em consideração alguns elementos, dentre eles: a polissemia dos termos gregos e a adequação da palavra dentro de um contexto específico. Ao final do Livro VI, da República (2001, 509 e-510 a), em nossa já conhecida passagem do símile da linha segmentada, Sócrates denomina por imagens (eikonas): “em primeiro lugar, às sombras [skiá]; seguidamente, aos reflexos nas águas [hýdasi phantasmata], e aqueles que se formam em todos os corpos compactos, lisos e brilhantes [phaná], e a tudo o mais que for do mesmo gênero”. Logo, no início do Livro VII, dessa mesma obra, Platão demarca qual deveria ser o itinerário visual do prisioneiro, “se [ele] quisesse ver o mundo superior” que está fora da caverna. Certamente, em “primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens [eidola] dos homens e dos objetos, refletidas na água, e, por último, para os próprios objetos”. Ao longo deste processo, gradualmente, o prisioneiro deve acostumar-se com a luz, de modo que “seria capaz de contemplar, não já a sua imagem [phantásmata] na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar” (Rep., 2001, 516 a-b). Nesse mesmo diálogo, os usos para a palavra imagem e congêneres apontam para outros termos, tais como: “imagem do caráter bom [agathón eikona êthos]”; “pintura de seres vivos [eikosi zôon]” e “imagens do mal [eikosi kakías]” (Rep., 2001, 401 b). Na passagem: (Rep., 2001, 487 e), Maria Helena da Rocha Pereira traduziu por “metáfora” a junção dos termos: eikonos legoménes, cujo significado literal poderia ser descrito como: imagens faladas. O trecho é assim apresentado: “A pergunta que fizeste – esclareci – carece de uma resposta em forma de metáfora”. Por sua vez, tanto Jacó Guinsburg (Rep., 1965, 487 e) como Carlos Alberto Nunes (Rep., 2000, 487 e), traduziram a composição dos termos eikonos legoménes, dessa mesma passagem, como “imagem”. Ao comparar as traduções dos autores citados anteriormente, teríamos, respectivamente, “Formulas uma questão a que só posso responder por uma imagem” e “Formulas uma pergunta, lhe falei, que só poderá ser respondida com uma imagem”. Sem querer entrar em um preciosismo semântico ou num rigor terminológico – que não é a intenção desta pesquisa – precisamos ter clareza de que a compreensão das imagens em Platão passa pela interpretação do contexto do diálogo. Por isso, mais importante do que o emprego estrito do termo “imagem” é a situação ou circunstância em que ele, ou um correlato, aparece em cena. A construção dramatúrgica e o movimento do diálogo dizem muito sobre isso. Assim, se a palavra mais adequada é metáfora ou imagem, tal uso é secundário; o essencial é que Sócrates está prestes a responder a pergunta feita pelo personagem Adimanto, não de forma discursiva racional, mas com o uso de uma alegoria (argumentação mítico-

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religiosa). Em geral, o conjunto imagético que permeia os escritos de Platão está associado, fundamentalmente, a dois termos gregos: eidolon e eikon. Eidolon deriva do substantivo eidos, esse que, no seu sentido original, significava: aspecto, forma, aparência. O acréscimo do sufixo -olo, -ωλο, deu origem ao termo eidolon: imagem com um ar de irrealidade ou reflexo relacionado à ilusão e ao engano (pseudos). Eidolon gera os termos: eidolikós (simbólico ou imaginário); eidolopoiía ou eidolopoiós (forma das imagens); eidololatria (idolatria). Os termos Eikon e eikonos significam: imagem ou representação, notadamente relacionadas à escultura e à pintura. Tais termos dão origem aos vocábulos: eikónion (o que reproduz ou representa algo) e eikonismós (descrição ou relato) (Chantraine, 1968, p. 316317; 354-355). Apesar de ambos os termos, eidolon e eikon, significarem, em línguas modernas, “imagem”, existem distinções ou nuances que os diferenciam e conferem, a cada um deles, bem como as suas variações, um sentido específico dentro dos escritos platônicos. Enquanto eidolon está associado a uma imagem fantasiosa (phantasía), imaginativa, irreal ou mesmo impossível, de caráter desproporcional ao objeto reproduzido; eikon corresponde à imagem documental, ao retrato fiel e verdadeiro ou a um reflexo especular (Azara, 1995, p. 242). A etimologia marca a diferença de valor entre os dois termos e permite a oposição entre eikon (cópia da aparência sensível) e eidolon (transposição da essência). Eikon e eidolon se diferenciam, também, não somente pelo objeto que representam, pois um mesmo objeto pode ser representado de formas diferentes, mas porque eles constituem modos de representação diferentes. Tais representações podem ser fiéis ou distintas da realidade do objeto e podem estar próximas ou afastadas de sua essência ontológica (Saïd, 1987, p. 310-311). O universo das imagens dentro do pensamento platônico é, como dissemos, muitíssimo vasto. Ele compreende desde as formas mais comuns de representação do objeto, pela pintura ou pelas artes visuais de uma forma geral, até os reflexos especulares e as sombras projetadas pela luz, por exemplo. Compreende, também, tudo mais que se refira à percepção visual humana. Fora desse conjunto visual imediato e inseridas no campo da imagem estão as expressões ou manifestações de nível psicológico e cultural, tais como o imaginário social e os conteúdos da memória coletiva. Além dessa amplitude referente aos tipos e elementos imagéticos, existe, ainda, uma infinidade de possíveis imbricações entre a imagem e seu meio cultural e religioso, além, é claro, das implicações dentro do campo político e educativo. O racionalismo de Platão utiliza-se do caráter mítico-religioso das imagens,

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especialmente, quando fundamentado no cânone da tradição poética. Vale lembrar que os mitos e as narrativas que remetiam ao nascimento dos deuses, suas cosmogonias, bem como a organização hierárquica de cada um deles no Olimpo, por exemplo, faziam parte desse conjunto de crenças religiosas pertencentes à vida política. É, nesse aspecto, uma religião do Estado, com divindades e motivações que constituem parte do modo de vida social. Somandose a esse caráter mítico, estão também os poetas e os sofistas e toda a carga cultural e política da época desse filósofo: o século V a.C. ateniense. Poetas, sofistas e adivinhos mágicos são personagens de seus diálogos, muitas vezes, cada um a seu modo, caracterizados como profissionais da imagem. Esse fluido e inconstante conjunto imagético complementa a racionalidade e dialoga com o rigoroso universo das Ideias, conferindo-lhe maior riqueza e profundidade. Em Platão, as imagens ocupam uma posição muito importante, elas constituem parte considerável do próprio movimento do diálogo platônico. Ademais, atuam, pelo poder persuasivo, como argumentos irrefutáveis dentro da obra, haja vista que, na quase totalidade dos casos, esses mitos são inventados ou apropriados por Platão em suas obras, de modo a dar sustentação ao seu texto. Nesse sentido, é importante lembrar que, em momentos de dificuldades e tensões dentro dos diálogos, quando a razão não é suficiente para expressar ou explicar algo, é ao mito e às alegorias ou a toda sorte de imagens que Sócrates ou o Estrangeiro de Eleia recorrem. Para Platão, existem determinadas regiões ou esferas humanas em que o método científico e a razão dialética não conseguem penetrar. São zonas cegas à racionalidade; por isso advém a necessidade dos mitos como maneira de explicar, imageticamente, aquilo que não foi possível fazer por meio da ciência. Platão, ao que tudo indica, está seguro da existência dessas regiões em que a razão não é ou ainda não foi capaz de atingir. Eis, aqui, uma das influências da religião na vida particular, inclusive do filósofo. Essas regiões estão acima dos poderes demonstrativos da racionalidade e Platão as reconhece como verdadeiras, contudo, falta um fio racional que conduza a uma explicação convincente. Nisso, o mito é infalível, seu valor reside na possibilidade de interpretação, pois, ao mesmo tempo em que não dá uma resposta pronta e acabada, ele aguça a racionalidade com a abertura de novos vieses de interpretação. O mito promove uma oxigenação no discurso dando novo fôlego à razão. Os gregos o aceitavam não por acreditarem cegamente naquilo que eles próprios veiculavam; o mito não é uma narrativa literalmente verdadeira, mas um meio ou um canal de comunicação entre a razão e o desconhecido. Para além dessa qualidade discursiva do mito, tem-se, também, em favor da capacidade de convencer o interlocutor pelos aspectos

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religiosos, a potência da dúvida. Quando não estamos convictos de que a ciência é capaz de esclarecer fenômenos, o mito sobrepõe-se sobre esses pontos obscuros. O mito encobre, pois, essas zonas de incerteza, podendo ser mais agradável e prático crer nestes em detrimento da crença na ciência. Por meio dele, é possível recontar as coisas que sabemos que existem, mas que não somos capazes de compreender ou mesmo tolerar, por meio de uma demonstração científica (Guthrie, 1993b, p. 239). A investigação sobre o estatuto ontológico das imagens está dividida em três partes, são elas: 1) identificação das imagens como um modo mimético, isto é, a investigação se dirige à sua qualidade imediata de representar ou de imitar algo; 2) verificação nas imagens de seu modo conhecimento, de maneira que a investigação relaciona-se à condição da imagem de congregar, em si mesma, alguma espécie de saber ou informação, ou ainda, investiga a seguinte questão: as imagens possibilitam um tipo de conhecimento sobre algo? e 3) contemplação daquilo que denominamos “modo moralizador das imagens”, isto é, a capacidade de promover na alma a doutrinação para uma determinada conduta: as imagens veiculam, sustentam e propagam valores morais e virtudes sobre algo a alguém?

1 – Imagem como mímesis

Abordagens sobre a mímesis estão dispersas em muitos escritos platônicos; contudo, sua descrição sistemática aparece, com maior clareza, no diálogo o Sofista. Discutir o caráter imitativo das imagens não é a proposta principal desse diálogo, no entanto, é nele que o exame da arte mimética recebeu do filósofo sua melhor delimitação. O cerne do Sofista consiste na identificação de quem é esse profissional do saber, nas próprias palavras de Platão: “procurando saber e definir o que ele é” (Sof., 1972, 218 b). Assim, pergunta-se, principalmente, “o que é o sofista?” em detrimento de “o que é a mímesis?”. A elucidação da questão sobre o sofista passa, necessariamente, pelo tema da mimética, haja vista que a imitação é tida como sua principal técnica e, tal análise, segundo os critérios do método dialético da divisão, conduz para aquilo que Platão caracteriza como a “captura do sofista”. A busca pelas bases ontológicas da imagem no Sofista não é motivada pelo interesse artístico ou literário, ela, somente, visa desmascarar esse profissional mercenário dos saberes. Dentro do contexto do século V a.C., os sofistas exerciam múltiplas atividades intelectuais nas cidades-estados, notadamente, de cunho pedagógico – ensinavam a virtude, a

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retórica e a oratória aos jovens ricos. No entanto, nenhuma dessas atividades, pelo menos considerando a perspectiva de Platão, poderia ser considerada legítima do ponto de vista moral e epistemológico. Somente aos filósofos caberia, assim, a legitimação das práticas do conhecimento racional e da educação intelectual. O sofista não é um filósofo e isso o texto pretende deixar muito claro, visto que, no Sofista, o Estrangeiro de Eleia apresenta, inicialmente, seis definições para tal. As definições apresentadas surgem nessa ordem (Sof., 1972, 223 b-231 a): 1) Caçador interesseiro de jovens ricos, função assumida “em que se recebe dinheiro a pretexto de ensinar”. 2) Comerciante em ciências, visto “que negocia discursos e ensinos relativos à virtude”, 3) e, também, 4) Pequeno comerciante de primeira ou segunda mão; “desde que esse comércio se refira aos ensinos de que falamos”, sejam eles fabricados pelo próprio sofista ou adquiridos de outrem, 5) Erístico mercenário, o qual “recebe dinheiro, na arte da erística, da contradição, da contestação, do combate, da luta, da aquisição” e, finalmente, 6) Refutador de argumentos, o qual tem por intuito purificar “a alma das opiniões que são um obstáculo às ciências”. Cornford comenta que as cinco primeiras definições sobre o sofista estão vinculadas à aceitação de dinheiro como pagamento por serviços prestados. Esses serviços eram, notadamente, de ordem intelectual e moral. O sofista empreende uma caça aos jovens ricos, exaltando o virtuosismo de suas técnicas de persuasão por meio de demonstrações de oratória e retórica. O sofista anunciava e comercializava esse conjunto de saberes e de lições sobre a virtude, tal como uma mercadoria exposta em praça pública. Platão ilustra no Protágoras (1980, 317 c-319 a) a postura do sofista, vangloriando-se, junto a Pródico e Hipias (dois sofistas menores), de ser capaz de ensinar as virtudes para aqueles que pudessem pagar por elas. Platão denomina esse tipo de instrução, empreendida pelos sofistas, de doxopaideutiké, termo traduzido como “educação espúria”, por Cornford (s/d, p. 162-163); e como técnica “aparentemente instrutiva”, por Carlos Alberto Nunes (Sof., 1980, 223 b). A sexta divisão define o sofista como: a) refutador, segundo a tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa (Sof., 1972, p. 150); e b) “purificador da alma das fantasias, que são um obstáculo para o conhecimento”, segundo a tradução de Cornford (s/d, p. 166). Essa divisão se diferencia das cinco anteriores, dado o tom mais sério e amigável referindo-se à sofística. A refutação, enquanto técnica, visa purgar a alma e “afastar [dela] tudo o que há de mal, conservando o resto” (Sof., 1972, 227 d). Platão não considera a ação de expurgar a maldade como uma atividade de infusão de virtudes na alma, pois, segundo ele, essa ação não pretende incutir nada de bom e belo no indivíduo, mas eliminar o que há de mal, instaurando,

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de certa forma, o equilíbrio na alma. Conforme o próprio Estrangeiro reconhece (Sof., 1972, 230 e), a purificação é uma prática muito elevada para qualificar o sofista. Essa definição contrasta com tudo aquilo que foi mencionado antes no diálogo a respeito desse profissional. O paralelo estabelecido entre a purgação sofística e a catarse socrática torna-se, devido à semelhança entre ambas, inevitável. A técnica maiêutica também promove a refutação das opiniões, as quais impedem o acesso ao verdadeiro conhecimento, purificando a alma de sua corrupção sensível. Contudo, essa suposta comparação entre Sócrates e os sofistas é rejeitada, logo em seguida, pelo Estrangeiro: o sofista é um gênero escorregadio, difícil de ser capturado. Ele se esconde sob um véu filosófico. Se fosse possível tal analogia, ela seria, seguramente, da mesma ordem que a existente entre o lobo e o cão. O primeiro, um animal selvagem e bárbaro e, o segundo, doméstico e civilizado. Demarca-se, nesse mesmo sentido, a oposição entre aquela educação espúria e a educação moral – paideia. Para Platão, o tipo de instrução oferecida pelo sofista (o lobo) é não apenas desprovido de boas virtudes, mas contrário a elas. A descrição do sofista no Sofista, bem como em outros diálogos que abordariam esse gênero da sofística, é demasiadamente negativa e combativa. Platão está muito distante de uma posição de neutralidade. Sob o ponto de vista histórico, por exemplo, foram os sofistas que introduziram as mudanças e os avanços relativos à educação e à cultura intelectual. Reformularam a antiga paideia musical, fundamentada na poesia tradicional e na religião arcaica, conferindo-lhe um caráter enciclopédico, democrático e racional. A palavra sofista advém dos termos gregos: sophos e sophia, habitualmente traduzidos como sábio e sabedoria, empregados, desde os tempos mais antigos, para designar uma qualidade intelectual ou espiritual, ou seja, para assinalar uma determinada capacidade ou perícia sobre algo. Um construtor de navios em Homero é ‘experimentado em toda sophia, um cocheiro, um piloto de navio, um áugure, um escultor são sophoi cada um em sua ocupação. Apolo é sophos na lira, Tersites um caráter desprezível, mas sophos em sua língua; há uma lei em Hades (com intenção cômica) que todo aquele que superar seus companheiros artesãos em ‘uma das grandes e engenhosas artes’ terá privilégios especiais enquanto não chegar alguém que seja ‘mais sophos nesta arte’ (Guthrie, 1995, p. 31). A palavra sophistes, ‘sofistas’, é o nome do agente derivado do verbo [sophizesthai, praticar sophia] (...). Parece, contudo, que no século V a palavra começava a ser usada para escritores em prosa em contraste a poetas, quando a função didática veio a se exercer cada vez mais por esse meio (Guthrie, 1995, p. 32-33). Um sophistes escreve e ensina porque tem especial perícia ou conhecimento para comunicar. Sua sophia é prática, quer nos campos da conduta e política quer nas artes técnicas (Guthrie, 1995, p. 34).

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O incômodo de Platão em relação aos sofistas, também estaria relacionado ao receio quanto à função que desempenhavam na cidade, como peritos em saberes e no conhecimento racional. Esse fato parece, de alguma forma, perturbar Platão. O intelectualismo e o espiritualismo da sofística competiriam, talvez, pelo viés da racionalidade e da argumentação, com a atividade desempenhada pelos filósofos. Vale lembrar que, em alguns diálogos – tais como no Livro I, da República, no Górgias e no Protágoras –, Platão encena contendas mais acirradas entre Sócrates e Trasímaco ou Cálias, e entre Sócrates e Górgias ou Protágoras, apresentando estas de modo mais respeitoso. Aristófanes, em As Nuvens, por exemplo, descreve Sócrates como um inescrupuloso sofista e corruptor da juventude ateniense, acusação que lhe pesa na Apologia de Sócrates (1980, 18 b-d). O comediógrafo adiantou o teor do julgamento de Sócrates (em 423 a.C.) vinte e quatro anos antes de sua data de condenação. Além, é claro, da própria versão descrita por Xenofontes sobre um Sócrates mais moderado e comum. Diógenes Laércio, na obra Vida e doutrina dos filósofos ilustres, também identificou Sócrates como um sofista. Segundo o biógrafo dos filósofos, o método socrático, composto pela ironia e pela maiêutica, não se diferenciava muito das técnicas sofísticas, sobretudo a retórica e a oratória. Nesse aspecto, é possível que o fenômeno da sofística, contemporâneo a Platão, não apenas incomodasse o filósofo pelo efeito da competição, mas pelo da comparação. A aproximação entre os sofistas e os poetas é explicitada por Platão no Sofista. Ambos compartilham da mesma técnica mimética para convencer o espectador. A mímesis consiste na sétima e última divisão do gênero sofístico: o sofista é um imitador, um mimetes (Sof., 1972, 235 a). Chegamos, por fim, ao exame da técnica que confere poder de persuasão ao discurso sofístico; por meio dela, as palavras (amparadas pelas imagens) ganham maior força. As seis definições anteriores estabelecidas pelo método da divisão (diairesis), não foram suficientes para enquadrar o sofista e desvelar sua constituição ontológica. Não foi possível, assim, conferir-lhe uma unidade genérica; pelo contrário, a reunião ou agrupamento (synagoge) de elementos constituintes promoveu uma difusão, pela multiplicidade, em torno do ser sofístico. Para Goldschmidt (2002, p. 160-161), o “fracasso do método da divisão não pode ser imputado à dificuldade do assunto” e, ainda que a captura conceitual do ser sofístico não seja uma tarefa fácil, é preciso persistir no método. Tal dificuldade reside no “caráter mutável do produtor de imagens [eidolopoion]”. O método da divisão “dispersa seus resultados em uma multiplicidade de fórmulas que, todas elas, representam aspectos do sofista, imagens. Apesar

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da excelência do método, não conseguimos reduzir esse fantasma [phantasma] de aspectos diversos”. Por isso, a necessidade da unificação, ressalta o Estrangeiro de Eleia (Sof., 1972, 232 a). O raciocínio que conduz o diálogo ao exame da imitação goza dos seguintes passos: 1) A pretensão ao saber universal: o “sofista pretende dar, em matéria de contradição, um ensino universal”, 2) Para que venha a ser possível um ensino universal, deve existir, antes de tudo, a obrigatoriedade de “um saber universal”, pois só se pode ensinar aquilo que se sabe. Assim, o sofista deve, necessariamente, saber absolutamente “todas as coisas”, 3) Contudo, “não é possível que um homem saiba tudo”, pois o conhecimento do sofista – enquanto mortal, por mais vasto que seja, é limitado, 4) Se o sofista insinua ser dotado de um saber universal, ele está mentindo sobre tal domínio da sabedoria. “O sofista não é, portanto um sábio, mas: um imitador” (Goldschmidt, 2002, p. 160-161). A pretensão ao saber universal pelo conhecimento de “todas as coisas”: seres e objetos da natureza, “o mar, a terra e o céu, e os deuses e tudo o mais” (Sof., 1972, 233 e-234 a) foi devidamente refutada no diálogo, dada à impossibilidade do conhecimento total sobre todas as coisas. Assim, o que resta ao sofista é fingir sabê-lo. Esse aparente saber absoluto lhe é conferido por meio da técnica da mimética. O sofista não é capaz de produzir realidades, ele pode, somente, aparentá-las, já que “a imitação é, na verdade, uma espécie de produção; produção de imagens, certamente, e não das próprias realidades” (Sof., 1972, 265 a-b). É pela mimética que o sofista fabrica sua imagem particular da realidade, de forma a sustentar, sobre um abismo ontológico, sua fama de sábio. Essa fabricação de uma pseudo realidade colide com as pretensões platônicas da realidade verdadeira e ideal. O sofista passa a ser, na qualidade de imitador da realidade, um opositor e, até mesmo, uma ameaça ao racionalismo ideal de Platão. As imagens que produz são persuasivas e dotadas de um teor pragmático. O sofista é um mágico, um ilusionista da palavra. A mimética, sua arte (téckhne) por excelência, lhe confere o “poder prestigioso” de dominar todos os assuntos e persuadir os espectadores (Sof., 1972, 232 e-233 a). Platão (Sof., 1972, 235 b-236 c) divide a produção das imagens (eidolopoiiké téckhne) em duas partes: a arte da cópia (eikastiké) e a arte dos simulacros (phantastiké). A arte da cópia é um tipo de imitação que conserva a simetria ou as proporções do modelo imitado. A cópia mantém as dimensões originais, transferindo à imagem “suas relações exatas de largura, comprimento e profundidade, revestindo cada uma das partes das cores que lhe convêm”. Pode-se, assim, chamar de cópia (eikon) aquilo que é fielmente copiado do objeto (Sof., 1972, 236 a). O segundo tipo de produção de imagens, a arte dos simulacros, é o tipo mimético que

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não preza pela fidelidade simétrica entre imagem e objeto. Trata-se de uma cópia sem simetria, um espectro (phantasma) da realidade do objeto, uma simulação. Esse tipo de imitação é um simulacro da realidade, captando parte dos elementos da beleza em si mesma e depositando-a, parcialmente, na imagem. A imitação exibe, de forma deturpada, tais elementos aos espectadores, pois não preza pela fidelidade das proporções. Sendo assim, é assimétrica em relação ao objeto e sua beleza original. É inevitável uma comparação entre os sofistas, os poetas, os pintores e os artífices da imagem, de uma forma geral. A mimética parece ser a técnica utilizada por todos eles, sem distinção. Esses artífices pautam-se pelo engano e pela ilusão, por meio de um discurso imagético convincente, sendo capazes de persuadir o espectador por meio das imagens faladas (eidola legomena) – doces e aprazíveis aos ouvidos do vulgo. Essa potência persuasiva, que incita no público o fascínio e o encantamento, é o recurso técnico adotado pelos sofistas para mascarar as deficiências ontológicas de seu discurso. O discurso permite uma técnica por meio da qual se poderá levar aos jovens ainda separados por uma longa distância da verdade das coisas, palavras mágicas, e apresentar, a propósito de todas as coisas, ficções verbais, dandolhes a ilusão de ser verdadeiro tudo o que ouvem e de que, quem assim lhes fala, tudo conhece melhor que ninguém (Sof., 1972, 234 c).

Platão qualifica esse aspecto da mimética como uma “brincadeira sábia e graciosa”, em que o sofista estabelece uma espécie de jogo (paidiá) composto de imagens em palavras que entretém o observador e obtém dele vantagens. O sofista e, por extensão, os artistas de modo geral, são capazes de, por meio de uma única arte (a mimética) criar toda uma realidade aparente. Tal como a “técnica de pintar, ele poderá, exibindo longe os seus desenhos, aos mais ingênuos meninos, dar-lhes a ilusão de que poderá igualmente criar a verdadeira realidade, e tudo o que quiser fazer” (Sof., 1972, 234 a-b). Todo esse domínio das artes plásticas (em nosso sentido moderno), que consiste na produção das imagens, pertence ao gênero da atividade imitadora, a mimetiké. A mímesis se apresenta como uma demiurgia das imagens, uma atividade que fabrica ou produz imagens mais ou menos semelhantes às coisas. O produtor de imagens (eidolou poietes) é, também, um fabricante de imagens (eidolou demiourgos); ambos podem ser denominados de imitadores, mimetes. A mimética é, pois concebida no interior das técnicas produtivas, análoga à demiurgia divina, como atividade humana própria aos artistas produtores de imagens e aos sofistas produtores de discursos. As imagens que a arte divina produz estão refletidas na natureza como os reflexos nas águas, as figuras nos espelhos, as sombras e as visões oníricas; a arte humana produz tanto quanto pode imagens de imagens, sua inferioridade só se atesta, contudo, quando ela pretende fazer passar a imagem, a representação, qualquer que seja, pela própria coisa (Arêas, 1999, p. 83-84).

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Na República, Platão qualifica o poeta como um “criador de fantasmas”, pois ele é alguém que “nada entende da realidade, mas só da aparência”. Ele é um imitador, da mesma forma que o sofista quando se utiliza das imagens para fabricar obras que estão distantes da verdade. Seu discurso é similar ao dos sofistas e, embora faça uso da pintura, “convive com a parte de nós mesmos avessa ao bom senso, sem ter em vista, nessa companhia e amizade, nada que seja são ou verdadeiro” (Rep., 2001, 600 e). Essa identificação também é apropriada ao sofista, solidário ao poeta pela mesma técnica mimética que compartilham. Imitam, não somente a aparência dos objetos inanimados e dos seres, mas as virtudes e toda a sorte de valores morais. Podem imitar, tanto os bons valores quanto os maus, já que não há nenhum compromisso com a verdade, mas com uma beleza aparente. Segundo Platão, a principiar em Homero, todos os poetas são imitadores de imagens da virtude e dos restantes assuntos sobre os quais compõem, mas não atingem a verdade; mas, como ainda há pouco dissemos, o pintor fará o que parece ser um sapateiro, aos olhos dos que percebem tão pouco de fazer sapatos como ele mesmo, mas julgam pela cor e pela forma (Rep., 2001, 600 e-601 a).

Essas imitações não exprimem a realidade do Ser. Elas estão, aliás, três pontos afastadas da realidade primeira, sendo a imagem uma cópia de outra cópia (Rep., 2001, 597 e; 602 c). A imagem, “à maneira antiga de contar os extremos”, situa-se na última posição ontológica: 1ª) o objeto real, 2ª) os objetos concretos e 3ª) as imagens dos objetos concretos; por isso, se encontra a imagem três vezes afastada da Ideia do objeto. Por meio do exemplo prático das “camas e mesas”, Platão ensaia uma resposta para a pergunta: “o que é a mimese?” (Rep., 2001, 595 c-598 c). À cama, corresponde uma Ideia que lhe é própria – a Ideia de cama. O mesmo ocorre com “a mesa”, a qual possui como modelo inteligível a Ideia de mesa. O artífice natural (demiourgós) ou deus (théos) “executa cada um destes objetos olhando para a Ideia”, é com base na Ideia de cama e na Ideia de mesa que ele fabrica a cama real e a mesa real – únicas. Em seguida, o marceneiro (klinopoiós) organiza a matéria sensível (madeira) de modo a transformá-la em utensílios concretos e imperfeitos: as camas do quarto e as mesas da sala. O pintor (zográfos) produzirá uma imagem três vezes mais afastada da realidade da cama original e da mesa original e duas vezes mais afastada dos utensílios produzidos pelo marceneiro. Para Platão, existe uma única Ideia para diferentes coisas, sendo assim, são três os tipos de camas e mesas, de modo que cada uma delas possui seu grau ontológico particular. É preciso, aqui, insistir na distinção entre imitação matemática e imitação artística. As imitações matemáticas (a arte da cópia) reproduzem com maior fidelidade as formas originais do modelo, enquanto que as imitações artísticas (o simulacro) apenas remetem à verdade sem

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nenhum compromisso com a simetria, de modo que buscam, somente, a empatia do espectador pela beleza ilusória. Mesmo “que a imitação seja boa ou má, que ela se apoie sobre a ciência ou sobre a opinião – verdadeira ou falsa –, ela não produzirá jamais nada de equivalente ao modelo” (Goldschmidt, 2002, p. 15). O Sofista evidencia, de forma enfática, que as imagens imitam e que essa imitação é uma fraude intelectual e pedagógica empreendida pela sofística. A discussão em torno do caráter mimético das imagens entrou no diálogo como meio e não como finalidade. A mímesis, como arte produtora das imagens, é um elemento secundário dentro da encenação da tentativa de capturar o sofista pela verificação de sua técnica. Não obstante, para além do elemento dramatúrgico e do caráter imitativo, as imagens, mais do que promover imitações, desempenham, também, uma função cognitiva importante. A representação de um objeto possibilita, de certa forma e em determinado grau, o conhecimento sobre esse objeto. As imagens ultrapassam, assim, a esfera das imitações (cópia ou simulacro), compondo com outros elementos do conhecimento o sistema epistemológico platônico. Em princípio, parece aqui haver uma contradição de ordem cognitiva: extrair conhecimento bom e útil do falso. Se as imagens pertencem ao universo do engano e da ilusão, como é possível que elas revelem algum conhecimento verdadeiro? Além disso, supondo que sejam possíveis estes conhecimentos a partir das imagens, não estariam eles, desde sua gênese, plenamente comprometidos com a falsidade? A aceitação de que as imitações não são completamente falsas, mesmo que distantes em três pontos da realidade, é algo que o Estrangeiro de Eleia teve que admitir no Sofista. O Estrangeiro se vê obrigado a cometer um parricídio, isto é, refutar a tese de seu “pai intelectual”, Parmênides, e também “reconhecer a contragosto que, de alguma forma, o nãoSer é” (Sof., 1972, 240 c). Para Parmênides, tudo aquilo que pode ser pensado ou falado tem que necessariamente existir; enquanto aquilo que não existe não pode ser colocado em palavras e, nem sequer, pode ser pensado. Ser, pensar e falar pertencem à mesma ordem ontológica. O Ser existe e o não-Ser não existe. A admissão do caráter intermediário das imagens entre o existente e o não existente, a realidade e a falsidade, é aquilo que permite a compreensão do Ser sofístico. O sofista se esconde na arte da imitação, na obscuridade das imagens, e sua ontologia é similar àquilo que essa arte produz. Por isso, o discurso dos sofistas não pode ser efetivamente refutado por um dualismo parmenediano do tipo: a Ideia existe e a imagem não existe. As imagens existem como seres intermediários (múltiplos, mutáveis e destrutíveis) e estão inseridas entre a verdadeira realidade das Ideias e a falsidade absoluta do não-Ser. Amparar-se em Parmênides é permanecer engessado por esse dualismo e

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persistir numa caçada cega aos sofistas. Justamente por esse caráter intermediário das imagens, é que se faz possível o conhecimento imagético. Platão foi, ao longo da História da Filosofia, comumente identificado como o filósofo do dualismo: alma versus corpo, saber versus ignorância, bem versus mal, dentre outros conceitos adversativos. Tal oposição entre extremos é algo que fundamenta grande parte de seu pensamento filosófico, afinal, trata -se de uma visão ou interpretação da physis, comum em sua época, especialmente entre os primeiros filósofos gregos: quente versus frio, úmido versus seco, múltiplo versus Uno, dentre outros exemplos. Entretanto, seu sistema filosófico ultrapassa essa “dicotomia irredutível entre dois princípios religiosos, duas teorias ou dois estados de coisas” (Almeida, 2007, p. 165), vindo a contemplar, conforme podemos verificar em muitos dos seus diálogos (e, o Banquete é um deles), o incessante retorno à noção de meio, passagem, intermédio, liame, entremeio, e demais palavras que dão corpo ao termo grego metaxy. A mímesis, muito além de produzir cópias e simulacros, possibilita o conhecimento (em determinado grau de veracidade) sobre o objeto que imita. Ela está, pois, mais próxima de uma dessas denominações de metaxy do que, propriamente, deslocada para um ou outro extremo epistemológico. Esse conhecimento, nem de todo falso, mas também não completamente verdadeiro, comporta-se como uma espécie de daímon, isto é, como um Ser intermediário entre duas realidades: o falso e o verdadeiro.

2 – Imagem como dóxa

Dentro da epistemologia platônica, as imagens pertencem à categoria da dóxa. A dóxa opõe-se à epistéme, da mesma forma que a imagem opõe-se ao objeto real. Nessa medida, as imagens poderiam ser consideradas como opiniões imagéticas sobre seus modelos originais. As imagens constituem modos de conhecimento, situados na esfera do sensível, capazes de apreender somente os objetos do mundo concreto. Elas são os elementos que compõem a parte inicial do processo cognitivo, embora não possibilitem a ascensão direta ao mundo das Ideias, dada a condição limitada da percepção humana. As imagens contribuem de forma decisiva para o alcance do puro conhecimento, de modo que é certo afirmar que precisamos delas para fazer essa mediação entre a percepção sensível e o mundo das Ideias. A principal razão dessa necessidade se deve à nossa incapacidade de apreender o objeto diretamente; por isso o imperativo de mediação. As imagens estabelecem uma ponte entre o visível (ou

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sensível de uma forma geral) e aquilo que é possível conhecermos unicamente por meio da intuição intelectual. Nossas faculdades cognitivas são restringidas pelos obstáculos que o corpo (material e corruptível) impõe à alma (imaterial e eterna), desse modo, os primeiros conhecimentos só podem ser percebidos e não intuídos. Sendo assim, é preciso adestrar o corpo depurando a sensibilidade, pois dependemos dela como princípio de obtenção do conhecimento. Em contrapartida, os objetos superiores do conhecimento, por ocuparem uma dimensão imaterial e invisível, só podem ser apreendidos pela alma. Contudo, sem esse adestramento sensível, tais objetos inteligíveis jamais poderiam ser contemplados em vida. As imagens, na qualidade de informação ou de conhecimento inferior são aquilo que o modo de conhecimento eikasía suporta e consegue dar conta de apreender. Na República, esse modo cognitivo corresponde ao primeiro contato do corpo com o espectro do objeto, demarcando o limite entre a ignorância e a opinião. A expansão desse limite se dá pela educação do sensível, em buscar promover uma gradativa separação entre aquilo que podemos ver por meio dos olhos do corpo (de forma sensível e mediada pelos sentidos) e aquilo que podemos ‘ver’ ou contemplar com os olhos da alma (de forma inteligível e imediata). Só perceberemos a parcialidade e a insuficiência do modo de conhecimento imagético ao final da fase inteligível (o final do percurso educativo), mas, até que possamos perceber tais deficiências, as imagens continuarão a nos prestar bons serviços, sendo úteis à alma como imitações da realidade. Para Platão, somente os iniciados nas ciências do inteligível perceberão estes limites cognitivos das imagens dentro de todo o processo epistemológico, pois “se nunca deixarmos a caverna, sem dúvida jamais saberemos o que é uma imagem” (Goldschmidt, 2002, p. 15-16). As imagens que exprimem a verdade e comportam-se como opiniões verdadeiras (alethès dóxa) dentro de um amplo conjunto imagético são benéficas e úteis na medida em que compreendem em si conhecimentos que, embora ainda não verificados pelas ciências do inteligível, direcionam a alma para o sentido do Bem e da verdade. É nesse aspecto que a teoria do conhecimento compartilha seu percurso com a educação, conforme vimos no capítulo I. Apesar de procederem por via da sensibilidade, e, não, pela reflexão, as imagens aglutinam conteúdos de opiniões e crenças verdadeiras, mesmo atuando num estágio précientífico; porém, ainda assim, conteúdos verdadeiros. Mesmo estando três graus distantes da realidade ontológica, as imagens, na qualidade de opiniões verdadeiras, operam em consonância com essa realidade. Esse afastamento não implica, necessariamente, numa descaracterização da verdade inteligível, mas, sim, numa perda gradativa de correspondência entre o objeto e sua imitação, por isso um conhecimento verdadeiro só pode ser de ordem

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inteligível na medida em que minimiza a intensidade dessa perda. No entanto, devido à correspondência entre o objeto e sua imagem, o conhecimento verdadeiro (mais próximo das Ideias) também se comunica com a opinião verdadeira (situada no terreno sensível e movediço das imagens). Nossa investigação acerca do modo cognitivo da imagem ampara-se no exercício de análise do método dialético proposto por Goldschmidt (2002). A compreensão do método se dá pela própria obra de Platão, a qual nos oferece informações preciosas e substanciais para entendermos o movimento e a organização do conhecimento platônico. Para Goldschmidt (2002, p. 9-11), os diálogos podem ser divididos – segundo uma estrutura lógica – em quatro momentos: imagem, definição, essência e ciência. O momento que nos compete investigar nesta pesquisa é somente o primeiro. Ficaremos, pois, apenas com a imagem – algo que, por si mesmo, já nos exige substancial fôlego. Goldschmidt atribui à imagem (ou melhor, o momento que compete à imagem nos diálogos de Platão) um sentido distinto daquele em que tratamos aqui. Essa imagem, tal como descrita pelo comentador, é somente uma delimitação do campo imagético dentro do texto de Platão. Seu papel é o de fazer as devidas apresentações: mostrar ao leitor qual será o tema tratado na obra, seus personagens e o cenário, constituindo, assim, um prelúdio literário. A imagem do diálogo Crátilo, por exemplo, corresponde à fase em que Platão apresenta a multiplicidade e a ambiguidade referente ao termo onoma, o nome. Nesse preâmbulo da obra, o poeta Platão ilustra as duas opiniões contraditórias a serem consideradas na discussão, quais sejam: os nomes são convencionais versus os nomes são por natureza. A discussão filosófica que deverá vir logo em seguida a esse preâmbulo consiste na parte (ou momento) do diálogo em que Platão efetivamente estruturará sua argumentação. No caso do Crátilo, o objeto filosófico a ser discutido (o onoma) é apresentado ao leitor como elemento da cena no diálogo, bem como os interlocutores de Sócrates. Todo esse conjunto cênico corresponde ao momento da imagem em que toda essa construção – cênica e filosófica – se articula enquanto movimento dialético. Para Goldschmidt (2002, p. 9-11), o movimento do diálogo é explicado pelo método de construção da escrita (léxis) platônica e por sua estrutura filosófica, de modo que, “é pelo método que se deve explicitar a composição do diálogo ou, mais precisamente, sua estrutura filosófica”. O método permite uma verificação da ordem interna, propiciando uma radiografia da obra, a qual aponta, em sua estrutura lógica, ao movimento dialético de Platão. A maneira a qual ele articula, na obra, seus personagens, seus argumentos e alguns elementos, como a dramaturgia e a fluidez da escrita compõem a construção do método.

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Sobre essa disposição da léxis platônica, Colli (1988, p. 92) comenta que “o diálogo como literatura, como tipo particular de dialética escrita, que, num quadro narrativo, apresenta a um público indiferenciado os conteúdos de discussões imaginárias”, constitui não apenas o aspecto de composição textual, mas uma própria explicitação da filosofia platônica. É na totalidade do diálogo, e não apenas em seus argumentos racionais e lógicos, que se manifesta o pensamento de Platão, pois ele é construído “como um organismo vivo, com um corpo que lhe seja próprio, de forma que não se apresente sem cabeça nem pés, porém com uma parte mediana e extremidades bem relacionadas entre si e com o todo” (Fedro, 1975, 264 c). A léxis complementa o método dialético na medida em que ela expõe uma argumentação dramatúrgica, seja pelo enredo da cena, seja pela escolha e tipificação dos personagens ou pela construção do cenário. O diálogo é a expressão do movimento dialético, ele “é a ilustração viva de um método que investiga e que, com frequência, se investiga” (Goldschmidt, 2002, p. 11). Existem indicações metodológicas dispersas ao longo do corpus platônico, mas a maior parte delas visa apenas esclarecer alguma passagem ou problema específico dentro de um determinado contexto. Contudo, duas indicações em particular podem ser tomadas como referências diretas sobre o modus operandi do método dialético de ascensão ao conhecimento, são elas: o símile da linha segmentada, na República, e a digressão filosófica, na Carta VII. Sobre o símile da linha segmentada, Platão assenta os quatro modos de conhecimento, num percurso linear e gradual, que serve como base para a orientação da alma em sua busca pelas essências inteligíveis. Trata-se de um caminho natural inerente a ela, partindo da experiência sensível em direção à contemplação das Ideias. A digressão da Carta VII, ao corroborar essa noção de percurso do conhecimento, atua como um importante ponto de apoio à teoria do conhecimento proposta por Platão, nos Livros VI e VII, da República. Para Goldschmidt, esse percurso do conhecimento é a explicitação platônica sobre o modo de organização e de funcionamento do seu método dialético, assim, esse símile traçado por Platão também é um indicativo usado por ele para fins de esclarecer quais são as etapas do método ascensional, o qual consiste na superação da ignorância (prisão do corpo) para contemplação das Ideias (liberdade da alma). A interpretação de Platão e de suas intenções filosóficas deve partir da leitura e da compreensão da “estrutura dos diálogos, que são objetos sólidos, resistentes e diretamente cognoscíveis” (Goldschmidt, 2002, p. XXIII), os quais nos fornecem informações preciosas sobre a organização metodológica do conhecimento, tal como o próprio Platão propôs. Além disso, esses “movimentos do pensamento estão inscritos na estrutura da obra”, por isso a compreensão de Platão pelo objeto de seu legado (observando

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a arquitetura do texto e o modo como as partes se articulam) é um referencial mais confiável (Goldschmidt, 1963, p. 143). Tanto na República quanto na Carta VII, as imagens correspondem a uma etapa específica da investigação dialética, situada, dentro do conjunto dos modos de conhecimento, na parte que corresponde à sensibilidade. A Carta, entretanto, não reproduz essa mesma disposição dos modos de conhecimento, tal como Platão propõe pelo símile da linha, ela apenas corrobora alguns aspectos, especialmente seu caráter sensível, visto que essas imagens não ocupam exatamente a mesma posição cognitiva. Além disso, a Carta aparenta negligenciar ou, pelo menos, não dar a devida ênfase, ao desenvolvimento da última etapa do processo dialético de ascensão às Ideias, o qual trata justamente da dialética, ou seja, da ocasião em que as palavras, sem o auxílio de representações sensíveis, investigam a essência dos objetos. De qualquer forma, nosso enfoque tem por interesse tratar das imagens e não de outras formas de conhecimento. Almejamos, assim, investigar qual o papel das imagens dentro da epistemologia platônica, destacando a relação entre elas e a opinião verdadeira sobre determinado objeto. Conforme discutido anteriormente, vide a análise comparativa da linha segmentada e da alegoria da caverna realizada no capítulo I, as imagens estão situadas na fase inicial do movimento de ascensão às formas inteligíveis, a qual consiste no momento em que partimos dos elementos da sensibilidade em seu nível mais elementar de apreensão dos objetos. O conhecimento, de acordo com o símile da linha, tem início pela imaginação (eikasía). Num segundo momento, passa pela crença (pístis). Sua terceira parte corresponde ao momento do conhecimento discursivo (diánoia). A quarta seção é a da intuição intelectual (nóesis) e, ao final, a intelecção do objeto em si mesmo. Essa organização hierárquica dos modos de conhecimento na República (2001, 509 e-510 a) obedece, de uma forma esquemática ou lógica, à seguinte disposição: 1º modo



2º modo



3º modo



4º modo

|________________|_________________|___________________|_________________| → Eidos imaginação

crença

conhecimento discursivo intuição intelectual

Formas Ideias

Poderíamos traçar uma comparação entre a disposição dos cinco elementos do conhecimento, tal como ela é apresentada pela Carta VII, com a progressão cognitiva proposta pelo símile da linha segmentada. A Carta (1975, 342 a-d) nos mostra, de maneira

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similar ao esquema epistemológico da República, quatro elementos do conhecimento, os quais corresponderiam cada um ao seu modo a um tipo de representação do mesmo objeto. No entanto, segundo a Carta, existe ainda um quinto elemento oculto e esse, por sua vez, não pode ser alcançado por nenhum dos outros quatro anteriores, visto que se diferencia deles por ser o próprio objeto em si mesmo. Esse objeto (o quinto elemento) é, por aproximação, ontologicamente similar ao que Platão definiu, na República, como Ideia ou modelo paradigmático. Assim, ambos, Ideia e quinto elemento, só podem ser alcançados ao final do percurso educativo e cognitivo pelos filósofos. Platão nos diz na Carta que “para cada ser há três elementos que nos permitem conhecê-lo; o quarto é o próprio conhecimento, vindo a ser o quinto a coisa conhecida [gnostón] e que verdadeiramente existe [alethos estin ón]” (1975, 342 a-d). Os três primeiros elementos compõem um mesmo agrupamento cognitivo, embora não sejam simultâneos, operam dentro de um mesmo conjunto. O quarto elemento é o conhecimento em si mesmo, e encontra-se separado dos três anteriores por não se encaixar dentro do mesmo conjunto epistemológico. É necessário, antes de tudo, insistir na distinção entre: conhecimento em si mesmo (quarto elemento) e objeto em si mesmo (quinto elemento). O quarto elemento é o ato cognitivo da alma humana e depende dela para existir, de modo que se caracteriza como a capacidade ou faculdade da alma em apreender o objeto pelo intelecto. O quinto elemento, por sua vez, não é uma função anímica nem um meio de se apreender o conhecimento sobre algo, mas o próprio objeto em sua realidade pura, ele é algo independente do observador, existindo (por si e para si mesmo) em condições eternas e imutáveis. A coisa em si mesma é o objeto último que a alma humana visa alcançar; porém seus meios podem ser falhos ou insuficientes para obter sucesso. Dentro do conjunto que compreende os três primeiros elementos, estão: (1) o nome (onoma) do objeto; (2) a definição (lógos) do objeto; (3) a imagem (eidolon) do objeto. O quarto elemento (situado fora desse conjunto) é um tipo superior e independente dos demais. Dentro dele (4), estão inseridas outras três possibilidades cognitivas de apreender o objeto pela parte superior da alma, sendo elas: “o conhecimento [epistéme], a inteligência [noûs] e a opinião verdadeira [alethès dóxa] relativa a esse mesmo objeto”. Assim, todas essas três partes do quarto elemento (4) podem ser agrupadas “numa só classe que não reside nem nos sons proferidos [pelo nome] nem nas figuras materiais [pela imagem], porém nas almas” (Carta VII, 1975, 342 c). O (4) conhecimento em si inclui os três primeiros elementos {(1), (2) e (3)} e conduz ao (5) quinto, atuando, dessa forma, como um modo intermediário que realiza a ligação entre

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os três elementos inferiores e o quinto elemento. Desse modo, obedecendo a um movimento de ascensão cognitiva (o próprio movimento dialético ascensional), “servimo-nos (1) do nome, (2) da definição, (3) da imagem para alcançar (4) o conhecimento que nos leva a (5) captar o inteligível” (Reale, 2004. p. 70). Assim, a disposição destes elementos numa espécie de linha (fragmentada) respeitaria a seguinte composição: 1º elemento

+

2º elemento +

3º elemento

4º elemento

|_______________|_______________|_______________| → |_______________| → 5º elemento nome

definição

imagem

inteligência conhecimento em si mesmo opinião verdadeira

Para uma melhor compreensão destes quatro momentos da caminhada dialética, tal como apresentados na Carta VII, Platão recorre a um exemplo didático pertencente ao universo da matemática: o círculo. Como representação do primeiro modo de conhecimento, o círculo não seria nada além da denominação pronunciável do objeto por meio do nome que o designa: há “o que se chama círculo (kýklos), cujo nome é aquilo que acabamos de pronunciar” (Carta VII, 1975, 342 b-c). Assim, o termo kýklos é uma expressão convencional para o objeto, isto é, aquilo que assim se nomeia e que poderia dispor, sem nenhuma implicação ontológica, de qualquer outra denominação. Vimos no Crátilo (1973, 423 b), que o onoma, seja pela sua composição de substantivos (adjetivos e verbos) ou pela sua sonoridade característica, consiste tão somente numa forma artificial de representação do objeto, de modo que insistir no contrário, como faz Hermógenes, ao considerar o nome como “a imitação vocal da coisa imitada”, seria admitir uma equivalência entre o nome e a imagem. Portanto, a sonoridade ou a grafia, kýklos, representaria sua qualidade circular, tal como um desenho, entretanto, não configuraria sua essência. O nome é algo arbitrário porque a linguagem é uma convenção (nómos) e isto fica praticamente acordado entre os interlocutores ao final do diálogo, não havendo, de tal forma, uma relação orgânica entre o nome e o objeto, pois “o nome é imitação, tanto quanto a imagem” (Crát., 1973, 430 e-431 a). Por isso, tanto o círculo em si mesmo como sua representação imagética poderiam ser chamados, por exemplo, de triângulo ou quadrado. Contudo, a imagem do círculo (por mais imperfeita e dissonante do círculo em si mesmo) deve guardar sempre qualidades circulares. O segundo modo de conhecimento (a definição) promove a “explanação ou a determinação conceitual” do círculo por meio das palavras, a definição desse objeto é

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“composta de substantivos e verbos: o que tem a mesma distância entre as extremidades e o centro; tal é a definição do que denominamos redondo, circunferência, círculo” (Carta VII, 1975, 342 b). O círculo, assim definido, é uma linha de perímetro circular que guarda, ao longo de toda sua extensão, uma idêntica distância entre sua margem e o seu ponto central. Para Platão, essa definição ou o lógos não são discursos quaisquer sobre o objeto, mas sua delimitação precisa por palavras específicas e logicamente dispostas numa frase; por isso determinado lógos cabe somente a um objeto, ele o define. No entanto, “não há nenhuma reflexão sobre a estrutura lógica dessa determinação, ou seja, uma explanação de acordo com o gênero e a espécie” (Gadamer, 1980, p. 101), mas apenas uma seleção de palavras, tendo em vista a delimitação lógica do objeto representado. Vimos, no diálogo o Sofista, que a busca do Estrangeiro por uma definição precisa sobre o sofista, ou ainda, a respeito de quem seria esse intelectual se dá pelo método da diairesis. Contudo, o resultado dessa procura conceitual gerou, não apenas uma definição para tal termo, mas múltiplas. Nesse ponto do diálogo, as várias definições encontradas colocaram o próprio método em questão, pois se todas são verdadeiras, como é possível encontrar o conceito do sofista Uno e, não, múltiplo? O diálogo chega, assim, a um impasse; disso resulta a iminente necessidade de refutar Parmênides como maneira de prosseguir essa investigação num âmbito mais profundo. Essa profundidade epistemológica, conseguida à custa do sacrifício do filósofo de Eleia, foi o que possibilitou outra interpretação do objeto a ser definido. Nem tudo aquilo que pode ser colocado em palavras (ou imagens) possuiria existência real. Desse modo, Platão, no Sofista, ao admitir o caráter intermediário desse profissional da imitação e de sua arte mimética, isto é, seu lógos, também flexibilizou as formas de compreensão da imagem, visto que ela existe e possui um grau de realidade. Da mesma forma que Platão não deixa claro qual o gênero ou qual a espécie de círculo que ele procura investigar pela definição, também admite que existam muitos logói válidos; afinal, se são possíveis muitas definições que dizem o que é o círculo (tanto ou mais do que as que qualificam o gênero sofístico), por que tomar como verdadeira apenas uma delas? Assim, o lógos como elemento do conhecimento nunca poderia, por si mesmo, revelar a verdade sobre o quinto elemento, pois está, desde a sua origem, comprometido com a multiplicidade. Ele não é capaz de sintetizar o que é algo e dizê-lo, apenas, por meio de uma única sentença, mas por meio de várias, sendo, muitas delas, inclusive, verdadeiras do ponto de vista lógico. A definição do círculo, tal como foi mostrada por Platão nesse exemplo, satisfaz determinados critérios de verdade sobre o objeto; contudo, outras definições, ainda não apresentadas, poderiam satisfazer igualmente esses critérios (Gadamer, 1980, p. 101-102).

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O terceiro elemento da esquematização do conhecimento apresentada na Carta VII é a imagem. Ela consiste na “forma que se desenha e apaga, ou que se fabrica no torno e pode ser destruída” (Carta VII., 1975, 342 c). Não se trata de uma imagem natural, mas fabricada, pintada ou desenhada, isto é, trata-se de uma representação humana do objeto por meio de uma técnica mimética. Essa representação imagética é passível de ser desfeita pela ação humana, enquanto que o objeto em si, seu modelo inteligível, não pode. Para Platão, o modelo é indestrutível, visto que “o círculo em si mesmo, a que tudo isso se refere, nada sofre por ser de todo diferente” (Carta VII., 1975, 342 c) da sua imagem. A imagem do círculo exige uma materialidade, do contrário, não seria passível de ser destruída pela interferência humana. Cada círculo concreto, fabricado no torno ou simplesmente desenhado é cheio de tudo o que contraria o quinto, pois em todas as suas partes ele roça de leve na linha reta; mas o círculo em si mesmo, é o que afirmamos, não contém nem muito nem pouco da natureza contrária à sua (Carta VII, 1975, 343 a).

O exemplo do círculo é ilustrativo e pedagógico, pois contempla um tipo de imitação pela palavra, uma delimitação conceitual pelos substantivos e verbos (formando a imagem matemática do objeto) e uma imitação pela própria imagem. Todos esses tipos imagéticos estão inseridos naquilo que Platão compreende por eidola. Esses três elementos compõem os estágios do quarto modo de conhecimento (4º elemento), a epistéme, e “formam, conjuntamente, uma unidade propedêutica, necessária e partícipe para os dois próximos momentos” (Rohden, 2012, p. 115); além disso, atuam como três instrumentos cognitivos, distintos e preliminares, que elevam a alma da sensibilidade para a capacidade de compreensão racional. Na República, os dois modos de conhecimento da epistéme (diánoia e nóesis) estão compreendidos na seção mais elevada da linha segmentada. Na Carta VII, esse conjunto da epistéme (onoma, eidolon e lógos) também promove o afastamento da alma dos objetos sensíveis e sua aproximação das essências no mundo inteligível. Tal conjunto epistemológico da Carta VII compõe a base do processo dialético, não permitindo, porém, alcançar o objeto em si mesmo. Trata-se de três momentos distintos que visam “apresentar, com a maior clareza possível, as qualidades das coisas nomeando-as, definindo-as e representando-as imageticamente” (Rohden, 2012, p. 115). O quarto elemento no exemplo do círculo é “o conhecimento [em si mesmo – epistéme], a inteligência [noûs], a opinião verdadeira [alethès dóxa], relativa a esse mesmo objeto” (Carta VII, 1975, 342 c). Platão inclui dentro desse modo de conhecimento, (4º elemento) a epistéme, outras duas modalidades cognitivas: a opinião verdadeira e a inteligência. A inteligência é o tipo de conhecimento capaz de lidar com os objetos

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matemáticos. O teorema geométrico, ilustrado no Mênon, por exemplo, é um e o mesmo, independente do ponto de vista de cada pessoa, por isso o escravo soube responder às questões feitas por Sócrates. Se a alma consegue, por intermédio da inteligência, demonstrar o teorema, então ela não mais necessitaria do auxílio corpóreo da sensibilidade. Colocam-se de lado, desse modo, as representações sonoras (onoma) e visíveis (eidolon), além da determinação conceitual (lógos). Não obstante, é a inteligência, como componente superior do quarto elemento, a etapa cognitiva que mais se aproxima do objeto em si mesmo, pois ela consiste na parte da epistéme que se comunica com a coisa idêntica a si mesma (o círculo verdadeiro em realidade), que não é o objeto em si mesmo, ou ainda, que não configura a Ideia de círculo, mas está mais próxima dele (Gadamer, 1980, p. 102). Esse noûs, embora não pertença ao universo da realidade verdadeira, detém maiores condições de tornar-se parte dela “por afinidade e semelhança” em relação ao objeto em si mesmo, já a opinião verdadeira, ou mesmo a epistéme, encontram-se muito afastados da realidade ontológica do objeto (Carta VII, 1975, 342 c-d). Vimos que, conforme a disposição proposta por Platão na República (2001, 509 e-510 a), dóxa e epistéme são as duas partes da linha segmentada; ademais, elas promovem uma divisão radical do conhecimento. A primeira concentra os modos de conhecimento sensíveis (empíricos), enquanto a outra reúne os modos de conhecimento inteligíveis (apriorísticos). Por sua vez, a Carta VII agrupa dóxa e epistéme (segmentos diametralmente opostos) dentro de um mesmo elemento. Como isso é possível? Platão estaria dessa maneira reajustando a posição ontológica da dóxa dentro de sua teoria do conhecimento? A resposta é não, pois a dóxa permanece como a porção da linha segmentada que reúne os modos inferiores de conhecimento (eikasía e pístis). Nessa medida, seu status relativo ao conhecimento sensível, dentro da epistemologia platônica, ao que nos parece, não foi alterado pela digressão da Carta VII. O que Platão pretendeu mostrar por meio dessa equiparação epistemológica entre dóxa e epistéme, dentro do quarto elemento, foi o seguinte: assim como a epistéme, a dóxa também pode dar a conhecer a verdade sobre os objetos. Trata-se de uma equivalência epistemológica, a qual atesta que a opinião, sob determinadas condições e por meios distintos, também é capaz de dizer verdades; entretanto, ela não é de natureza ontológica idêntica, posto que essa verdade nunca poderia ser da mesma ordem da realidade científica. Nem o objeto real e, menos ainda, o objeto em si mesmo, jamais se confundiriam com uma mostra sensível do objeto. Nesse sentido, o grau de verdade das opiniões limitar-se-ia apenas a uma relação de aparência e Platão se deu conta disto. Notou que os sentidos contribuem de forma incisiva

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para a iluminação do conhecimento, bem como também “percebeu que a antiga distinção entre dóxa e epistéme não era uma distinção clara e contundente”, acerca da qual valeria a pena insistir. A principal distinção que se deveria fazer entre dóxa e epistéme refere-se àquilo que o espírito humano poderia vir a conhecer, isto é, à sua capacidade de dar respostas verdadeiras sobre o que é tal coisa. Assim, também por meio da definição e pelo argumento mítico, Platão pretenderia apreender e tentar dizer a realidade das coisas (Crombie, 1979, p. 128-129). A explicação para essa potência cognitiva da dóxa situa-se em sua condição intermediária. Tal como a imitação, a dóxa também é uma representação imperfeita da realidade verdadeira, podendo ser completamente falsa, quando representa o não-Ser (estando, assim, plenamente afastada da verdade), ou parcialmente falsa, quando intermediária entre o Ser e o não-Ser (colocando-se até três vezes afastada da realidade). Dessa forma, tudo aquilo que se encontra instalado no intermédio entre a realidade e a falsidade, tais como “as múltiplas noções da multidão acerca da beleza e das restantes coisas como que andam a rolar entre o não-Ser e o Ser absoluto”, são do domínio da opinião e não do conhecimento puro, “pois, como objeto errante no espaço intermediário, é apreendida pela potência intermediária” (Rep., 2001, 479 e). A epistéme trata justamente daquilo “que não reside nos sons proferidos, nem nas figuras materiais, porém nas almas, do que se torna manifesto que é de natureza diferente da do círculo em si mesmo e dos três modos indicados”; todavia, ela (epistéme) por si só, não permite à alma contemplar o quinto elemento e lembremos, pois, que é apenas a faculdade da inteligência a que melhor se aproxima deste elemento (Carta VII, 1975, 342 c). A condição intermediária da dóxa é aquilo que lhe possibilita vincular conteúdos de verdade à realidade dos objetos puros do conhecimento. Por assim dizer, a adivinhação e os mitos, utilizados por Platão em seus diálogos, seriam a expressão ou medida de um gênero específico da dóxa: a opinião verdadeira (alethès dóxa), isto é, meias-verdades. Essa espécie de saber não é conferida à alma pelas faculdades inteligíveis, mas por intermédio da aísthesis, especialmente quando inserida no universo artístico da poesia. O critério de autenticidade desse conhecimento estético não está posto em dúvida por Platão, pois, de acordo com a cultura e a mentalidade da época, tais manifestações místicas poderiam ser interpretadas como dádivas concedidas pelos deuses aos humanos e não como maneira subjetiva de dizer a realidade dos objetos. Existe uma gama de conhecimentos e saberes advindos de fontes mítico-religiosas, muitas delas, inclusive, são utilizadas por Platão em seus textos. No Banquete (1980, 201 d), por exemplo, não é da autoria da razão socrática o discurso sobre Eros, Sócrates apenas o reproduz, segundo aquilo que ouviu de Diotima,

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o oráculo de Mantinéia. A narrativa incorpora a voz da adivinhação, uma das espécies de manía ou loucura divina, como fonte privilegiada de verdade divina. Platão talvez deseje, ao construir esse jogo cênico, potencializar o discurso a respeito dessa divindade utilizando-se dos elementos da cultura religiosa grega. A fala de Sócrates não apenas se confunde com a mensagem do oráculo, ela também se utiliza dele para tornar o discurso ainda mais verossímil: “[...] foi ela [Diotima] quem me doutrinou sobre questões do amor (...) Suas palavras, é o que vou tentar reproduzir, de acordo com o que eu e Agaton [o anfitrião do banquete] combinamos, do melhor modo possível e sem ajuda estranha de qualquer espécie” (Banq., 1980, 201 d). Assim, não é mais o modelo dualista de Parmênides que o filósofo toma como fundamento epistemológico para tratar do conhecimento pela dóxa, mas do caráter daimônico desta. Eros é, conforme revelado pela mulher de Mantinéia a Sócrates, “algo intermediário entre a sabedoria e a ignorância”; ele não é o “conhecimento – pois como poderá haver conhecimento do que não se pode demonstrar? – nem ignorância, visto não poder ser ignorância o que atinge, de algum modo, o real” (Banq., 1980, 202 a). Essa divindade é o amor pela sabedoria (a filosofia), uma consciência daimônica (daímon), tal como as opiniões e as imagens, pois é filha de carência ou pobreza (Pênia) e da riqueza ou recurso (Poro), ou seja, é uma entidade interposta entre o conhecer e o não-conhecer; situada entre a compreensão clara das coisas e a plena ignorância.

3 – Imagem como areté

Desde os tempos de formação da identidade helênica e da configuração das cidadesestados gregas, a partir da reunião das tribos num mesmo espaço comunitário, o ideal de areté esteve sempre vinculado à potência modeladora das imagens. Segundo Jaeger (2001, p. 2425), as mais excelsas aspirações humanas entre os gregos se manifestavam na noção de kalós kagathós. Essa expressão deriva da junção do substantivo neutro kalós, aquilo que é belo, ao adjetivo agathós, aquilo que é bom. Nesse sentido, o kalós kaì agathós refere-se a tudo o que é mais belo e bom, aquilo que é melhor e superior “no sentido normativo da imagem desejada, do ideal” de homem a ser alcançado. Tal aspiração humana identifica-se plenamente com a excelência moral, isto é, com a areté da aristocracia. O conceito de areté constitui o fio condutor do processo de formação humana desde a Grécia primitiva, numa época muito anterior ao século V, de Platão e dos sofistas, e ofereceu

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ao universo do imaginário grego seu modelo de conduta excelente por meio da “imagem do homem tal como ele deve ser”. Os primeiros relatos sobre o uso do termo areté remontam à poesia homérica e estão intimamente vinculados à personalidade dos heróis nas epopeias. Os latinos traduziram o termo areté para virtus, mantendo, de certa forma, sua acepção original, que consiste em excelência da alma e do corpo; contudo, a palavra “virtude” enfatiza demasiadamente o aspecto moral do termo em detrimento de sua concepção originária, a qual consiste no homem superior (gênero masculino, o kouros), dotado de beleza e destreza bélica. Tanto em Homero como nos séculos posteriores, o conceito de areté é frequentemente usado no seu sentido mais amplo, isto é, não só para designar a excelência humana, como também a superioridade de seres não humanos: a força dos deuses ou a coragem e rapidez dos cavalos de raça. Ao contrário, o homem comum não tem areté e, se o escravo descende por acaso de uma família de alta estirpe, Zeus tira-lhe metade da areté e ele deixa de ser quem era antes. A areté é o atributo próprio da nobreza. (...) A raiz da palavra é a mesma: áristos, superlativo de distinto e escolhido, que no plural era constantemente empregado para designar a nobreza. Para a mentalidade grega que avaliava Homero pelas suas aptidões, era natural encarar o mundo em geral sob o mesmo ponto de vista. (...) Em geral, de acordo com a modalidade de pensamento dos tempos primitivos, designa por areté a força e a destreza dos guerreiros ou lutadores e, acima de tudo, heroísmo, considerado não no nosso sentido de ação moral e separada da força, mas sim intimamente ligado a ela (Jaeger, 2001, p. 26-27).

No século V a.C., com a ascensão política das categorias sociais mais baixas do demos ao poder, após o período de reformas e da implantação da democracia em Atenas, a concepção de areté, fundamentada na estirpe e na nobreza, começa a entrar em crise. Fatores econômicos, como o aparecimento da moeda e o desenvolvimento das atividades comerciais, propiciaram mudanças na estrutura social e enfraqueceram as bases de sustentação do poder da aristocracia. Essa “alteração das condições econômicas afetou profundamente o conceito de areté, pois esse englobava a estima social e a posse dos bens” (Jaeger, 2001, p. 246). O aparecimento dos profissionais do ensino e do saber data dessa época. Os sofistas eram, em geral, estrangeiros sábios, detentores de um conhecimento generalista. Muitos deles circulavam pelo mar Egeu e perambulavam pelos territórios da Magna Grécia; outros, no entanto, se instalaram em algumas cidades-estados, especialmente em Atenas, introduzindo mudanças dentro de sua estrutura educativa. Tais mudanças visaram, sobretudo, suprir as necessidades de formação (a paideia) dessa nova classe em ascensão que, até então, não dispunha dos mesmos recursos educativos da nobreza. Esse novo contexto, trazido pelas mudanças políticas e econômicas, propiciou as condições para que essa classe ou categoria não aristocrata pudesse receber um tipo de educação para a participação política. Em Atenas, por exemplo, essa sociedade urbana e comercial que se formou graças à instauração da

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democracia “tinha uma grande desvantagem em relação à aristocracia” (Jaeger, 2001, p. 336), principalmente no que se referia à sua formação intelectual. A nobreza, desde os primórdios da constituição de Atenas, sempre instruiu seus filhos (homens) na paideia. Contavam com mestres designados para a formação física e espiritual dos aristocratas, geralmente, os escravos cultos do oikos (a casa da família), os quais eram encarregados de conduzir o discípulo, ainda criança, aos conteúdos da tradição: artes musicais, poesia, noções de matemática e ginástica. Trata-se, assim, de um conjunto de aprendizados voltados para o exercício das atividades tipicamente nobres naquela sociedade, tais como a caça, a guerra, a recitação poética e os banquetes. Embora “possuísse um ideal de homem e de cidadão e o julgasse, em princípio, muito superior ao da nobreza, carecia de um sistema consciente de educação para atingir aquele ideal” (Jaeger, 2001, p. 336-337). Isso explica, em grande parte, o surgimento do fenômeno sofístico dentro da cidade-estado, notadamente como a categoria profissional capacitada a instruir essa nova camada de cidadãos emergentes. Platão é contemporâneo dos sofistas e, em alguns de seus diálogos, tais como o Hipias, o Protágoras, o Górgias, os retrata (quase sempre de maneira pejorativa) como mercenários do saber e do ensino. Especulações biográficas sobre Platão relatam que ele descende, por parte de mãe, de Crítias, o velho, personagem que narra o mito de Atlântida no diálogo Timeu, e, por parte de pai, de Ariston, descendente do último rei de Atenas, Codro. Crítias, o moço, e Cármides (dois de seus primos), desempenharam um papel importante na derrubada da democracia ateniense pelo governo dos Trinta tiranos. A antipatia de Platão pela democracia e pela educação sofística não se deve somente à condenação de Sócrates, nem à rivalidade pedagógica entre o filósofo e os sofistas. Boa parte das críticas de Platão a esse regime e ao sistema de ensino sofístico tem como foco a ineficiência e a não autenticidade de ambos. A democracia é falha, pois possibilita a eleição do demagogo; o ensino sofístico é ilegítimo, porque não se atém à busca pelo conhecimento, mas, tão somente, aos exercícios de retórica e oratória, os quais são conteúdos para a formação do demagogo. A fundamentação do projeto político e do modelo educativo prevê que somente um governo verdadeiramente filosófico e uma educação igualmente filosófica são a solução para os problemas do Estado. Não se trata, também, de uma disputa pelo poder político, isto é, derrubar a democracia falha que condenou Sócrates à morte e implantar, em seu lugar, uma espécie de tirania filosófica. Ao que parece, Platão estava cansado de testemunhar a subida e a queda de tiranos ao poder em Atenas, pela força ou pela retórica. Suas pretensões políticas almejavam a destituição de qualquer forma de governo que não fosse conduzida por uma atitude filosófica, por isso, na Carta VII (1975, 326 a), pode-se ler o apelo de Platão ao elogio da verdadeira filosofia, isto é,

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o enaltecimento da transformação do filósofo em governante e do governante em filósofo como solução definitiva para os problemas do Estado. O modelo inteligível de Platão, seu kalos kagathos ontológico, por assim dizer, é a Ideia; é ela, em sua plena bondade e beleza, que deve orientar as deliberações políticas do sábio governante. Para isso ser concretizado, é necessário que a filosofia conduza as ações do governante, pois, conforme tratamos no capítulo I, somente o filósofo é capaz de enxergar a verdadeira beleza e a verdadeira bondade em si mesmas e transportá-las para o regime político (Rep., 2001, 479 c-480 a). Platão reconhece que a filosofia não é matéria para todos, mas somente para algumas almas de ouro, segundo a divisão natural apresentada pelo mito das raças. Para as multidões e todos aqueles não iniciados na arte dialética, as regras de conduta política devem ser ensinadas por um tipo de educação sensível, a qual só poderia ser oferecida aos incultos pelas imagens. Elas ilustram, de forma didática, todo o conhecimento que os subalternos necessitam para sua vida política e profissional dentro do Estado. Esse tipo de conhecimento corresponde a um conjunto de opiniões verdadeiras que ditam a maneira pela qual o rebanho deveria se portar diante de seus pastores filósofos. Uma espécie de manual de regras e condutas para a boa convivência em sociedade. O caráter moral da educação consistiria, pois, em regular a conduta e o papel de cada indivíduo ou classe no espaço político. Num sentido pedagógico, tais imagens (devidamente selecionadas) pretendem transmitir às massas a seguinte mensagem: deixem o filósofo governar em paz e cuidem de seus afazeres para o benefício geral do Estado. Nessas imagens, estaria, assim, implícita a noção da justiça (dikaiosýne), no sentido de uma coexistência harmônica entre as classes. É para os múltiplos ouvidos do vulgo que Platão visa direcionar o conteúdo dessa mensagem. Há uma intencionalidade, por parte do filósofo, de que essas imagens, acompanhadas por seu conteúdo moral apropriado, sejam acolhidas pelas almas e reproduzidas no corpo do imaginário social. Assim, as imagens devem persuadir, pelo aprazível viés sensível e poético, as multidões que compõem a base dessa sociedade, de que vivemos melhor quando nos deixamos governar pela razão e pela sabedoria. Nessas condições, a participação política que lhes cabe é: admitir a presença do filósofo no poder e garanti-la, evitando qualquer tipo de desordem política ou descumprimento de suas funções. Para Platão, a seleção das imagens deve, necessariamente, passar por um filtro rigoroso. Nem tudo aquilo que consta nos clássicos da tradição, especialmente em Homero e em Hesíodo, poderia ser apresentado aos educandos em idade infantil, nem às massas. O critério principal a ser considerado é o de que essas imagens (mitos, alegorias, exemplos de

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heróis) devem ser necessariamente boas, concentrando, em seu conteúdo literário, uma moralidade condizente com os valores exigidos para a harmonia do Estado. As boas imagens carregam em si mesmas princípios ou elementos originários da Ideia do Bem. Segundo a lógica de Platão, isso ocorreria porque, ao reproduzirem em seu discurso tais elementos ou princípios, elas estariam, também, contaminando a conduta dos indivíduos com uma parcela desse Bem. Tais boas imagens funcionariam, grosso modo, como a indução magnética produzida por um ímã, contaminando a alma de bons valores morais. Perguntaríamos, pois, em que consistiria a bondade dessas imagens? Ou ainda: quais são os parâmetros para verificar se uma imagem é boa ou não, segundo a óptica de Platão? Ao longo de sua obra, dispersos em muitas passagens de diversos diálogos, estão alguns indicativos sobre o sentido moral das imagens. Seriam, basicamente, duas as causas que determinariam se uma imagem é boa ou má: a primeira delas, o modelo e, a segunda, o modo de imitação. É boa a imitação que se regula pela Forma, idêntica a si mesma e imutável, sendo essa Forma o próprio modelo inteligível. Esse modelo é a bondade absoluta e sua imitação, por extensão, uma declinação dessa bondade. Podemos considerar que uma imagem, quanto mais próxima ou afastada da Forma original, também conterá em si, enquanto representação ou cópia, um determinado grau de bondade. Uma boa imagem estaria, assim (segundo essa influência do Bem), mais próxima da Forma que lhe dá origem do que uma imagem má. Platão defende a existência de graus ou níveis de bondade, segundo uma maior ou menor proximidade ou simetria entre a imagem e seu modelo (Forma) original (Goldschmidt, 2002, p. 15). No Timeu (1986, 28 a-29 c), temos a explicitação do processo de constituição das coisas no mundo. É o demiurgo que confere a perfeição, em seu mais alto grau de bondade, ao objeto real. Recordemos o exemplo didático da cama na República (2001, 595 c-598 c). Existe a Ideia de cama, a boa cama em sua idealidade; existe, também, a cama real (objeto do conhecimento científico), feita pelo demiurgo ou pelo deus platônico; há a cama material, como mobília do quarto; e, por fim, a imagem da cama, ou seja, a cópia ou o simulacro do objeto material. A imagem da cama é a que possui menor grau de bondade dentro todos os objetos, mas, ainda assim, conserva em si algo desse Bem. A Ideia de cama é a causa da cama, pois “tudo o que nasce ou devém procede necessariamente de uma causa, porque nada pode originar-se sem causa”. A Forma é aquilo “que se conserva sempre igual a si mesmo” (Tim., 1986, 28 a) e serve como modelo ao artífice, oferecendo-lhe os contornos reais e a virtude original, atuando, assim, como a causa (aitía) de todas as coisas fabricadas. Tudo aquilo que tem como causa a Forma, perfeita e imutável, dá origem a algo bom e belo. É o demiurgo o criador das coisas boas e belas que existem no mundo sensível. Ele não é a Forma, porém tem

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“em mira o paradigma eterno que pode dar origem a tudo o que é bom” (Tim., 1986, 28 a). Logo, se foi produzido dessa maneira, terá de ser apreendido pela razão e a inteligência e segundo o modelo sempre idêntico a si mesmo. Nessas condições, necessariamente o mundo terá que ser a imagem de alguma coisa. Em tudo, o mais importante é partir de um começo natural. Por isso, em se tratando de uma imagem e seu modelo, antes de mais nada, precisamos distinguir o seguinte: as palavras são da mesma ordem das coisas que elas exprimem; quando expressam o que é estável e fixo e visível com a ajuda da inteligência, elas também são fixas e inalteráveis, tanto quanto é possível e o permite sua natureza serem irrefutáveis e inabaláveis, nem mais nem menos. Mas, se exprimem o que foi copiado do modelo, ou seja, uma simples imagem, terão de ser, tão somente, parecidas, para ficarem em proporção com o objeto; o que a essência é para o devir, a verdade é para a crença (Tim., 1985, 29 a-c).

O ideal de bondade acompanhou, desde a época primitiva, a noção de areté. O universo homérico fez referência constante ao bom guerreiro troiano Heitor ou à boa armadura de Aquiles. As imagens carregam em si elementos de bondade e, quando percebidas pela alma, interiorizam nela parte dessa bondade que as constitui. Durante as recitações da Ilíada, possivelmente, os espectadores almejassem dispor das mesmas características e qualidades do herói da narrativa. A imagem de Aquiles, o personagem mítico, amplamente admitido como parâmetro superior de comportamento, penetrava nas estruturas do imaginário do público introjetando, em parte dele, o desejo de assemelhar-se ao herói. Eric Havelock analisa os recursos psicológicos que permitiam ao poeta o controle da memória individual e da memória coletiva da sociedade. O poeta dominava as técnicas de declamação poética (dentre elas, o ritmo da fala e a mimese) e, amparando-se nesse poder persuasivo, promovia uma determinada conformação mental no ouvinte. Do ponto de vista psicológico, o “público alegrava-se e relaxava como se estivesse hipnotizado pela sua reação a uma série de padrões rítmicos, verbais, vocais, instrumentais e físicos” (Havelock, 1996, p. 164-170). Tomado pela aprazível voz da Musa, o espectador permitia que o conteúdo instrutivo da poesia lhe fosse internalizado. Na República, Platão empreende uma áspera crítica à poesia, a qual é pormenorizada nos Livros II e III, até que, no Livro X, o filósofo finalmente propõe a não admissão do poeta imitador na cidade. Mas, por que dedicar-se a um assunto referente à teoria da arte, como o faz Platão com tamanho fôlego e intensidade, em uma obra filosófica em que o tema principal é a justiça? A crítica se justifica pela importância que seu autor atribui à formação moral dos cidadãos de sua Cidade ideal pela poesia. Nessa Cidade platônica, a poesia cumpre uma função bem maior do que a de mero entretenimento, qual seja, a de educar a alma. A poesia, enquanto atividade pedagógica, é capaz de infundir as virtudes no indivíduo e, assim,

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estabelecer a tão necessária justiça, seja para harmonizar as relações entre as partes da alma ou entre as classes no âmbito do Estado. No conteúdo poético, estão inseridos conhecimentos e instruções de ordem prática, referentes não apenas às atividades profissionais, mas, também, ao tipo de conduta adequada ao indivíduo em sua vida pública. Depositário da memória social e instrumento de educação das novas gerações, o enredo poético era permeado por conhecimentos úteis e prescrições sobre os mais diversos aspectos da vida social: éticos, políticos, históricos, hábitos e costumes, rituais diversos e até mesmo conhecimentos técnicos (Rodrigo, 2006, p. 525).

Platão pretende retirar do poeta sua autonomia artística, disciplinando sua atuação pedagógica e censurando uma parte de sua fala. Para o filósofo, determinado tipo de conteúdo, forma ou sonoridade, não adequado ao projeto político filosófico, deve ser proibido e banido da poesia. Por sua vez, tudo aquilo que promova a boa convivência entre as classes e a subserviência dos indivíduos à racionalidade deve ser exaltado por uma poesia a serviço dos propósitos do governante. Essa poesia, dita oficial, consiste num instrumento pedagógico dotado de poder persuasivo, capaz de promover o modo de vida justo. Assim, consonante com tais restrições propostas pelo filósofo, não se deve consentir que as crianças tomem contato com as “fábulas fabricadas ao acaso por quem calhar, e recolham na sua alma opiniões na sua maioria contrárias às que, quando crescerem, entendemos que deverão ter” (Rep., 2001, 377 b). A censura deve incidir em todas as formas de literatura, contudo, é Homero e, também, Hesíodo (os dois maiores poetas gregos) que Platão adota como principais referenciais poéticos, pois, efetivamente, “são esses que fizeram para os homens essas fábulas que contaram e continuam a contar” (Rep., 2001, 377 d). Por isso, a necessidade de vigiar, antes de tudo, as obras canônicas, para, em seguida, enquadrar os poetas menores dentro dos limites concedidos à poesia. A Ilíada e a Odisseia, as duas grandes obras da tradição atribuídas a Homero, estão amplamente permeadas de exemplos heroicos. A Ilíada pertence a um universo regulado pela heroicidade do guerreiro, cuja regra de conduta é própria da areté cavalheiresca. Predomina, nessa epopeia, o estado de guerra e a permanente afirmação da grandiosidade conquistada mediante o combate entre os heróis; a aristéia entre Diomedes e Agamenon ou entre Heitor e Aquiles, por exemplo, “que termina com o triunfo de um herói famoso sobre o seu poderoso adversário” (Jaeger, 2001, p. 71-72). A Odisseia é a narrativa heroica do retorno de Odisseu (ou Ulisses) à ilha de Ítaca, sua terra natal e reinado. O universo de Odisseu é diferente do de Aquiles, ele é regulado não pela constante ameaça do ataque do inimigo troiano, mas pela

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afronta do herói mortal aos deuses. São os deuses que interferem na volta de Odisseu para casa, ora ajudando ora criando obstáculos ao retorno. Tanto Aquiles como Odisseu, os dois grandes heróis das duas epopeias, frequentemente venciam as adversidades impostas pelos inimigos e pelo destino (as moiras) por saberem usar da virtude que lhes era preponderante. Aquiles, pelo seu temperamento impulsivo e colérico (seu thymós), derrotou Heitor, vingando, assim, a morte de Pátroclo; enquanto Odisseu, por sua astúcia ou inteligência prática (métis), conseguiu enganar o Ciclope e livrar sua tripulação de ser devorada pelo gigante. Esses são apenas alguns exemplos da explicitação da areté aristocrática por Homero. Os exemplos traçam “uma imagem da vida da nobreza grega primitiva, tal como é apresentada pelos poemas homéricos” (Jaeger, 2001, p. 37). É essa constante explicitação incisiva da imagem heroica dentro dos poemas o que confere efeito educativo ao mito. O mito é paradigmático, pois atua como modelo a ser seguido; é normativo, pois prescreve ao ouvinte qual deve ser a sua conduta; e é psicologicamente ilustrativo, pois delineia na mentalidade a imagem daquilo que é exemplarmente bom. A potência pedagógica do mito é o ponto central da preocupação de Platão em relação à liberdade artística do poeta. O poeta não pode livremente recitar todos os trechos da Ilíada ou da Odisseia, por exemplo (e, por extensão, todo e qualquer conteúdo da comédia ou da tragédia); pois é preciso, antes de tudo, filtrar esse conteúdo e, ao mesmo tempo, impedir a mimética. Não se trata, contudo, de exigir que o poeta fale somente a verdade. Não é a verdade, nem a veiculação do autêntico Bem, que Platão reserva para as massas, mas, sim, um tipo de verdade e bondade adequado ao projeto político. Ele não está muito preocupado com a boa educação do rebanho, mas com um tipo de instrução que assegure a obediência aos líderes. Por isso, o poeta poderia não somente omitir passagens literárias, mas, também, recriá-las, se assim lhe fosse ordenado pelo governante. Para Platão, então, o conteúdo educativo da poesia poderia ser mentiroso? Dentro de determinado contexto e voltada para fins práticos, a métis platônica poderia sim ter um conteúdo educativo mentiroso. Na República, são apresentados dois tipos de mentira poética: a mentira sem nobreza e a nobre mentira. Platão trata de cada uma delas justificando sua censura e seu uso, segundo as necessidades do governante. A primeira forma de mentir poeticamente deve ser condenada e suprimida da educação. O que Platão pretende banir da literatura e, por extensão, da atividade educativa, é aquilo que ele identifica como mentira sem nobreza. A mentira sem nobreza é “o que acontece quando alguém delineia erradamente, numa obra literária, a maneira de ser dos

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deuses e heróis, tal como o pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que quer retratar” (Rep., 2001, 377 d). Por sua vez, a nobre mentira deve ser utilizada como instrumento imagético de finalidade educativa desde a infância. Platão preconiza que os governantes devem persuadir as amas e as mães a fim de contar às crianças, tão cedo quanto possível, as boas fábulas, tendo em vista moldá-las com determinados valores. É a formação da classe dos guardiões que Platão almeja configurar por meio da nobre mentira. Tal formação consiste em convencer os futuros guardiões do Estado, ainda no berço, das suas funções (obrigações para com a defesa do Estado), bem como da conduta a ser obedecida (respeitar os líderes). E agora, como arranjaremos maneiras de, com uma nobre mentira, daquelas que se forjam por necessidade, e de que há pouco falávamos, convencer disso, sobretudo os próprios chefes, e, se não for possível, o resto da cidade? (...) Não é nenhuma mentira nova, mas da Fenícia, coisa já sucedida anteriormente em muitas partes, segundo contam e fazem crer os poetas, mas que não aconteceu entre nós, nem sei se sucederá, e só se pode acreditar à custa de um sólido poder de persuasão (Rep., 2001, 414 b-c).

A nobre mentira, em questão, é o mito das raças (já citado no capítulo I deste estudo), o qual, é entendido como a justificativa natural da hierarquia existente entre as classes do Estado. Ele serve como parâmetro normativo para o uso das imagens úteis na educação e faz alusão à genealogia dos espartanos, nascidos a partir dos dentes de um dragão, semeados no solo em Tebas pelo fenício Cadmo – conta a antiga lenda. Com isso, Platão explicita a intenção política por detrás das boas fábulas: a persuasão da juventude, mediada pelo encantamento da poesia. A técnica da persuasão é, assim, justificada como um adequado e, até mesmo, desejável instrumento educativo, cuja finalidade é o Bem. O Bem, de um ponto de vista prático, orienta a justiça. Esta, por sua vez, consiste em conferir harmonia entre as classes e dissuadir a conduta intempestiva e violenta dos guardiões sobre as massas e contra o governo, de forma que, para “os pastores a coisa mais vergonhosa de todas é criar cães para ajudarem a cuidar do rebanho, de tal modo que, devido à falta de disciplina, à fome ou qualquer outro mau costume” (Rep., 2001, 416 a) ataquem as ovelhas ao invés de protegê-las. O caráter moralizador das imagens, embora, por vezes, percorra caminhos dissonantes em relação à Ideia do Bem, permanece sempre submetido ao princípio e à finalidade prática da bondade.

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CAPÍTULO III: Sentido da educação imagética em Platão

Neste capítulo, serão abordadas questões concernentes à educação pelas imagens, especialmente no tocante ao conteúdo moral. Para Platão, há um saber apriorístico em estado latente na alma humana que pode ser despertado pelas imagens. Esse saber mantém intrínseca relação com a moralidade. Sobre essa capacidade intermediadora (daimônica) das imagens, conforme vimos no capítulo anterior, encontra-se a chave para a compreensão da inter-relação entre kalos e kagathos, isto é, a junção entre duas qualidades (belo e bom) num único conceito, remontando a atitude da aristocracia de sua época. Não existe ensino, mas apenas reminiscências, nos dirá Platão; entretanto, cabe, aqui, fazer a devida diferenciação entre uma e outra coisa. Aquilo que o filósofo compreende por ensino é algo menor, inferior e voltado para uma mera instrução técnica. Não serve para a formação do aristói, embora, admita Platão, sirva para determinados propósitos dentro do panorama da educação filosófica. De qualquer forma, toda a atividade pedagógica tem como referencial norteador a Ideia da Virtude, modelo de conduta e conteúdo de conhecimento puro. Platão, novamente, utiliza-se de conceitos dualistas, a unidade e universalidade da Virtude versus a multiplicidade e a particularidade das virtudes. No entanto, as imagens, enquanto dispositivos sensíveis intermediários (e intermediadores) entre extremos ontológicos, se destacam dentro desse percurso educativo, pois atuam como instrumentos pedagógicos capazes de estabelecer a ligação entre diferentes momentos ou estágios cognitivos. As imagens são responsáveis por fazer a passagem entre a ignorância (ausência de saber e de Virtude) e a formação intelectual (início da educação filosófica). Essa natureza transicional, referente à educação pelas imagens, será, no decorrer deste capítulo, explicitada e justificada, com base em algumas passagens de dois diálogos fundamentais, A República e o Fedro, com especial atenção à argumentação mítico-religiosa utilizada por Platão para tentar convencer seu interlocutor sobre determinadas qualidades da alma.

1 – Educação como processo de reminiscência da alma

Platão, no diálogo Mênon, concebe a educação como um processo de reminiscência da alma sobre conhecimentos por ela mesma esquecidos quando encarnou em seu corpo sensível. O nascimento dos seres humanos, segundo uma concepção antiga (da qual o filósofo compartilha), é o momento em que nossa alma deixa de habitar uma esfera suprassensível

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para retornar ao mundo concreto. Esse rito de passagem, da psykhé para o corpo físico, sóma, promove a perda das memórias adquiridas ao longo da jornada da alma. Essa proposição, num primeiro momento, soa como algo muito estranho, tendo em vista que nossa concepção de educação (de maneira usual) privilegia a construção do conhecimento como feito positivo da atividade pedagógica. No entanto, Platão nos dirá o oposto: “não há ensino, mas apenas reminiscência” (Mênon, 1980, 82 a). A alma, sob tal hipótese de compreensão da atividade educativa, já comportaria em si mesma todos os conhecimentos, os quais, ao longo de sua existência, poderão vir a aflorar em sua memória. Percebemos, com base nessa concepção educativa, que, para o filósofo, não há uma dissociação muito clara entre a epistemologia e a metafísica na aquisição do conhecimento e o Mênon trata com uma certa propriedade tal aspecto. Há, certamente, um esforço e uma intencionalidade em depositar na esfera do extrafísico, do incorpóreo, do misticismo e da religiosidade antiga, uma expectativa e uma aspiração em alcançar, no imutável e inteligível, a solução para os problemas, bem como acessar toda fundamentação ontológica. O processo de busca por critérios de verdade absolutos e inquestionáveis, tendo por fundamento, essencialmente, conhecimentos apriorísticos, é algo muito presente no pensamento de Platão. Tais conhecimentos são tidos como a melhor e mais valiosa explicação para toda a sorte de questões e abrangem, desde os fenômenos da vida comum, as banalidades da physis, até as regras de uma conduta moral, o ethos, adequado para o bom comportamento dos cidadãos na pólis. Todas essas esferas da vida seguem ordenadas no mesmo cosmos, onde tudo está inserido. Para Platão, a chave para sua compreensão, contudo, está depositada no interior da alma enquanto reminiscência. O Mênon pretende esboçar parte dessa funcionalidade da educação, com vistas a resgatar conhecimentos previamente esquecidos pela alma. Tentaremos explicitar a tese de que a verdadeira educação, assim considerada pelo filósofo, não pode depositar, exteriormente, nada na alma dos educandos. O objeto de conhecimento dessa busca não é da ordem sensível, embora a sensibilidade atue consideravelmente nesse processo de educação, mas da ordem do imutável, do permanente, de modo que tal objeto de conhecimento procurado está disponível de forma latente na alma humana. A maiêutica socrática, com seu jogo de perguntas e respostas, por vezes, pouco interessado nas respostas, mas na construção de uma narrativa nos diálogos, seria, provavelmente, o instrumento que melhor se adaptaria à exploração desses recursos. Platão defendia a tese de que tinha de vir do próprio intelecto; de que era trazido à consciência por um processo análogo ao que nos permite recordar um objeto que já conhecemos e esquecemos. Esta é a célebre doutrina de que a “aprendizagem”, o processo pelo qual se adquire o conhecimento no seu

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pleno sentido é a reminiscência (anámnesis) (Cornford, 1989, p. 78).

O Mênon, sem muitos rodeios, já introduz na cena dramatúrgica platônica o tema central da discussão a ser levada a cabo no texto. Questiona-se se é possível ou não ensinar a virtude, a areté. Recordemos, pois, das três perguntas feitas por Mênon a Sócrates (Mênon, 1980, 70 a): a primeira delas: “a virtude pode ser ensinada?”; a segunda, corolário imediato da primeira: “no caso de não o ser, se é adquirida pela prática?”; a terceira, da negação das duas últimas, já tende para uma aposta no interior da alma humana: “não sendo alcançada nem pelo ensino nem pela prática, se se acha naturalmente no homem, e de que modo?”. Sabemos que, por influência socrática, Platão tem em conta que as virtudes também consistem num tipo de conhecimento. Foi de Sócrates que Platão herdou a noção de que o conhecimento é algo indissociável de um caráter virtuoso, o sábio é alguém que possui em sua alma as virtudes em sua melhor e mais pura constituição. Assim, dispor do conhecimento implicaria em ter uma boa alma ou bondades na alma. Convencionalmente, poderíamos, aqui, denominar de “a Virtude”, com inicial maiúscula, tal como um substantivo próprio, aquilo que, entendida como Ideia (conceito platônico), é capaz de incorporar a noção de paradigma ou de objeto puro do conhecimento. Essa denominação, a Virtude, toma por base tudo aquilo que o Sócrates do Mênon interrogou e, por certo, pretendeu tratar como o conjunto das virtudes, passível de conceitualização. Dentro do contexto do diálogo, esse termo agregaria todas as virtudes pensáveis, sendo que, “por mais numerosas e variadas que sejam, deve haver uma única forma para todas, que faz com que todas sejam Virtude, e para o qual deve olhar quem quiser responder com acerto à pergunta sobre o que seja a Virtude” (Mênon, 1980, 72 c). Platão já expôs, de forma clara e contundente, que não está interessado em buscar a multiplicidade de aplicações práticas da conduta moral. Está ciente de que, mais importante do que voltar sua atenção (e a de seu leitor) para uma discussão de caráter particular, perdendo-se nas multiplicidades dos fenômenos de uma moralidade comum, melhor seria realizar um exame mais aprofundado, focado no interior e no cerne das estruturas da alma humana. Existem os fenômenos da moralidade, são virtudes inúmeras; contudo, existe para além delas algo que deve ser destacado e denominado de forma distinta. Há, portanto, uma procura pelo conceito de Virtude, “a Virtude é uma só para todos (…) uma definição que se aplica a todos os casos” (Mênon, 1980, 73 c-d), na direção de encontrar, numa definição geral desse conjunto de valores, o rótulo ou identidade comum a tudo isso. Em sua forma conceitual, essa Virtude teria por função conferir um norte comum a todas as demais virtudes do mundo sensível. Poderíamos nos perguntar: de que forma “a

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Virtude” lança sua luz racional da verdade sobre a conduta moral, a qual deveríamos seguir em nosso mundo ordinário? Possivelmente, essa luz racional vem lançada, de modo a permitir que a alma seja conduzida pelo seu elemento racional, primordial e originário, o qual está presente em suas estruturas mais profundas. As recordações da alma, essencialmente de uma existência anterior ao nascimento, são a chave para a compreensão do modo pelo qual essa “Virtude” encontra-se aprioristicamente latente em nós mesmos, estando presente em nossa memória original e sendo capaz de direcionar nossas escolhas para o rumo correto. Vale a pena, nesse ponto da discussão, recordarmos da problemática em torno da teoria do conhecimento daquela época. A teoria das reminiscências, ou da anámnesis, grosso modo, poderia ser interpretada como uma resposta aos desafios impostos pela sofística à epistemologia platônica. No Mênon a teoria da anámnesis foi apresentada para fugir ao dilema sofístico: ou conhecemos uma coisa, e então não há a necessidade de a procurar; ou não a conhecemos, e então não podemos saber o que procuramos. O dilema pressupunha uma única alternativa, ou o conhecimento completo ou a ignorância total. A anámnesis fornece graus de conhecimento entre esses dois extremos (Cornford, 1989, p. 82).

Sobre esses tais “graus de conhecimento”, é interessante frisar que Platão está, em muitos de seus diálogos, tentando se esquivar dessa situação de polaridade epistemológica. Embora reconheça e, em muitas ocasiões, defenda a existência dela, sua teoria do conhecimento não se esgota nesse binarismo, como pudemos observar no Parmênides e no Sofista. Dessa forma, seja por meio de seus dualismos – ignorância versus saber verdadeiro, corpo versus alma, sensível versus inteligível, dentro outros – seja pela defesa e pelo excesso de valor conferido à dimensão da perfeição metafísica (o universo dos deuses e dos autênticos paradigmas), relegando à esfera da inferioridade o campo das coisas sensíveis, há sempre uma infinidade de possibilidades entre os extremos. Esse incremento ontológico – os diversos graus de realidade entre os polos absolutos, o qual Cornford apresentou, na citação acima, por “alternativa” ao dilema apresentado pelos sofistas em sua época – já nos é conhecido desde os estudos do diálogo Sofista, no capítulo anterior. Naquela ocasião, expomos o caráter intermediário e flexível das imagens, como uma espécie de dóxa, situada entre extremos, concepção ou noção muito cara e apropriada ao discurso platônico, especialmente em momentos difíceis, em que há uma necessidade filosófica de esquivar-se da crítica dos sofistas sem que, para isso, esse discurso recaia na qualidade estanque e binária do tipo bem versus mal. No tocante a esse processo educativo, fundamentado na teoria das reminiscências,

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nossa discussão incorpora mais uma série de questionamentos, tendo em vista o objeto do conhecimento a ser buscado pela alma no conjunto de suas memórias. Qual seria o ponto de partida e a natureza dessas reminiscências? No Mênon, tais preocupações nos são assim colocadas: E de que modo, Sócrates, te arranjarás para procurar o que não sabes absolutamente o que seja? Das coisas que desconheces, qual é a que te propões procurar? E se porventura vires a encontrá-la, como poderás saber que é ela, se nunca a conheceste? (...) Mas, será que avalias, de fato, quanto é provocativa tua proposição de que o homem não pode procurar nem o que sabe nem o que não sabe? Não pode procurar o que sabe, pelo simples fato de já o conhecer; não precisará, portanto, esforçar-se para procurá-lo; nem o que ignora, pois não saberá mesmo o que terá de procurar (Mênon, 1980, 80 d-e).

De maneira esquemática, o que Mênon deseja saber de Sócrates é, basicamente, (1) como viríamos a conhecer aquilo que ignoramos por completo? (2) Se, por acaso, isso vier a ser encontrado, como saberíamos se esse conhecimento é ou não aquilo que buscávamos? Para essas duas questões, a proposição de Sócrates de que (3) aquilo que procuramos não está situado nem no extremo da ignorância absoluta nem no outro extremo do pleno saber emerge como a melhor resposta. O objeto a ser conhecido está latente em nossa alma e apesar de, momentaneamente, não estarmos focados nele, ele preexiste nela, como um acessório ou apêndice cognitivo da psykhé humana. Essa proposição implica em reconhecer na alma de qualquer pessoa, inclusive na do escravo de Mênon, o personagem analfabeto, um saber apriorístico, isto é, verificar que há um conjunto de conhecimentos de ordem inteligível e de mais alto nível racional que o próprio escravo desconhecia compreender. Para Sócrates, esse conhecimento, (3) interposto entre extremos, não seria outra coisa senão a reminiscência da alma e tal processo de capturar esses resquícios de memória consistiria na educação propriamente dita. O exemplo do escravo é tomado como a ilustração de que as reminiscências são conhecimentos latentes e estão presentes mesmo na alma de alguém que não possui formação aristocrática nem advém de um berço nobre. Diz o Sócrates: “não percebes, Mênon, como ele [o escravo] já está adiantado no caminho da reminiscência?” (Mênon, 1980, 84 a). Castoriadis (2004, p. 111-112) comenta que a teoria das reminiscências, tal como colocadas no Mênon, remonta ao pensamento de Heráclito e está vinculada a uma tradição filosófica que acreditava em um estado de latência do saber na alma. Sobre esse estado, é o escravo de Mênon, enquanto personagem da narrativa, quem melhor exemplifica a noção de que o conhecimento é algo acessível a qualquer indivíduo. Da mesma forma que existem níveis de realidade distintos no conjunto das imagens, existe, também, uma capacidade em

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maior ou menor grau de anamnese entre os indivíduos. Aqueles que a possuem em maior grau, seguramente, seriam os mais sábios. Platão trata a respeito dessa constituição anímica, com alguma propriedade, na República. Há, neste texto, uma separação clara entre os indivíduos segundo a posição que ocupam no espaço político, seja pela capacidade cognitiva ou pela superioridade moral de cada um deles. Sócrates, tal como representado nos diálogos, ostenta uma capacidade intelectual infinitamente superior à do escravo. Entretanto, o processo de educação para a formação plena da alma deve ser o mesmo para ambos ou, pelo menos, iniciar-se de maneira equitativa. A seleção e a continuidade (ou não) nos estudos intelectuais seriam avaliadas posteriormente. Platão pretenderia, com isso, oferecer as mesmas condições educativas para todos os cidadãos da pólis, independentemente de sua origem. A gradual seleção para o cargo de filósofo-governante se incumbiria de alocar, no devido momento, cada um deles na sua função específica nessa sociedade. Voltando ao tema central do Mênon, o escravo dispõe, em sua alma, de reminiscências e, algumas delas, correspondem a conhecimentos – universais e necessários – sobre a geometria. O escravo, apesar de, num primeiro momento, ignorar a ciência desses conhecimentos, logo após ser devidamente questionado por Sócrates, pelo emprego de perguntas simples e diretas, mostra-se habilitado a respondê-las corretamente: “Se sempre o possuiu, sempre foi sabedor; e se o recebeu num determinado momento, não poderia ter sido na presente vida. Ou alguém lhe terá ensinado geometria?” (Mênon, 1980, 85 d-e). O conhecimento, considera Platão, faz sua morada em nós, ele está presente em nossa alma, em algum lugar remoto e intocado dela. Tais conhecimentos matemáticos, por sinal, já preexistem na alma daquele personagem, estando, por assim dizer, ocultos em seu sono do esquecimento; porém tais conhecimentos podem ser trazidos à superfície da memória quando corretamente estimulados. A educação é, segundo o filósofo, a melhor de todas as formas de estímulo. Cada um de nós é como alguém que dorme com esse saber. Pode-se recordar a expressão análoga de Heráclito – não que Heráclito tenha a mesma ideia, mas, enfim, a expressão já está nele. Cada um de nós conhece mas não sabe que conhece; e pode-se ajudar cada um de nós a compreender o que já sabe. É o que faz Sócrates no Mênon: ele toma um jovem escravo analfabeto e, na aparência e na realidade, o faz demonstrar o maior teorema, o mais misterioso, o mais incompreensível, o mais paradoxal para a época, a saber, o teorema que estabelece que a relação da hipotenusa com os lados de um triângulo retângulo isósceles não é racional, mas igual à raiz quadrada dos dois. Esse teorema, recentemente descoberto na época, monstruoso, enorme, paradoxal, por que estabelece que há números que não são racionais – o que em grego se diz arrètoi, isto é, indivisíveis –, equivale para a época, digamos, proximamente à demonstração de que o espaço é curvo, por exemplo, um teorema tão avançado, tão difícil quanto isso. Ora, Sócrates toma um escravo e o faz demonstrar esse teorema. E a objeção “ele o faz descobrir por sim/não” não se sustenta porque ele poderia fazer a mesma

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coisa com um nobre ateniense (Castoriadis, 2004, p. 111-112).

Embora o texto platônico não deixe muito claro se o referido teorema geométrico é ou não o de Pitágoras, conforme afirma Castoriadis no excerto anterior, o importante é que se trata de um tipo de conhecimento abstrato e não compatível com o nível de instrução comum a um escravo daquela época. Também é interessante ressaltar que foi Sócrates quem conduziu essa investigação, fazendo sempre as perguntas adequadas, restando ao escravo, somente, a afirmação ou a negação das proposições socráticas. De qualquer forma, o exercício maiêutico de tentar extrair os conhecimentos mais elevados de sua época do interior da alma do escravo é o que Platão quer nos apresentar a partir dessa cena do Mênon. Vale lembrar que, dentro da estrutura social ateniense, somente os aristocratas dispunham de tempo livre, a scholé, para as instruções de caráter intelectual, especialmente. A hipótese fundamental que Platão se empenha em defender no Mênon é a de que dentro de cada um de nós está, em potência ou possibilidade, tudo aquilo que realmente tem importância para nosso crescimento intelectual e moral. O conteúdo que é inserido exteriormente em cada um de nós é algo secundário em relação aos objetos puros do conhecimento, os quais, por sua vez, só incidem em nós mediante reminiscências. A autêntica educação não pode ser inserida no sujeito de fora para dentro, posto que deve emergir das estruturas da psykhé. Essa formação, de caráter elevado, está em consonância com o mundo das Ideias e visa alcançar o puro conhecimento. O essencial, segundo Platão, é aquilo que podemos conhecer voltando-nos para nosso interior, região em que habitam nossas reminiscências. Se, por ventura, não temos essa percepção das coisas, isso se deve aos efeitos do corpo sensível, sóma, sobre a leveza da alma. Para Castoriadis (2004, p. 112), essa teoria da anamnese “está vinculada à imortalidade da alma: as almas conhecem porque viram em outro lugar, em um lugar supraceleste, as Ideias, e ao encarnar-se ganham peso, esquecem esse conhecimento que, contudo, permanece”. A materialidade ofusca o brilho do inteligível, isso já considerava Platão na República. Admitindo como válida a hipótese platônica de que a autêntica educação não é nada mais do que uma retomada das reminiscências e que a origem desse conhecimento está dentro de nós mesmos, perguntar-se-ia: “como algo como o conhecimento pode ser conquistado se já o possuímos?” (Castoriadis, 2004, p. 112). A tarefa de identificá-lo, de esmiuçar sua origem e de examinar sua natureza ontológica resultará na compreensão do processo educativo, conforme Platão sugeriu em muitos dos seus diálogos. Se o conhecimento, tal como defendido pelo filósofo, é sempre preexistente, isso implica que, tendo em vista essa condição prévia e apriorística da alma, ele não pode ser adquirido, pois ele já é algo inerente à nossa

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natureza. Sendo assim, a tarefa educativa não seria outra senão um autoconhecimento ou o conhecimento de si mesmo, nos moldes do que foi tratado no Alcibíades. Consequentemente, todo processo de formação intelectual que não contemple essa prerrogativa estaria fadado ao erro não apenas metodológico, mas, também, ontológico. Com vistas a verificar a maneira pela qual se dá esse procedimento de educação da alma por meio das imagens, a educação imagética, teríamos que abordar o tema dos graus de realidade relacionados ao conceito de Virtude. Vimos que a formação dialética do filósofogovernante, explicitada nos Livros VI e VII da República, representa o coroamento do percurso educativo platônico para a Cidade justa. Não pretendemos ir tão longe em nossa análise, nos cabe, apenas, nesse momento, aprofundarmo-nos na etapa educativa propedêutica de infusão das virtudes sensíveis na alma, formação indicada para os guardiões dessa Cidade. Voltemos ao Mênon. No que diz respeito à questão de que a Virtude pode ou não ser ensinada, a resposta pode ser dúbia. Conforme vimos anteriormente, a Virtude, elemento a priori passível de ser alcançado pelas reminiscências, comporta em si mesma uma carga conceitual própria. Congrega um apanhado de elementos da moralidade – virtudes e disposições de caráter e de conduta individual. Contudo, para além dessa qualidade conceitual, é possível verificar no mundo sensível, dentre as práticas e ações humanas, as imagens heroicas e toda a dimensão da moralidade em situações concretas, múltiplas aplicações do conceito de Virtude. A Virtude, tal como advogada por Platão, materializa-se na vida concreta dos indivíduos comuns sob a forma de moralidade particular. Trata-se de pormenorizar a multiplicidade, tendo em vista sua concepção ideal, quer dizer, trata-se de trabalhar em separado com cada um dos elementos que compõem o conjunto geral do conceito. No tocante à multiplicidade e às ações virtuosas, em suas mais diversas aplicações no mundo sensível, para essas atividades, sim, existe o ensino. Não se pode ensinar a Virtude, mas determinadas virtudes: ser temperante, ser corajoso, etc. Samuel Scolnicov (2006, p. 20-21) classifica, dentro do contexto moral de Platão, especialmente no Mênon, duas formas ou tipos de virtudes: as de cunho intelectual e as de cunho sensível. Fazem parte das virtudes sensíveis, por exemplo, a coragem, a temperança, a piedade, a justiça, dentre outras. Por certo, a Virtude, tal como dito anteriormente, não faz parte da esfera sensível, sendo considerada modalidade intelectual, a Virtude é própria da dialética e é conteúdo de nível abstrato. No entanto, apesar de ostentar superioridade, por se tratar de um tipo nobre de conhecimento, a Virtude em si mesma não é aquela que circula ordinariamente pelas cidades e espaços da sociedade. A Virtude não define o caráter do homem comum, não adjetiva nenhuma boa prática ou conduta adequada ao papel que o

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cidadão deve cumprir em seu meio. Em outras palavras, o conceito de Coragem – forçosamente, aqui, grafado em maiúsculo – é paradigmático, ele não é da mesma ordem real que a coragem do guerreiro em defesa de sua cidade-estado. Tais elementos da moralidade constituem níveis ou hierarquias distintas, objeto modelo e representação desse objeto, os quais se comunicam por meio das relações de semelhança e de identidade da imagem. A Virtude, ideal e inteligível, orienta a multiplicidade, disciplina-a. Esse paradigma de Virtude serve como guia e regula as práticas da moralidade. Scolnicov denomina “virtudes populares” essa massa de virtudes sensíveis, práticas e úteis à sociedade, as quais são designadas a atender e a suprir as necessidades de um ordenamento ético da sociedade. A máxima platônica “não existe ensino, mas apenas reminiscências” (Mênon, 1980, 82 a), se encarada de um ponto de vista lógico, incorreria num grande equívoco, caso não considerasse que, para além de conhecimentos puros, existem, também, conhecimentos úteis. As opiniões verdadeiras, as imagens e as “virtudes populares” corresponderiam a essa última modalidade, de modo que ocupariam a área justaposta entre o Ser e o não-Ser, conforme vimos anteriormente. Platão não nega por completo a possibilidade de ensinar ou infundir saberes na alma humana, apenas não os considera como profundamente relevantes. Essas virtudes sensíveis, “populares”, ocupam uma posição inferior na hierarquia da ontologia platônica. A alma humana, nos termos platônicos, dada sua qualidade imortal, não comporta nenhum desses elementos da sensibilidade, mas, somente, aquilo de mesma natureza que essa alma já traz consigo, isto é, a Ideia de Virtude. Assim, a alma imaterial identifica-se com a Virtude inteligível, de modo que, por semelhança, ela é capaz de reconhecer nas práticas da conduta moral cotidiana algo parecido com aquilo que comporta em si mesma. Nesse sentido, a educação pelas imagens atua por dedução, haja vista que a Virtude disciplina e orienta a conduta moral concreta. O universal, a Ideia de Virtude, parâmetro último, regula o particular, isto é, a multiplicidade das virtudes. Se não existisse nenhuma possibilidade de se ensinar nada a ninguém – e aqui incluímos a moralidade – por que insistir na hipótese de se ensinar virtudes aos homens? Sócrates, no Mênon, não se dá por satisfeito em afirmar a superioridade de uma educação filosófica, entendida, aqui, no sentido de lapidar a alma do filósofo, mediante a clarificação daquilo que está latente nela: a iluminação racional e a recuperação das reminiscências. É necessário, portanto, virar o jogo contra o sofista. Admitir-se como única e exclusivamente valida a educação pelas reminiscências, em função da superioridade dessa formação – similarmente ao reducionismo do dilema sofístico acusado anteriormente: ignorância versus pleno conhecimento – seria negligenciar o potencial educativo das imagens como formação

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intermediária. Há um hiato muito profundo e complexo entre os extremos da cognição humana. Platão pretende demonstrar que, da mesma maneira que existe um horizonte múltiplo de nuanças ontológicas – o qual vai desde o real até a cópia da cópia – existe, também, uma gradação intercalada entre os extremos da moral. Ignorância e maldade, num sentido socrático, são deficiências equiparáveis; são características de uma alma inferior: pobre intelectual e moralmente.

2 – Interdependência entre imortalidade e reminiscência na compreensão do sentido educativo das imagens

No item anterior vimos que a Virtude, conceito agregador e unificador do conjunto das virtudes sensíveis, é puro conhecimento e, sob tal configuração, é passível de ser rememorada pelas reminiscências. Com vistas a corroborar essa proposição disposta no Mênon, Platão empreende uma defesa assentada em fundamentos da tradição, ou ainda, calcada para além dos ditames do conhecimento racional. Recorre, pois, baixo uma narrativa literária permeada de alegorias e fantasias, ao resgate de um conjunto de crenças mítico-religiosas, possivelmente, algo convincente em sua época. O principal critério argumentativo a ser, aqui, destacado, corresponde a um ajustamento conveniente entre verossimilhança e racionalidade. O mito não precisa ser necessariamente crível, mas, travestindo-se de uma pretensa realidade, ele necessita ser aprazível e agradar o público. O mito é conveniente na medida em que toma para si somente os melhores elementos discursivos de uma construção epistemológica do pensamento, ao mesmo tempo em que se ampara no universo comum do imaginário grego. Platão executa uma espécie de malabarismo narrativo que se dá em duas frentes: 1) aproxima o espectador pela afetividade do mythos e 2) constrói um lógos interessado em sustentar uma posição teórica favorável ao discurso platônico. O filósofo está plenamente consciente dos limites de cada um deles no texto. Assim, quando, a critério do filósofo-escritor, a razão não seria capaz de convencer o interlocutor ou não daria conta de explicitar determinado enunciado, emprega-se no texto a potência da imagem ou imaginário. Essa alternância ou concomitância de recursos em nada diminui nem desqualifica o mérito da razão, pelo contrário, essa tessitura é, justamente, o componente que joga com os seus limites. Uma argumentação que se estrutura sob diversas camadas, toma por fundamento ontológico a racionalidade e a realidade das Ideias ao mesmo tempo em que lança mão da linguagem artística e de elementos estéticos para potencializar o discurso.

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Sob esse estilo de argumentação, Platão construirá a concepção de alma que melhor se adapta às necessidades de seu projeto de Estado, bem como edificará o modelo de educação capaz de instruir essa pólis ideal. Em benefício desse propósito político e, em função de sua sustentação, a psykhé deterá configurações e qualidades específicas. Parece que há um esforço intencional e dinâmico no sentido de, mais propriamente, ajustar essa constituição anímica às necessidades do projeto platônico e menos em investigá-la de forma autônoma. Assim, dentro do conjunto de especulações sobre sua natureza ontológica, prevalecem concepções que se encaixam perfeitamente nos anseios de Platão. Contudo, ao contrário do que essas impressões apontam, a qualidade do texto filosófico e sua riqueza teórica, assim como o projeto platônico em si mesmo, não sofrem nenhuma perda de valor filosófico. A adequação da noção de imortalidade da alma à constituição da natureza humana serve aos interesses da razão platônica. Essa caracterização da alma é, por si mesma, parte do processo de criação filosófica. Não há desonestidade por parte de Platão em adequar a necessidade de que a alma seja imortal para dar fundamento ao Estado ideal. Assim, mesmo que a motivação inicial do exame da constituição da alma não surja de um impulso filosófico, tal como o de Sócrates na maior parte dos diálogos, ele continua válido. Essa lógica pode ser expressa da seguinte forma: a alma deve ser universal e necessária, ostentando tais qualidades, para que a defesa do Estado ideal possa ser justificada, igualmente, como universal e necessária. Nesse aspecto, a projeção do Estado, a partir da constituição da alma (tal como Platão a constrói), é algo que casa perfeita e convenientemente com as aspirações políticas do filósofo. Dentro desse panorama, tais qualidades almejadas são: a alma deve ser imortal e sujeita às reminiscências. Olivieri (1987, p. 278), tradutor e comentador do diálogo Mênon para a língua espanhola, observa em sua introdução ao referido diálogo que a crença mítica sobre a imortalidade e a transmigração da alma não é algo criado por Platão, outros pensadores de sua época também compartilhavam dessa teoria. Entretanto, a estratégia discursiva do filósofo estabeleceu, no conjunto de suas obras (e especialmente no Mênon), uma relação de interdependência entre imortalidade e reminiscências. Platão embasa sua argumentação em torno da imortalidade, supondo que a alma, por ser eterna, comporta em si mesma os conhecimentos puros. Por outro lado, deduz que, dada essa condição de vir a conhecer o que lhe é inato, a alma só pode ser imortal. Ademais, por meio de uma pretensa constatação da existência de conhecimentos matemáticos na alma do escravo de Mênon, o filósofo conclui que a imortalidade seria a melhor, senão única, explicação para a preexistência desses saberes na alma. Diz o Sócrates no diálogo: interrogando-se os homens, se as perguntas forem bem conduzidas, eles

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darão por si mesmos respostas acertadas, o que não seriam capazes se já não possuíssem o conhecimento e a razão reta. Depois disso, se os pusermos diante de figuras geométricas ou coisas do mesmo gênero, ficará demonstrado à sociedade de que tudo realmente se passa desse modo (…) [Além disso,] quando alguém vê ou ouve alguma coisa, ou a percebe de outra maneira, e não apenas adquire o conhecimento dessa coisa como lhe ocorre a ideia de outra que não é objeto do mesmo conhecimento, porém de outro, não teremos o direito de dizer que essa pessoa se recordou do que lhe veio ao pensamento? (Mênon, 1980, 73 a-d).

Como uma espécie de jogo lógico, Platão ata à condição de imortalidade da alma sua defesa da teoria da reminiscência e, à possibilidade de reminiscência, ele condiciona a imortalidade da alma humana. Estabelece-se, assim, uma mútua relação de dependência entre imortalidade e reminiscência, relação essa que constitui a base da teoria educativa platônica. Ora, em razão de ser a alma imortal e ter renascido muitas vezes, já viu tudo o que há, tanto aqui como no Hades, não havendo o que ela não tivesse aprendido. Assim, não é nada de admirar que tanto sobre a virtude, como sobre tudo o que mais ela possa recordar-se do que conhecera antes. E como toda a natureza é aparentada e a alma aprendeu tudo, nada impede que, vindo a recordar-se de um único fato – o que os homens denominam aprender – ela chegue a encontrar por si mesma todos os outros, uma vez que seja corajosa e não desista de procurar. Pois procurar e aprender não passa de recordar (Mênon, 1980, 81 c-d).

Segundo

Platão,

o

ato

de

recordar-se

desses

conhecimentos

implicaria,

necessariamente, em tê-los obtido anteriormente. Se a sua posse não se deu durante essa vida (provavelmente, no caso do escravo, não foi tomando aulas de geometria); então, tais saberes somente podem ter sido obtidos antes do seu nascimento. Sendo assim, a alma deve ser imortal e Platão fará de tudo para nos convencer disso. Para Peña (2009, p. 180), o argumento da imortalidade da alma é demasiado importante para Platão e a prova mais clara disso é que o filósofo o repetiu até o último momento de sua produção literária. A defesa dessa posição chegou até os limites do discurso da razão. Não havendo mais recursos ao argumento racional, o filósofo lança mão de mitos, alegorias e toda a sorte de recursos metafísicos. Platão adotou, dessa maneira, a imaginação e a persuasão imagética como meios úteis para convencer seus espectadores sobre tal posição em relação à imortalidade da alma. Por certo, o filósofo está plenamente empenhado em defender tais qualidades anímicas; ele o faz, no entanto, sob a forma de discurso mítico, em dois diálogos, se utilizando do mito de Er, na República e da parelha alada, no Fedro.

2.1 – O mito de Er na República: elogio didático-moralizador à vida justa

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Ao final da República (2001, 614 b-621 d), Platão nos apresenta, por meio do mito de Er, seus argumentos acerca da imortalidade da alma e do processo de reminiscência. O mito de Er é a última alegoria que aparece no diálogo e pode ser tida como o grande desfecho de uma longa discussão em torno da justiça, levada a cabo desde as primeiras linhas do Livro I dessa mesma obra. Essa última metáfora constitui o coroamento da teoria platônica e pretende, enquanto último recurso argumentativo do diálogo, dizer ao leitor que a justiça é uma virtude fundamental e impreterivelmente necessária para a edificação da alma e do Estado. Sua existência real, isto é, como paradigma ideal, independe ou não da Cidade justa e tem na filosofia seu instrumento de possibilidade (Penedos, 1992, 49-50). Para Platão, conforme já vimos, a alma é imortal e esse caráter de imortalidade é aquilo que lhe permite identificar o conhecimento verdadeiro e a Virtude ao longo de sua existência. Sendo imortal, preexiste e reencarna, seguindo, assim, um ciclo que não se finda. Sua realidade é da mesma ordem das Formas, indestrutível e eterna. Trata-se de uma teoria emprestada dos órficos e dos pitagóricos, a metempsicose, que enxerga no espírito uma condição cíclica de padecimento e nascimento. A alma padece da ignorância e dos vícios morais da mesma forma que o corpo padece de doenças. Dessa maneira, a injustiça, a intemperança, a covardia e a ignorância constituem os males da alma capazes de arruiná-la. Sua cura, contudo, se dá pela verdadeira educação filosófica, como afirma Platão, na República (2001, 609 b-c). A filosofia ou processo dialético é, dentro do percurso educativo, a etapa superior do conhecimento e da formação humana. É por meio dela que a alma consegue atingir a justiça e, a partir disso, a sua salvação, pois a justiça é, “em si mesma, a coisa melhor para a alma” (Rep., 2001, 612 b). Aos justos, o destino assegura “os prêmios, recompensas e dádivas” ainda em vida. No entanto, essas benesses “nada são, em número nem em grandeza, em comparação com os que aguardam cada um deles depois da morte” (Rep., 2001, 614 a). O mito de Er, além de ser mais um exemplo de reforço da teoria sobre a imortalidade da alma é, também, um elogio ou alusão ao melhor tipo de vida, perecível e finita, que um mortal pode levar: a vida justa. É pela força da argumentação mítica que Platão empreenderá seu apelo final pela justiça em detrimento dos males da alma e pela escolha da vida justa ao invés dos hábitos viciosos. O mito é a narrativa dos acontecimentos que se dão entre a morte em combate de Er, o panfílico (referente à antiga região da Panfília, na Magna Grécia), e o seu ressurgimento do mundo dos mortos. Maria Helena da Rocha Pereira (2001, p. 484), a tradutora da República, ainda nos comentários finais da referida obra de Platão, aponta um paralelismo literário entre

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o mito de Er e os contos fantásticos narrados por Odisseu ao rei dos Feaces, Alcínoo, os quais versam acerca dos feitos heroicos realizados pelo próprio Odisseu, especialmente em sua visita ao Hades. A crença no mundo dos mortos (o Hades), pertencente ao universo da tradição, era de pleno conhecimento no século V a.C., de modo que Platão pretendia valer-se dessa aceitação popular da fábula homérica como argumento e modo de persuasão para justificar a vida justa. O mito de Er platônico toma por base o mito homérico; contudo, acrescenta-lhe as devidas modificações visando, sobretudo, dotá-lo de determinadas orientações pedagógicas e morais. Segundo conta o mito, depois de ser ferido fatalmente, a alma de Er sai de seu corpo e segue rumo ao mundo dos mortos. De acordo com o imaginário grego da época, esse lugar era o destino comum a todas as almas, independentemente do tipo de vida ou do caráter moral destas. O conto platônico o descreve como sendo “um lugar divino, no qual havia na terra, duas aberturas contíguas uma à outra, e no céu, lá em cima, outras em frente a estas” (Rep., 2001, 614 b). Havia, ainda, juízes que, posicionados entre essas duas aberturas, sentenciavam as almas, tendo em vista o comportamento virtuoso de cada uma delas. As almas justas avançavam para o caminho da direita, que as conduziam direto para o céu, enquanto que as almas injustas tomavam o caminho oposto, que as conduziam para baixo. O destino das almas variava de acordo com o veredito desses juízes, os quais se caracterizavam por ser uma espécie de divindades cujo papel era fazer uma triagem geral daqueles que ingressavam nesse ambiente. Er notou ainda que, além dessas almas recém-sentenciadas por esses juízes, havia outras que retornavam dessas duas aberturas. Eram aquelas que já haviam cumprido sua sentença e que, agora, regressavam para o mundo sensível, iniciando, assim, seu novo ciclo de vida. Da extremidade esquerda “subiam as almas que vinham da terra, cheias de lixo e pó, e por outra desciam as almas do céu, em estado de pureza” (Rep., 2001, 614 c-e). Platão usa o termo “panegíria”, nome genérico para os festivais dos gregos, que consiste em um tipo de reunião geral, no caso, reunião das almas. Algumas delas, que se conheciam, cumprimentavam-se e conversavam, “as que vinham do céu, contavam as suas deliciosas experiências e visões de uma beleza indescritível”; porém, as almas que regressavam da parte inferior, “a gemer e a chorar, recordavam quantos e quais sofrimentos haviam suportado na sua vida por debaixo da terra, viagem essa que durava mil anos” (Rep., 2001, 615 a). Platão não toma muitas linhas para descrever os benefícios da vida justa (a imagem da bem-aventurança daquele que se pauta pela virtude), mas lança mão de uma boa parte do mito para alertar (amedrontar) os espectadores quanto ao tenebroso destino dos injustos.

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O mito, assim apresentado, pretende ser pedagógico e tem por objetivo (para além de meramente entreter seu espectador) incutir nos indivíduos a compreensão de que a vida justa é o modelo de existência que vale a pena ser vivido. Esse modelo de conduta, pautado pela Virtude (a Ideia de justiça), deve ser plenamente assimilado pelos que leem ou que ouvem os mitos, no caso de serem declamados. Platão, nesse quesito, visa ser bastante didático ao nos apresentar, sob o formato de narrativa literária, suas imagens e alegorias. Ao longo da descrição desse mito, surgem exemplos e contraexemplos de conduta adequada à vida na Cidade justa, exemplos que fazem sentido ao público, posto que permeiam sua cultura. No mito, temos uma mostra desse didatismo pelo exemplo de Ardieu, o Grande. Relata Er que Ardieu “tinha sido tirano numa cidade da Panfília, havia já então mil anos; tinha assassinado o pai idoso e o irmão mais velho, e perpetrado muitas outras impiedades, segundo se dizia” (Rep., 2001, 615 c). Ardieu é, para Platão, a espécie de político que deve ser execrada em sua República, pois representa o anti-herói e o contraexemplo da conduta política do filósofo. Os crimes do tirano são os piores dentre todos os existentes, por isso a expiação de sua culpa é a que leva mais tempo. Toda vez que Ardieu, assim como outros tiranos, julgavam que estavam prestes a deixar a parte inferior, “a abertura não os admitia, mas soltava um mugido cada vez que algum desses, assim incuráveis na sua maldade ou que não tinham expiado suficientemente a sua pena, tentava a ascensão” (Rep., 2001, 615 c-e), sendo, consequentemente, jogado, novamente, ao Tártaro. O limbo é o lugar daquele cuja alma é incapaz de compreender que existe um modelo de conduta, o qual é pautado por valores fundamentados no Bem e na justiça, os quais devem regular a atividade política. A justiça é, pois, aquilo que falta ao tirano, ele é, por identidade contrária, o corruptor da perfeita adequação dos bons valores na política. Após essa incisiva defesa da vida justa como a escolha mais vantajosa, não apenas para o benefício do Estado, mas, também, enquanto benefício individual, evitando, assim, que a alma tenha que purgar seus crimes cometidos ainda em vida, o mito prossegue em direção a um desfecho muito conveniente a Platão. O filósofo-escritor conduz seu interlocutor a interpretar o mito tendo em vista sua intencionalidade. Tal possibilidade atua no fortalecimento do argumento que ele pretende veicular. Vemos isso a partir da descrição e da exemplificação dos personagens no texto platônico. São inúmeros e, muitos deles, já fazem parte do universo cultural helênico há séculos. Assim, com base na narrativa mítica, é possível satisfazer ou sanar inquietações que a alma põe em dúvida, mas que a razão não é capaz de convencer. Para esses casos, Platão apela para um didatismo imagético, tal como fizeram os grandes poetas. Ademais, utiliza-se desse conjunto de mitos e crenças populares para

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canalizar a afetividade e o apreço do espectador em proveito daquilo que pretende sustentar, o argumento racional atrelado ao viés estético. A própria composição dos interlocutores no diálogo indicaria, talvez, sua potencialidade enquanto narrativa: o texto é atribuído a Platão, porém, a autoridade é assegurada pela presença de Sócrates em sua interlocução com Gláucon, irmão de Platão. Num sentido dramatúrgico, essa interlocução não é da ordem conflitiva, mas sim expositiva, isto é, não há necessidade de combater a argumentação de Gláucon, haja vista que ele atua na cena como alguém que acolhe de bom grado os argumentos socrático-platônicos. Dito isso, é muito provável que essa parte do diálogo, esvaziada de contendas, apresente-se ao espectador como mais verossímil. Em outras palavras, o mito pretende, por apelo estético, nos convencer de algo que, por estar implícito e situado nas entrelinhas da narrativa, passa despercebido com facilidade. A descrição da experiência de Er no mundo dos mortos prossegue. É desse ponto em diante que seu testemunho contará o que acontece com as almas no momento em que elas retornam do céu ou do Hades platônico. Ainda, segundo o mito, todas as almas reúnem-se numa espécie de prado celestial, onde permanecem por sete dias, já no oitavo, são conduzidas ao encontro das Parcas, divindades responsáveis pelo destino dos homens e deuses. Note-se, aqui, que o poder de decisão dessas divindades, as Parcas, estaria acima, inclusive, dos desígnios e vontades dos deuses e semideuses. O destino natural de todos é decidido pelas Moiras, as filhas da Necessidade, denominadas Láquesis, Cloto e Átropos. Conta a lenda que elas teciam a fortuna e a sorte de todas as almas que passavam pelo Hades. Há, assim, um ordenamento do cosmos de que ninguém está isento – nem mesmo os deuses – de seu destino natural. A metáfora dos fusos e da tecelagem, ou seja, a imagem de uma trama urdida identificada com a fortuna dos humanos e dos deuses, como o próprio Platão já destacou em seu diálogo Político, é algo relativamente comum dentro da cultura grega. Cada fuso oferecido pelas Parcas corresponderia a um modelo de vida a ser escolhido, de forma livre, por essa alma prestes a regressar ao mundo sensível. Esse fuso seria, especificamente, o papel social a ser desempenhado na próxima vida (encarnação). A liberdade de eleger a própria função, momentos antes de encarnar, consiste na brecha metafísica encontrada por Platão para isentar os deuses de todos os males. Quando bem elegemos a nossa função, deixamo-nos conduzir pela melhor parte da nossa alma, do contrário, lutamos contra nossa própria natureza. De todas as formas, as divindades são poupadas das responsabilidades e Platão fica a salvo de incorrer em impiedade. As Parcas do mito platônico somente são responsáveis pela confecção dos modelos de vida, sendo incumbência das próprias almas elegerem aquilo que a elas convêm. É a própria alma, tanto em vida como depois de sua morte, que escolhe levar

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uma vida justa ou não. Essa vida justa é, sobremaneira, reafirmada por Platão como a melhor das escolhas possíveis, e nisso o mito é pedagógico. A alma, na ocasião dessa escolha, é responsável pelo ser que irá se tornar. A elas são oferecidas opções, “a Virtude não tem senhor; cada um a terá em maior ou menor grau, conforme a honrar ou desonrar. A responsabilidade é de quem escolhe. O deus é isento de culpa” (Rep., 2001, 617 e). Platão, com vistas a ampliar ainda mais o grau de credibilidade pretendido para sua narrativa, utiliza-se dos personagens heroicos da tradição para vincular à sua argumentação a autoridade de Homero. Assim, descreve que a alma de Orfeu, por exemplo, escolheu “uma vida de cisne, por ódio à raça das mulheres, porque, devido a ter sofrido a morte às mãos delas, não queria nascer de uma mulher” (Rep., 2001, 620 a). A de Tamiras, o aedo trácio, filho das Ninfas, que pretendeu desafiar a hierarquia divina concorrendo com as Musas e, tal como Homero, foi privado de sua visão, por isso escolheu retornar ao mundo material sob a forma de um rouxinol. A alma de Agamenon, o rei de Micenas e chefe da expedição a Troia, “por ódio à raça humana, devido ao que padecera, quis mudar para uma vida de águia”. A alma de Odisseu, última a realizar sua escolha, quando “lembrada dos anteriores trabalhos, quis descansar da ambição” (Rep., 2001, 620 a), a qual havia adotado na vida anterior e passou a eleger o modo de vida que todos os anteriores desprezaram: de uma pessoa comum em sua existência tranquila sem glórias nem reconhecimentos de quaisquer espécies (Rep., 2001, 620 c). O mito nos convida ao exercício de examinar cada uma dessas escolhas, tendo em vista a responsabilidade de cada um desses personagens por aquilo que elegeram. No entanto, o cerne desse exame não repousa no caráter particular desses papéis, num âmbito privado ou pessoal; Platão quer chamar a atenção para tais implicações na esfera política, ou seja, ele quer pontuar a contribuição ou o dano que uma boa ou má escolha provocaria na sociedade. Percebam que Platão prefere os rouxinóis e os cisnes aos indivíduos que venham, de alguma forma, comprometer a estabilidade de sua Cidade ideal. Platão recorre, assim, aos exemplos clássicos da literatura e da oralidade: Orfeu, Agamenon, Tamiras e Odisseu. O filósofo, ao articular seu discurso às imagens do universo cultural helênico, pretende potencializar ainda mais sua narrativa. Realizado esse procedimento de eleição do tipo de vida, todas as almas se encaminhariam para uma região celestial, a planície do Léthes, descrita no mito como o lugar para o qual elas marchariam, tão logo se decidam pelo seu futuro. Junto à planície corre um rio, o Léthes, cujas águas possuem o poder de esquecimento. O motivo pelo qual ninguém se recordaria de suas escolhas, segundo o mito, consiste na quantidade de água que se bebe desse rio. A explicação para a ignorância (e seu grau de intensidade) tem como fundamento mítico a

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noção de que deve existir um itinerário a ser cumprido pelas almas. Fora da esfera da physis, isto é, do cotidiano sensível, onde é possível verificar pela empiria os objetos do conhecimento, não pode haver outro tipo de investigação que não seja a especulação metafísica. Sobre a “experiência” de Er no mundo dos mortos e a inexistência de qualquer indício material dessa viagem, somente a crença no sobrenatural pode dar respaldo ao relato. Nesse quesito, a inventividade de Platão combinada com o misticismo arraigado à sua cultura, tentou preencher esse espaço em aberto por meio de uma narrativa peculiar: é filosófica ao mesmo tempo em que perambula entre dois mundos: epistemologia e crenças populares. Voltando ao que foi apresentado pelo mito (as escolhas da alma, a imortalidade, a reminiscência), não há possibilidade alguma de verificarmos a veracidade ou falsidade dessa lacuna epistemológica. A função do mito é, pois, preenchê-la com sua atraente narrativa. Contudo, o conteúdo (mítico ou não) daquilo que nos foi dado por Platão deve ser levado em consideração para promovermos uma discussão com base na lógica de seu discurso. A narrativa de Er prossegue. Explica-se o porquê de sua posição singular no mito: ele, enquanto personagem central, foi escolhido por essas mesmas divindades como o porta-voz e o testemunho direto desse ciclo vital em que todos nós, mortais, estaríamos submetidos. Quando já entardecia, acamparam junto ao rio Âmeles, cuja água nenhum vaso pode conservar. Todas são forçadas a beber uma certa quantidade de água, mas aquelas a quem a reflexão não salvaguarda bebem mais do que a medida. Enquanto se bebe, esquece-se de tudo. Depois se foram deitar e deu a meia-noite, houve um trovão e um tremor de terra. De repente, as almas partiram dali, cada uma para seu lado, para o alto, a fim de nascerem, cintilando como estrelas. Er, porém, foi impedido de beber. Não sabia, contudo, por que caminho nem de que maneira alcançara o corpo, mas, erguendo-se os olhos de súbito, viu, de manhã cedo, que jazia na pira (Rep., 2001, 621 a-b).

O mito termina e com ele encerra-se o diálogo A República. O tema da justiça tem um desfecho pedagógico-moralizador. Platão empreende sua argumentação final mediada e tutelada pela imagem do mito. A fábula de Er chegou até nosso conhecimento (pela revelação e benevolência divina) com o objetivo de mostrar aos mortais o sentido da vida justa, bem como suas vantagens. Graças à boa memória de Er, impedido de beber das águas do rio do esquecimento, “a história se salvou e não pereceu. E poderá salvar-nos, se lhe dermos crédito, e fazer-nos passar a salvo o rio do Léthes e não poluir a alma” (Rep., 2001, 621 c). Platão, já pelas últimas linhas do diálogo, insiste na necessidade de crermos na imortalidade da alma e em sua capacidade de “suportar todos os males e todos os bens”. A prática da justiça, regulada pela sabedoria, garante a ascensão da alma e lhe confere a leveza necessária para o alcance das mais excelsas belezas, as quais estão disponíveis somente àqueles que, por força de

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caráter e pelo esforço intelectual, permanecerem no caminho que conduz ao puro conhecimento. Finaliza Platão, com respeito à conquista de uma vida feliz, digna dos bemaventurados (os sábios e justos): somente “depois de termos ganho os prêmios da justiça, como os vencedores dos jogos que andam em volta a recolher as prendas da multidão, tanto aqui como na viagem de mil anos que descrevemos, haveremos de ser felizes” (Rep., 2001, 621 c-d).

2.2 – O mito da parelha alada no Fedro: anamnese como delírio divino No Fedro, o mito da parelha alada, para além de realizar uma defesa da imortalidade e das reminiscências, tão necessária ao discurso de Platão, ilustra também o modus operandi da educação pelas imagens. Da mesma maneira que o mito de Er serviu como base para o exercício de argumentação platônico ao final da República, a metáfora dos cavalos alados no Fedro (que veremos mais adiante) também está inserida num conjunto discursivo míticoreligioso, comum ao estilo da narrativa platônica. Tais sutilezas retóricas evidenciam o apreço do filósofo pela escrita poética. Está clara a referência a Homero nessa passagem em que a fala de Sócrates é inspirada pelas Musas, da mesma forma que a dos aedos nas epopeias: “Vinde, Musas sonorosas! quer sejais assim chamadas pela qualidade de vosso canto, quer provenha dos sonorosos Lígures, semelhantes qualificativos” (Fedro, 1975, 237 a). Platão qualifica essa inspiração divina como uma espécie de possessão demoníaca – o delírio das Musas. Trata-se de um impulso erótico, referente a Eros, arrebatador e passional, declaradamente condenável no âmbito da República, mas manifesto como válido e louvável no Fedro. Há uma mudança radical entre os conteúdos do Livro X, da República e do Fedro. No primeiro texto, a poesia, como fonte de conhecimento e da verdade, era algo inconcebível; no Fedro, por sua vez, percebemos não somente um elogio ao discurso dos poetas, mas um elogio das vantagens de elucidar a razão por meio da loucura divina. Segundo Nunes (1975, p. 17), “é uma linguagem nova a de Platão no Fedro, quando nos fala da origem sobrenatural da poesia e de seus efeitos benéficos que ‘a mania das Musas’ provoca nas almas inspiradas pela divindade”. A mesma poesia mimética expulsa da Cidade ideal pelo filósofo-governante, por corromper a educação dos jovens com seus simulacros e suas impiedades para com os deuses, é agora admitida como forma de conhecimento válido e autêntico. A poesia, os mitos e outras formas de revelação divina podem ser tidas como fontes de conhecimento, sendo, inclusive,

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equiparadas às Formas ou Ideias. Nesse ponto se observa uma grande reviravolta do filósofo no julgamento da poesia. Com o passar dos anos e a análise cada vez mais aprofundada desses problemas, Platão teria adquirido a consciência de que na formulação de seus mitos ele não se deixava guiar apenas pela razão, com o encadeamento seco de seus silogismos, mas que cooperava decisivamente nesse processo de criação um elemento irracional de que ele não se daria conta no começo, e que o conduzia com segurança incrível na exposição de suas ideias. Não foi o entendimento que lhe patenteou o mito da caverna e tantos outros da mesma procedência, todos eles da maior utilidade para a final exposição de tais problemas. Como também não lhe teria escapado naquela análise de si mesmo que os seus escritos eram imitações tão aceitáveis como as que ele rejeitara no julgamento da República, simulacros, no final das contas, como todas as criações do teatro e, mais do que tudo, influenciadas por esse mesmo gênero de poesia (Nunes, 1975, p. 19).

O texto tem início com a leitura do discurso de Lísias, por Fedro, o qual é o interlocutor direto de Sócrates nesse diálogo. É interessante verificar que, logo na introdução do diálogo, o cenário em que essa história se passa (a natureza que circunda a pólis) também interfere no argumento filosófico. Sócrates e Fedro estão deixando os muros que cercam a cidade e caminhando em direção à natureza, isto é, estão afastando-se gradualmente do ambiente das leis e do lógos e aproximando-se do espaço não-racional. Essa região é o lugar das Ninfas, pertencente àquilo que é da ordem do desconhecido, dos mistérios e do sobrenatural, de modo que é para essa dimensão narrativa que partem os personagens do diálogo. Ouve-se o coro das cigarras e as águas plácidas do rio Ilísso, onde se relata, segundo a antiga lenda hesiódica, que Bóreas raptou Orítia. A constituição da paisagem, detalhada por Platão no diálogo, é proposital e estimula o imaginário do espectador para uma dimensão onírica e mística. Nota-se que esse conjunto de elementos visuais não apenas criam o ambiente da cena, mas também agregam potência discursiva à mensagem que o texto pretende passar: a ideia de que, algumas vezes, é necessário deixar-se arrebatar por forças nãoracionais para captar a verdade revelada pelas divindades. É possível que Sócrates tenha renunciado, momentaneamente, à racionalidade própria do espaço urbano (epistemológica, rigorosa, dialética) e tenha sido levado, em êxtase, pelos ensinamentos da natureza que o rodeia (as divindades protetoras dos bosques, o dionisíaco, o erótico) (Fedro, 1975, 230 d). Platão mostrará, no curso dessa narrativa, que nossa racionalidade não deve menosprezar os impulsos divinatórios e as benesses concedidas aos humanos por essas divindades ou por instâncias desconhecidas pela razão. O discurso de Lísias é o ponto de partida para toda uma investigação acerca de Eros ou sobre a natureza do amor. E, o que nos diz Fedro por meio desse discurso? Basicamente, ele

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afirma que o impulso erótico é devastador para os amantes, tornando-os submissos aos seus amados, ou ainda, diz que estar sob possessão de Eros é manter-se sob as rédeas de algo que não podemos controlar: o amor nos deixa vulneráveis. Além disso, aquele que não é arrebatado pela paixão (não ama) é livre e possui autodomínio. Esquivar-se do amor é, nesse sentido, uma maneira de resguardar o controle sobre sua própria alma. Eros, tal como anunciado, possui o artifício, materializado por uma força incontrolável, de se impor diante da nossa própria vontade, gerando naquele que é submisso a ele um efeito arrebatador, maléfico, transformando-o em escravo das paixões. Como podemos ver, são destacadas somente as qualidades nocivas do amor. Para os que amam, disse Lísias, “tudo é pretexto de se sentirem magoados, pois acham sempre que todos só pensam em prejudicá-los” (Fedro, 1975, 232 c). Sob possessão erótica, os amantes passam a não estar mais sob o domínio da razão, pois “a paixão lhes falseia o julgamento”, desperta em suas almas, a todo o momento, a sensação de insegurança e desconfiança. Sentem-se, ilusoriamente, admirados por todos, mas na verdade “os amantes são mais dignos de piedade do que inveja” (Fedro, 1975, 233 b-c). Pelo discurso de Lísias, Eros ou o efeito arrebatador da potência do amor, diferentemente daquilo que se expressa pela opinião comum, não é uma condição digna nem louvável aos seres humanos, mas uma espécie de fraqueza moral. Fedro, após a leitura do discurso de Lísias, está plenamente tomado pelo poder de encantamento (tal como um furor báquico) da obra, ele fora convencido pelas belas palavras que acabara de recitar. Contudo, Sócrates, que até então estava calado e somente escutando, irrompe num tom de desagrado e desprezo pelo conteúdo do discurso. Para Sócrates, o tema do amor, apesar de bem elaborado, assemelhar-se-ia mais a um exercício de retórica do que propriamente a uma disposição de argumentos sólidos em defesa do amor. O discurso de Lísias, nas palavras de Sócrates, não se distinguiria muito do comportamento “de um adolescente que se compraz em ostentar o talento, com exprimir as mesmas ideias ora de um jeito ora de outro, embora com elegância” (Fedro, 1975, 234 d-e). Seu desdém pelas palavras proferidas por Fedro poderia sugerir, dependendo da interpretação, que Platão desejasse empreender um contra-argumento nos mesmos moldes do discurso poético. A cena parece, assim, preparar o leitor para o momento em que Sócrates, inspirando-se nas Musas, assumirá a fala de Platão. Com isso, teríamos o Sócrates platônico e o Fedro, retomando a fala de Lísias, numa contenda entre poetas. Inconformado com as críticas recebidas de Sócrates, Fedro exige que o filósofo ofereça, em contrapartida, um discurso melhor a respeito de Eros. A narrativa vai se encaminhando, gradualmente, para uma espécie de jogral filosófico, em que Platão,

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obviamente, sairá vencedor ao final. Guiando-se pelas prerrogativas de que a alma deve manter-se virtuosa e inibir os apetites e impulsos nocivos, Sócrates apenas reiterará nesse discurso elementos da racionalidade platônica, tais como a superioridade da razão, o autodomínio, a busca pela excelência, dentre outras posturas filosóficas já conhecidas. Aquilo que Sócrates prometeu fazer não foi elaborar um discurso que superasse o de Lísias mas reelaborar o primeiro discurso atendo-se ao tema estabelecido, superando-o em perfeição formal, quantidade e qualidade de argumentos, obviamente, no entanto, em defesa da mesma tese, pois, contrariamente a isso, não haveria nenhum ponto de comparação possível com o discurso de Lísias (Peña, 2009, p. 138).

Desse modo, nos dirá Sócrates, “quando prevalece o gosto racional do Bem e esse gosto nos dirige, recebe o nome de temperança”; porém, “quando é o desejo irracional que nos arrasta para os prazeres e impera em nós, intemperança é o nome dado a tal governo” (Fedro, 1975, 237 e-238 a). Trata-se, acima de tudo, de garantir a alma virtuosa, coibindo, sempre que possível, tudo aquilo que é nocivo para a manutenção da temperança, tanto na alma como no Estado. Não há nada de novo, mas apenas uma repetição dos efeitos maléficos de submeter-se às paixões, algo comumente verificado no universo de Platão. O discurso de Sócrates, assim como o de Lísias, retrata o arrebatamento erótico como uma pulsão que proporciona a intemperança, isto é, a incapacidade de controlar os prazeres. Eros seria, dessa forma, responsabilizado pelo malefício de tornar quem ama escravo da paixão, algo veementemente condenado por Platão. A condição de escravo era algo muito degradante para um grego (mesmo que o amo fosse Eros), ela significava inferiorizar-se, deixar-se dominar por alguém, revelava uma fraqueza de caráter. Cria-se, com isso, um problema de natureza moral e religiosa. Ao defender a supremacia da razão e condenar os impulsos oriundos da sensibilidade, Sócrates incorre numa falta muito grave, a da impiedade para com as divindades, especificamente, para com Eros. O discurso de Lísias qualificou Eros como uma condição de enfermidade da alma, em que o indivíduo não é capaz de se autogovernar, se deixando guiar pelas paixões, algo parecido com aquilo que os gregos denominavam como hýbris, ou seja, transgressão dos limites ou imprudência (Peña, 2009, p. 130). Fiel ao ímpeto platônico de condenar os impulsos e toda a sorte de manifestações que estão fora da alçada da razão, Sócrates se vê numa situação delicada. Ao mesmo tempo em que necessita advogar em favor da racionalidade, também se vê obrigado a não cair em impiedade para com os deuses. Nesse momento do diálogo, já não há mais possibilidade de recuo nem recusa às teorias canônicas defendidas por Platão no conjunto de suas obras. Esse impasse religioso e epistemológico – elogiar Eros sem contrariar a razão – somente poderia ser desfeito mediante

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uma retratação formal aos deuses. Para não incorrer em impiedade pela falsa descrição da imagem de Eros, concebendo o impulso erótico como um malefício ao amante; Sócrates recorre à palinódia ou retratação poética. Platão, enquanto poeta, emprega com certa frequência em seus escritos elementos míticos, originários do universo cultural que o formou. Não é de se estranhar que, no Fedro, o ponto central da guinada retórica tenha como objeto a criação (ou adaptação) de um mito. Por isso, a palinódia é um recurso metalinguístico dentro do escrito platônico, motivada, talvez, verdadeiramente, pelo receio de difamar os deuses ou, quem sabe, era uma estratégia que visava potencializar o discurso filosófico. Platão não quer que recaia sobre si o mesmo desígnio de Homero. Reza a lenda que o motivo deste ter ficado cego se deveu ao castigo a ele imputado pelos deuses. Não foi de bom tom o poeta ter retratado as três divindades: Hera, Atena e Afrodite, como as causadoras do conflito que deflagrou a guerra entre atenienses e troianos. Na Ilíada, Paris, irmão de Heitor (o grande herói troiano), teria que eleger, dentre essas três, a mais bela. Contudo, opta por Helena e desencadeia o litígio que perdurou anos e destruiu a todos. Divindades não podem causar malefícios, pois são fontes daquilo que há de mais benéfico aos humanos, nunca o contrário. Representar essa face perversa dos deuses consiste em impiedade por parte do poeta. O próprio Platão, nos Livros II e III, da República, declara que a impiedade, pela falsa representação da figura de uma divindade ou líder político, deveria ser censurada de toda a literatura e proibida de ser difundida na Cidade ideal. A posição de Platão, quanto a esse comportamento vicioso, não poderia ter mudado no Fedro, diálogo considerado imediatamente posterior à República. Sendo assim, a retratação de Sócrates seria a única maneira, dentro da encenação da obra, de retratar-se perante os deuses dessa grave falta. Dentro do jogo cênico do diálogo, é no exato momento em que Sócrates cruza o rio Ilísso que lhe advém à mensagem das Musas como uma voz interior, tendo início seu processo de remissão à falta cometida. Nessa passagem, sente-se tomado por um impulso ou força divina que o aconselha a não sair das águas do rio sem antes purificar-se. O poeta Platão deseja que o personagem Sócrates incorra nesse pecado, mas que o faça longe dos muros da cidade, onde a lei é regulada pela physis, distinta do nomos urbano. O equívoco socrático é um ato intencional na cena, propositalmente arranjado, para que, em seguida, ocorra a devida retratação. Aliás, nos parece que a palinódia é o momento mais esperado da obra, a oportunidade que Platão tem para desenvolver, pelos meios que mais lhe agradam, sua teoria sobre a anamnese como forma de delírio. Ao invocar as Musas, Sócrates pretende, utilizando-se dos mesmos artifícios da inspiração divina dos poetas, superar Lísias pelos mesmos meios e instrumentos poéticos (Peña, 2009, p. 139-140).

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Por meio da palinódia, Sócrates pretende desmentir aquilo que anteriormente havia proferido a respeito de Eros e, com isso, liberar-se da acusação, auto-infligida, de impiedade. Platão considera a impiedade uma falta muito grave, não somente em relação aos deuses da cidade, mas vê tal impiedade como desobediência às leis da pólis e corrupção da ordem natural das coisas. Há uma hierarquia que deve ser rigorosamente obedecida para que haja justiça no Estado. Assim, quando Sócrates, mesmo que involuntariamente profere acusações contra Eros, ele também está maldizendo a ordem política, pois desrespeita uma hierarquia que alicerça, inclusive, a legislação da pólis. Talvez, por isso, a necessidade de ter esse diálogo fora da cidade. Sócrates, em seu discurso, insultou uma divindade e deseja, fazendo uso de um novo discurso, em retratação ao primeiro, escapar do castigo de Eros ou de alguma outra divindade (Peña, 2009, p. 164). Ele poderia ser punido por Eros ou mesmo por outro deus qualquer, pois seu pecado não se restringia apenas a aquela divindade em específico, ele pecaria, também, contra toda uma ordem cósmica maior. Assim, em oposição ao que havia dito antes com respeito ao impulso ou delírio erótico, seria impreterível inverter o sentido do primeiro discurso. Eis, aqui, o tom da palinódia: o deus não pode ser a causa de malefícios; caso “fosse admissível, sem nenhuma restrição que o delírio é um mal para os homens, seria aceitável a afirmação de Lísias, cuja origem divina é confirmada em todas as suas manifestações” (Nunes, 1975, p. 23). Nem todo delírio é nocivo; existem determinados tipos que, em vez de incitarem a intemperança e o descontrole de si na alma humana, promovem sua elevação. A retratação de Sócrates, agora, considera que “os maiores bens nos vêm do delírio, que é, sem a menor dúvida, uma dádiva dos deuses” (Fedro, 1975, 244 a). Aqui, Platão não se refere apenas à moralização da alma, mas ao alcance do conhecimento verdadeiro, aquilo que em diálogos anteriores só poderia ser alcançado por meio da dialética. A dialética continua sendo o método de conhecimento filosófico por excelência; no entanto, existem outros conhecimentos igualmente verdadeiros, os quais nos seriam concedidos por benevolência divina. Antes de dar início à apresentação acerca da verdadeira natureza de Eros, objeto essencial da palinódia, Sócrates, novamente, destaca a qualidade daimônica da alma (o daímon enquanto elemento intermediador) como entidade passível do dom da adivinhação. Sob uma óptica mística, o caráter profético atribuído à alma humana, intermediada pelo desígnio dos deuses, era algo de grande aceitação na época. A respeito da definição da natureza de Eros, o Fedro nos dará quatro abordagens distintas, sendo a primeira delas o delírio profético, ligado a Apolo, denominado de mantiké. Ele compreende desde a profetisa de Delfos até as sacerdotisas de Dodona, as quais “em seus delírios prestaram inestimáveis

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serviços à Hélade, tanto nos negócios públicos quanto particulares; ao passo que em perfeito juízo pouco fizeram, ou mesmo nada” (Fedro, 1975, 244 a-b). A cultura grega está, em muito, permeada de exemplos desse atributo mântico, tais quais os oráculos de Delfos e Dodona, os mais importantes da Grécia. É notável, pois, a importância concedida pelos gregos a esses oráculos, tidos como fontes de conhecimento e de toda sorte de bondades para essa sociedade. Os oráculos são uma espécie de presente dos deuses e um grande exemplo dessas revelações está na máxima délfica: conhece-te a ti mesmo, atribuída ao homem considerado o maior sábio de toda a Atenas, Sócrates (Peña, 2009, p. 171). Platão também inclui nessa forma de delírio a “Sibila e todos os que, por inspiração divina, com suas predições endireitaram a vida de tanta gente” (Fedro, 1975, 244 b). Os áugures, os indivíduos sensatos que preveem o futuro pelo estudo do voo dos pássaros, também constituem exemplos de mortais eleitos pelos deuses para anunciar as verdades divinas em forma de revelações mânticas. O segundo tipo ou modo de loucura divinatória é o delírio místico, ligado a Dionísio e denominado telestiké. Ela se manifesta, geralmente, por motivo de “doenças e desgraças terríveis” (Fedro, 1975, 244 d-e) em determinados indivíduos, os quais foram eleitos portadores da palavra revelada. Trata-se de um tipo de loucura ritual ou teléstica. O termo deriva de teleté, utilizado como designação das celebrações ou cerimônias religiosas voltadas para a purificação da alma, tais como os mistérios de Elêusis, em que os iniciados são denominados telétai. Esses mistérios eram atribuídos ao culto de Deméter, deusa da agricultura e da fertilidade. Segundo conta a lenda, periodicamente, essa deusa resgatava sua filha, Perséfone, dando início, assim, à primavera. Os grandes mistérios estavam reservados aos poucos iniciados, responsáveis pela guarda de seus segredos. Havia, ainda, os de ordem menor, os chamados ritos de purificação, em que os sacerdotes elegiam aqueles que poderiam ser iniciados ao culto da deusa (Peña, 2009, p. 171). A terceira forma de loucura divina consistia no delírio poético, poietiké, ligado às Musas, o qual ocorre quando a Musa “se apodera de uma alma delicada e sem mácula, desperta-a, deixa-a delirante e lhe inspira odes e outras modalidades de poesia” (Fedro, 1975, 245 a). Esse tipo de delírio é aquele que ilumina a imaginação do poeta pelo sopro dessas divindades; possibilitando, assim, a declamação dos mais belos discursos. No Ion, Platão trata da inspiração divina como condição para a composição e a recitação de belos versos. O exemplo do terceiro delírio cabe precisamente a Ion, poeta que dispunha de uma exímia técnica e que, por isso, se considerava o melhor recitador de Homero. Para Platão, contudo, a qualidade da poesia não se justifica unicamente pelo pleno domínio da técnica. Ion era muito bom aedo; porém, lhe faltava justamente essa dose de delírio ou inspiração das Musas. O

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poeta, “convencido de que apenas com a técnica chegará a ser poeta de valor, revela-se, só por isso, de natureza espúria, vindo [com isso] a eclipsar-se sua poesia” (Fedro, 1975, 245 a). A quarta forma de loucura é o delírio erótico, ligado à Afrodite e a Eros, erotiké. Segundo Platão, essa corresponde a melhor das manias, pois é a que possibilita à alma retomar suas reminiscências. A anámnesis é a quarta mania e, dentre todas, é a mais importante. A respeito dela, vale a pena traçarmos uma descrição mais prolongada, posto que sua compreensão é fundamental para o entendimento do modus operandi da educação moral intermediada pelas imagens. Platão dedica uma extensa passagem do Fedro para explicitá-la, sob a forma de mito, configurando o auge da palinódia. A retratação à falta cometida por Sócrates contra Eros é o mote para a defesa, em forma de mito, da imortalidade da alma e de sua capacidade de recordar-se de conhecimentos apriorísticos. O mito da parelha alada reúne todo um conjunto de argumentos mítico-religiosos voltados não apenas para desculpar-se da ofensa, mas (sobretudo) para guiar a narrativa à teoria das reminiscências. Por meio do mito da parelha alada, Platão nos apresenta um esboço da constituição da psykhé. Segundo o mito, a alma é composta por dois cavalos; um deles, bom, belo e oriundo de raça nobre, o outro, por sua vez, é o contrário em qualidade e nobreza. No comando dessa parelha de cavalos, está um cocheiro que a todo instante tenta controlar e conduzir essa carruagem pelos caminhos do Bem e da Beleza, ideais de virtude e horizontes para os quais a alma deve ser direcionada. [Algumas almas] sobem depressa, enquanto as outras só o fazem com dificuldade, pois o corcel de raça ordinária, quando não foi devidamente educado pelo auriga, em vista do seu peso puxa o carro para a terra. É a mais árdua provação com que a alma se defronta. As almas denominadas imortais, uma vez alcançado o vértice, passam para o outro lado e se postam, assim, no dorso da abóbada celeste, e, uma vez ali chegadas, a revolução do céu as arrasta no seu curso, contemplando elas as realidades que se encontram para além do céu (Fedro, 1975, 247 b-c).

Quando o auriga não consegue domar com propriedade o mau cavalo, a carruagem, metáfora da potencialidade moral da alma, trilha um percurso oposto ao bom e belo caminho. Esse percurso é, por sua vez, contrário ao verdadeiro sentido natural e originário da alma humana, seguindo em direção às partes inferiores e sensoriais da existência, tendendo para a terra, o lugar das opiniões e dos enganos. Contudo, se o cocheiro obtém êxito em dominar o mau cavalo, a parelha poderá alçar voo para além da esfera celeste e, assim, alcançar a planície da Verdade (Alétheia pedíon), onde está o pasto divino que nutre a alma humana com virtudes e conhecimentos verdadeiros. Aquelas almas que não puderam ser conduzidas até essa planície terão por alimento apenas as opiniões verdadeiras.

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O mito é, essencialmente, um elogio à divindade de Eros; no entanto, para além de uma retratação poética, ele atua, também, como uma descrição da potência divinatória, no sentido de operar como instrumento para a busca do conhecimento. Essa alegoria pretende explicitar a natureza da imortalidade da alma, caracterizando-a como “uma força natural composta de uma parelha de cavalos alados e de seu cocheiro” (Fedro, 1975, 246 a). A alma possuiria em sua constituição metafísica uma bipartição, ou ainda, uma condição imposta por duas forças distintas e opostas. O texto original menciona o termo dynamis, que pode ser entendido como as potências que orientam as partes da alma (Peña, 2009, p. 181). Para Platão, há, naturalmente, uma predileção pela escolha do bom caminho e pela busca das coisas belas. O auriga, atento a essa vontade ou predisposição ao elevado e superior, se empenha em orientar a alma para o sentido da Beleza. O esforço do condutor é intenso, dado que o mau cavalo está a todo momento tentando desviar a carruagem de seu destino natural. Essa é, segundo Sócrates, “a razão de ser entre nós tarefa dificílima a direção das rédeas” (Fedro, 1975, 246 b). O comando da parelha é um trabalho árduo, exige, pois, empenho constante por parte de quem a conduz; sobretudo, em domar o cavalo desobediente. Ainda, segundo a descrição do mito, as almas são dotadas de asas. A função dessas asas consiste (tal como em qualquer ser alado) em elevar a alma, a fim de que ela alcance o verdadeiro conhecimento, situado para além da esfera celeste, no éter cósmico. A alma “perfeita e alada caminha nas alturas e governa o mundo” (Fedro, 1975, 246 c). É justamente essa força, ilustrada pelas asas da alma, que nos impulsiona para a busca das Virtudes e das demais Formas puras e inteligíveis. Essas Formas ou objetos do conhecimento, imutáveis e universais, são a melhor espécie de alimento para nossa alma. O saber nutre a parte mais elevada do ser fazendo crescer suas asas; são, pois, o néctar e a ambrosia, alimentos dos deuses, oferecidos aos cavalos alados (Peña, 2009, p. 186). A virtude natural da asa consiste em levar o que é pesado para as alturas onde habita a geração dos deuses, sendo ela, de tudo o que se relaciona com o corpo, o que em mais alto grau participa do divino. Ora, o divino é belo, sábio, bom e tudo o mais do mesmo gênero, pois é isso o que alimenta e faz crescer as asas da alma; ao passo que o feio, o mal e tudo o mais que se opõe àquelas qualidades fazem murchar e perecer (Fedro, 1975, 246 d-e).

Essa região supraceleste compreende todos os objetos reais, ou ainda, as Formas puras do conhecimento e as Virtudes. Não é possível interagir com tais objetos por meio dos sentidos, mas, somente, pela intelecção. No Fedro, Platão denomina essa região de planície da Verdade, um prado intangível onde cresce “o alimento adequado para a porção mais nobre da alma” (Fedro, 1975, 248 b-c), grosso modo, um maná divino cujo propósito é o de nutrir e

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fortalecer as asas da alma. A alma alada, sendo leve, imortal e, por compartilhar da mesma natureza das Formas, sente-se impelida a ascender à região onde está situada a planície da Verdade. Aproximar-se dela e alimentar-se desse prado é o destino originário comum à alma. Entretanto, quando essa aproximação não se realiza, seja pela ineficiência das asas em elevar a alma para a contemplação das Formas ou pelo sentido alegórico do mito, devido à incompetência do condutor em domar o mau cavalo, a alma se vê obrigada a ingerir algo menos nobre: as alethès dóxa. A concentração de parelhas na abóbada celeste, bem como a disputa entre elas por alcançar as Formas, gera uma grande confusão entre as mesmas. O caos se instala, cavalos se debatem e almas aladas perdem suas penas em meio a essa contenda descontrolada. Platão tem em mente ilustrar com isso que, assim como há luta entre os guerreiros em nome da glória (aristéia homérica), há, também, uma disputa entre as almas pelas benesses do saber (o alimento do prado celestial). Os cavalos brigam entre si e a falta de perícia do cocheiro contribui para a instauração de uma desordem generalizada. Em meio à confusão, muitos cavalos saem feridos e acabam por perder parte das asas ficando, assim, impossibilitados de conduzir a parelha ou mesmo de sustentá-la. “Depois desse trabalho insano voltam sem terem conseguido contemplar a realidade, e, uma vez dali afastadas, alimentam-se apenas com a opinião” (Fedro, 1975, 248 b-c). Comparando as duas passagens em que Platão ilustra a teoria das reminiscências e da imortalidade da alma, seja pelo mito de Er ou pelo mito da parelha alada, notamos que essa relação estabelecida entre ambas implica num movimento cíclico. Ora a alma está numa das planícies – contemplando as realidades inteligíveis: alimentando-se no prado da Alétheia –; ora está em outra – esquecendo-se de tudo aquilo que contemplou por beber das águas do esquecimento no rio Âmeles, na planície do Léthes. Assim, circulando entre essas duas regiões míticas a alma seguiria com seu curso permanente e eterno de esquecimento e memória, ignorância e reminiscência. Para Platão, o conhecimento sempre preexistiu nessa alma. Os mitos procuram explicar por imagens didáticas o sentido da verdadeira educação, qual seja, pela anamnese. Peña (2009, p. 186) comenta que a planície da Alétheia corresponde à região em que estão depositados os paradigmas que servem de modelo ideal a todas as coisas existentes. Nela residem as realidades que realmente são, o Ser das coisas em seu grau mais elevado de autenticidade, aquilo que Platão definiu na República como os objetos da epistéme, em oposição aos da dóxa. A alma ‘plena de esquecimento’ da qual fala o Fedro, é, de fato uma dessas almas sedentas que, negligenciando a recomendação formulada no mito da

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República, fartou-se de uma água que nenhum recipiente poderia conter, a água do rio Âmeles, a água que corre na planície do Léthes. Na teoria do conhecimento platônico, a oposição entre a planície da Alétheia e a planície do Léthes traduz em um plano mítico a oposição entre o ato de anámnesis, que é a evasão fora do tempo, a revelação do ser imutável e eterno, e a falta de Léthes, que é a ignorância humana e o esquecimento das verdades eternas (Detienne, 1988, p. 64).

Esse amplo panorama mítico, apresentado por Platão e orientado pelo contraste entre essas duas planícies, não é algo especificamente próprio do pensamento do filósofo. Já em Empédocles e na própria tradição da qual Platão é herdeiro (tradição poética e cultura mântica) aparecem vestígios dessa relação de interdependência entre memória e esquecimento. A transposição de elementos da religião grega arcaica para o âmbito do pensamento filosófico não é algo estranho em Platão; pelo contrário, o mito e o discurso racional convivem numa relativa harmonia dentro da estrutura lógica e dramatúrgica dos diálogos platônicos. O misticismo, ao que tudo indica, não era algo incômodo aos leitores ou aos espectadores da obra platônica, mas um artifício que agregava potência ao discurso. A “geografia mítica das duas planícies de Alétheia e Léthes, como a apresentação escatológica das duas fontes de Mnemosýne e de Léthes, faz parte das representações específicas de meios intermediários entre a filosofia e a religião” (Detienne, 1988, p. 65). Essa confluência entre os dois mitos apresentados na República e no Fedro nos possibilita uma interpretação da constituição da alma dentro daquilo que o próprio Platão pretendeu expor: a alma, já anteriormente classificada como imortal e passível das reminiscências, é o elemento central para a compreensão do sentido educativo das imagens. Grande parte desse esforço em explicitar o sentido da educação imagética, pelo argumento mítico-religioso presente nesses dois textos, tem por objetivo reforçar a noção de percurso da alma: da ignorância ao saber, isto é, do pleno desconhecimento sobre a Verdade até a possibilidade de acercar-se dela pela dialética. Esse percurso é consoante ou, pelo menos, é da mesma natureza daquele que foi tratado no capítulo I, o sentido do percurso educativo na República. De acordo com o que vimos naquela parte do texto, seu ponto inicial é a eikasía, ademais, também há uma condição ou predisposição da alma em ascender ao puro conhecimento. A busca por esse conhecimento segue, assim, um caminho similar ao da alma de Er, o qual vai do esquecimento para a memória, bem como ao do trajeto da parelha alada, alimentando-se de conhecimentos inteligíveis na planície da Verdade. Os mitos apresentados por Platão, nos parece, se adéquam e se combinam para a fundamentação (mediada por uma narrativa literária e metafísica) de uma constituição anímica perfeitamente atenta e adequada ao projeto de Estado platônico. Tais narrativas fantásticas procuram construir as condições

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necessárias para a validação de um discurso e de uma argumentação que tem por objetivo sustentar as qualidades da alma, sua constituição enquanto imortal e capaz de recuperar suas memórias pela reminiscência. Essa constituição, por sua vez, é indispensável para suas aspirações pedagógicas.

3 – O processo educativo mediado pelas imagens

Podemos encontrar no Fedro, para além do elogio a Eros e das justificativas míticas sobre a constituição da alma, as bases para a compreensão do modelo de educação mediado pelas imagens. Neste item, pretendemos explicitar a maneira pela qual as imagens moralizam a alma; seja pela infusão de virtudes sensíveis, “populares”; seja pela orientação do comportamento moral, a partir da identidade entre a Virtude e sua correspondente no mundo material: as virtudes. Trata-se, com isso, de tentar explicar o modus operandi do procedimento educativo moralizador das imagens, o qual está disperso, de maneira geral, em muitos diálogos. Contudo, sua melhor estruturação pode ser verificada logo na parte final do mito da parelha alada. Essa passagem, em específico, nos oferece as bases para uma interpretação do “como é possível” relativo a esse procedimento educativo. O mito do Fedro, logo após apresentar as quatro modalidades de loucura e de ilustrar a constituição da alma pela parelha de cavalos, discorrerá sobre a alimentação da alma pelas opiniões verdadeiras, ou seja, pela nutrição de segunda categoria. As boas e belas imagens configuram, pois, os conteúdos sensíveis presentes nessa alimentação inferior. O alimento substituto às Formas inteligíveis. Assumiremos, aqui, a proposição de que a atividade educativa imagética, voltada para a moralização, nada mais é do que um processo de estímulo (ou nutrição) da alma pelas imagens. O sentido dessa educação pode ser, de uma maneira geral, compreendido como uma disposição original que a alma possui de incorporar, à sua natureza, por intermédio de imagens, objetos da realidade inteligível. As imagens atuariam na mediação entre o sensível e o inteligível, pois estão situadas num nível ontológico intermediário entre o real e o irreal, o Bem e o mal. Vimos no capítulo II que, enquanto intermediárias, essas imagens concentram em si mesmas resquícios das Formas ou Ideias e, por isso, sua representação ou cópia sensível também carregaria, mesmo que em menor grau ou quantidade, parte desse conteúdo inteligível. A educação pelas imagens se processaria, pois, como uma espécie de “ingestão” desse alimento sensível, representado pelas opiniões verdadeiras, tal como no mito da parelha alada, quando ilustrado o processo de alimentação inferior dos cavalos.

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Se, no Mênon, Platão destacou que a educação, num sentido pleno, se dá por reminiscências, no Fedro, o filósofo acrescentará que, tais reminiscências advêm do estímulo sensorial. Esse processo, essencialmente pedagógico, se utiliza do caráter sensível e múltiplo da aparência fenomênica dos objetos concretos (imagens) atuando diretamente na parte irracional da alma, resultando, pois, na recuperação de memórias. Tal processo diferencia-se, enquanto autêntica educação, da mera instrução técnica (preparo para as atividades de trabalho, formação do corpo, infusão de virtudes populares), pois não é um processo de introdução de elementos do mundo sensível na alma, mas o contrário disso, isto é: buscar em suas profundezas o verdadeiro conhecimento das Formas e do Bem. Apesar de não se caracterizar como um tipo de formação intelectual, a educação pelas imagens está amparada nos mesmos princípios ontológicos que a educação filosófica ou dialética. Ela tem como horizonte comum e objeto de interesse da alma o puro conhecimento. Vimos anteriormente que, na primeira etapa do percurso educativo (eikasía), nossa alma ainda não necessita tomar contato com toda a carga de conhecimentos apriorísticos, bastando somente a assimilação de parte dele, por meio de imagens. Para esse primeiro estágio de formação humana, a alma deve buscar apenas o essencial, com vistas à criação de suas bases morais. Essa formação moral, propedêutica e basilar, visa dotar a alma de um saber prático: distinguir a conduta moral correta ou boa da reprovável ou má, dentre outras escolhas. O primeiro estágio educativo não requer dos educandos o intenso exercício mental, mas o empenho em aprender a admitir as virtudes em detrimento da rejeição dos vícios morais. O percurso educativo, apresentado no capítulo I, orienta esse processo. A alma dos alunos deve ser estimulada por imagens de modo a ser contaminada pela Ideia do Bem. Apesar dos discípulos ainda não estarem conscientes do que ela efetivamente significa, ou seja, ignorarem qual seria a real dimensão desse Bem – algo que só pode ser corretamente compreendido pelo filósofo após os estudos dialéticos –, ainda assim, ter-se-ia condições de excluir da vida prática desses alunos tudo o que se opõe ao Bem. Para Platão, mesmo que não conheçamos a fundo e em essência a Virtude, poderíamos eleger uma vida virtuosa, pois nossa alma já compartilha (aprioristicamente) desses valores. Cabe às imagens estabelecer essa ligação entre a Virtude e a vida virtuosa, na medida em que elas estão à nossa volta para despertar nossas reminiscências. O mito da parelha alada, contado ao longo do Fedro, é, talvez, a melhor apresentação descritiva desse procedimento educativo. Para Platão, a percepção visual da multiplicidade da Beleza (nas imagens ou nas opiniões verdadeiras) pela alma promoveria, por semelhança e identidade, a rememoração da Beleza em si mesma. Dessa forma, as opiniões verdadeiras (alethès dóxa), inscritas superficialmente nas belas

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imagens, comportariam vestígios (por semelhança e identidade) dessa Beleza ideal. Remontando a passagem do Fedro em que Platão nos apresenta a quarta forma de delírio divino (a reminiscência), podemos visualizar nela o sentido da educação pelas imagens. A reminiscência, como vimos, faz com que a alma se recorde da Beleza verdadeira a partir de belas imagens. Trata-se, pois, de uma dádiva ou benevolência divina. Platão diferencia a manía relativa aos humanos – que estaria mais próxima do discurso de Lísias ou, mesmo, do primeiro discurso socrático sobre Eros – da manía erótica. A manía relativa aos humanos se refere ao amor (divindade) como uma submissão aos prazeres irracionais, tais como a intemperança e toda a sorte de desmedidas. Tal manía consistiria, pois, num desejo pelo excesso, numa hýbris. A manía erótica, por sua vez, consiste num estado de possessão que conduz a alma às recordações da Beleza essencial, tal como ela a contemplou antes de ser aprisionada num corpo sensível (Peña, 2009, p. 251). Essa manía é aquela que Sócrates, em sua palinódia, ilustrou pelo movimento natural de ascensão da alma, relacionado-a ao fortalecimento das asas da parelha alada. Para além de um recurso dramatúrgico e de uma retratação religiosa, a palinódia parece validar o caráter divinatório do discurso filosófico. Tendo como origem a revelação de uma divindade, uma benevolência de Eros, a palinódia não se pauta por uma racionalidade lógica, mas por uma dádiva. É um tipo de saber cuja origem (mística) oferece garantias de veracidade. Recordemos que a palavra do poeta, na sociedade grega da época, era tida como um conteúdo plenamente acreditado pelo público em geral, pois era considerado uma inspiração advinda das Musas (Havelock, 1996, p. 164). Nesse aspecto, as reminiscências, enquanto conhecimento dado ou permitido pelos deuses, constituem um canal pelo qual é possível caminhar ou alçar voo em direção às Ideias. Platão considera a anamnese como sendo a melhor das manías. É ela quem mais bem esquematiza o sentido desse processo educativo (intermediador) que possibilita alcançar o conhecimento verdadeiro sem fazer uso da dialética. Platão tem em mente a figura divina – o Eros do Banquete – quando reconhece, nas reminiscências, uma função mediadora da educação. Para além de divindade, Eros atua como um conceito chave no pensamento platônico. Estaria, inclusive, na compreensão deste conceito, a solução para o problema levantado no diálogo o Sofista referente à realidade dos objetos. A condição intermediadora das imagens (daimônica) permitiria conciliar os extremos ontológicos e, assim, validar as imagens e as opiniões enquanto conhecimentos inferiores, porém, verdadeiros. Entre o Ser e o não-Ser haveria, portanto, uma infinidade de justaposições ontológicas. A manía erótica, tal como assumida no texto, é a pedra de toque para a solução desse dilema dos extremos. No espaço entre um extremo e outro, por exemplo,

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caberiam as opiniões, as imagens e toda a gama de representações estéticas da cultura grega, por isso, o uso das imagens na educação, como um procedimento válido, é admitido na Cidade ideal. Em relação às imagens (alimento sensível da alma), elas atuariam dentro do procedimento educativo como seu impulso originário irracional. Seriam os objetos de realidade inferior e passíveis de serem assimilados pelas partes não-racionais da alma. As belas imagens, mencionadas no Fedro, fazem com que a alma, tomada por uma profusão de instintos, perca o domínio de si mesma. Contudo, não se trata de uma desmedida ou intemperança, mas o contrário disso, ou seja, se trata do momento em que a alma está plenamente liberada de suas amarras corpóreas. As imagens terrenas fazem com que a alma se recorde das realidades celestes. Platão estabelece, assim, um paralelo entre as belas imagens e a Beleza, tal identidade é validada pela condição intermediadora da inspiração erótica. Quando, à vista da beleza terrena e, despertada a lembrança da verdadeira Beleza, a alma readquire asas e, novamente alada, debalde tenta voar, à maneira dos pássaros dirige o olhar para o céu, sem atentar absolutamente nas coisas cá de baixo, do que lhe vem ser acoimada de maníaca (...). Sempre que essas poucas percebem alguma imagem das coisas lá do alto, ficam tomadas de entusiasmo e perdem o domínio de si mesmas. Porém, não sabem o que se passa com elas, por carecerem de percepção bastante clara, pois em relação à justiça, à temperança e tudo o mais que a alma tem em grande estima, as imagens terrenas são totalmente privadas de brilho; com órgãos turvos e, por isso mesmo, com assaz dificuldade, é que as poucas pessoas que se aproximam das imagens conseguem reconhecer nelas o gênero do modelo original (Fedro, 1975, 249 d-250 b).

A visão é, para Platão, o principal sentido intermediador do conhecimento sensível. Ela é a faculdade sensorial que melhor permite captar as sutilezas da imagem. No entanto, o conhecimento, em seu mais elevado nível de realidade, não pode ser contemplado pela visão. Quando observamos belas imagens, não estamos sendo postos em contato direto com a Beleza em si mesma, mas tão somente com uma de suas formas de reprodução. A Ideia de Beleza, bem como todas as essências mediadas pela manía divina, caso fosse passível de ser observada pelos sentidos, despertaria em todos nós violenta paixão. Diz Sócrates que: “somente a Beleza recebeu o privilégio de ser a um tempo encantadora e de brilho incomparável” (Fedro, 1975, 250 e). É forçoso nos recordarmos, aqui, da passagem do mito da caverna e dos modos de conhecimento mostrados na República. Nesse diálogo, o sentido conferido à visão do prisioneiro (liberto da escuridão da caverna) mantém uma similaridade em relação à contemplação da Beleza no Fedro. O prisioneiro caminha em direção à luz do sol, isto é, às Formas ou Ideias; contudo, não é capaz de observá-las a olho nu ou com os olhos do corpo, pois a luz que emerge dessas realidades superiores poderia cegá-lo. Em

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paralelo ao que é descrito na alegoria da caverna, o contato direto com as entidades inteligíveis, como a Beleza e o Bem, seria algo tão insuportável quanto o excesso de luz na retina do prisioneiro. Nossa condição humana – alma encarnada num corpo – não nos permite ascender ao mundo das Ideias sem o devido e árduo preparo. No mito do Fedro, é o iniciado – aquele que já dispõe de um prévio preparo intelectual – o indivíduo habilitado para tentar contemplar a Beleza em sua forma pura. Entretanto, essa contemplação não seria direta, mas intermediada por uma bela imagem. Tal imagem, conforme foi mostrado no Crátilo, regula seu grau de realidade de acordo com a simetria: maior ou menor semelhança. Apesar de inferior, essa beleza aparente, sob a forma de imagem, já seria o bastante para estimular a alma a buscar a Ideia de Beleza, de modo que o semelhante tende a procurar pelo seu igual ou pelo seu superior. Nesses termos, a alegoria da parelha alada do Fedro poderia ser utilizada como ilustração didática desse processo de reminiscência ou do processo relativo à educação imagética. Opiniões e imagens serviriam, assim, como alimentos de segunda classe, inferiores às Formas; porém, suficientes para o fortalecimento dos cavalos alados. A fagulha do desejo, na busca pelo belo, é aquilo que impulsiona esses cavalos. Quando bem alimentados, por opiniões verdadeiras e imagens belas, terão condições de alçar voos cada vez mais altos e, possivelmente, ultrapassar a abóbada celeste, onde está o prado da Verdade. Esse desejo é de caráter erótico, manifestando-se na alma como potência capaz de mobilizá-la para a busca do conhecimento. As imagens, nesse contexto, são eróticas e demoníacas (relativo a daimonikós), elas são entrepostos cognitivos e morais que se situam entre a ignorância e o saber divino. O iniciado de pouco, pelo contrário, que tantas coisas belas já contemplou no céu, quando percebe alguma feição de aspecto divino, feliz imitação da Beleza, ou nalgum corpo a sua forma ideal, de início sente calafrios, por notar que no seu íntimo entram de agitar-se antigos temores. De seguida, fixando a vista no objeto, venera-o como a uma divindade, e se não temesse passar por louco varrido, ofereceria sacrifícios ao seu amado, como o faria a uma imagem sagrada ou a algum dos deuses. À sua vista é acometido de todo o cortejo de calafrios: muda de cor, transpira e sente um calor inusitado. Apenas recebe por intermédio dos olhos eflúvios da Beleza, irrigam-se-lhe as asas e ele volta a inflamar-se (Fedro, 1975, 250 e-251 b).

A alma, quando tomada pelo furor erótico, deixa-se conduzir pela divindade. Essa permissividade aos desígnios divinos (como algo desejável e benéfico) é algo que altera, radicalmente, aquilo que Platão apresentou logo no início do Fedro, representado pelo discurso de Lísias. A retratação sustenta que Eros não pode ser a causa de nenhum mal: seja naquele endereçado ao amante ou àquele endereçado ao amado. O ponto central da palinódia consistirá na declaração de que os benefícios outorgados à alma pelo deus (fonte de bondade)

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são da mesma ordem das reminiscências. Sendo Eros (o amor, philía) a melhor forma de loucura, tanto quem ama como quem recebe serão beneficiados por essa manía, contrariamente ao que o Sócrates havia pronunciado em seu primeiro discurso. Essa manía se aproxima daquilo que Platão tratou, na República, como um caráter destrutivo do poeta em contaminar a plateia com seu discurso e, no Ion, enquanto a qualidade mágica da pedra imantada capaz de alinhar os anéis (Peña, 2009, p. 194). Na busca por suas reminiscências (um longo caminho de ascensão), a alma fará uso das imagens, contaminando-se com o que há de melhor nelas. A própria alma deixa-se conduzir por um impulso não-racional inerente a sua própria natureza. Para Platão, essa força advém dos deuses e, apesar de não ser racional, posto que não é uma atividade do intelecto, mas das paixões, não deve ser desconsiderada como fonte de conhecimento. As belas imagens, devido à correspondência direta ou indireta com a Beleza em si mesma, antecipam na alma as qualidades dessa realidade perfeita. Por carregarem muitos dos elementos inteligíveis, emprestam parte deles – sob a forma de beleza sensível intermediária – à parte mais nobre da alma, isto é, ao bom cavalo (do mito da parelha alada). Essa teoria, levantada no Fedro, mantém uma íntima relação com a noção de semelhança entre imagem e objeto, tal como Platão apresentou no Fédon. Nesse diálogo, é possível verificarmos uma ratificação quanto à posição assumida pelo filósofo em torno da imortalidade da alma, da teoria das reminiscências e, sobretudo, à noção atribuída às imagens como estimulantes da memória. Tendo por contexto a doutrina da reminiscência da alma, Platão retoma o assunto da simetria, tratado no Crátilo, em que a imagem (signo) assumiria determinada posição ontológica dependendo da sua semelhança com o objeto. O Fédon nos oferece, como exemplo disso, a representação imagética de Símias. Segundo o texto, a Ideia de Símias é o objeto em si mesmo, o Igual ou modelo. Há uma cópia de Símias, que é o próprio Símias (indivíduo do mundo sensível) bem como há reproduções imperfeitas dele (sua imagem). Essa relação entre o objeto e as suas variantes (imagens) implica na necessidade de existência prévia desse mesmo objeto, na esfera inteligível, para que seja possível identificá-lo enquanto imagem sensível. Para Platão, conforme já vimos antes, as realidades supracelestes (as Formas imateriais) independem da vontade humana ou da divina, pois são parte do ordenamento do cosmos. Entretanto, dentro desse processo de reminiscência, a existência de um implica a do outro. Para que seja possível o reconhecimento da Forma (do Igual em si mesmo), como um mecanismo mental de verificação de semelhanças, é impreterível a existência do modelo paradigmático e de sua multiplicidade fenomênica.

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Um pressupõe o outro, um é a condição do outro, no sentido em que é somente se deparando com as coisas iguais que o indivíduo se recorda do Igual, cuja Ideia já se achava presente na sua alma antes mesmo que visse, ou revisse, um corpo mortal” (Almeida, 2007, p. 217).

Desse modo, retomando o exemplo da imagem de Símias, dada a semelhança dela com o indivíduo, Símias, a natureza da nossa alma (talvez por benevolência divina), faz com que nos recordemos do seu Igual representado pela pintura quando a observamos. Perguntanos Platão: de onde retiramos esses conhecimentos, ou ainda, de onde advêm tais recordações a respeito de Símias quando nos atemos à sua imagem? A resposta a essa pergunta não poderia ser outra senão a de que tais conhecimentos somente emergem em nossa memória porque já estão implícitos a priori. Assim posto, “é necessário que tenhamos anteriormente conhecido o Igual, mesmo antes do tempo em que pela primeira vez a visão de coisas iguais nos deu o pensamento de que elas aspiram a ser tal qual o Igual em si” (Fédon, 1972, 74 e-75 a). As reminiscências, ou ainda, esse reconhecimento do Igual pela imagem, é, para Platão, possível sob duas formas: (1) como imagens indiretamente associadas ao objeto e (2) como imagens diretamente associadas ao objeto. No primeiro caso, as reminiscências se dão por conta de imagens dessemelhantes ao objeto que elas remetem. Para efeitos didáticos, Platão toma como exemplo dessa rememoração a lira de Cebes, outro personagem do Fédon. Experimenta-se, para tal, a sensação do objeto mediante a visualização da imagem de outra coisa, ou seja, tem-se a sensação de visualização de um objeto radicalmente distinto daquele ao qual ele faz referência. A lira de Cebes, contudo, não se parece em nada com seu dono, mas sua imagem, de alguma maneira, está relacionada a ele, possivelmente, pela razão de que Cebes já o havia visto em posse de Símias. A explicação dada por Platão para esse evento estranho é a de que a alma é capaz de reconhecer o objeto e relacioná-lo a outro. “Reconhecem a lira e formam no espírito a imagem do mancebo a quem a lira pertence” (Fédon, 1972, 73 d). As reminiscências podem, ainda, ser estabelecidas a partir das relações de identidade entre os indivíduos, como é o caso de Símias e Cebes: estando na presença de Símias recordar-se de seu amigo Cebes, ou então, ao ver a imagem de Símias, recordar-se de Cebes, devido, talvez, ao grau de amizade entre ambos. Para Platão, isso se trataria de um tipo de reminiscência indireta, dado o grau de afinidade (afeto) entre os objetos: Símias é amigo de Cebes e a lira pertence ao amado tocador de lira. Há, também, outra hipótese para esse fenômeno de reconhecimento de objetos dessemelhantes: muitas vezes, Símias foi visto junto a Cebes, da mesma forma que a lira já foi vista nas mãos do músico. Desse modo, a reminiscência se daria em função da ligação (relação imagética) entre dois objetos.

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“Principalmente quando se dá com relação a coisas de que poderíamos estar esquecidos, pela ação do tempo ou por falta de atenção” (Fédon, 1972, 73 e). No segundo caso, as reminiscências se dariam por meio de imagens mais próximas da realidade do objeto representado. Essa leitura já nos parece um pouco mais aceitável do que a anterior. O exemplo dado por Platão, agora, será o do retrato de Símias, respeitando-se, portanto, a simetria entre imagem e modelo. Assim, imagens com maior ou menor grau de simetria seriam aparências fenomênicas que deteriam a capacidade de estimular as memórias da alma em benefício do reconhecimento desse modelo, o Igual em si mesmo. À parte de serem simétricas ou não, “é certo que em todos esses casos a reminiscência provém dos semelhantes como dos dessemelhantes” (Fédon, 1972, 74 a). É importante recordarmos daquilo que Platão especificou na República com respeito aos graus de afastamento entre a cópia e o modelo. Há a cama, tal como o demiurgo a produziu, isto é, o seu modelo original. Há, em seguida, uma primeira representação dessa cama ideal, ou seja, aquela fabricada pelo marceneiro, imperfeita; porém, ela guarda consigo uma maior simetria para com seu modelo. Por fim, teríamos a imagem da cama feita pelo pintor, duplamente afastada da primeira, cujo grau de realidade é bem menor por estar mais afastada daquela executada pelo demiurgo. As reminiscências podem variar em intensidade, considerando-se a similaridade entre a imagem e o seu Igual. O retrato de Símias, na qualidade de cópia imediata de seu Igual, está mais próximo dessa realidade do que sua lira, por exemplo. Poderíamos considerar, talvez, que, a lira fabricada pelo artífice e utilizada pelo músico, certamente, guardaria maior semelhança para com a Lira em si mesma. No entanto, Platão defende que, para além dos critérios de simetria, as reminiscências poderiam surgir, também, por meio de outras qualidades do objeto sensível e da imagem, tais como a relação de pertencimento e proximidade. Lembremo-nos, ainda, do exemplo dado por Platão no Crátilo: a imagem de Crátilo possui a mesma essência de Crátilo? Não, porém essa imagem compartilha, de alguma forma, da essência de Crátilo, sem ser ela de mesma ordem ontológica. Por isso, é possível remeter nosso pensamento ao próprio Crátilo, às vezes nos confundindo sobre seu grau de realidade. Nesse sentido, o mesmo se passa com Símias e seu retrato, ele é seguramente mais potente para efeitos de recordação do que seu instrumento musical. O Igual em si mesmo é, para Platão, a fonte que dá origem a todas as representações possíveis sobre ele. A alma é capaz de “enxergar” ou intuir essa realidade superior nos objetos da sensibilidade, sejam eles semelhantes ou não ao modelo primordial. Trata-se, nesse caso, de um reconhecimento não racional de elementos inteligíveis nas suas mais diversas representações sensíveis. A reminiscência consistiria, pois, nessa atividade anímica de

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identificar pontos em comum entre objetos de realidades ontológicas variadas ou, por vezes, completamente diferentes. Segundo o Sócrates do Fédon (1972, 74 c-d): “à vista de um objeto pensas em outro, seja ou não seja, semelhante ao primeiro, necessariamente o que se dá nesse caso é reminiscência”. A reminiscência é, nesse aspecto, a única maneira que a alma tem de recuperar seu conhecimento verdadeiro que, embora esquecido, ainda existe de forma latente em algum lugar dentro de si. A imagem do objeto que o espectador tem diante de sua vista ou, ainda, por outra mediação sensorial, tal como a audição, embora muito afastada da essência do objeto, é, todavia, o conteúdo que torna possível essa aproximação. A reminiscência requer que façamos uso dos sentidos para nos aproximarmos da essência do objeto, muitas vezes, atrelada à imagem (simétrica ou não) desse mesmo objeto. Ao percebermos o objeto sensível pelos sentidos “voltamos a adquirir o conhecimento que já possuíramos num tempo anterior: o que denominamos aprender” (Fédon, 1972, 75 e). Essa passagem do Fédon, acima apresentada, corrobora a hipótese, anteriormente discutida no Mênon, de que o processo de reminiscência vincula-se à teoria educativa platônica. A obtenção do conhecimento é resultado de um processo educativo que se inicia a partir da apreensão sensível dos objetos. Pois já se nos revelou como possível, ao percebermos uma coisa, pela vista ou pelo ouvido, ou por qualquer outro sentido, pensar em outra de que nos havíamos esquecido, mas que se associa com a primeira por parecer-se com ela ou por lhe ser dessemelhante. Desse modo, como disse, uma de duas coisas há de ser, por força: ou nascemos com tal conhecimento e o conservamos durante a vida, ou então as pessoas das quais dizemos que aprendem posteriormente, o que fazem é recordar, vindo a ser o conhecimento reminiscência (Fédon, 1972, 75 e-76 a).

A reminiscência, enquanto exercício mnemônico de recuperação dos conhecimentos inerentes à própria alma, é aquilo que torna possível a educação, pelo menos o tipo de educação definido como verdadeiro e autêntico por Platão. Se considerarmos válida a hipótese do Mênon de que não existe ensino, mas, somente, reminiscência, a atividade educativa relacionada à formação moral da alma deve ter como modelo paradigmático as Formas inteligíveis. No conjunto geral dessas Formas, participariam todos os correspondentes ideais que norteiam a moralidade e o juízo de valores. Teríamos, assim, numa esfera das essências: a Beleza, o Bem, a Virtude, dentre outros conceitos que regulam as ações e os gostos no mundo sensível. Na esfera da sensibilidade, teríamos: as imagens belas, a boa lira, a coragem, a temperança, a justiça e toda uma série de referências concretas que têm sua origem nas Formas em si mesmas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa contribuição, ao longo destas considerações finais do texto, tem em vista oferecer ao leitor uma reflexão aberta e fluida sobre o conteúdo organizado e as ideias expostas ao longo deste trabalho. Muitas das matérias e temas apresentados e discutidos encontram-se em aberto ou por fazer-se. Devemos tomar todo o conjunto do texto mais como um convite ao pensar a questão da educação pelas imagens do que propriamente como um apanhado ou sucessão de argumentos com base nos escritos de Platão. Nesse aspecto, seria interessante retomarmos a lógica e o movimento do pensamento que conduziu grande parte das discussões presentes nesta Tese, para que seja possível, desse modo, propor um último exercício. Pensar a Educação, bem como seus fundamentos filosóficos, faz parte de um processo de revisão das teorias e conceitos que conduziram a prática educativa ao longo de sua história. Gostaríamos de chamar a atenção do (paciente) leitor para esse trajeto, nem sempre linear, de reorganização (ou reinvenção) dos valores e princípios que orientaram a mentalidade dos educadores e teóricos da Educação. Desde a configuração da paideia, ou ainda, até antes mesmo disso, é provável que aqueles que nos precederam tenham buscado a melhor maneira de educar seus contemporâneos. Possivelmente, todo o esforço educativo, talvez, seja resultado dessa intenção de tornar (transformar/permitir) os indivíduos melhores. Essa compreensão já aparece no Protágoras como uma espécie de tautologia pedagógica. No diálogo, Sócrates questiona o sofista sobre os motivos que atraem os jovens atenienses às suas aulas, isto é, sobre o sentido ou o propósito dessa educação. Protágoras responde: “no caso de frequentar as minhas aulas, desde o primeiro dia de conversação retornarás para a casa melhor do que eras, o mesmo acontecendo no dia seguinte e nos subsequentes, acentuando-se cada dia mais o teu progresso” (Prot., 1980, 318 a). Sob tal perspectiva, haveria algum intento ou prática pedagógica que visasse realizar justamente o contrário disso? ou seja, tornar piores os indivíduos que são adeptos de tais práticas. Esse contrassenso foi apontado por Sócrates nesse mesmo texto. O teor daquilo que usualmente discutimos para (ou sobre) a Educação parece não questionar o seu sentido, mas, fundamentalmente, seu conteúdo, sua forma e seus valores. O próprio contexto histórico e cultural que serviu de base para a construção do pensamento de Platão já anunciava esse embate pedagógico. Havia, na época, pelo menos três correntes ou concepções educativas importantes: a filosófica (dentro dela, a socrático-

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platônica), a sofística e a paideia tradicional (poetas, comediógrafos, músicos, etc.). Apresentamos um pouco do embate entre elas no corpo do capítulo I. Queremos, no entanto, que o leitor se atente ao propósito dessa contenda, ou ainda, à motivação que desencadeou o surgimento dos modelos sofístico e filosófico, originados da paideia tradicional. O desenvolvimento da pólis trouxe uma nova clientela para a educação: uma juventude (urbana) interessada numa formação mais pragmática. Essa nova demanda não encontrou respaldo na antiga paideia, pois almejava outro tipo de ensino (formação política), especialmente, àquele com foco no aprendizado do bom uso da palavra (oratória e retórica) nas assembleias. Platão teria, então, que disputar seus discípulos entre os sofistas e demonstrar o porquê da superioridade da educação filosófica em detrimento das demais. Nessa mesma cena do Protágoras, Sócrates vai ao encontro do sofista na casa Cálias, onde ele estava hospedado. Parece-nos que Sócrates, para além de acompanhar o amigo, Hipócrates, com vistas a apresentá-lo a Protágoras, teria por objetivo, ainda, observar de perto (bisbilhotar) as técnicas pedagógicas deste. Em grande parte do diálogo, Sócrates aparece tentando convencer Hipócrates a desistir das aulas com o sofista, subestimando o valor dessa educação. A rivalidade pedagógica estaria, assim, muito mais na configuração dos valores (ideologia) do que, propriamente, nos meios de se empreender a educação. Quais eram os valores de Platão? O filósofo, nascido em berço aristocrático, enxergava nas estruturas políticas de sua época, somente, a degradação moral. Os valores que orientaram seu pensamento filosófico não poderiam, dessa forma, estar sediados no nosso mundo corruptível, daí sua devoção por um ethos metafísico e etéreo. No Timeu (1986, 17 a27 b), Crítias contará a Sócrates “uma velha história”, advinda do Egito e que remontaria a um tempo muito antigo. Trata-se do mito de criação de Atlântida, uma espécie de Atenas proto-histórica, criada pelo demiurgo. Essa cidade atemporal, por estar imune à corrupção, serviria de modelo paradigmático para a constituição dos Estados existentes. A moral platônica (arcaizante), em grande parte, visa a retomada de uma monarquia (rei-filósofo de alma áurea). A educação, submetida a esses anseios políticos, teria por finalidade assegurar a manutenção de uma pólis similar à do mito. Deveria, pois, preparar seu governante; identificado por Platão, na Carta VII, como a principal causa da degradação das cidades. Apesar de privilegiar a formação do mandatário, a proposta educativa oferecida por Platão à sua sociedade também se estendia aos seus demais membros. Ela contemplava, por exemplo, ambos os gêneros, todas as idades (crianças, jovens e adultos) e todas as camadas (escravos, metecos, guerreiros, líderes). Essa educação visava a totalidade, almejava assimilar todos em sua paideia; sem, com isso, ser democrática. O conteúdo e o formato dessa

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educação tomam emprestado elementos da tradição e da sofística, bem como ampara-se no poderio da paideia aristocrática guerreira, o qual se apoia em um ideal arcaico (moral tribal) ao mesmo tempo em que extrai do intelectualismo sofístico (moral do oikos urbano) o dinamismo de um movimento cosmopolita. Um dos maiores méritos de Platão em relação à paideia filosófica, talvez, esteja na maneira como o filósofo soube selecionar e assimilar tanto os aspectos da sofística quanto os da tradição; compondo, assim, um modelo de educação, ao mesmo tempo, intelectual e arcaico. Platão, na República (2001, 379 a), coloca Sócrates e Adimanto como os fundadores da Cidade ideal, conferindo a eles plenos poderes para que planejem sua constituição, inclusive no que tange à educação de seus cidadãos, da maneira que melhor lhes agrade: “Eduquemos esses homens em imaginação, como se estivéssemos a inventar uma história e como se nos encontrássemos desocupados” (Rep., 2001, 376 d). Desse ponto do diálogo em diante – quando os personagens estão brincando de legisladores –, surge o desafio lúdico de propor um tipo específico de educação para cada classe. Iniciam por negar (purgar) parte da poesia tradicional e admitir o restante como válido. Essa educação deve começar na infância, pois, segundo pensavam os gregos, era nessa fase que os indivíduos estariam mais suscetíveis às influências externas. Platão propunha aproveitar-se desse momento oportuno (kairós) para contornar os problemas políticos pela educação: conformar a mentalidade de seus cidadãos, já na infância, para que estes se adequassem às regras de uma sociedade justa. Sobre a necessidade de, na Cidade ideal, educar as crianças e os jovens para a justiça (dikaiosýne), nos adveio a pergunta: educar como e para quê? Apesar de Platão almejar a formação do filósofo-governante e, efetivamente, o percurso educativo ser direcionado para isso; o filósofo não é o problema do Estado, mas sua solução. É preciso, antes disso, educar a massa inculta (sem ouro nas almas) – moldar seus valores. Para a instrução dessa massa (denominada de gado humano por Platão), existem as imagens: uma modalidade de entretenimento que visa à formação moral. No entanto, para validar a educação imagética (estratégia de Estado), Platão precisou rever alguns conceitos sobre o Ser e as Formas; mexer, assim, no dualismo de Parmênides. As imagens teriam que ser flexíveis para alegrar o público (aprazíveis) e, ao mesmo tempo, ditar a moralidade (boas e verdadeiras). Somado a esse malabarismo ontológico, o argumento em torno do melhor modelo pedagógico contaria, ainda, com o carisma do poeta Platão, consistindo em uma espécie de alternância entre o uso da razão dialética (lógos) e a revelação da palavra divina (mythos). Nesse sentido, o conceito de imagem não serviria somente como base de fundamentação para a formação moral, mas, enquanto condição de verdade útil ou opinião verdadeira, atuaria, também, na própria

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construção do discurso platônico. Tomando contato com seus textos, percebemos uma capacidade mutável, flexível e intermediadora da linguagem platônica e de seu discurso sobre a atividade educativa; reelaborando, assimilando ou readaptando (para a construção de uma narrativa própria) determinadas posições ou posturas ideológicas para uma finalidade específica – seja ela qual for. Assim, em seu discurso filosófico também estão presentes os mesmos elementos que dão forma às imagens, especialmente a potência estética e a capacidade de transitar entre os extremos ontológicos. O intento de buscar responder à pergunta central desta Tese: de que modo as imagens seriam capazes de nos educar?, possibilitou algo maior e mais profundo do que o cumprimento de um objetivo acadêmico – nos moldes de um ensaio epistemológico em torno de um problema da Educação. Acreditamos que o exercício de se debruçar no estudo de um autor da envergadura de Platão (ou de qualquer outra figura clássica do pensamento universal) extrapola o campo da pesquisa científica. Pode parecer, de certo modo, desconcertante para nosso racionalismo moderno (herdeiro de Descartes) a desconstrução do cânone da razão – tal como o desejamos para a Educação – pela interferência dos elementos irracionais do conhecimento. Em Platão, essa postura é observada. Não é possível a retomada de seu discurso pedagógico nos moldes da modernidade. Privar o mito não apenas de seu potencial educativo, mas de seu papel central na formação moral do cidadão da pólis, seria negligenciar ou desprezar a importância da carga cultural da tradição poética e da religiosidade grega na edificação do pensamento filosófico de Platão. No Timeu (1986, 29 d), o filósofo toma o mito como um relato provável: “o mito mais verossímil” para tratar da hipótese da criação do mundo pelo demiurgo. As imagens assumiriam, nesse ponto do diálogo, a melhor, senão a única, maneira de convencer o interlocutor de questões científicas (pela physis da época), as quais ele não poderia ou não teria condições de acreditar por uma demonstração eminentemente racional. Platão, dessa forma, comportar-se-ia como um agricultor ou jardineiro plantando uma semente de conhecimento na alma de seu interlocutor. Nossa alma é um jardim e, tal como o Fedro (1975, 276 b-d) nos apresentou, o verdadeiro discurso (arte dialética) se utiliza das palavras (sementes) para germinar na alma o que há de mais virtuoso e verdadeiro. O jardim é a ilustração em forma de alegoria do propósito ou do sentido dos diálogos de Platão. Eles não visam dizer e determinar o que é a verdade, mas estimular, cultivar e empenhar-se no florescimento das Ideias dentro da alma, o que consistiria no tesouro das reminiscências, tal como fora expressado no diálogo. As imagens seriam capazes de nos educar, pois, assim como a arte dialética, elas se comportam como sementes. Aliás, todo o percurso educativo platônico é uma aposta de que a

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semente plantada, desde os primeiros momentos da vida humana, gradativamente se transformará em algo. É necessário que a alma venha a ser continuamente irrigada e estimulada (por cuidados educativos) com vistas a seguir para próxima etapa, sucessivamente, até a formação do filósofo. Vimos que a formação da moralidade ou apreço pelas virtudes sensíveis é a etapa inicial de todo esse intento. Platão quer preparar o solo anímico para investir, posteriormente, no desenvolvimento do intelecto, contudo, não é possível que floresçam as Ideias num terreno árido de valores. A Verdade, nesse aspecto, segue intrinsecamente vinculada ao bom caráter moral dos seres humanos e depende do Bom e do Belo para manifestar-se. A alma precisa se alimentar de boas e belas imagens, premissa anunciada pela alegoria dos cavalos alados no Fedro e, posteriormente, ilustrada pela metáfora do jardim. A imagem, na condição de eikasía (primeira parte do percurso educativo) e identificada pelas noções de eikon e eidolon, possibilita que a alma reconheça os objetos puros do conhecimento por meio da semelhança e da simetria entre eles e por meio de suas cópias sensíveis. Ao mesmo tempo em que as imagens promovem o engano e a ilusão (quando mal utilizadas), elas também podem direcionar a alma para o caminho ou direção elevada, enquanto alethès dóxa ou opinião verdadeira – autênticas sementes. Esse direcionamento é a meta do percurso educativo. A alma, dotada de uma consciência daimônica (Eros atuando como intermediador), assimila o que há de melhor nas imagens, retirando delas os conteúdos necessários para aflorar as reminiscências.

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REFERÊNCIAS

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