Estereótipos Regionais e Usos da Cultura Popular: O Ribatejo e os Campinos

July 22, 2017 | Autor: Pedro Silva Sena | Categoria: Social Anthropology, Folk Culture, Regionalismo
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DIÁLOGOS INTERCULTURAIS

CLARA SARMENTO

DIÁLOGOS INTERCULTURAIS

FICHA TÉCNICA Título Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem Coordenação Clara Sarmento Editor Vida Económica - Editorial, SA R. Gonçalo Cristóvão, 116 - 6º Esq. • 4049-037 Porto www.vidaeconomica.pt • http://livraria.vidaeconomica.pt Composição e montagem Vida Económica Impressão e acabamento Depósito Legal

ISBN

Executado em Abril de 2011

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ÍNDICE GERAL Introdução .............................................................................................................................. I. REPRESENTAÇÕES INTERCULTURAIS.................................................................. - A Lady’s Visit to Manilla and Japan: Género, Viagem e Representações Interculturais ... - Morte em Lisboa: Afirma Pereira de Antonio Tabuchi ...................................................... - Representações de Portugal com Testemunhos de Celebridades: Versões da Cultura Portuguesa numa Campanha Publicitária ........................................................................... - Velhas Vozes e Novos Lugares: O Diálogo entre a Cultura Portuguesa e Norte-Americana numa Viagem de Eugénio de Andrade ................................................ - A Casa como Enunciado: Narrações de Origem entre os Bunak – Bobonaro, Timor-Leste ... - A Cultura como Tradução: Exercícios Etnográficos em Diálogo ...................................... - Representações de Portugal: Um Confronto Intercultural.................................................. - Estereótipos Regionais e Usos da Cultura Popular: O Ribatejo e os Campinos ................ - “Speaking Portuguese and writing English”: Representações de Portugal na obra de Robert Southey ................................................................................................. II. AS LINGUAGENS DO DIÁLOGO INTERCULTURAL........................................... - A Marca Cultural Portuguesa no Quoc Ngur, a Língua. Nacional Vietnamita................... - A Guerra das Palavras: O Paralelismo Lexical no Discurso Ritual Fataluku..................... - A Outra Florbela Espanca: Reflexões sobre a Prosa Romanesca e Ficcional Traduzida ... - A Língua. como Espaço de ‘Brincriação’ em Mia Couto ................................................... - O Infinitivo Pessoal e os seus Equivalentes na Língua. Alemã .......................................... - Primeiras Vanguardas e Metrópoles: A Estética Cultural Migratória e os Cenários Transculturais em Berlim e Londres...................................................................................

- Português Funcional ........................................................................................................... - Correspondência(s) Mécia e Jorge de Sena: Rede de Afectos e Exílio Luso-Americano .. - Orações Subordinadas em Alemão e sua Tradução para Língua. Portuguesa .................... - Portfolio Intercultural Communication through Using Real Experiences ......................... III. GLOBALIZAÇÃO E HISTÓRIA INTERCULTURAL............................................ - A Responsabilidade Social da Empresa Cooperativa: Uma Análise Jurídica e Intercultural .. - Rey ou l’Impact MitigÉ d’un Site ArchÉologique Iranien ................................................. - Elite Colonial Feminina e Cultura Africana em Moçambique no Final do Antigo Regime .. - A Harmonização Fiscal Europeia ....................................................................................... - France et Francophonie dans le Jeu et le Discours Inter&Multiculturels: Défis, Enjeux et Réticences ................................................................................................ - História e Interculturalidade: Novas Identidades e Memórias Culturais............................ - Diversidade Linguística e Integração Europeia .................................................................. - Tráficos Interculturais: A Racialização da Escravatura e o Ordenamento Jurídico Português . - A Expansão Portuguesa e a Construção da Globalização .................................................. - O Casamento na Legislação Republicana: Uma Perspectiva Intercultural das Desigualdades Conjugais ............................................................................................. - Os Irmãos, a Viagem e o Livro: Topologias da Cultura em Timor-Leste ........................... - Intercul + Turismo .............................................................................................................. Bibliografia Geral .................................................................................................................. Sobre os Autores .................................................................................................................... Índice Remissivo....................................................................................................................

INTRODUÇÃO Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem é um título simultaneamente ambíguo e claro, tão original e fértil em significados potenciais, como previsível e estéril na forma como estes são tantas vezes explorados. O termo ‘intercultural’ proporciona uma infinitude de interpretações e assim entrou na moda. A ‘interculturalidade’ evoca uma reunião de autores de origens mais ou menos exóticas, com um passado colonial nem sempre bem resolvido, de preferência com um nome invulgar e vestes a condizer. De uma publicação ‘intercultural’, em autoria e conteúdo, espera-se que verse temas polémicos e origine textos plenos de verbos modais. O termo ‘viagem’, esse então pode abranger por definição todo o globo e mais além. Mas, no caso presente, trata-se d’A Viagem, uma viagem com artigo definido e com Novos Rumos. Desenha-se uma tarefa duplamente difícil, não só na ‘novidade’ que propõe, mas também na pesada herança que uma edição portuguesa assim intitulada necessariamente recebe, tendo em conta o passado histórico português, pleno de viagens pioneiras. Impõe-se, logo à partida, uma definição conceptual. Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem opera com um conceito de interculturalidade enquanto mobilidade, trânsito, dinâmica entre culturas. Um conceito que justifica os movimentos de ida e de volta, de partida e de chegada, de emissão e de recepção implícitos nos Diálogos e na Viagem do título, e que convoca o auxílio da tradução cultural e da cartografia epistemológica. Estudam-se as causas, as características e implicações da dinâmica intercultural, em perpétuo movimento, sem fronteiras espaciais nem temporais, numa tão perigosa quanto estimulante indefinição de limites. Compare-se, sem qualquer (des) valorização ou hieraquia, a noção de ‘multiculturalidade’, enquanto espaço identificável, delimitado, onde coabitam diferentes culturas. O espaço multicultural será consequência do movimento intercultural e, como tal, será também aqui referido. Qualquer discurso contemporâneo que verse a temática da interculturalidade inserese numa realidade de novos destinos e de novos portos de chegada e de partida, que se cruzam e interiorizam na normalidade das práticas quotidianas. O Portugal do século XXI é um país em trânsito constante, de chegada e de partida, migrante, emigrante e imigrante. Mas a viagem mais atribulada de Portugal, uma viagem que ainda ruma ao desconhecido, continua a ser aquela que Portugal fez-faz-fará dentro de si próprio, no

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interior do seu território geográfico e mental. Eduardo Lourenço e José Gil traçaram já alguns mapas possíveis para o labirinto dos fantasmas portugueses, um território talvez não tão assombrado como o d’Os Fantasmas de Espanha1, mas suficientemente complexo para requerer uma Ariadne perita em traumas silenciados, complexos diversos (com Édipo em lugar cimeiro), depressões colectivas, ilusões fugazes e decepções perenes. Um labirinto cuja complexidade se adensa na sua materialidade concreta – característica que não é propriamente negativa – quando se percebe Portugal como o mosaico de micro-regiões geográficas e culturais que na verdade é: “ (...) o dentro de casa, em Portugal, continua a ser um dentro de casa que tem uma geografia que nunca mais acaba. E isso é um privilégio que autores de língua inglesa, de língua francesa, de língua espanhola sugam até ao tutano e que nós ainda sugámos muito pouco. Quem tem feito esse trabalho, e bem, são autores considerados da periferia geográfica: é o Agualusa, é o Mia. São pessoas de fora de casa, quando a casa é comum”2. A definição da multiplicidade cultural de Portugal – e a consequente premência dos estudos interculturais realizados em Portugal ou sobre Portugal e os territórios da lusofonia – pode ser metaforizada nesta breve passagem. A cena desenrola-se nos arredores de Portel, castelo à vista, junto a uma das capelas da ‘Rota do Fresco’ alentejano. Um grupo de participantes num congresso de Estudos Culturais (cuja definição e prática nem sempre coincidiram) acaba de confluir por engano no cemitério adjacente à capela. Inicia-se uma inesperada visita turística pelas campas e jazigos do local, ou seja, pelos objectos e textos de uma peculiar interpretação cultural da morte e seus rituais. No diálogo que se gera, algumas vozes admitem a sua quase total ignorância sobre Portugal. Uma indiana e um belga questionam uma portuguesa. Juntam-se-lhes duas coreanas que acabavam de fotografar fascinadas um rebanho de ovelhas que atravessara a estrada. Mais duas turcas, um bengali, quatro americanos, uma russa, um japonês. O diálogo tranforma-se numa palestra informal sobre Portugal de relance (sem os preconceitos de Maria Rattazzi3), e a estranheza do local – nada mais democrático e indiferente a títulos académicos do que a morte – liberta as confissões de ignorância e fascínio. Descrevem-se brevemente as regiões e suas características, tentando fintar o fantasma de Jorge Dias4: os diferentes interiores e os diferentes litorais; as montanhas verdes, áridas ou carbonizadas; as cidades e o êxodo rural; a capital, o Algarve e o resto; norte e sul; Trás-os-Montes e Alentejo; as tradições inventadas e as genuínas; as ilhas e os condomínios5; as fábricas do desemprego e os shoppings do sobre-individamento; a avó analfabeta do jovem doutorado; os arquipélagos sempre esquecidos; e alguém pergunta: “Mas tudo isso só em Portugal?” E nem sequer se mencionou a questão (pós-) 1. Giles Tremlett, Os Fantasmas de Espanha: Viagens pelo Presente Escondido de um País, trad. Maria Mendes, Lisboa, Alêtheia Editores, 2008 [2006]. 2. Entrevista a Pedro Rosa Mendes, Revista LER, nº 81, Junho 2009, p. 40.

3. Maria Rattazzi, Portugal de Relance, trad. anónimo, Lisboa, Antígona, 1997. 4. Ver: Jorge Dias, “Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa”, Ensaios Etnológicos, Lisboa, Junta de Investigação do Ultramar, Centro de Estudos Políticos e Sociais, 1961, pp. 97-119. 5. Obra pioneira de Paulo Castro Seixas, Entre Manchester e Los Angeles: Ilhas e Novos Condomínios no Porto. Paradigmas Sócio-Espaciais, Políticas da Diferença e Estruturas Antropológicas Urbanas, Porto, edições Universidade Fernando Pessoa, 2008.

Introdução

colonial, o mito ideológico das províncias ultramarinas. “Mas afinal que área tem este país?” Quase se receia que surja a anedótica confusão com uma província da imensa Espanha. E então a portuguesa compreende a cegueira que persiste “dentro de casa” sobre a multiplicidade cultural do próprio país, sobre a riquíssima inter e intraculturalidade de Portugal, sobre as infinitas hipóteses de investigação latentes no seu território. Na interculturalidade contemporânea, tanto em Portugal como em qualquer outro ponto do globo, (re)constroem-se continuamente novas identidades – se é que alguma vez existiu uma ‘velha’ identidade imutável ou uma identidade inequívoca. Navega-se na internet e vulgariza-se a viagem para destinos cada vez menos exóticos porque cada vez mais acessíveis, destinos que apenas mantêm o seu exotismo no discurso publicitário ou na narrativa do turista (e já não do viajante) regressado. A interculturalidade do quotidiano exemplifica-se nas mailing lists, no Facebook ou no Hi-5 de qualquer utilizador; no equipamento desportivo britânico fabricado no Uzbequistão; na sala de aulas da era Erasmus. As diversas vertentes da interculturalidade comodificam-se, fundem-se no dia-a-dia, tomam novos rumos, mesmo sem sair de casa. Há também novas vozes que se fazem ouvir no diálogo intercultural e que adquirem credibilidade, como fontes de estudo até há pouco ignoradas ou marginais: as vozes das mulheres; das narrativas esquecidas do passado que foi tão intercultural como o presente (o que é o colonialismo senão uma interculturalidade perversa?); da publicidade global; das narrativas orais; da ficção; da epistolografia e dos diários; da legislação comunitária; da etnografia; dos movimentos artísticos; das novas pedagogias e tecnologias. Mas esta polifonia de culturas é também passível de gerar novos conflitos, que transitam do extraordinário narrado em livros e noticiado nos media para as interacções banais do quotidiano comum. “Será então possível localizarmo-nos historicamente, contar uma história global coerente, quando a realidade histórica é na verdade uma série inacabada de encontros? Que atitudes de tacto, receptividade e auto-ironia conduzirão a compreensões não redutivas? Quais são as condições para uma tradução séria entre diferentes rumos, numa modernidade inter-relacionada mas não homogénea?”. Esta série de desafios, traduzidos livremente da Introdução de James Clifford a Routes: Travel and Translation in the Late Twentieth Century6, motivou o presente projecto. Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem focaliza áreas inéditas e efectivamente interculturais, ao congregar autores provenientes de múltiplas nacionalidades e dos mais diversos contextos académicos, para assim cruzar temas por tradição estanques. De forma pouco usual, este livro ruma pelos campos do saber da Literatura, do Direito, da Linguística, da Didáctica e do Turismo, pois todas estas áreas disciplinares fornecem textos passíveis de funcionar como roteiros para a viagem que se propõe. Diálogos Interculturais utiliza estruturas teóricas vigentes no panorama científico internacional (tal como as estruturas teóricas dos Estudos Culturais e dos Media ou as noções de ‘cultura como tradução’) para a análise de novas práticas ou de práticas 6. James Clifford, Routes: Travel and Translation in the Late Twentieth Century, Cambridge and London, Harvard University Press, 1999 [1997], p. 13.

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tradicionalmente ignoradas pela academia mais conservadora. Comprova-se assim a dinâmica de investigadores portugueses e estrangeiros, que não receiam partir para novos destinos com o auxílio de mapas epistemológicos há muito ao serviço da investigação anglo-saxónica, aspirando a criar novos mapas alternativos, para orientação dos seus pares. Com tais objectivos, e tendo presentes as propostas de James Clifford, este livro realiza viagens interculturais no espaço (entre o aqui e o lá), no tempo (entre o passado e o presente) e entre os diversos conceitos de cultura, que já Raymond Williams dizia ser uma das palavras mais complexas da língua inglesa. Uma obra intercultural coordena necessariamente as leituras plurais do conceito de ‘cultura’, incluindo desde a cultura popular, a cultura de massas e as definições sócio-simbólicas de cultura, até à cultura erudita, académica e institucional. Cruza-se assim a primeira grande fronteira da viagem intercultural – a fronteira da própria noção de cultura – de modo a evitar o estereótipo do intercultural como um mero ‘nós’ & ‘outros’, bem como o erro basilar de uma interculturalidade que ignora a diversidade e dinâmica contidas na própria definição. Em termos metodológicos, Diálogos Interculturais cria ainda um diálogo interdisciplinar entre áreas tradicionalmente de costas voltadas, como nos pares quase dicotómicos Economia-Antropologia, Direito-Linguística ou História-Literatura. Para ser coerente, Os Novos Rumos da Viagem inclui contribuições dos mais diversos quadrantes e nacionalidades, pois este projecto também é intercultural na fonte, no sujeito das suas proposições, e não apenas nos objectos de estudo. Aqui se cruzam as culturas próprias de investigadores do ensino superior politécnico e universitário; técnicos de turismo e escritores; juristas e bibliotecários; nativos e migrantes; ocidentais e orientais; jovens e mais experientes; docentes de diversos níveis de ensino e discentes de pósgraduações; do norte e do sul; do ocidente e do oriente. Porque a viagem intercultural académica pode (e deve) gerar roteiros universalmente legíveis, sem ter necessariamente de se perder nos labirintos do hermetismo erudito. Tomando como ponto de partida que a cultura, mais do que um conjunto de produtos, é um processo, um conjunto de práticas e intercâmbios de significados entre os membros de um grupo ou sociedade, conclui-se que, quando dois indivíduos pertencem à mesma cultura, é como se interpretassem o mundo e os acontecimentos em seu redor de forma semelhante – mas não necessariamente idêntica – e se exprimissem de um modo que lhes permite uma mútua compreensão. A importância dos significados comuns não impede que em qualquer cultura exista uma grande diversidade no modo como se interpreta ou representa qualquer tópico. A noção de cultura implica concomitantemente sentimentos e ligações afectivas, tanto quanto conceitos e ideias. A imagem de um indivíduo, por exemplo, exprime a sua identidade, emoções e pertenças, através de códigos que podem ser lidos e compreendidos pelos demais, mesmo que esse processo de emissão/recepção não seja intencional nem facilmente explicável pelos seus intervenientes. Acima de tudo, os códigos culturais organizam e regulam as práticas sociais, influenciam condutas e, por consequência, têm efeitos pragmáticos muito reais. Os significados de um objecto advêm da forma como os agentes de uma cultura o representam: as palavras que sobre ele dizem; as histórias que contam a propósito;

Introdução

as imagens que lhe associam; as emoções, categorias e valores que lhe conferem. O que sucede, então, quando a compreensão sempre algo parcial e subjectiva do diálogo cultural se torna dominantemente parcial e subjectiva? Ou quando a descodificação funciona de modo antagónico ou, pelo menos, demasiadamente distante para que se gere uma efectiva comunicação? E, ainda mais importante para este projecto, quando os agentes em diálogo pertencem a culturas distantes, com as suas parafrenálias de símbolos mutuamente ininteligíveis? Somam-se aqui as principais dificuldades do diálogo intra e intercultural, e também os seus maiores desafios. As representações generalizadas e infundadas de um qualquer ‘outro’, sustentadas num conhecimento superficial, redundam facilmente em estereótipos, positivos ou negativos, que exercem um grande poder sobre as práticas e experiências concretas dos indivíduos, quando confrontados com esse ‘outro’ ou quando identificados como ‘outro’, respectivamente. A génese de uma reflexão não-elitista, não-colonialista, não-hegemónica sobre a interculturalidade (quase classificável como uma reflexão de contracultura, tal é o poder das ideologias dominantes) pode ser associada a indivíduos inconformistas, excepcionais, microcosmos humanos que são motores de mudança, muitas vezes dentro de uma aparente continuidade. Nesta obra, são disso exemplo personagens e personalidades como Florbela Espanca, Anna d’Almeida, o “Pereira” de Tabucchi, Jorge e Mécia de Sena, Mia Couto ou Robert Southey. A abrir a secção dedicada às “Representações Interculturais”, o ensaio “A Lady’s Visit to Manilla and Japan: Género, Viagem e Representações Interculturais” analisa a escrita feminina ocidental no contexto do diálogo entre culturas, em particular as imagens que uma viajante (ou já uma turista?) inglesa do século XIX compõe a partir dos seus contactos efémeros com diversos espaços e práticas orientais. A autora, Anna D’Almeida, viajou pelo Extremo Oriente entre Março e Julho de 1862. O título A Lady’s Visit to Manilla and Japan induz em erro, pois a narrativa inclui também descrições de Macau, Hong Kong, Singapura, Xangai, Nagasaki, Yokohama e Cantão, entre outros destinos, atestando o profundo desejo da família D’Almeida de explorar in loco todas as potencialidades dos países visitados. As diferenças e similitudes das vivências femininas em pontos tão díspares do globo permitem a análise de variáveis de classe, raça, nacionalidade e religião, e sua influência nas representações assim construidas. Ao longo de A Lady’s Visit, o preconceito etnocêntrico europeu considera a mulher não-ocidental como um ser exótico, que representa tudo aquilo que a escritora vitoriana não é. Contudo, esta imagem quase antítética pode também incluir congéneres geograficamente próximas, mas insanavelmente distanciadas por outros tantos critérios de moral, classe e religião, ou seja, por clivagens irremediáveis dentro da própria cultura ocidental. Este desafio aos estudos interculturais e de género é aqui lançado por mão da narrativa de viagens da jovem aristocrata Anna D’Almeida, ela própria membro de uma família onde as alianças interculturais se evidenciam no nome da autora-personagem. Um diário de viagens pode ser tão ficcional quanto uma narrativa assumidamente imaginária. E não é menos verdade que uma obra de ficção pode fornecer pistas fidedignas para a leitura intercultural da chamada ‘realidade’. Por isso, “Morte em Lisboa:

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Afirma Pereira de Antonio Tabucchi” viaja por tempos não muito distantes do espaço português, como parte de uma pesquisa mais vasta das representações de Portugal na ficção internacional. O italiano Antonio Tabucchi descreve o Portugal fascista de 1938 no seu romance Afirma Pereira, cujo sub-título Um Testemunho lança dúvidas no leitor sobre a verdadeira identidade das personagens e factos narrados. Afirma Pereira encontra-se, de facto, firmemente ancorado em locais e momentos facilmente identificáveis na História recente e envolve uma complexa rede de referências culturais que criam um quadro abrangente do Portugal (sempre metaforizado na omnipotente capital) daquele Verão em tudo sufocante de finais da década de 30. O profundo conhecimento e as vivências em que Tabucchi consubstancia a sua predilecção por Portugal tem um antepassado proeminente na figura de Robert Southey (1774-1843), autor prolífico do Romantismo inglês, com uma obra que se reparte pela poesia, história, ensaio, biografia, cartas, relatos de viagens, crítica literária, comentário político e social, tradução e edição. “Speaking Portuguese and writing English: Representações de Portugal na obra de Robert Southey” parte da constatação que a influência de Southey extravaza os limites da cena literária e cultural do seu país, garantindolhe uma posição de relevo na história das relações anglo-portuguesas. A sua atracção pelo ‘outro’ e pelo exótico (categorias que raramente se associam ao Portugal europeu e contemporâneo) manifesta-se de um modo muito particular na atenção que dedicou a Portugal, país que visitou por duas vezes, em 1796 e 1800-1801, e que lhe sugeriu um longo programa de estudos e publicações. A ligação sentimental que estabeleceu com Portugal e o modo sistemático e pioneiro como trabalhou em prol da divulgação da história e da literatura portuguesas além-Mancha – difundindo uma imagem mais positiva deste então desconhecido país ibérico – fazem de Southey o primeiro lusófilo inglês, no diálogo intercultural luso-britânico. O porto de chegada transforma-se em porto de partida e também um escritor português navega pelas possíveis representações do ‘outro’. “Velhas Vozes e Novos Lugares: O Diálogo entre a Cultura Portuguesa e Norte-Americana numa viagem de Eugénio de Andrade” descodifica um ‘outro’ aparentemente familar – os Estados Unidos da América – como que num cordial déjà-vu, graças ao discurso hegemónico dos media. Em 1989, o poeta português Eugénio de Andrade, na companhia de Alexis Levitin, o seu tradutor norte-americano, empreenderam uma viagem de cinco semanas através dos Estados Unidos da América, de costa a costa, quais novos Sal Paradise e Dean Moriarty. O objectivo de Eugénio não era apenas conferenciar e divulgar o seu trabalho literário em universidades e outras instituições culturais, mas também visitar os locais de culto onde viveram alguns dos seus escritores favoritos. Desse misto de viagem e peregrinação resultou uma curiosa comparação entre culturas, modos de viver e literaturas, que Eugénio de Andrade registou em diversas crónicas, coligidas no volume À Sombra da Memória (1993), e que também refere numa entrevista publicada em Rosto Precário (1995). Por sua vez, Levitin anotou, num artigo de carácter diarístico intitulado “Eugénio On the Road”, a visão de um poeta que transformou a página num espaço de contacto intercultural entre Portugal e os Estados Unidos.

Introdução

Na sua diversidade (uma inglesa no oriente; um italiano moderno e um inglês romântico em Portugal; um português na América), estes diálogos interculturais comprovam a ambivalência das suas leituras e a impossibilidade de um paralelismo perfeito entre os diversos interlocutores e códigos intervenientes. Será então necessário recorrer a um mediador de códigos culturais, a um tradutor? Conceitos tão abrangentes, comparativos e abertos como o da própria ‘interculturalidade’ são, parafraseando o pensamento de James Clifford, traduções construídas a partir de equivalências imperfeitas, que privilegiam determinados originais e destinam-se a audiências específicas7. A viagem intercultural pode ser traduzida em múltiplas experiências, como a diáspora, a fronteira, a (e/i)migração, o turismo, a peregrinação ou o exílio. Porque as identidades não são fixas, porque os territórios culturais proporcionam encontros e diálogos complexos e difíceis, não existe uma solução de consenso nem de valor universal: existe apenas mais tradução. “A Cultura como Tradução: Exercícios Etnográficos em Diálogo” discute a ideia de tradução cultural como modelo e metáfora da contemporaneidade, enquanto comunicação transbordante. Traz à luz conceitos centrais da tradução cultural (como as noções de fronteira ou limite; zona de contacto; terceiro espaço; hibridismo; creoulização; scapes; fluxos; indigenação) e articula-os com três contextos etnográficos portugueses: as nomeadas transmontanas; a comunicação urbana na cidade do Porto; a literacia informática, os utilizadores e os hackers, com vista à compreensão das diversas estratégias da tradução intra e intercultural, em cada um dos contextos em causa. Por fim, coloca a hipótese de uma formação de configurações prismáticas sobrepostas, na qual todas as formas de tradução cultural coexistem, ainda que com diferentes relevâncias, dependendo do lugar e do olhar. Outros lugares requerem olhares atentos à forma como a cultura se traduz em práticas, categorias e palavras, tanto no interior da comunidade como na tradução posterior que o antropólogo transporta para a sua própria comunidade de leitores. “A Casa como Enunciado: Narrações de Origem entre os Bunak – Bobonaro, Timor-Leste” nasce precisamente de um trabalho de campo etnográfico desenvolvido entre 2003 e 2006 nas montanhas de Bobonaro, junto de uma comunidade Bunak, um dos grupos etnolinguísticos de Timor-Leste, através da participação em rituais e da recolha de narrações mitológicas. Vários estudos chamaram a atenção para a forma como, em Timor-Leste, as diversas comunidades integraram os ‘outros’ nas suas narrativas de origem, e de como esta tradução serviu para definir e compreender os papéis e as funções sociais dos vários grupos em presença no passado e no presente. “A Casa como Enunciado” analisa como os ‘outros’ são descritos nas narrativas de origem dos Bunak e como este facto é determinante na identidade da comunidade, relevando-se a pertinência da memória oral enquanto veículo de poder e de afirmação pessoal, social e comunitária. Para o efeito, analisam-se os vários tipos de discurso da memória oral e, em particular, a oratura em paralelismo ou linguagem diádica, bem como os contextos rituais da sua exposição, transmissão e negociação. Os Bunak possuem uma literatura oral vasta e

7. James Clifford, Routes: Travel and Translation, pp. 11 e segs.

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diversificada, da qual se destacam a história do caminho dos antepassados – Bei Gua –, da comunidade, das Casas ou dos seres vegetais e animais. Este saber é confiado à memória dos lal gomo – senhores da palavra –, que ocupam uma posição fulcral na transmissão e perpetuação da história oral e da identidade comum. A viagem intercultural ruma ao mais difícil dos portos, o de chegada, recordando o episódio do cemitério de Portel. O texto etnográfico pode ser encarado como uma construção narrativa de carácter interpretativo e ficcional, que Clifford Geertz fundamenta num percurso mental marcado por encontros prévios com outras construções semelhantes ou com consciências (in)formadas por essas construções. Tal percurso influencia também o papel que a construção narrativa desempenha junto dos indivíduos ou grupos distantes no espaço e/ou no tempo da matriz social que a gerou. O relativismo cultural e histórico argumenta que nunca poderemos captar a mentalidade de outros seres humanos ou de outros períodos como se fosse a nossa própria mentalidade. No entanto, poderemos apreendê-la suficientemente bem, pelo menos tão bem como apreendemos qualquer coisa que nos é estranha, se a observarmos reflectindo sobre os preconceitos que estão, nesse momento, a interferir na nossa visão, sem tentar ignorar ou contornar a existência desses mesmos preconceitos8. A antropologia interpretativa de Clifford Geertz relaciona-se estreitamente com a meta-antropologia textual de James Clifford, cujo tema central tem sido a construção textual da autoridade, estabelecida pela verbalização da experiência do terreno, espaço narrativo onde se joga a identidade do indivíduo e do grupo, constrói-se a ordem vigente e coexistem estreitamente cultura e poder. Para James Clifford, a descrição etnográfica inscreve-se no contexto da rede de poderes da sociedade do etnógrafo, pelo que propõe o princípio do diálogo igualitário entre este e os indivíduos em estudo, ao invés da descrição objectiva do outro, longínquo e politicamente equívoco. Tal como Bakhtin demonstrou a propósito do romance, os processos dialógicos proliferam em qualquer espaço discursivo complexo, onde muitas vozes clamam por expressão9. A pluralidade vocal dos informantes citados ou parafraseados está submetida nas narrativas etno-antropológicas tradicionais à voz singular da autoridade observadora. Uma vez reconhecida a polifonia enquanto modo de produção textual, o monólogo de autor é questionado e revela-se característico de uma ciência que se assume como representante das culturas estudadas. Daqui se infere a impossibilidade de uma aproximação completamente neutra ou definitiva. Não sendo a cultura um objecto que se descreve simplesmente, não será também um conjunto unificado de símbolos e de significados inequivocamente interpretáveis. A cultura é contestável, variável e inconstante e nesta mutabilidade incluem-se as representações e explicações de participantes e observadores. “Estereótipos Regionais e Usos de Cultura Popular: O Ribatejo e os Campinos” 8. Clifford Geertz, Local Knowledge: Further Essays in Interpretive Anthropology, London, Fontana Press, 1993 [1983]. 9. Mikhail Bakhtin, “Discourse in the Novel” in Michael Holquist (ed.), The Dialogical Imagination, Austin, University of Texas Press, 1981, pp. 259-442.

Introdução

baseia-se numa etnografia multi-situada e numa análise diacrónica para abordar a história social das representações e das práticas em torno dos ‘campinos ribatejanos’ e os modos através dos quais estas foram patrimonializadas e ‘turistificadas’. No Ribatejo, as feiras, os festivais e as festas locais, envolvem com frequência exibições e evocações de campinos, os pastores de gado bovino bravo celebrados na literatura, nas artes plásticas e no cinema, e transformados em símbolo da região e num dos ícones do país. Os campinos, quase sempre retratados sobre a sua montada desde Silva Porto e Carlos Relvas, são comummente apresentados enquanto figuras viris, heróicas, crentes e abnegadas, sobre as quais é difícil encontrar uma imagem negativa nos meios de comunicação, na literatura, nos guias turísticos, ou nos estudos etnográficos, históricos e geográficos. É no período que decorre entre meados do século XIX e meados do século XX que as representações acerca dos campinos são construidas, difundidas e consolidadas, à medida que a cultura popular é objectificada, nacionalizada e regionalizada, por meio da produção erudita e de práticas como a invenção ideologicamente orientada do folclore, dos cortejos etnográficos e das exposições e congressos regionalistas. Mais recentemente, as representações e as práticas em torno dos campinos têm sido sujeitas a processos de patrimonialização e de ‘turistificação’, que os colocam – mais uma vez – no núcleo dos discursos sobre identidade local e regional. Também “Representações de Portugal: Um Confronto Intercultural” questiona e debate de forma bipartida aspectos relacionados com a representação mediatizada (e muitas vezes estereotipada) da cultura portuguesa no espaço europeu, a partir de questionários realizados a falantes de português, italiano e alemão. Obtem-se assim uma perspectiva necessariamente parcelar do conceito de cultura portuguesa e dos pressupostos que subjazem ao diálogo e ao confronto intercultural, no âmbito das auto e hetero-representações da actual sociedade portuguesa, no interior e no exterior do território. O estudo das representações massificadas de qualquer objecto ou prática cultural contemporânea não pode ficar indiferente a um tipo de discurso omnipresente na sociedade actual, quase tão hegemónico como qualquer outra ideologia, e veiculado até à exaustão por todos os meios, mais ou menos discretos: o discurso da publicidade e da sociedade do lucro & consumo. A publicidade tem sempre interesse em maximizar a utilização de qualquer estratégia que induza o estado de espírito desejado no seu público-alvo. Os testemunhos de celebridades, cujos efeitos podem ser variados e subjectivos (e perversos), são uma estratégia eficaz na transmissão de sentimentos que se pretendem associar ao produto anunciado. Testemunhos deste tipo no discurso publicitário multimédia fornecem pistas sobre a forma como um país se vê a si próprio e sobre quais dos seus nomes famosos corporizam os valores e comportamentos positivos que são idealmente associados aos cidadãos portugueses. “Representações de Portugal com Testemunhos de Celebridades: Versões da Cultura Portuguesa numa Campanha Publicitária” analisa alguns exemplos pouco usuais de utilização de testemunhos de celebridades numa campanha publicitária a um banco privado. De forma atípica, várias personalidades pertencentes à cultura dita de elite (o que exclui, na hierarquia portuguesa, o espectáculo de massas e o universo do futebol), mais propriamente às áreas

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da literatura, política e música tradicional, dissertam sobre a sua relação pessoal com o dinheiro, contribuindo ao mesmo tempo para o estabelecimento de um conjunto de valores diferenciados sobre a forma como Portugal e a sua cultura são vistos a partir de dentro, nesta verdadeira representação de arte popular em que a publicidade se transformou. De acordo com Stuart Hall, em Cultural Representations and Signifying Practices, ao partilharem conceitos, imagens e ideias, os membros de uma determinada cultura interpretam o mundo de forma semelhante10. Isto é, partilham, no geral, os mesmos códigos culturais. Neste sentido, os próprios actos de falar, pensar ou (d)escrever funcionam como sistemas de representação, pois os conceitos, imagens e emoções representam, no processo mental, objectos e realidades do mundo exterior. De forma idêntica, para comunicar estes significados aos seus pares, os agentes de qualquer acto comunicativo utilizam os mesmos códigos (linguísticos, visuais, cinéticos, gestuais, sonoros), ou seja, falam a mesma linguagem e através dela sabem traduzir as suas ideias e sentimentos. O significado é um diálogo, sempre parcialmente compreendido, raras vezes em perfeita sintonia. Estes elementos – sons, palavras, letras, gestos, expressões, cores – são parte do mundo material mas a sua relevância reside na função que desempenham. Constroem e transmitem significado, operam como símbolos. Símbolos que representam conceitos, ideias e sentimentos de um modo que possibilita a sua leitura, descodificação e interpretação por parte dos demais, de forma o mais próxima possível da intenção a comunicar. Os códigos culturais são estruturas de grande complexidade que reconhecem, armazenam e processam informações com o objetivo de regular e controlar as manifestações da vida social e do comportamento individual ou colectivo. Segundo tal concepção, os seres humanos não somente comunicam com signos como são em larga medida controlados por eles, pois desde tenra idade são instruídos segundo os códigos culturais da sociedade. A cultura não pode organizar a esfera social sem signos e todos os sistemas semióticos da cultura servem o conhecimento e a explicação do mundo. A linguagem é o sistema modelizante primário, a partir do qual é possível compreender os demais códigos culturais. Alguns sistemas modelizantes secundários – como a literatura e o mito – usam a linguagem natural como material, acrescentando-lhe outras estruturas, e todos eles são construídos em analogia com as linguagens naturais (com os seus elementos, níveis, regras de selecção e combinação), que funcionam como metalinguagem universal de interpretação. Tendo isto em conta, a análise do diálogo intercultural tem obrigatoriamente de se debruçar sobre a sua matéria prima: a linguagem. A linguagem do quotidiano, dos rituais, da literatura, das artes plásticas. E também se debruça sobre o ensino de uma língua e da sua cultura, pois sem conhecimento não há comunicação. E ainda sobre o ‘mapa’ dessa linguagem – as regras gramaticais – e sua relação umbilical com as questões de tradução, porque são sempre complexos e frequentemente mediados os diálogos entre as culturas. Aqui reside o cerne da secção “As Linguagens do Diálogo Intercultural”. 10. Stuart Hall (ed.), Representation: Cultural Representations and Signifying Practices, London, Sage, 1997.

Introdução

Após uma viagem de muito longo curso, o mais forte elo de ligação que subsistiu entre a cultura vietnamita e a cultura da Europa latina foi a invenção do Quôc ngũ, a língua nacional vietnamita, na sua forma escrita e romanizada. A abertura e o contacto com o mundo ocidental, a influência religiosa cristã e a sua escrita, marcas importantes no desenvolvimento e união do Vietname, tiveram a marca dos portugueses, chegados no século XVI a Hội An, vila a sul de Da Nang, que foi contemporânea de Macau e de Malaca. “A Marca Cultural Portuguesa no Quoc Ngur, a Língua Nacional Vietnamita” repõe o valor social e cultural da acção dos missionários portugueses, que foram pioneiros na transformação do sistema de escrita vietnamita. As relações interculturais patentes nas línguas do sudeste asiático são também abordadas em “A Guerra das Palavras: O Paralelismo Lexical no Discurso Ritual Fataluku”, que estuda as funções quase bélicas dessas associações vocabulares, verdadeiras armas na ‘guerra’ dos rituais discursivos. O Fataluku é o quarto dialecto com maior número de falantes em Timor Leste. A tradição oral defende que o clã dos Latuloho introduziu esta língua não-austronésia no distrito de Lautém, que era já habitado por vários clãs falantes de austronésio e que haviam entrado no território pelo Leste. Apesar das suas origens não-austronésias, a comunidade de dialecto Fataluku possui traços culturais tipicamente austronésios. Uma das características alegadamente austronésias do discurso ritual Fataluku é o paralelismo lexical. Quando este é comparado com fenómenos linguísticos homólogos no Sudoeste das Molucas, conclui-se que partilham os mesmos padrões no que respeita a pares universais, como por exemplo, pares de dimensão e género. Mas o Fataluku difere dos dialectos do Sudoeste das Molucas nos seus pares específicos, como, por exemplo, aqueles que significam ‘direcção em relação ao mar’. Uma questão que precisa de ser respondida é se os pares específicos Fataluku equivalem a outros, noutras línguas timorenses, ou se eles são únicos. Cada par lexical contém um conhecimento ritual que está dependente da preservação das tradições orais. A sua perda implicaria inevitavelmente uma mudança irreversível na identidade cultural timorense. A relação entre língua, literatura, cultura e identidade é especialmente complexa e controversa na África pós-colonial. O facto de as línguas europeias terem irrompido nas culturas africanas, destruindo-as ou adulterando-as de forma irremediável na sequência do projecto colonial, tem sido factor crucial na questão. Diferentes sensibilidades dividem os escritores africanos em duas facções: os ‘rejeccionistas’, que rejeitam a ideia de uma literatura africana em língua europeia; e os ‘experimentalistas’, que encaram a língua europeia como uma língua válida para as literaturas africanas, desde que se proceda a uma africanização dessa língua. Neste segundo grupo inclui-se o moçambicano Mia Couto, cuja obra peculiar é protagonista de “A Língua como Espaço de ‘Brincriação’ em Mia Couto”. Mia Couto conseguiu contornar o que para muitos autores constituiu um dilema, o chamado ‘drama linguístico’ da utilização, em literatura, da língua do antigo colonizador. A fala literária de Mia Couto revela uma experiência única sobre a língua, uma realização estético-linguística de mestiçagem entre o português e as várias línguas e variantes dialectais da cultura moçambicana. A língua portuguesa, muito mais do que a língua francesa ou inglesa, pelas suas características inerentes de

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ductilidade, deixa-se africanizar até limites que as outras línguas não suportariam sob pena de se tornarem irreconhecíveis. Mia Couto cria, recria, subverte e renova a língua portuguesa em direcções novas e inesperadas. Este processo literário de desobediência às regras de trânsito da língua leva a que a língua em Mia Couto se assuma como um espaço de ‘brincriação’. A tradução, essa constante viagem de ida e volta entre duas línguas e culturas, é um dos territórios académico-profissionais por excelência da interculturalidade. Mas também é um dos territórios onde a descriminação de género, determinada pelas estruturas de poder operantes numa cultura, obteve um inesperado e significativo protagonismo. Com efeito, a subalternização da mulher no campo literário encontra-se simbolizada no carácter ‘feminino’ da tradução, tropismo historicamente persistente e relacionado com a distinção entre actividades produtivas e reprodutivas, pois a tradução deveria ser uma reprodução fiel e submissa do original. Entre o século XIX e a primeira metade do século XX, encontramos em Portugal um número considerável de traduções anónimas, mas inequivocamente da autoria de mulheres. A autoria dúbia espelha os constrangimentos sociais, políticos e culturais da época, traçando as fronteiras dos estreitos territórios que as mulheres estavam autorizadas a ocupar ou para os quais eram remetidas. Tal como as traduções, também as mulheres foram ao longo dos tempos conotadas com fragilidade, fidelidade e subalternidade. Este arquétipo da feminilidade da tradução reflecte-se na total ou parcial invisibilidade das tradutoras, que escrevem sob pseudónimo ou com nomes reduzidos cripticamente a iniciais ou nomes de baptismo, para não comprometer nem expor o nome da família. O anonimato confina a tradutora ao seu género, desprovida de individualidade e autoridade, estratégia que silencia com eficácia as mulheres enquanto produtoras11. “A Outra Florbela Espanca: Reflexões sobre a Prosa Romanesca e Ficcional Traduzida” incide sobre a actividade de tradução que a reconhecida poeta portuguesa levou a cabo nos derradeiros anos da sua vida. De início, também Florbela manifestou reservas em autorizar que o seu nome artístico surgisse identificado com a autoria das suas traduções, realizadas como medida desesperada para colmatar a recusa do marido em financiar a publicação da sua obra. A partir da leitura dos romances populares e românticos traduzidos por Florbela Espanca, da consulta da sua correspondência e demais documentação, assinala-se em que medida a sua actividade como tradutora profissional terá influenciado a composição dos contos que escreveu entre 1924 e 1930, e que foram das primeiras narrativas breves a serem escritas por um autora portuguesa. Quer em Portugal, quer no estrangeiro, a obra literária de Florbela está sobretudo associada à sua criação lírica e não tanto à sua produção narrativa, objecto de uma escassa, senão mesmo depreciativa, apreciação crítica. A análise dos contos de Florbela, a partir do subtexto constituído pelo conjunto dos seus traslados, não só permite aceder à compreensão da vida e obra da representante de uma primeira geração de mulheres tradutoras em Portugal, mas também providencia um novo enfoque sobre a 11. A este propósito, consultar: Alexandra Lopes, “The goddesses of small translations – engendering transnational practices as decanonization”, in Isabel Capeloa Gil, Richard Trewinnard e Maria Laura Pires (org.), Landscapes of Memory / Paisagens da Memória, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2004, pp. 319-27.

Introdução

melancolia auto-sitiada e o desvelado erotismo que configuram a temática dominante dos seus poemas de amor. Foi nestas primeiras décadas do século XX que a civilização ocidental viveu um dos momentos mais conturbados da sua história. Numa Europa em que deflagraria a primeira guerra com o epíteto de ‘mundial’ e em pleno processo de industrialização, vivia-se na iminência do colapso e, simultaneamente, do vislumbre sempre adiado de melhores condições existenciais. A guerra, as máquinas, a luta das mulheres pelo sufrágio universal, a mobilidade e a vivência única nas metrópoles do início do século XX anunciaram a possibilidade de compatibilizar a adversidade com a plenitude. É neste clima geomental que emerge o fenómeno das vanguardas artísticas na Europa, como resposta colectiva e intercultural de provocação à crise que se instalava. Era imprevisível o impacto que a Grande Guerra teria nas metrópoles congregadoras de percepções tão heterogéneas e de tão diversas origens. “Primeiras Vanguardas e Metrópoles: A Estética Cultural Migratória e os Cenários Transculturais em Berlim e Londres” viaja entre estas duas metrópoles cosmopolitas, analisando as vivências artístico-literárias de Else Lasker-Schüler e de Wyndham Lewis, bem como a forma como cada um deles expressa, na escrita e nas artes visuais, a terra firma que cultivaram, nas suas fases expressionista e vorticista. País em trânsito, como já atrás foi dito, ao longo do século XX Portugal exportou em profusão e em simultâneo tanto mão de obra semi-escrava não-qualificada, como criadores, intelectuais e académicos, todos democraticamente empurrados pelo obscurantismo político-ideológico e suas consequências económico-sociais. Se o primeiro e massivo grupo gerou contactos intercultuais tão assimétricos que ainda hoje perduram nos esterótipos vigentes, por exemplo, em França e nos Estados Unidos, já o segundo grupo constituiu um contraponto individualizado, sem dúvida elitista, altamente respeitado mas igualmente segregado, não nos bidonvilles d’“Os Anos da Lama”12, mas nos campus universitários e nos círculos intelectuais do exílio. “Correspondência (s) Mécia e Jorge de Sena: Rede de Afectos e Exílio Luso-Americano” ilustra um estudo sobre a amizade e o amor centrado na aproximação biográfica à mulher de um dos maiores escritores portugueses contemporâneos, Jorge de Sena (1919-1978), largos anos exilado no Brasil e nos Estados Unidos da América: Mécia de Sena, companheira e curadora da obra do autor. O cruzamento destes dois trajectos biográficos singulares confere uma densidade única ao mapa intelectual e intercultural português. A análise de cartas, de micro-sequências narrativas, de depoimentos e testemunhos inéditos lança luz sobre o nascimento de uma intimidade sentimental ancorada numa intensa partilha cultural. Tendo presente o sentido testemunhal da obra seniana comungado por Mécia de Sena, acentua-se a reserva crítica face à sua pretensa neutralidade científica e positivista, pressupondo-se que toda a obra implica uma tomada de posição interessada e orientada pela noção de que situações, acções, sociedades e culturas são sempre extensões umas das outras. 12. Extraordinária exposição fotográfica sobre as reais – e infra-humanas – condições de vida dos emigrantes portugueses em França nas décadas de 50, 60 e 70, que esteve patente em simultâneo com “Gente do Salto”, no Museu Colecção Berardo, em Lisboa, em Maio de 2008.

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Esta constante interacção de situações, acções, sociedades e culturas organiza-se, exprime-se e comunica através do substrato comum da língua, com as suas mecânicas complexas e distintivas. O infinitivo pessoal, por exemplo, é uma das particularidades da língua portuguesa, sendo o português a única língua neolatina que apresenta esta forma gramatical. Para um estrangeiro, a oposição entre ‘infinitivo’ e ‘pessoal’ implica uma dificuldade acrescida na compreensão do fenómeno, já que a palavra encerra em si uma contradição. O uso do infinitivo pessoal em português é muito frequente e tem várias vantagens, entre as quais se destacam, por um lado, a redução de construções sintácticas de outra forma expressas com orações subordinadas; e, por outro, uma maior clareza comunicativa, visto que o infinitivo pessoal ressalta o sujeito. “O Infinitivo Pessoal e os seus Equivalentes na Língua Alemã” analisa os desafios da sua transposição interlinguística para o tradutor-mediador-de-culturas. No sentido inverso desta viagem linguística entre Portugal e a Alemanha, as orações subordinadas não introduzidas por conjunção (uneingeleitete Nebensätze) – em especial as orações condicionais e as concessivas – constituem um fenómeno sintáctico recorrente em textos escritos de língua alemã, particularmente em textos científicos. Esta estrutura sintáctica desvia-se da regra geral de construção de orações subordinadas em alemão, com suas características próprias. Estruturas deste género representam um problema de tradução, na medida em que não possuem paralelo na língua portuguesa e acarretam a explicitação da relação semântica entre as orações. Muito embora seja sempre possível reconstituir a frase alemã original, na prática este é um processo exigente para o tradutor. “Orações Subordinadas em Alemão e sua Tradução para Língua Portuguesa” tece considerações relacionadas com a gramática receptiva e analisa exemplos retirados de experiências reais de tradução. Com a crescente mobilidade não só intra-europeia mas também global, a necessidade de compreensão mútua torna-se cada vez mais premente e imediata em qualquer língua, sistema e nível de ensino. Face a esta realidade, destacam-se dois conceitos pedagógicos: a importância de uma utilização o mais autêntica possível da língua estrangeira em situações efectivas de contacto intercultural (norteada pelos princípios de interacção real, autenticidade e aproximação comunicativa); e a necessidade de fortalecer a relação entre a escola e o mundo exterior. As novas tecnologias, os media, o contacto pessoal directo, a

imersão numa cultura estrangeira são ferramentas essenciais a projectos pedagógicos que visam o desenvolvimento da competência interlinguística e intercultural. “Portfolio Intercultural Communication through using Real Experiences” e “Português Funcional” são dois desses projectos inovadores. Em ambos os casos, os resultados obtidos comprovam a promoção da consciência intercultural e da utilização da língua de chegada fora da sala de aula. “Português Funcional” centra-se nos métodos de ensino da língua portuguesa nos Estados Unidos, onde o português é constantemente preterido em favor do espanhol, devido à realidade demográfica do país. No entanto, uma área mostra-se especialmente produtiva: o ensino de português para alunos de business e de MBA, que pretendem trabalhar directamente no Brasil ou na América Latina. Assim se depreende como as directrizes económicas determinam a urgência do domínio de uma língua e de uma cultura com finalidades muito pragmáticas. Actualmente,

Introdução

o diálogo intercultural é, mais do que nunca, polifónico e imediato. Associam-se-lhe a deslocalização, a internet, as multinacionais, as redes sociais, o real time e as viagens low cost. E desenha-se aqui a aproximação a um outro conceito tão estranho e entranhado como o da já referida ‘cultura’: o conceito de globalização. Desvenda-se por fim o grande rumo da nova viagem intercultural – esta é agora uma viagem global, uma circunavegação feita à velocidade da luz, porque feita à velocidade dos (multi)media, comandada por novos Magalhães (...mas será bom não esquecer as Filipinas nem Juan Sebastián Elcano). O diálogo intercultural da globalização permite rumar por disciplinas pouco usuais numa abordagem conservadora do conceito de ‘cultura’. A secção “Globalização e História Intercultural” orienta-se por mapas traçados com visão não só intercultural mas também interdisciplinar. Se a cultura está umbilicalmente ligada às práticas, normas e valores que regulam a vida de uma sociedade, então a codificação e a institucionalização de tais ‘regulamentos’ não podem ser omitidas nos estudos culturais e interculturais. Dependendo do grau de complexidade desses regulamentos, a análise cultural pode debruçar-se tanto sobre os lugares-comuns do quotidiano – aquilo a que chamamos senso-comum – como sobre os sistemas de pensamento religioso, político, jurídico ou filosófico, pois todos estes processos de interpelação da ideologia actuam a nível do inconsciente tanto quanto do consciente e constituem os modos através dos quais os sujeitos são construídos. O sistema jurídico é um dos grandes sistemas de regulamentação sócio-cultural que oferece perspectivas múltiplas de abordagem no presente quadro, desde a análise do discurso multilingue que o codifica, até à história da sua evolução e respectivos efeitos sobre o indivíduo. No território dos vinte e sete Estados-membros da União Europeia, por exemplo, são faladas e utilizadas pelo menos 450 línguas diferentes, se considerarmos as línguas reconhecidas como oficiais pelos Estados-membros, as línguas regionais, as línguas faladas por comunidades minoritárias e por comunidades migrantes. Vinte e três destas línguas faladas na União Europeia têm o estatuto de línguas oficiais e de trabalho das instituições comunitárias. Esta notável diversidade linguística tem suscitado um vivo interesse por parte da comunidade académica, dos Estados-membros e das instituições da União Europeia. Com o aprofundamento do processo de integração e considerada a importância da língua na formação de uma identidade europeia, a ‘questão da língua’ deixou de estar confinada ao debate sobre o funcionamento eficaz das instituições comunitárias, para acompanhar as reflexões sobre a legitimidade política da própria União Europeia. O objectivo da criação de uma união mais estreita entre os povos passa, segundo alguns, pela promoção de uma certa homogeneidade linguística, eufemismo tantas vezes utilizado para defender e acentuar o papel do inglês como língua franca. Outros consideram que só pela via do pluralismo linguístico se pode consolidar a Europa, e reclamam uma maior protecção para as línguas regionais e minoritárias. “Diversidade Linguística e Integração Europeia” clarifica algumas questões de direito envolvidas neste debate, averiguando, entre outras questões, em que medida o Direito da União Europeia interfere com a liberdade dos estados na conformação das políticas linguísticas nacionais.

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A pluralidade cultural europeia, na perspectiva sincrónica e diacrónica do direito comparado, é também estudada em “A Harmonização Fiscal Europeia”. A partir da segunda metade do século XX, surgem no continente europeu várias tentativas de aperfeiçoamento do sistema de justiça administrativa e tributária, orientadas para a necessidade de garantir uma tutela plena e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Alguns países europeus, apesar das vicissitudes políticas, procederam a uma reestruturação do seu modelo de organização judiciária, operando uma profunda reforma institucional. Uma nova organização administrativa e tributária foi assim implementada na Alemanha, Itália, França, Inglaterra, Portugal, Espanha, Bélgica, Holanda, Grécia, entre outros países europeus. Na Alemanha, assiste-se a um avanço significativo no controlo judicial da administração, através de uma nova organização judiciária e de novos meios processuais. Em Espanha, foram criados tribunais unipessoais (juzgados) em matéria administrativa e tributária, integrados nos tribunais comuns. A França conseguiu aperfeiçoar a sua organização judiciária administrativa com a criação de novos tribunais e uma aproximação à jurisdição comum. Em Itália, na sequência da regionalização administrativa, criaram-se tribunais regionais independentes e procedeu-se, nos anos 90, a uma reforma da organização da justiça tributária, tendo em vista a eliminação da ingerência da Administração das Finanças. Em Inglaterra, após as reformas destinadas a fortalecer as garantias dos cidadãos, criou-se um corpo de juízes especializados nas questões de direito administrativo ao nível da High Court, actualmente designada por ‘Administrative Court’. Em Portugal, foram introduzidas diversas alterações que contribuíram para o melhoramento do modelo de organização judiciária e para uma maior protecção dos direitos e interesses da sociedade. Uma vertente específica da prática desses direitos e deveres sociais, levada a cabo pelas cooperativas, é tema de “A Responsabilidade Social da Empresa Cooperativa: Uma Análise Jurídica e Intercultural”, passível de constituir um modelo de referência para outras realidades empresariais, económicas e sociais. As cooperativas, embora desenvolvam uma actividade económica no interesse dos seus membros, desempenham-na sempre tendo em vista a prossecução de objectivos sociais, consequência do relevante valor humano do cooperativismo. É a chamada função social das cooperativas que, no entanto, não é exclusiva destas, não se devendo minorar a importância da função social desempenhada no mundo moderno – de economia de mercado – pelas sociedades, as quais, a par da finalidade lucrativa, não deixam de orientar o seu desempenho por um ideal de serviço. Esta orientação enquadra-se no movimento ideológico e político da Responsabilidade Social da Empresa, a qual engloba acções voluntárias que ultrapassam as obrigações legais, em áreas como o desenvolvimento comunitário, a protecção do meio ambiente, os direitos humanos e laborais, sendo hoje considerada um importante factor de competitividade empresarial. Apesar da sua conotação racional e equalitária, ao longo dos tempos o Direito tem reflectido e regulamentado em simultâneo os cânones comportamentais, a moral e os costumes das sociedades, desde o espaço público à esfera doméstico-familiar, perpetuando – até ao momento da revisão e/ou da (r)evolução – as hierarquias de género, os preconceitos raciais e os estereótipos ditatoriais do senso-comum. Em suma, confere

Introdução

valor de lei a todas as relações consuetudinárias de poder, desde a subjugação da mulher até à desumanização da escravatura. O percurso histórico destas assimetrias gritantes é tema de “O Casamento na Legislação Republicana: Uma Perspectiva Intercultural das Desigualdades Conjugais” e de “Tráficos Interculturais: A Racialização da Escravatura e o Ordenamento Jurídico Português”. Mas, por certo, o estudo de leis e costumes actualmente vigentes nos mais diversos quadrantes do globo não deixaria de localizar desigualdades igualmente arcaicas, mais ou menos camufladas pelo discurso do politicamente correcto, do relativismo, do liberalismo, do fundamentalismo ou da tradição. “O Casamento na Legislação Republicana: Uma Perspectiva Intercultural das Desigualdades Conjugais” centra-se na concepção de casamento contida na legislação republicana, nomeadamente, no Decreto nº 1 de 25 de Dezembro de 1910. Nas alterações introduzidas na versão inicial do Código Civil de 1867, destaca-se o regime da desigualdade entre os cônjuges. Na realidade, a pertença ao género feminino era revestida de limitações ao exercício da capacidade enquanto sujeito de direito privado – destaquese a desigualdade no acesso à educação – bem como na esfera da participação social, concretizada, a título de exemplo, na incapacidade de voto. Considerando o enquadramento histórico-filosófico dos séculos XVIII e XIX, no qual relevam de sobremaneira os princípios defendidos pela escola racionalista de direito natural já plasmados no Código Civil Francês de 1804, a legislação nacional não foi alheia às doutrinas sufragadas além Pirinéus, sucedendo, porém, que nos regimes jurídicos familiares esta incorporação foi mais tardia. Factores como a permanente influência da Igreja Católica na construção jurídica, a emergência dos nacionalismos e o retorno a uma cultura de virilização da raça foram obstáculos à adopção das novas correntes. Só em 1910 a causa da mulher ganha novo fôlego, com a introdução de regras jurídicas que reconheciam os direitos da mulher casada, fruto da corrente feminista necessariamente moderada acolhida pelo legislador. Por seu lado, a nova escravatura, que resultou, a partir do século XV, da expansão ultramarina e do tráfico atlântico, veio gradualmente a caracterizar-se por uma natureza rácica e civilizacional, em contraposição com a anterior justificação, essencialmente bélica e religiosa, vigente em especial nos espaços do Mediterrâneo. A co-existência de cativos, feitos prisioneiros sobretudo no Norte de África com o objectivo de obter troca ou resgate, e de escravos, oriundos principalmente da África subsariana, e destinados a mão-de-obra/mercadoria, foi ultrapassada pela esmagadora importância que adquiriu a escravatura atlântica. Enquadrando esta transição, “Tráficos Interculturais: A Racialização da Escravatura e o Ordenamento Jurídico Português” avalia de que forma essa mudança se repercutiu no Direito português vigente entre os séculos XV e XIX, e em que medida o próprio ordenamento jurídico contribuiu para a racialização do fenómeno da escravatura. Questionou-se já o que será o colonialismo senão uma interculturalidade perversa. A grande viagem matricial da história portuguesa (e não só) foi a dos ‘Descobrimentos’. Descobriram-se, com efeito, novas e audaciosas rotas marítimas, novos mapas geo-estratégicos, novos corredores para as trocas comerciais. Mas cultural, social e geograficamente nada foi descoberto, apenas conhecido por novos povos, quais turistas

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nórdicos que ‘descobrem’ fascinados o desconhecido litoral alentejano. As consequências desta inesperada interculturalidade avant la lettre foram bem mais sérias e trágicas do que as do exemplo escolhido para uma símile quiçá impertinente, mas que demonstra como um simples renomear dos intervenientes desvenda a ilógica da visão etnocêntrica, génese da escravatura e do colonialismo. Já o termo ‘expansão’ é suficientemente polissémico e ambíguo nas suas causas, consequências, meios e fins para designar de modo mais aceitável esse movimento global encetado por Portugal. A perversão da interculturalidade transformou em colonialismo esclavagista o esboço de globalização desenhado pelos portugueses e espanhóis, muito antes dos ingleses, holandeses, franceses ou belgas. Os meios e os media incipientes do século XV semearam rotas de comunicação e de transacção em tudo paralelas (se bem que num ritmo em tudo diferente) às da actual noção de globalização. “A Expansão Portuguesa e a Construção da Globalização” utiliza precisamente esse paralelismo entre a História e a contemporaneidade para defender que as rotas marítimas transcontinentais esboçaram um novo modelo de Império e uma moderna talassocracia. A história da expansão e do colonialismo foi um movimento longo no tempo e no espaço, construído quer sob a égide da Coroa, quer por interesses privados. Ao longo deste processo, globalizaramse tratos, economias, encontros culturais e todo o tipo de transacções, desde plantas e doenças até à alteração de sistemas sociais e ecológicos. Mas existem movimentos de retorno implícitos na noção de interculturalidade, pois esta é uma INTERacção – acção recíproca – entre culturas. Curiosamente, quer a hegemonia racial-patriarcal do colonialismo, quer o sentimento de culpa do pós-colonialismo tendem a silenciar em uníssono esses movimentos de retorno. Porque são intoleráveis para a ordem estabelecida, no primeiro caso; porque poderiam mitigar os prazeres masoquistas da expiação, no segundo caso. Nestas perspectivas, o segundo item do binómio senhor-escravo (sinónimos: poderoso-fraco; homem-mulher; europeu-‘outro’) nunca desempenha qualquer papel activo nos processos de que foi irremediavelmente sujeito-passivo-vítima. Como enquadrar, então, a possibilidade de uma acção ‘colonizadora’ – pelos menos em termos culturais – levada a cabo por mulheres não europeias? Emerge aqui uma dupla subversão do paradigma estabelecido pela academia, conservador até na sua modernidade penitente. “Elite Colonial Feminina e Cultura Africana em Moçambique no Final do Antigo Regime” faz parte de uma nova História incómoda, que documenta actores e actos até há pouco (convenientemente) esquecidos, vozes irreverentes que recordam as forças e as fraquezas, as dignidades e as infâmias dos marginais do Império13. Neste texto, analisa-se a forma como a cultura africana influenciou os padrões culturais das mulheres da elite colonial em Moçambique, em tópicos como a religião, a língua ou os hábitos quotidianos, diluindo assim as fronteiras culturais que deveriam estar associadas à afirmação da hierarquia sócio-racial. A colonização portuguesa de Moçambique, como a de outros territórios africanos, foi protagonizada por homens que aí desembarcaram como funcionários e soldados, acabando por se estabelecer como mercadores e senhores de terras. Parte deles era proveniente de Portugal, embora não 13. A este propósito, consultar: Clara Sarmento (ed.), Condição Feminina no Império Colonial Português. Porto: Edições Politema, 2008.

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raro atingissem a região depois de um percurso noutras partes do Estado da Índia. Daqui, principalmente de Goa e de Diu, procediam também indivíduos de origem asiática e luso-indiana. Durante séculos, o número de mulheres portuguesas chegadas à costa oriental de África foi insignificante. Dada a reduzida expressão da colonização feminina, a reprodução biológica da elite colonial fez-se principalmente através do matrimónio com mulheres africanas. Assim, as mulheres que integravam essa elite eram na sua maioria mestiças, embora também aí se encontrassem naturais de Goa e algumas mulheres oriundas de Portugal. Independentemente da sua origem, elas eram esposas e filhas dos principais moradores, identificando-se com o espaço político do império português. Nessa medida, era esperado que elas reproduzissem os modelos culturais transpostos do reino. No entanto, a constante interacção com as sociedades locais conduziu a uma elevada permeabilidade com aspectos múltiplos das culturas africanas. Mas a abordagem aos trânsitos interculturais não implica necessariamente a discussão da questão colonial e pós-colonial. As culturas locais coexistem e comunicam entre si para além da presença ou ausência do ‘outro exótico’ que, neste caso, será o ocidental. “Os Irmãos, a Viagem e o Livro: Topologias da Cultura em Timor-Leste” recorre novamente aos conceitos epistemológicos da tradução cultural para analisar não só as relações interculturais em Timor, mas também entre Timor-Leste e outras culturas do Sudeste Asiático e do Pacífico. Concretamente, apresenta algumas versões do ‘mito dos irmãos’ recolhidas em Timor-Leste e compara-as com outras versões na Nova Guiné, Indonésia e Birmânia. O ‘mito dos irmãos’ é aqui considerado um charter myth, para utilizar a terminologia de Malinowski, na sua dupla relação: propõe soluções para as diferenças culturais sincrónicas, num presente-futuro face a um passado-presente; e coloca a hipótese de este mito propiciar um processo activo de comunicação intercultural interpretativa aberta. Desta sequência de textos se depreende que a história da interculturalidade suscita uma profunda reflexão sobre a sua dimensão sistémica e dinâmica, cujas tradições e mutações têm levado à reinvenção ou à implementação de diferentes modelos de cultura à escala mundial. “História e Interculturalidade: Novas Identidades e Memórias Culturais” demonstra como a intervenção do relativismo do conhecimento histórico possibilitou a reconstrução da interculturalidade a uma dimensão universalista. No limiar do iluminismo e do positivismo, assistiu-se a uma revolução proto-interdisciplinar na emergência autónoma de novas ciências, saberes e mentalidades. A consciencialização colectiva em face das novas independências territoriais e do redimensionamento do mapa cultural determinou que se repensassem questões centrais do período barroco, como o papel do homem na procura do ‘ter’ e do ‘ser’ e a necessidade da descoberta do saber cultural e histórico. Nos finais da década de 1920, a nova História impôs-se pela necessidade de conhecer e valorizar o papel da interculturalidade. No caso específico da cultura francesa, a valorização do diálogo intercultural é um dos principais desafios assumidos pela Organização Internacional da Francofonia, em crescente confronto com as novas complexidades da globalização. Este exemplo, à escala de uma nação por vezes paralisada face às consequências do seu passado recente, é explorado em “France et Francophonie dans le Jeu et le Discours Inter&Multicultural: Défis, Enjeux et

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Réticences”. O discurso republicano francês depara-se com necessidades desconhecidas – acolher ‘o outro’ (L’Étranger...) e redefinir-se a si mesmo – que se transformam rapidamente em tópicos incontornáveis no debate político contemporâneo, pondo em causa todo um leque de temas polémicos, desde a imigração à educação, passando pela política externa. Em torno deste debate joga-se o futuro da França enquanto potência simbólica internacional e dos espaços francófonos enquanto enclaves linguísticos e culturais. Apesar da enorme pluralidade de utilizações (que são, frequentemente, verdadeiras manipulações) do termo ‘cultura’, esta continua a ser um conceito-chave na definição, descrição e compreensão, tanto na diacronia como na sincronia, dos fenómenos humanos. Através da noção de cultura relevam-se as diferenças e as analogias sociais e históricas, e também se acentuam as distinções depreciativas e as múltiplas (des)valorizações dos grupos humanos. Esta afirmação aparentemente redundante e generalista, após uma já tão extensa Introdução, adquire novo significado porque se refere ao texto da autoria de dois investigadores de origem iraniana. Mas “Rey ou L’Impact Mitigé d’un Site Archéologique Iranien” é coerente com aquela constatação introdutória, ao escolher percorrer caminhos distantes dos estereótipos de Edward Said – quer para os desconstruir, quer para os perpetuar –, sem introspecções politizáveis nem maniqueísmos pós 9/11. Frustrando as expectativas do leitor refém dessas “distinções depreciativas”, “Rey” opta pelos desafios do intra-cultural e do turismo cultural, tópico que será retomado no texto seguinte, de lusitana autoria, novo exemplo de globalização científica. Com efeito, para além do intercultural, o espaço teoricamente (pelo menos do ponto de vista geográfico) fechado do intracultural oferece igualmente diversas configurações que merecem a atenção dos investigadores. No que respeita ao território iraniano, uma determinada estação arqueológica – Rey, próximo da metrópole de Teerão – destaca-se pela sua história e por aquilo em que se transformou. Local de grandes proporções, formado por 120 espaços arqueológicos inventariados até ao momento, ‘Rey, A Grande’ constitui um exemplo típico de sobrevivência arqueológica que, apesar da sua importância, continua praticamente ignorado pelo conjunto da população iraniana. O texto analisa as causas e as consequências deste desinteresse duradouro e oferece uma reflexão renovada sobre as modalidades de impacto intracultural das estações arqueológicas. Também o fenómeno de massas das festas populares oferece um elevado potencial de impacto, tanto intracultural, como turístico, económico e social. A verdadeira importância destes eventos reside não tanto na estratégia de conservação das marcas do passado, mas sobretudo no estímulo dado, por seu intermédio, à criação cultural autónoma e à recuperação da dimensão mais genuína do festival – o da celebração colectiva – em que todos são tendencialmente protagonistas. O cruzamento de códigos e práticas culturais com exigências estéticas e meios de expressão diferenciados, ainda que realizado no âmbito de manifestações essencialmente efémeras, dilui as fronteiras que separam ‘artes maiores’ e ‘artes menores’, numa dessacralização dos critérios convencionais da legitimação estética. O neologismo do título “Intercul + Turismo” nasce da proximidade semântica dos seus constituintes, curando pelo diálogo entre as culturas, e promovendo aquilo que o Código Mundial de Ética no Turismo expressa como uma ordem turística mundial,

Introdução

equitativa, responsável e sustentável. Como espaço privilegiado, a cidade portuguesa, resultado de uma incompleta inserção urbana, é guardiã de referências simbólicas produzidas por uma amálgama de gerações, ainda hoje visíveis, como é o caso da festa popular. No Porto, as festas populares do S. João representam para a cultura e para o turismo um acontecimento ímpar, onde a diferença não é uma ameaça, mas sim uma oportunidade. A fruição cultural desta festa popular possibilita o conhecimento e o entendimento entre anfitrião e convidados. Deste modo, a aprendizagem intercultural é facilitada pelo contacto pessoal que o turismo pressupõe. Uma política de cultura regional deve pois orientar-se segundo três linhas de acção: conhecer, conservar e preservar o património cultural da região, divulgar o conhecimento e o uso desse património e promover possibilidades de nova criação. Tal como sugerido neste texto, o estudo do turismo pode interessar-se por questões económicas e abordar os temas da alteração, do desenvolvimento e da modernização. Ou então, pode debruçarse sobre a dimensão cultural do turismo, que não será já encarado como um veículo de destruição, mas antes como um factor de potencial criação e renovação da cultura local. Prevalecem, contudo, as questões da autenticidade, da homogeneização ligada ao turista de classe média, da relação entre enriquecimento económico e empobrecimento cultural. Contudo, “le tourisme apporte parfois des réponses créatives aux cultures locales et influence positivement la trajectoire du développement culturel. L’intérêt que les touristes portent à la culture locale, à l’histoire et aux artefacts peut – sous certaines conditions (voilá la clé) – engendrer une réponse locale positive”14. Tal como a própria noção mais lata de ‘cultura’, a noção de ‘autenticidade’ é um fenómeno directamente ligado ao processo de continuidade e alteração. A evolução na continuidade – sempre atenta às condicionantes locais, “eis a chave” – conduz ao renascimento cultural das tradições, à renovação da identidade local e mesmo à invenção de novas tradições e identidades. Juntamente com a e/imigração, o turismo é a actividade mais passível de produzir situações de mudança cultural, afectando esferas tão diversas como os gostos, os estilos, a economia, a política, os rituais festivos ou os papéis instituídos dos actores sociais. Mais uma vez, o dinamismo e a evolução advêm da interculturalidade. Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem resulta dos rumos de investigação traçados pelo Centro de Estudos Interculturais do Instituto Politécnico do Porto. É por isso uma viagem que se assume como alternativa, ciente dos novos trânsitos culturais que fazem já parte da prática quotidiana. Hoje em dia, o diálogo intercultural é, mais do que nunca, polifónico e imediato, fruto das múltiplas diásporas, do diluir de fronteiras, da (e/i)migração massiva, do turismo, da internet e dos multimedia generalizados. Interculturalidade e globalização confundem-se, numa viagem de circunavegação realizada à velocidade da luz. Sem pretender fechar fronteiras – bem pelo contrário – as investigações aqui coligidas lançam preferencialmente luz sobre os estudos interculturais realizados em Portugal ou sobre Portugal, um território social, geográfico, mental e histórico – em suma: um território cultural – que tenta reconstruir a sua identidade, enquanto país em 14. David Greenwood, “Culture by the Pound: An Anthropological Perspective on Tourism as Cultural Comoditization” in Valene Smith (ed.), Hosts and Guests: The Anthropology of Tourism, Filadélfia, University of Pennsylvania Press, 1989, p. 185. Tradução francesa de Francisco Martins Ramos, in “Du Tourisme Culturel au Portugal”, Ethnologie Française, Tome 29, 2, Abril-Junho 1999, pp. 285-93.

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movimento constante. O território cultural de Portugal é riquíssimo em velhas e novas rotas de migração, emigração e imigração, e proporciona um manancial de fenómenos de interculturalidade passível dos mais variados estudos científicos. Esta Babel de culturas gera ao mesmo tempo novos conhecimentos e também novos conflitos mais ou menos latentes, bem como nivelações qualitativas por vezes permanentes, que se inscrevem nas práticas comuns do dia a dia. As representações colectivas baseadas em contactos e conhecimentos superficiais degeneram facilmente em estereótipos, que exercem um enorme poder sobre o senso comum e as vivências concretas dos indivíduos. Só o aprofundar do conhecimento e a sua divulgação junto do público em geral poderá transformar o informe colectivo anónimo em seres humanos com uma identidade, uma cultura e experiências a partilhar em igualdade. Tal como escreveu James Clifford, tacto, receptividade e auto-ironia serão sempre as chaves para uma tradução séria e eficaz entre diferentes culturas. Para alcançar e divulgar esse conhecimento, Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem utiliza estruturas teóricas há muito vigentes no panorama científico internacional, aplicando-as a estudos de caso que se pretendem ilustrativos e originais. Mas outras duas linhas de orientação metodológica contribuem ainda para alargar o âmbito deste estudo. Em primeiro lugar, a inclusão da vertente da intra-culturalidade, tendo em conta que um espaço teoricamente delimitado por fronteiras nacionais, geográficas ou linguísticas pode oferecer no seu interior uma multiplicidade de configurações que merecem a atenção dos investigadores. Portugal é, de novo, um excelente exemplo da pluralidade de culturas coexistentes dentro de um único território nacional. E esta área francamente reduzida expande-se sobremaneira se transitarmos para a imensidão do espaço lusófono, onde a intra e a interculturalidade se confundem. Em segundo lugar, as relações interculturais cujo estudo aqui se propõe não se limitam às viagens no espaço e no tempo: pratica-se também a viagem entre noções diferentes de cultura, tantas vezes hierarquizadas de forma estanque entre ‘alta’ e ‘baixa’ cultura, entre cultura popular e cultura erudita. Sem efectuar juízos de valor, todas estas noções de cultura oferecem ao investigador atento valiosos objectos de estudo científico, por também elas reflectirem as estruturas de pensamento, códigos e práticas de uma sociedade. Os mapas epistemológicos propostos distribuem-se pelas três secções que constituem Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem. Propõe-se a investigação das representações interculturais patentes em fontes narrativas, históricas, multimédia, orais e testemunhais, consideradas marginais ou tendencialmente ignoradas neste tipo de estudo, devido à sua autoria, origem geográfica ou suporte de divulgação. Sugerese a análise da interculturalidade em textos – na mais lata acepção da palavra – da autoria de mulheres, de povos colonizados, da cultura dita de massas ou popular, orais, ficcionais ou confessionais, entre tantos outros. Propõe-se também a análise pormenorizada das múltiplas linguagens do diálogo intercultural, como forma de comunicação, de verbalização da experiência de terreno, de aprendizagem da compreensão mútua e de tradução. A polifonia como modo de produção textual convoca a necessidade constante de tradução, enquanto mediadora

Introdução

de encontros interculturais cada vez mais complexos e dificeis, fruto da globalização, dos conflitos políticos, do pós-colonialismo e do processo de assimilação e hibridização cultural. A tradução não é aqui entendida como uma mera questão de acuidade técnicolinguística, mas antes como uma actividade intrinsecamente ideológica, tanto na sua natureza como nos seus contextos. Todas as grandes trocas culturais da História envolveram traduções, como a passagem dos textos budistas do sânscrito para o chinês nos inícios da época medieval; a transposição da filosofia grega para árabe e a subsequente tradução dos mesmos textos de árabe para latim durante a alta Idade Média; ou as mais recentes traduções de clássicos ocidentais para japonês e chinês, que marcaram a abertura destas duas civilizações asiáticas, na transição do século XIX para o século XX. Por fim, propõe-se que o estudo da globalização e da História esteja ciente da comodificação e da fusão no quotidiano das diversas vertentes da interculturalidade. Por um lado, sugere-se a análise das regulamentações nacionais e comunitárias, das práticas empresariais e do turismo, enquanto objectos de estudo decorrentes da, e concorrentes para a, interculturalidade. Por outro, pretende-se construir um estudo histórico crítico e ideologicamente depurado, atento tanto aos grandes movimentos como às micro-estruturas, tirando assim o máximo partido do esboço de globalização desenhado pela História de Portugal. Este estudo de cariz histórico está ciente da existência de interacções recíprocas nos trânsitos culturais e tenta libertar-se da constante alusão à questão colonial, explorando culturas que coexistem e comunicam entre si, muito para além da presença imposta do ‘ocidental exótico’. No geral, Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem propõe que o diálogo interdisciplinar e inter-institucional seja também ele um verdadeiro diálogo ‘intercultural’, com vista a um estudo abrangente e contemporâneo da cultura à escala global. Neste volume, preservou-se a grafia dos originais. Todos os textos são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Em cada secção, os textos estão ordenados alfabeticamente por nome de autor. Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem faz parte do programa de investigação do Centro de Estudos Interculturais (CEI) do Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto (ISCAP). Todas as informações sobre este Centro de Investigação estão disponíveis em: www.iscap.ipp.pt/~cei. A edição de Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem obteve um subsídio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Contou sempre com o apoio incondicional dos Conselhos Científico, Directivo e Pedagógico do Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto. Para além da colaboração séria e erudita de todos os autores, é de assinalar o trabalho de edição da Drª Andreia Cristina Tinoco de Sousa, finalista do Mestrado em Tradução e Interpretação Especializadas do ISCAP, durante o estágio realizado no Centro de Estudos Interculturais. A coordenadora deste projecto agradece o exemplar profissionalismo da Drª Carla Filipa Moreira Carneiro, licenciada em Assessoria e Tradução pelo ISCAP e colaboradora de longa data do CEI, cuja amizade e incansável dedicação têm ajudado a concretizar este e tantos outros projectos.

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Na génese de Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem, o CEI contou ainda com a colaboração totalmente voluntária dos então alunos dos cursos de Licenciatura em Assessoria e Tradução e do Mestrado em Tradução e Interpretação Especializadas do ISCAP, os agora Drs. Cindia Monteiro Lopes, Diana Patrícia Gomes da Costa, Joana Andreia Magalhães Neves, Joana Maria Natividade Baião, Joana Patrícia Lourenço Dias, João Luis Silva Martins Cura, Marco Jorge Mamede Maia Moreira, Michele Nunes Marini, Paula Andrade Fernandes Ribeiro e Sara Ondina Andrade. Se a capacidade de iniciativa e trabalho aí demonstrados são indício de sucesso profissional, então um futuro brilhante aguarda merecidamente esta equipa tão especial. Quando os alunos dedicam as poucas horas livres de que dispõem a colaborar voluntariamente nos projectos dos seus professores, temos a certeza de que vale a pena estar no CEI e no ISCAP, porque aqui todos ensinamos e aprendemos mutuamente... interculturalmente.

Clara Sarmento Julho de 2009

I Representações Interculturais

A Lady’s Visit to Manilla and Japan: Género, Viagem e Representações Interculturais Clara Sarmento CEI - Centro de Estudos Interculturais Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto

Introdução A Lady’s Visit to Manilla and Japan1, de Anna D’Almeida (ou Anna D’A.), não oferece ao leitor a narrativa de uma experiência produzida por um desses “Etonnants voyageurs! Quelles nobles histoires / Nous lisons dans vos yeux profonds comme les mers!”, citando o último poema de Les Fleurs du Mal de Baudelaire. Nem tãopouco os confronta com o relato de uma turista indolente sobre a diversão convencional e o previsível choque moral experimentados durante o seu grand tour, tão característicos deste tipo de literatura. Neste artigo, proponho-me analisar a escrita feminina ocidental no contexto dos encontros culturais proporcionados pelo turismo emergente de finais do século XIX, mais precisamente, as imagens que uma viajante ocidental da época vitoriana cria a partir da sua breve exposição a vários espaços e práticas da Ásia. O conceito ocidental do ‘eternamente oriental’, conforme descrito por Edward Said e mais evidente em romances e relatos de viagens, pode ser encontrado ocasionalmente nas noções pré-concebidas e nas descrições imediatas do Extremo Oriente de Anna D’Almeida. Este conceito tende a ser inflexível, invariável e estático, tal como o é a essência de qualquer identidade, quando retratada através de estereótipos. A perpetuação destas imagens na literatura popular e no discurso político ocidental é uma manifestação da teoria de Said, que defende que os sujeitos dominados nunca falam sobre eles mesmos, as suas verdadeiras emoções, desejos ou histórias, e precisam de ser representados por alguém ‘civilizado’, que falará em seu nome. Ao estudar esta viajante ocidental, suas representações e percepções, traço os diferentes 1. Anna D’A. A Lady’s Visit to Manilla and Japan. Londres: Hurst and Blacket, 1863. Encadernação em tecido vermelho, litografia colorida no frontispício (Nagasaki), 297 páginas. Todas as referências à obra são provenientes desta edição.

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padrões utilizados para descrever o ‘outro’, neste caso, a cultura asiática e seus actores sociais. O estudo desta representação ocidental feminina do Extremo Oriente revela um processo multifacetado de formulação de imagens, que contribuiu para a criação de uma imagem comummente partilhada do Extremo Oriente e dos seus habitantes. Este estudo de A Lady’s Visit to Manilla and Japan tenta compreender as complexidades que existem dentro das (ou entre as) histórias, experiências e actividades interculturais de mulheres, e como estas alargam o âmbito do estudo dos sistemas sócio-culturais. Ao examinar diferenças e semelhanças de género, podemos elaborar construções teóricas sobre a influência da classe, raça, etnia e religião na forma como entendemos a posição da mulher na cultura e na sociedade. O preconceito de classe da elite ocidental considera a mulher não-ocidental como alguém que representa tudo aquilo que o escritor ocasional não é. A questão da representação feminina das suas congéneres como ‘mulheres-outras’, com base numa ampla variedade de diferenças, é definitivamente um desafio para os estudos interculturais e de género contemporâneos.

Viagem e Biografia A familia D’Almeida – Anna, seu marido William Barrington D’Almeida e sua filha Rose – viajaram pelo Extremo Oriente entre Março e Julho de 1862. O título A Lady’s Visit to Manilla and Japan induz em erro, pois Anna visitou muito mais do que apenas Manila e o Japão. A sua narrativa começa em Singapura e termina em Hong Kong, mas a família efectuou também paragens em Macau, Xangai, Nagasaki, Yokohama, Xiamen (Hokkien) e Cantão, entre outros lugares, atestando assim o profundo desejo dos D’Almeida de explorar in loco todas as potencialidades dos países visitados. Nas Filipinas, os D’Almeida e o seu grupo viajam de Manila até à Laguna de Bay, que atravessam em canoas nativas, parando nas aldeias de São Pedro de Binhan, Calamba, Santa Rosa, Pueplo e Cabujão. À medida que viajam para sul de Manila, também visitam o lago e o vulcão de Taal, e as montanhas de Maculot e Sungal. Fazem frequentes excursões de pesca em Macau. Viajam de Hong Kong para Xangai no S.S. Pekin, um vapor da P&O (Peninsular e Oriental), numa viagem de quatro dias pelo estreito de Taiwan e o Mar da China Oriental, até à foz do Yangtze. Uma vez no Japão, Anna descreve um passeio por Kanazawa e Kamakura, perto da Baía de Sagami, hoje em dia um destino de férias muito popular, com bonitas vistas do Monte Fuji. Em seguida, a família toma um navio de Nagasaki para Yokohama, ao longo do Suonada ou mar interior, passam o Estreito de Shimonoseki, com paragens ilha após ilha até chegarem ao Pacífico, a caminho da Baía de Edo, onde avistam o Fujiyama e, por fim, chegam a Yokohama. Para sua grande decepção, os D’Almeida são impedidos de visitar a vizinha capital Edo (Tokio), devido à súbita doença do seu anfitrião local, o ministro britânico. Na realidade, quando comparamos o título da narrativa a outros destinos descritos no livro, constatamos que estes ocupam muitas mais páginas do que o Japão, que é referido pela primeira vez no capítulo 8, de um total de doze capítulos. No entanto, no Prefácio do livro, Anna apenas menciona o Japão: “My little work which has no such ambitious aim, professes only to represent Japan and its people

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as they exist at the present moment. It contains an account of the various places which, during a cruise of some months in Japanese waters, I had the pleasure of visiting” (viii). Os grandes progressos nas viagens a vapor verificados entre 1830 e 1850 não só reduziram em muito o tempo necessário à deslocação entre diferentes países, como também proporcionaram algum conforto e segurança aos viajantes e reduziram a necessidade de um grande número de serviçais. Os capítulos sobre Manila são um dos poucos relatos em inglês da época, enquanto que a secção sobre o Japão oferece uma visão pioneira de um país que acabara de reabrir os seus portos ao Ocidente. Com efeito, em 1854, o Comodoro Perry havia alcançado um tratado histórico de paz e cooperação com o Shogun, que abriu portas ao comércio entre a América e o Japão. Os portos de Shimoda e Hakodate foram abertos aos navios mercantes americanos e, em 1859, os portos de Yokohama e Nagasaki abriram também a outros estrangeiros2. Uma vez que os portos japoneses haviam estado encerrados, excepto para alguns comerciantes holandeses e chineses, durante dois séculos, existem poucas descrições deste país, na sua maioria livros de funcionários da Companhia Holandesa da Índias Orientais, que eram os únicos representantes do Ocidente com permissão para operar no Japão. Estes livros eram familiares aos leitores cultos e à maioria daqueles que visitaram o Japão depois de 18593. Desta data em diante, um número cada vez maior de turistas estrangeiros passou a viajar para o Japão, e tornou-se comum publicar algo sobre a visita a este paraíso remoto4. Concentrar-me-ei aqui na análise do texto de A Lady’s Visit e não na recepção que o livro teve aquando da sua publicação. Tal como a maioria das narrativas de viagens, A Lady’s Visit de Anna D’Almeida procura documentar a experiência da autora durante um curto período de tempo, em vez de proceder a uma descrição científica da cultura ou da história de um país, tal como ela afirma no Prefácio ao livro. As descrições de viagens a países remotos não eram naturalmente destinadas a uma leitura científica, eram antes relatos de experiências pessoais e deviam ser interpretadas como tal. Anna escreve sobre os sítios que visitou e as pessoas que conheceu durante as suas breves excursões, reflectindo assim a natureza externa dos contactos interculturais estabelecidos. A sua falta de conhecimento das línguas locais dificultou bastante a aquisição de informação credível sobre as diferentes sociedades e culturas, forçando-a a retirar conclusões daquilo que ouvia, lia ou via. No Japão, isso tornou-se ainda mais difícil pelo facto de as viagens ao interior do país estarem proibidas. As suas visitas restringiram-se assim aos poucos portos abertos aos ociden2. Yanaga, Chitoshi. Japan since Perry. Hamden: Connecticut, Archon, 1966, pp. 25-6. 3. Embora as cartas sobre o Japão escritas pelo missionário português Francisco Xavier em meados do século XVI fossem conhecidas em Inglaterra, é de duvidar que estes escritos católicos fossem uma leitura popular entre as mulheres. da alta sociedade vitoriana, numa Inglaterra fortemente protestante. 4. Em 1862 – ano da visita de Anna D’Almeida – houve, pela primeira vez, uma secção própria para o Japão na Exposição Internacional de Londres. A Exposição Universal de 1867, em Paris, marcou uma mudança importante no comércio com o Japão e, pela primeira vez, este país participou de forma independente. Motivos japoneses, como leques, biombos, sombrinhas e quimonos, multiplicaram-se a partir da década de 1860. O entusiasmo pelo japonês era tal, que toda a dama da sociedade tinha o seu ‘salão japonês’, e os recém-criados grandes armazéns incluiam uma secção japonesa nos seus catálogos (ver Briggs, Asa. Victorian Things. Londres: B.T. Batsford, 1988, p. 278). No entanto, D’Almeida fica surpreendida ao constatar que, em Yokohama, todas as casas europeias estavam rodeadas de paliçadas de madeira “which, in case of any sudden attack, serve as a temporary defence” (234), contradizendo de alguma maneira a imagem deste paraíso pacífico e amigável.

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tais. Desta forma, os conhecimentos de Anna tinham que se basear mais nos escritos de anteriores visitantes, do que no seu próprio contacto com as populações locais. Quem foi Anna D’Almeida, a viajante que publicou o seu trabalho sob o pseudónimo de Anna D’A., nunca mencionando o seu nome completo uma única vez ao longo das 297 páginas da narrativa? Tal como muitos visitantes ocidentais na Ásia – especialmente mulheres. – os autores de livros de viagens ficaram na história como tendo publicado apenas um trabalho e é muito difícil encontrar informações biográficas sobre eles. Como alguns escritores usavam apenas a inicial do seu primeiro nome, até mesmo determinar o sexo destes autores semi-anónimos se torna, por vezes, difícil. No caso das mulheres. viajantes, pouco ou nada se conhece das suas vidas; tudo o que resta é a própria literatura. Em A Lady’s Visit, a pista inicial para a identidade da autora foi fornecida pela própria ficha bibliográfica. É evidente que os D’Almeida são uma família anglo-portuguesa por via masculina. A fervorosa protestante Anna adopta o nome português do marido, mas ignora a língua. portuguesa e não demonstra qualquer simpatia pela religião católica. A imagem do frontispício oferece uma pista que liga a família a Bath, em Somerset: Anna afirma que a imagem de “the bay and part of the town of Nagasaki (…) is from a sketch taken on the spot by my husband, and finished by Mr. Benjamin Barker, of Bath” (viii). Posterior pesquisa geneológica em diversas bases de dados anglo-americanas, permitiu desvendar por fim a biografia de Anna Harriette Pennington (D’Almeida)5. Nascida em 1836, em Whitehaven, Cumberland, Inglaterra, Anna foi um dos oito filhos de Rowland e Georgiana (Welles) Pennington. O seu pai era um rico oficial da carreira militar; a mãe era descendente de uma longa linhagem de aristocracia terratenente e pequena nobreza de Lincolnshire. Algures entre 1861, quando foi efectuado o Censo de Inglaterra, e antes de 1868, quando o pai faleceu, a família havia-se mudado para Bath, onde residiam em Green Park, uma abastada zona residencial muito na moda6. William Barrington D’Almeida nasceu em 1841, em Singapura, um dos três filhos de Joaquim e Rosa Maria (Barrington) D’Almeida. O seu avô, um fidalgo português de Viseu, Portugal, havia viajado para o Extremo Oriente, primeiro para Macau e depois para Singapura, onde faleceu em 1850. Os seus pais casaram em Calcutá. William era cidadão britânico, nacionalidade sem dúvida adquirida pelo seu nascimento em Singapura7. Anna e William casaram a 17 de Abril de 1860, em Henley, Oxfordshire. A sua primeira filha, a menina que os acompanhou na viagem pelo Extremo Oriente, Rose A. G., nasceu em 1861, em Paris, França. Tiveram mais dois filhos, nascidos após o regresso da viagem: Lillian Augusta, nascida em Março de 1863 em Bath, e Marmion Barrington, nascido em 1865 em Kingston-upon-Thames, Surrey8. Anna faleceu a 12 5. Os mais sinceros agradecimentos a Magdalena Gorell Guimaraens, pela minuciosa pesquisa genealógica com que contribuiu espontaneamente para este artigo. 6. Fontes: 1871 England Census; British Army Records of Birth; 1851 England Census; Anchorage Withner Tree; Great Western Railway Shareholders 1835-1910 Records, vol. 9, folio 166, entry 9565. 7. Anchorage Withner Tree; 1871, 1881, 1891 England Census. 8. Fontes: GRO record: D’ALMEIDA William Barrington, Henley, vol. 3a, p. 686a; Anchorage Withner Tree; 1871, 1881, 1891, 1901 England Census; GRO record: D’ALMEIDA Lilian Augusta, Bath, vol. 5c, p. 233; GRO record: D’ALMEIDA Marmion, Kingston, vol. 2a, p. 233.

A Lady’s Visit to Manilla and Japan: Género, Viagem e Representações Interculturais

de Maio de 1866, com 30 anos, em Kingston-upon-Thames, Surrey, poucos meses após o nascimento do filho. Embora no registo da morte de Anna conste a idade de 25 anos, o que indicaria 1841 como sendo o ano do seu nascimento, é muito provável que ela tenha mentido sobre a sua verdadeira idade, de maneira a não revelar que era de facto cinco anos mais velha do que o marido, uma prática frequente na época vitoriana. Presume-se que durante o seu casamento usufruiram de vastos meios de subsistência, dado que não se conhece qualquer profissão para William, anterior à morte de Anna. William agora viúvo, foi com os filhos viver com a sogra em Bath, onde está registado como estudante de Direito. Algum tempo depois mudou-se para Londres, deixando os filhos de Anna com a sua avó viúva, e aí teve um filho e uma filha, possivelmente de Charlotte Crockford, com quem casou em 1882. Em 1891, William ficou de novo viúvo e passou a viver com a sua filha mais velha, Rose, e os seus dois filhos mais novos, em Chelsea, onde morreu em 1897, com 56 anos de idade. Rose permaneceu solteira até à morte do pai, casando apenas em 19079.

Género e Narrativas de Viagem A Lady’s Visit abre com uma dedicatória auto-depreciativa, devidamente dirigida ao (i.e. aprovada por) marido da autora: “To thee, who hast aided me in my toils, and so kindly smoothed every difficult path and rugged step, is dedicated this little work by thy loving and faithful wife, Anna”. Na mesma linha, o Prefácio chama a atenção para a simplicidade do seu propósito ao escrever esta narrativa, quando Anna enfatiza que o livro é apenas um mero divertimento. Utiliza a metáfora de “a little bark, adapted only for a summer sea (…) a pleasure sail” sem “the results of scientific research, or tedious disquisitions on the ethnology and early history of the country”. Promete “sketches” e “amusing anecdotes” sobre “the peculiar race inhabiting these distant islands”. Prevalece o critério racial, assim como o preconceito que leva Anna a ver ‘o outro’ como “amusing anecdote”. Anna afirma evitar todas as alusões relativas a questões políticas, “not having sufficient confidence in the correctness of my own judgement to justify me in assuming the office of a public instructor”. Do mesmo modo, o súbito epílogo em Hong Kong: “And now, gentle readers, my work is done. Trusting that it has at least succeeded in whiling away a portion of your time, if it has proved a means neither of instruction nor of information, I will lay my pen aside and, making my exit from your mind, say Adieu!” (297) está de acordo com a convenção de que uma mulher (especialmente uma ‘senhora’) nunca instrui o público, apenas entretém um círculo restrito, que aceitou tacitamente as suas limitações. No entanto, e como veremos, a declaração de intenções de Anna entra em evidente contradição com o conteúdo geral do livro. Na realidade, o Prefácio, é um pró-forma, um captatio benevolentiae, uma declaração de intenções comummente considerada aceitável para uma mulher escritora, concebida para acompanhar a “fiel” dedicatória ao marido, que torna 9. Fontes: Anchorage Withner Tree; GRO record: D’ALMEIDA Anna H., age 25, Kingston, vol. 2a, p. 154; 1871 England Census; 1881 England Census; GRO Record: D’ALMEIDA William Barrington, St. Giles, vol. 1b p. 997; 1891 England Census; GRO record: D’ALMEIDA William B., age 56, Chelsea, vol. 1a, p. 285; GRO record: D’ALMEIDA Rose Anna G., Kensington, vol. 2a, p. 233.

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o livro apropriado e adequado a uma honrada “senhora”. A legenda da segunda imagem central do frontispício (e existem apenas duas imagens em todo o livro10) estabelece um curioso contraste com a Lady do título: retrata “A Japanese ‘TeaHouse’ Girl” (nem mulher, nem senhora), cujas aspas são usadas para evitar a chocante palavra “bordel”. A proliferação de narrativas de viagem britânicas na época vitoriana prova que o turismo providenciou um território onde até mesmo os não-autores não hesitaram em aventurar-se. Títulos como Glimpses, Sketches, Impressions, Notes, Diaries, Wanderings e Travels sugerem um tom informal que, no caso das mulheres., podia servir também como defesa contra a comparação com os grandes escritores masculinos, como Byron, Goethe, Flaubert ou Chateaubriand. Subjacente a este facto, existe o eterno conflito entre a viagem de lazer (onde a escrita de uma mulher seria considerada fútil e insignificante) e o desejo de partilhar experiências, factos e de instruir o leitor (onde a escrita de uma mulher seria considerada demasiado séria e intelectualmente pouco feminina). Uma forma de a mulher-autora resolver este conflito era antecipar-se a qualquer crítica possível, adoptando uma postura apaziguadora e humilde. Embora não estivessem limitadas às narrativas de viagem, e apesar dos progressos na emancipação social, as mulheres. viajantes vitorianas assumiram de tal forma uma atitude autodepreciativa, que esta quase se tornou na regra para a escrita feminina em geral11. A transição do grand tour canónico para o turismo moderno introduziu um novo tipo de viajante, a mulher vitoriana de classe média, que viajava não só com a família, mas também – e muitas vezes – sozinha ou acompanhada de uma amiga. O turismo podia ser libertador para a mulher inglesa em muitos aspectos, pois dava-lhe a oportunidade de escapar às tarefas domésticas do dia-a-dia e de atravessar as fronteiras tradicionalmente estabelecidas. Viajar tornou-se numa das esferas públicas onde “women could experience some freedom of mobility and also create a space for aesthetic expression”12. Embora a sua contribuição não tenha sido reconhecida até muito recentemente, muitas mulheres. escreveram relatos das suas viagens pelo Extremo Oriente, obras que circularam e foram li10. Ainda que fosse comum para as mulheres. viajantes vitorianas ilustrar os seus escritos com esboços e fotografias que elas próprias criavam ou encomendavam. Utilizo aqui o termo “vitoriano” não só para fazer referência ao reinado da Rainha Vitória (1837-1901) mas também para descrever determinados valores e crenças que foram cristalizados naquele período. 11. A subordinação estrutural das mulheres. reflectida na cena literária é evidente na auto e hetero-depreciação das mulheres enquanto autoras ou ‘detentores de autoridade’. Uma das linhas de pensamento mais comuns, que reflecte tanto esta subserviência como o medo de ser diferente, é o temor de parecer ridícula, que a jovem viajante portuguesa Isabel Tamagnini também expressa no seu Diário de uma Viagem a Timor (1882-1883): “Estive em dúvida se havia de pôr isto aqui receando que por um acaso pudesse alguém ler estas linhas e dizer lá de si para si, olha como ella é tola! Mas como tenho quási a certeza que isto não há-de acontecer e como só faço este jornal para mais tarde me divertir a lê-lo às minhas primas e íntimas amigas, a quem prometti contar tudo, tudo o que se passasse durante a minha viagem, resolvi-me a contar aqui este notabílissímo acontecimento” (Tamagnini, Isabel Pinto da França. Diário de uma Viagem a Timor (1882-1883). Lisboa: CEPESA, 2002, p. 48). Como este diário está destinado a não ser mais do que um “divertimento” trivial, a compartilhar com um restrito público feminino e familiar, Isabel Tamagnini é salvaguardada do ridículo inerente à mulher-autora. Ao admitir que as suas ambições literárias não se estendem para lá da esfera doméstica, Tamagnini justifica e absolve um texto que permanece francamente contido dentro dos limites que estavam estabelecidos para as mulheres.. 12. Löfgren, Orvar. On Holiday. A History of Vacationing. Berkeley: University of California Press, 2002, p. 100.

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das aquando da sua publicação, mas que raramente foram reimpressas. Nos seus relatos, descrevem-se a si mesmas como viajantes, ocasionalmente como líderes, enfatizando os seus feitos e os perigos que correram. Com efeito, Anna retrata-se vezes sem conta como sendo uma viajante intrépida e experiente, orgulhosa de ser “bom marinheiro” (5), capaz de comparar os barcos orientais com os seus congéneres europeus, enquanto tece comentários técnicos sobre os diferentes tipos de embarcações nativas que observa na viagem para Manila (12) e Nagasaki (185). Para relevar os riscos que enfrentou, Anna descreve o ataque rebelde presenciado em Xangai (134), a doença de que ela e o marido padeceram na viagem para Hong Kong (99) e Nagasaki (181) e o tufão mortífero em Macau e Hong Kong. Os capítulos sobre as Filipinas contêm a narrativa de uma longa excursão pelo país: partindo de Manila, Anna, o seu marido, a filha e uma pequena comitiva de amigos viajam durante dias em canoas nativas, pernoitam em cabanas, sofrem um grave acidente no qual Anna fica ferida, escapam de bandidos, visitam vulcões e caçam no meio da natureza virgem, apenas para enumerar algumas das suas aventuras mais ou menos fantasiadas. Ao longo destes episódios, Anna tem o cuidado de adoptar um tom heróico e estóico: “But what benefit could we derive from murmuring against the will of Providence?” (181), escreve. Devemos, contudo, ter em atenção que, muito embora as condições de viagem fossem em larga medida determinadas mais pelas convenções de hospitalidade numa determinada região do que pelos padrões e expectativas dos viajantes, a família D’Almeida e seus amigos eram viajantes privilegiados. Gozaram da hospitalidade do Barão de C. na sua mansão em Macau, do Cônsul Britânico em Nagasaki e de um influente mercador português em Hong Kong; compraram também vastas quantidades de fina porcelana na China e no Japão. Na realidade, ao considerarmos qualquer narrativa de viagens feminina do século XIX, verificamos que se refere invariavelmente às classes mais altas da sociedade, pois as senhoras vitorianas que viajavam eram necessariamente senhoras de posses, a maioria ligada – através do matrimónio – ao mundo da política e dos negócios. Basta ler os primeiro capítulos desta peculiar Lady’s Visit para concluir que as descrições de Anna são de facto bastante mais precisas e documentadas – apesar de muito “I heard say” e de fontes não referenciadas – do que ela prometera no Prefácio. Para além disso, o relato revela um surpreendente leque alargado de interesses. Por exemplo, Anna faz uma descrição detalhada de Manila, que contém muitos factos objectivos e quantitativos, montantes de dinheiro, e pormenores históricos, administrativos e lendários. Cita notas tiradas pelo marido durante uma visita aos aquartelamentos do exército e à prisão local e mostra um interesse considerável pelos processos e técnicas de manufactura de charutos e açúcar, e pela economia e indústria em geral. Previsivelmente, enquanto agente da ‘civilização britânica’ e representante orgulhosa da pátria da revolução industrial, Anna compara e louva as vantagens dos métodos industriais europeus. Uma vez mais, ao contrário do que prometera no Prefácio, esta ‘senhora-autora’ também exprime fortes opiniões sobre política, governação, religião e justiça social nas Filipinas (governada pela Espanha católica) e critica severamente a estagnação da administração portuguesa de Macau, quando comparada com a administração britânica de Hong Kong

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(109)13. Protegida por uma dedicatória apropriada, um prefácio modesto, um respeitável estado civil e pela permanente presença do marido, Anna não receia utilizar a escrita para revelar as suas opiniões sobre assuntos tradicionalmente reservados aos homens. Outros exemplos de descrições detalhadas e de um vasto âmbito de informação incluem a excursão ao sul de Luzon e as suas cuidadosas notas e citações sobre natureza, geografia, vulcanologia e história; a longa e pormenorizada biografia de Luis de Camões, em Macau; as notas sobre botânica em Nagasaki, com um pequeno glossário; a descrição in loco de uma casa de ópio em Xangai, das lojas de sedas e casas de pasto “desta estranha terra” (147); a sua admiração pela língua. Japonesa; a visita a uma manufactura de chá, a um mercador de sedas e a uma loja de objectos lacados em Nagasaki; os comentários precisos sobre a importância comercial das cidades japonesas ainda fechadas aos estrangeiros; a descrição da exposição de figuras de barro chinesas durante o festival das lanternas em Hong Kong (295), entre muitos outros. Revelando ao mesmo tempo interesse e capacidade de percepção, Anna salta de assunto em assunto enquanto viaja e testemunha os vários tópicos que motivam a sua escrita.

Viajantes e Turistas Apesar da falta de contextualização tanto da viagem como da narrativa (que começa in media res e termina num abrupto “adieu”), os dados biográficos de Anna sugerem que a razão subjacente à viagem dos D’Almeida poderá ter sido uma visita às origens familiares do seu marido no Extremo Oriente. Desta extensa família, vários membros estavam já a viver em Inglaterra em 1861 ou iriam mudar-se em breve para os Estados Unidos14. A falta de informação biográfica detalhada acerca do jovem casal torna difícil classificar Anna como sendo uma viajante veterana, quando comparada com uma mera turista, no presente sentido derrogatório da palavra. Oriundos de famílias com bons meios financeiros, o casal terá partido numa lua-de-mel prolongada pela Europa, brevemente interrompida em 1861 pelo nascimento da filha Rose, em Paris, antes de prosseguirem em direcção ao Oriente. Presume-se que A Lady’s Visit seja a narrativa de apenas parte de uma viagem mais vasta e já em curso pelo Extremo Oriente, durante a qual a autora terá adquirido os seus conhecimentos. A comprovar que Anna, com apenas 26 anos de idade (na realidade), era já uma viajante veterana, temos as suas múltiplas descrições detalhadas e comparativas, 13. Anna faz um comentário semelhante sobre o governo espanhol das Filipinas: “The indolence of the natives, who are naturally very inactive and lethargic, and being governed by a people not by any means energetic themselves, there is nothing to spur them on to a greater state of activity” (73). 14. Joaquim (1811-1890), pai de William, nasceu em Macau, viveu em Singapura e morreu em Londres. Embora não existam datas para o seu tio José (residente em Singapura e provavelmente também nascido em Macau), em 1861, as suas seis filhas viviam em Inglaterra com o tio e tia maternos, Reverendo Benjamin Lucas e Harriet Watson. Quanto ao seu tio António, também nascido em Macau e residente em Singapura, a sua filha Matria Petronella casou com Paul Felloes de Singapura e foram viver para Portland, Oregon, E.U.A. O seu filho Edgar, que também nasceu em Singapura, casou com a filha de Anna e William, Lillian, em Chicago, Illinois, e foram viver para o Oregon e, posteriormente, para a Califórnia.

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que indicam que ela viajara, não apenas pela Europa e pelo Mediterrâneo, mas também pela Índia e pela Ásia. Principalmente no início da narrativa, Anna tende a fazer muitas comparações com a Índia, recordando talvez anteriores viagens ou experiências recentes. Ao descrever os pormenores dos palanquins, ruas e lojas, ela compara facilmente Hong Kong com Calcutá e Malta. No seu relato da “agradável excursão familiar” (“pleasant little excursion”) ao “Pico” em Hong Kong, Anna compara esta expedição, com alguma ironia, aos destinos da moda na Europa, nomeadamente “the mountains of Switzerland or Savoy, the Montanvert in Chamouni [Chamonix], the Mer de Glace, or the Pyramid in Egypt” (9). Apesar da renitência de Anna em fornecer detalhes biográficos, ela não hesita em revelar que já desceu à cratera de um vulcão em Java (84) e visitou os Alpes e os Pirinéus (231), concluindo que a Ásia é muito superior à Europa em beleza natural e paisagens. Para além disso, Anna parece muito habituada e compreensiva em relação a práticas culturais diferentes das suas. Em Manila, por exemplo, repara sem grande surpresa ou crítica que muitas mulheres. usam mantilha, embora a maioria ande “with neither bonnet nor hat for the evening promenae, but, like the Dutch ladies in Java, prefer thoroughly to enjoy the fresh air” (14), e também que “The native women all smoke, and so do much of the mestizos openly, and I think I am right in saying many Spanish dames enjoy quietly their cigar or cigaretta” (97). Em muitas ocasiões, Anna descreve os vestidos e acessórios femininos, louvando as diferenças e a adaptação nativa às condições do clima local. Contudo, a sua tolerância tem limites, quando – previsivelmente – considera a nudez um sinal de selvajaria, como nos seus comentários sobre os índios Igorroté, “I believe the more savage of this extraordinary people wear no clothing whatever […] only the more civilized of the women wearing a kind of loose dress” (48), ou no seu horror aquando do episódio dos banhos de vapor em Nagasaki, onde inesperadamente presencia “men and women bathing in puris naturalibus” (209). Contudo, e contrariamente ao que poderíamos concluir de uma abordagem tendenciosa a um livro intitulado A Lady’s Visit, o vestuário feminino e as questões de moralidade não são de todo o foco principal da atenção de Anna. Por último, é importante salientar que, contrariamente aos viajantes masculinos, as mulheres. eram constantemente objecto da curiosidade local, tornando-se elas próprias ‘atracções’, expostas aos olhares e ao escrutínio dos nativos que, ironicamente, eram o objecto de estudo dos viajantes: “As but few ladies walk in this dirty part of the town [Xangai], I was evidently regarded in the light of a ‘curio’. Numbers followed our footsteps, and at each halt we made, crowds gathered round us, as though they had come purposely to see a ‘sight’” (146). Esta última palavra – “vista” (“sight”) – serve para introduzir o outro lado da experiência de viagem de Anna. Durante os séculos XVII e XVIII, o grand tour era uma forma de turismo educacional, especialmente dirigida aos jovens britânicos abastados da alta sociedade, que seguiam um itinerário padronizado através de destinos culturais específicos na Europa, onde eram expostos às antiguidades clássicas e ao legado da cultura renascentista. O grand tour era uma viagem educativa altamente sofisticada e com objectivos precisos, por parte de um grupo social de elite, organizada em torno da busca do saber e do convívio intercultural. No final

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do século XVIII, o foco das viagens na Europa transitou da busca escolástica para o prazer visual, do ouvido do viajante para o olhar do viajante15. A década de 1830 produziu um sujeito observador que era, ao mesmo tempo, um produto e um representante da modernidade no século XIX16. Quando Thomas Cook e outros começaram a organizar viagens pela Europa, oferecendo um contexto respeitável para que “as senhoras de bem” pudessem também viajar, tornou-se moda entre as mulheres. participarem nessas excursões. Daqui em diante, a ‘vista’ tornou-se altamente significativa para a organização do discurso do turista e da viagem. Na maior parte desses discursos, há uma ênfase especial em ver e coleccionar vistas. Expressões do dia-a-dia como ‘seeing the sights’, ‘capturing the view’, ‘eye-catching scenery’, ‘picturesque village’ e ‘pretty panorama’ ilustram o significado que a visão tinha para o viajante. Em A Lady’s Visit, por exemplo, Anna escreve: “Those amongst us who loved the picturesque were particularly struck by the fine boldlooking appearance of the rock or island of Taychow” (129); “The most lovely view it is possible to imagine lay before us like a panorama” (218); “This harbour is excessively pretty, the hills around very woody, and the country bright and green” (269). A narrativa e a prática de coleccionar vistas acabam por dominar o próprio itinerário das viagens, frequentemente organizadas de modo a possibilitar a contemplação de paisagens espectaculares17. A experiência da beleza, captada através do sentido da visão, foi valorizada pelo seu significado espiritual para o turista culto. Na sua transformação estética, a observação de paisagens tornouse uma actividade apaixonada de busca pelo sublime em paisagens exóticas. A importância da paisagem e da sua observação na viagem de Anna é igualmente evidente na passagem: “But to return to our view. The mountains of Maculot and Sungal are the loftiest to be seen, but numbers of smaller ones and verdure-clad hills are to be seen on all sides, with here and there herds of cattle grazing on the rich fields, or village hamlets embosomed in tufted trees” (85-6). Ao chegar ao porto. de Nagasaki, Anna declara que a ilha de Nasuzima, coberta de árvores com uma folhagem brilhante e variada, é muito pitoresca, e que as velas dos pequenos barcos eram “muito singulares e algo pitorescas” (184-5). Apesar disso, a beleza da paisagem é rapidamente arruinada pela “repugnante” (“disgusting”) visão da pele dos marinheiros (embora “almost as fair as that of the Europeans”), “lending no additional charm to the surrounding scene, but rather forming an eyesore one would gladly dispense with” (185). Podemos concluir que o nativo é um elemento dispensável da paisagem, que só deveria existir para o deleite do visitante europeu. Esta visão “terrível” contrasta com o “picturesque tableau” (236) dos nativos (decentemente vestidos?), tratando ordeiramente dos seus afazeres quotidianos, na região de Kanazawa, com a beleza natural perfeita como pano de fundo. Em última análise, esta percepção e apreciação da paisagem tende a ser reforçada por uma agenda que tem tanto de ética como de estética. Esta versão particular da própria materialidade da paisagem, que é expressa pelo visitante ocidental de elite, 15. Adler, J. “Origins of Sightseeing”. Annals of Tourism Research, 16 (1989): 7 e 22. 16. Crary, J. Techniques of the Observer. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1990, p. 9. 17. Ver: Rojek, Chris; Urry, John (eds.). Touring Cultures: Transformations of Travel and Theory. Londres e Nova Iorque: Routledge, 2002, pp. 178-180.

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nunca está livre de juízos de valor. Vem sempre acompanhada por uma série de suposições e implicações, geradas por padrões culturais e por preconceitos sociais e raciais, entre outros. No caso de Anna, as diferenças na percepção parecem ser minimamente baseadas no género, uma vez que os papéis sexuais são menos evidentes entre os membros da alta sociedade cosmopolita. O estatuto artificial ou arbitrário magnanimamente atribuído aos objectos e imagens privilegiados marginaliza tudo aquilo que não está de acordo com os referidos padrões. O processo de ‘civilização’, através do qual os turistas ocidentais tentam dominar um país desconhecido, revelase na estrutura de convenções artificiais e padrões de referência patentes na descrição do novo território enquanto paisagem catalogada. Como consequência, estes turistas vêem-se a si próprios como um grupo isolado e independente do mundo natural, cuja contemplação deverá diverti-los enquanto observadores externos. Podemos aqui recordar a apreciação de Thoreau sobre o refinamento cultural da paisagem civilizada, depois de o seu entusiasmo prematuro pela vida selvagem ter ficado algo esmorecido pelo contacto directo com a verdadeira vida selvagem: Could men live so as to ‘secure all the advantages [of civilization] without suffering any of the disadvantages?’ The answer for Thoreau lay in a combination of the good inherent in wilderness with the benefits of cultural refinement. The excess of either condition must be avoided. The vitality, heroism, and toughness that came with a wilderness condition had to be balanced by the delicacy, sensitivity and ‘intellectual moral growth’ characteristic of civilization.18

O estilo, em narrativas de viajantes ocasionais como A Lady’s Visit, é quase sempre leve e despreocupado, pois os autores descrevem viagens que são, em grande parte, realizadas em busca de prazer. Previsivelmente, quando não compreende um objecto ou uma prática, Anna pressupõe uma explicação ou estabelece comparações com a sua própria cultura. Tal como no actual turismo de massas, também os viajantes do século XIX esperavam ser expostos a novas experiências, enquanto se divertiam. Além do mais, os viajantes ocasionais nunca viam as coisas do ponto de vista do nativo. As suas descrições caracterizam-se por uma distância auto-afirmativa, na qual o sistema de valores ocidental prevalece e se define por olhar o ‘outro’ como um espelho estranho e, muitas vezes, invertido. O mesmo sucede na actualidade, em que os turistas continuam a usufruir do mito do ‘outro’ exótico oferecido pelos agentes de viagens, que os seduzem com termos como “desconhecido”, “inexplorado”, “intacto” “paradisíaco”, “virgem” e “diferente”. No entanto, e evocando uma vez mais a preferência de Thoreau pelo “selvagem civilizado”, tanto Anna como os turistas de massas contemporâneos – apesar de todos eles procurarem autenticidade – na verdade buscam um certo grau de aventura negociada dentro de um ambiente seguro e controlado, do qual podem optar por sair para usufruir de experiências previsíveis e estereotipadas. Em Macau, Anna elabora uma meticulosa descrição turística – uma espécie de Guia de Bolso Anna D’A. para Macau – que inclui uma lista de locais a visitar, as melhores vistas, sugestões de excursões, bem como comentários críticos sobre a qualidade e estado das atracções, tudo complementado com notas históricas, 18. Nash, Roderick. Wilderness and the American Mind. New Haven: Yale University Press, 1967, p. 92.

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curiosidades e lendas locais. Lamenta, por exemplo, que, no Jardim de Camões, “everything wears an air of waste and ruin” (112), e que a Gruta de Camões tenha sido manchada com nomes e inscrições ofensivas nela gravados. Isto evoca de imediato tanto a actual questão urbana do tagging e do graffiti, como o choque que Gustave Flaubert sofreu, em 1849, quando viu “Thompson of Sunderland” gravado em caracteres gigantescos na coluna de Pompeu, em Alexandria19. A senhora viajante, civilizada mas estóica, só ocasionalmente se lamenta da sujidade, da comida estranha, dos percevejos, da falta de privacidade, das baratas e dos cheiros. “Modernity declared war on smells. Scents had no room in the shiny temple of perfect order modernity set out to erect”, afirma Zigmunt Bauman20. Por outro lado, é interessante comparar os diferentes padrões críticos e comportamentais dos visitantes ocidentais ‘civilizados’ com aqueles que são aplicados aos asiáticos. Numa estalagem nas Filipinas, Anna queixa-se da falta de privacidade que a impede de se despir à noite mas, no parágrafo imediatamente a seguir, ela afirma: “We could not resist taking a peep into the adjoining apartment. The scene was truly an absurd one, and reminded me of a hospital, though wanting in the cleanliness and comfort of those excellent institutions” (68). Perto de Nagasaki, Anna informa orgulhosamente o leitor que o seu grupo desobedeceu às leis locais e visitou um lugar “situado para lá dos limites permitidos aos excursionistas europeus” (218). Descreve um templo budista em Xangai e um cortejo fúnebre em Nagasaki como meras atracções turísticas, sem qualquer tipo de alusão à sua natureza religiosa. No navio para Kamakura, os D’Almeida e outros passageiros ocidentais divertem-se atirando garrafas à água “in order to see the boatmen plunging and diving for them in their almost nude state” (244)21. Neste caso, e uma vez que o divertimento e o convívio estão em primeiro lugar, Anna não faz comentários horrorizados sobre a pele “repugnante” dos nativos. A nudez, aqui, é parte da descrição animalizante dos barqueiros, que ela compara a animais domesticados que actuam para regozijo dos seus donos, em vez de uma mancha numa paisagem de outro modo perfeita. A socialização a bordo é exclusivamente limitada a actividades entre europeus, cujos nomes a autora omite. Os navios são espaços de transição, criados pela cultura do turismo e habitados por grupos rigorosamente estanques de viajantes. O sentimento de distanciamento e superioridade sócio-cultural de Anna parece reforçado a bordo, quando isolada entre outros ocidentais. A morte de um passageiro de segunda classe chinês, a caminho de Xangai, por exemplo, apenas a faz sorrir ao observar os rituais fúnebres e as “superstições” chinesas em relação à morte (283). Esta atitude é bastante diferente daquela que demonstra quando atravessa regiões desconhecidas com o seu grupo, aí totalmente dependentes da orientação e hospitalidade dos nativos. Desde o início, a viagem de lazer tem sido indissociavelmente ligada ao modo como é conferida uma forma objectiva ao elemento visual, através da pintura e do 19. Ver: Botton, Alain de. A Arte de Viajar, trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: D. Quixote, 2006 [2002], p. 99. 20. Bauman, Zigmunt. Postmodern Ethics. Oxford: Blackwell, 1993, p. 24 21. Prática semelhante é realizada ainda hoje, na histórica zona ribeirinha do Porto, Portugal. Os turistas estrangeiros atiram moedas às águas poluídas do Rio Douro, para que os rapazes mais pobres do local mergulhem atrás delas.

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já referido desenvolvimento do conceito de ‘paisagem’. O crescimento do ‘turismo cénico’ evoluiu ainda mais com a invenção da fotografia em 1839. Não podemos esquecer que (d)escrever e tirar fotografias tornam o grotesco visível, ao mesmo tempo que o mantêm a uma distância segura. Os primeiros daguerreótipos do Japão foram tirados em 1854 por um membro da tripulação do Comodoro Perry. Embora as seguintes descrições tenham sido escritas em 1862, elas podiam ter sido relatadas por qualquer turista contemporâneo, em qualquer parte do mundo, ao comprar postais ilustrados como recordação ou ao tirar a típica fotografia que prova que ‘Eu estive lá’. Em Kamakura, “a village no European had ever seen” (240), o grupo de Anna compra imagens vendidas no local aos turistas: “After some few minutes’ conversation with the man who acted as guide, and purchasing a native portrait of the revered object, from which, I am sorry to say for the artist, no one could possibly obtain any correct impression of it” (246). Quando o grupo visita um espaço religioso com imponenentes figures em bronze, num templo perto de Kamakura, e um cavalheiro americano fotografa a cena, Anna descreve a forma irreverente como ela e o seu marido posaram: “My husband and myself mounted upon the wall which forms its pedestal, and from thence scrambled up the folds of the dress, and seated ourselves on the thumbs of the two hands” (245). Não podemos deixar de comparar esta atitude com o sorriso do moderno turista japonês apontando para a Gioconda, ou com o jovem turista eufórico que escala a estátua de David em Florença ou mergulha na Fonte de Trevi em Roma, provando, assim, a sua cobiçada posse física do objecto reverenciado.

Questões de Género no Contacto Intercultural Este último episódio humorístico serve também para ilustrar outra característica importante desta narrativa de viagem: Anna e o seu marido são sempre verdadeiros companheiros, partilhando em igualdade perigos, aventuras e desconforto, com a mesma coragem e resistência. Anna orgulha-se de demonstrar que nunca é um fardo ou recebe qualquer tratamento excepcional pelo facto de ser uma “senhora”. Raramente refere qualquer tipo de cuidados especiais para com a sua filha bebé (a excepção mais notória ocorre em Nagasaki, quando “educadamente declina” o pedido da mulher de um abastado comerciante japonês para levar Rose consigo por alguns dias), nem se identifica a si própria como mãe. A narrativa está repleta de referências ao marido como sendo um companheiro de viagem, nunca como uma ‘autoridade’. Quando Anna reproduz os comentários do seu marido sobre uma luta de galos a que ele assistira em Tanoan, verificamos que o seu vocabulário não demonstra qualquer diferença significativa de género e que o discurso masculino de horror e repugnância em relação a esta prática nativa é tão emotivo como as notas subsequentes de Anna. Quando navegam de Singapura para Hong Kong, Anna elogia espirituosamente a “boa mulher” do capitão escocês, como sendo uma verdadeira “helpmate and faithful companion” (6), que segue e auxilia o seu marido, apesar dos perigos do mar. Este é o retrato da mulher europeia que Anna tenta transmitir e o modelo pelo qual se rege na sua própria vida e viagem. Anna define-se como uma mulher ocidental emancipada, alegadamente abençoada com um destino em todos os aspectos muito melhor do que o das suas homólogas asiáticas.

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Anna parece também considerar os homens asiáticos (‘orientais’) como sendo intrinsecamente malévolos. Ao longo da sua narrativa, sentimos uma espécie de irmandade feminina global, em que Anna assume uma atitude maternal algo condescendente em relação às ‘outras’ mulheres., que ela vê como vítimas de uma sociedade ‘incivilizada’, que não lhes permite o papel de iguais, de companheiras dos seus homens, de que as mulheres. europeias como ela usufruem. Enquanto intérprete de uma cultura diferente para uma audiência britânica de classe média e alta, Anna sente-se privilegiada, bem informada e plena de recursos – por conseguinte, superior –, uma posição que a distancia das mulheres. asiáticas, que ela descreve estereotipadamente como pobres, confinadas e oprimidas. Isto revela como o projecto imperial condiciona também a ideologia de género: quanto mais distante uma mulher está do paradigma europeu (i.e. do paradigma protestante britânico), mais digna de pena ela será. Stuart Hall, ao definir os estereótipos sobre o ‘outro’, fala sobre a preocupação em marcar a ‘diferença’22. Assim, quando uma mulher pertencente a outra cultura não se enquadra na norma etnocêntrica que é aplicada à mulher europeia, ela deve ser construida como ‘outra’. Esta ‘outra’ mulher – quer seja filha, esposa ou mãe – é sempre vítima da crueldade masculina, nunca é objecto de crítica ou de escândalo por parte da sua irmã ocidental. A narrativa de Anna tende a avaliar o nível de ‘civilização’ de uma sociedade pelo estatuto conferido às mulheres., algo que, na China, parece ser de facto miserável. Com efeito, os ocidentais interpretavam o enfaixar dos pés como um indicador de opressão e a poligamia era considerada a principal causa do baixo estatuto da mulher na sociedade. No Japão, embora a poligamia fosse prática corrente entre os ricos samurais, os viajantes ocidentais tinham muito pouco contacto com esta classe e Anna supunha até que a poligamia era proibida. Como as suas descrições são geralmente baseadas em observações feitas nos portos abertos aos estrangeiros e nas áreas restritas em redor, as famílias de comerciantes, as raparigas das casas de chá e os camponeses de ambos os sexos trabalhando lado a lado nos campos tornam-se no objecto da interpretação de Anna e em fontes para uma imagem mais positiva do estatuto da mulher na sociedade japonesa. Anna dedica inúmeras páginas a descrever, com horror e compaixão, o destino sombrio da mulher chinesa. Em Xangai, assiste a um casamento onde “a noiva é vendida pelos seus pais” (147). Conta como, antes do casamento, a filha vive isolada dentro de casa até ao momento em que “she is disposed to the highest bidder, and dispatched from the paternal roof, where all her life of limited joy […] has been passed, with the gentle mother who lovingly tended her infant years, and guided her childish steps” (149). Segundo Anna, o destino da mãe não é melhor do que o da filha: “[she] is left to live out her lonely existence, uncaring and uncared for by the voluptuous father, who has, probably, long since discarded her for a younger and fairer favourite” (149). Anna continua o seu relato:

22. Ver: Hall, Stuart. “The Spectacle of the ‘Other’”. Representation. Cultural Representations and Signifying Practices. Londres: Sage, 1997, pp. 223-79.

A Lady’s Visit to Manilla and Japan: Género, Viagem e Representações Interculturais

The young girl arrives in front of her purchaser’s house, and, with breathless anxiety and gloomy forebodings, hears the key placed in the lock, and the door turn on its hinges. If, after inspection, his purchase is deemed satisfactory, she becomes the property of a new master, to all of whose wishes and commands she must be subservient, her own feelings or inclinations being totally disregarded. (149-50)

Ao descrever outro casamento, desta vez em Macau, Anna usa expressões complacentes tais como “trembling in every limb”, “mortified damsel”, “open to every kind of criticism”, “poor deformed feet”, e “probationary duty” (150). Para completar esta imagem tenebrosa, Anna exprime abertamente a crença comum de que o infanticídio de bebés do sexo feminino (“crime”, “atrocity”) é generalizado no país e, sem dúvida, realizado pelo pai (“monstrous”, “fallen spirit”, “murderer”, “inhuman”): “The new-born babe has scarcely felt the caresses of its fond mother before it is drowned in warm water”; “The father is the best judge and arbiter of the destiny of his child” (173). Anna parece conceder à mulher japonesa uma posição superior na sociedade, quando comparada a todas as outras mulheres. asiáticas, dado que “The Japanese make companions of their wives in a more general sense than any Eastern nation I have seen or heard of” (204). Contudo, em Nagasaki, depois de o casal ter visitado um casal aristocrata japonês, Anna descreve a aparência da esposa – rosto pesadamente maquiado, sobrancelhas rapadas e dentes enegrecidos (traços característicos das mulheres. casadas das classes mais altas) – como sendo consequência de um “costume tirânico” (206). Depois da visita, é-lhe dito que o oficial “had fallen in love with his wife at a ‘tea house’, and purchased her from the proprietor of the establishment” (207). Anna terá certamente lido anteriores descrições de ocidentais sobre o sistema de prostituição no Japão, segundo as quais os pais tinham o poder de vender as suas filhas a “casas de chá”, ou seja, a bordéis. Anna acreditava que este costume se restringia às classes mais baixas e que seria apenas por uma questão de pura necessidade económica que os pais enviavam uma jovem filha para um bordel: “These poor children are, for their owner’s own benefit, carefully tended, being kept in comparative seclusion until they attain the age of fourteen or fifteen, when they are compelled to commence an immoral cause of life, the poor girls, like too many sad victims in our own land” (205). Muitos outros escritores manifestaram horror pela venda de raparigas para a prostituição, alegando que esta prática era um indicador de que, apesar dos progressos da sociedade japonesa, esta estava ainda num nível inferior de desenvolvimento, quando comparada com a civilização ocidental. Alguns escritores, contudo, afirmam que estas mulheres. acabavam, por vezes, por casar, e bastante bem, depois de uma carreira como prostituta, conforme foi confirmado pelo casal que os D’Almeida visitaram. É importante salientar que Anna nunca adopta um tom moralista ou escandalizado quando escreve sobre estas mulheres.. Lamenta-as, tal como lamenta a sorte de idênticas mulheres. no seu próprio país que, segundo ela, não haviam escolhido este modo de vida como uma maneira fácil de escapar à pobreza, mas seriam antes vítimas da sua própria inocência e ignorância, reflectindo uma linha muito típica do pensamento vitoriano, em que as prostitutas seriam ‘mulheres caídas’, arrastadas para a imoralidade pelos homens. De facto, no final do século XIX, o trabalho filantrópico em prol das ‘mulheres. caídas’ arrependidas,

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dos órfãos e de outras pessoas carenciadas era considerado um dever das senhoras das classes média e alta, e uma linha de acção adequada fora da esfera doméstica23.

Religião e Pensamento Imperial A aparente, embora intermitente, abertura de espírito, compreensão e sociabilidade de Anna durante tantas e tão complexas interacções interculturais exibe limitações peculiares. Os seus principais limites de tolerância enquanto viajante aventureira privilegiada não são – surpreendentemente? – estabelecidos por questões de raça ou de género, mas sim por questões religiosas. E é aqui que a secção filipina de A Lady’s Visit adquire protagonismo. Apesar da declaração inicial sobre a neutralidade apolítica, simplicidade e até mesmo futilidade da sua narrativa, em Manila, Anna inicia uma longa denúncia dos males do catolicismo, que irá perdurar ao longo de todo o livro, especialmente nos capítulos em que percorre território filipino. Os raros estudiosos do trabalho de Anna parecem preferir questões mais polémicas relacionadas com o racismo e o colonialismo transcontinental24, em vez da sua censura feroz ao catolicismo e dos seus comentários depreciativos em relação às práticas católicas em geral e aos sacerdotes católicos em particular. Tal atitude é representativa de uma outra faceta do colonialismo britânico, muito ignorada pela crítica pós-colonial que, convenientemente, prefere não dar atenção à grave opressão que acontecia dentro das próprias Ilhas Britânicas durante o século XIX, quando a vizinha Irlanda católica era cruelmente subjugada pelos protestantes britânicos, sob o pretexto da diferença religiosa. A dicotomia ‘nós’ versus ‘eles’ mais evidente em A Lady’s Visit é, portanto, construída com base em pormenores de fé cristã. O preconceito colonial de Anna e o seu discurso impiedoso são predominantemente dirigidos contra a influência dos seus vizinhos europeus, brancos e católicos, o verdadeiro ‘outro’ deste diário de viagem, muito mais do que contra outras raças, práticas exóticas ou religiões distantes. Os pensamentos de Anna sobre o catolicismo são semelhantes aos manifestados por qualquer missionário ocidental sobre o ‘paganismo selvagem’. Os momentos de horror na sua narrativa são todos provocados por práticas católicas: uma visita ao cemitério, práticas face à morte, superstições locais, venda de indulgências, rituais fúnebres (só comparáveis aos muito desprezados ritos chineses), uma imensa figura de S. Pedro, uma procissão – “a sad spectacle of idolatry” (74). Anna justifica o facto de assistir a uma missa católica em Manila, afirmando que “we went to look at the spectacle” 23. Os tópicos da jovem mulher desprotegida, exposta à sedução dos homens da alta sociedade, da prostituta arrependida, ou da mãe solteira abandonada, prevalecem nos romances da escritora vitoriana Elizabeth Gaskell, Mary Barton (1848) e Ruth (1853). Gaskell sabe que a prática da caridade é a única forma de acção política aberta às mulheres. do seu tempo. Numa tentativa de justificar a sua actividade literária, Gaskell afirma que escreve: “to give utterance to the agony [...] of suffering without the sympathy of the happy” (Tillotson, Kathleen. Novels of the Eighteenforties. Oxford: Clarendon Press, 1971, p. 205). No exercício da sua escrita solidária para com as ‘mulheres caídas’, Gaskell dá voz ao eterno conflito entre a natureza humana e as regras sociais, que acabam sempre por vencer. 24. Ver: Jalagin, Seija. “Gendered Images: Western Women on Japanese Women”, Looking at the Other: Historical study of images in theory and practise, edited by Kari Alenius, Olavi Fält and Seija Jalagin. Oulun Yliopisto: Oulu University Library, 2002. Online: http://herkules.oulu.fi/isbn9514266331/html/index.html (5/12/2008); Kowner, Rotem. “Lighter than Yellow, but not Enough’: Western Discourse on the Japanese ‘Race’, 1854-1904”, The Historical Journal, vol. 43, nº 1 (March 2000): 103-31.

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(93); o enterro católico de uma criança é simplesmente “very curious” (94). Descreve com severidade um suposto milagre (uma imagem de Cristo que sangra) em Manila como um “cruel subterfúgio”, um “esquema” para induzir os “habitantes crédulos” a doar dinheiro (17). Anna parece atribuir a ignorância, os preconceitos, as superstições e a falta de progresso (ou seja de ‘civilização’) exclusivamente à influência católica, enquanto que o protestantismo favoreceria o “progresso industrial e intelectual”: The people in Manilla are awfully bigoted, more priestly-ridden, if possible, than in Spain itself, and, consequently, far behind in every kind of industrial or intellectual pursuit. Influenced by the priests, they evidence a marked dislike to anything in the shape of innovations. No Protestant missionary is allowed to set foot in one of the Philippines, nor, if known, is a Protestant Bible suffered to enter. (16)

A descrição solidária dos nativos como vítimas da conversão é semelhante à descrição das mulheres. orientais como vítimas da opressão masculina. De acordo com Anna, a conversão de “um povo supersticioso” ao catolicismo é meramente exterior e induzida pelas “numerous images and extravagantly gaudy processions […] by which the Roman Catholics so powerfully impress the imagination of the ignorant; while our simpler and purer forms often fail, through that very simplicity which is their greatest beauty” (17). Mais ainda: a recusa dos padres católicos “em casar qualquer cristão com um infiel” causa situações generalizadas que ela qualifica como “assustadoramente imorais”. O capítulo II contém uma longa e depreciativa descrição da catedral católica de Manila, sempre influenciada pela ideia da falácia da aparência, bem como descrições desdenhosas de ex-votos, estátuas e pinturas. No entanto, Anna argumenta de forma magnânima que os bons protestantes não devem confrontar abertamente as práticas católicas nem ofendê-las com actos de provocação (126-7), embora ela própria utilize expressões tão críticas como “uma paródia da verdadeira religião”, “sinceridade errada”, “devoção fanática” e “imagens de mau-gosto”. A análise das narrativas de viagem escritas por mulheres. tem sido muito selectiva, na sua tentativa de omitir atitudes negativas como o racismo ou a crueldade, e de enfatizar aspectos mais ‘femininos’, como actos de bondade e caridade, à imagem dos sentimentos de irmandade e empatia que Anna parece nutrir pelas mulheres. vítimas da tirania masculina. A visão de Mary Kingsley dos africanos como uma espécie à-parte e inferior, por exemplo, é também frequentemente omitida nos relatos que acentuam o seu amor por África25. Contudo, ao colocar estas mulheres. numa perspectiva preconcebida mais aceitável, estamos a ignorar secções consideráveis do seu trabalho e a comprometer a integridade da sua escrita de viagens. A narrativa de viagens tem de ser examinada na sua totalidade, no contexto das estruturas discursivas dentro das quais foi produzida, antes de se considerar qualquer tipo de interpretação. Quando escreve os seus longos comentários depreciativos sobre questões religiosas, Anna, a turista, parece encarnar o modelo da viajante pioneira ocidental na Ásia: uma missionária protestante, uma representante da fé e do império, corajosa 25. Mills, Sara. Discourses of Difference: An Analysis of Women’s Travel Writing and Colonialism. Londres: Routledge, 1991, p. 34.

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e independente, tolerante com potenciais convertidos e feroz com os embaixadores do rival catolicismo26. Podemos assumir que as mulheres ocidentais identificamse com as mulheres que conhecem ao longo das suas viagens e que retratam na sua escrita. Mas, afinal, talvez estejam mais presas às diferenças culturais do que ligadas a uma ideologia comum de condição feminina. As mulheres ocidentais que, nos finais do século XIX / início do século XX, viajavam pelo mundo pelas mais variadas razões eram, em primeiro lugar, agentes culturais que faziam eco do conceito da superioridade ocidental. São, sobretudo, “cultural missionaries, maternal imperialists, feminist allies”, tal como Barbara Ramusack define a mulher inglesa na Índia do início do século XX27. Enquanto turista, durante breves estadias que não permitem contactos estreitos com a população local, as percepções de Anna confirmam que escritoras como ela estão, acima de tudo, a definir-se a si próprias. Por outras palavras, a imagem assim verbalizada diz-nos mais sobre a sua criadora do que sobre o objecto da imagem. Como vimos, há uma ligação directa entre a escrita de viagens e a história do imperialismo e da colonização, daí o interesse, neste momento pós-colonial, em analisar as implicações dos textos produzidos por viajantes europeus durante os primórdios do turismo europeu. Enquanto imperialistas culturais e defensores da superioridade do ocidente, os viajantes temporários (tanto homens como mulheres.) viam as diferentes práticas e crenças como meras curiosidades. O pensamento e a escrita de Anna também estão estruturados de acordo com a dicotomia entre ‘superior’ e ‘inferior’, e muitas vezes combinam ética com estética, ao construir imagens colectivas animalizantes sobre o ‘outro’ enquanto ‘raça’. Por exemplo, quando descreve as trabalhadoras de uma manufactura de charutos em Manila, o discurso de Anna funciona como se ela estivesse a observar um animal mais ou menos belo, um simples colectivo de género e raça, desprovido de qualquer individualidade28. Segundo ela, as mulheres. chinesas em Xangai gozam de alguma “superioridade” por causa da sua “pele mais clara”, quando comparadas com as mulheres. chinesas em Macau e Hong Kong, que eram “sujas”, “rudes” e “vulgares”. Contudo, Anna poderia, talvez, ter escrito da mesma forma em Inglaterra, onde a sua crítica seria baseada não tanto em critérios raciais, mas antes em critérios de classe ou religião. De acordo com o espírito imperial, a beleza – segundo critérios ocidentais – seria sinónimo de bondade: a estética deveria reflectir a ética da ‘raça’, e não de um indivíduo, sociedade ou cultura. Por outro lado, a beleza, o vestuário, os penteados e 26. Tal como a americana Margaret Ballagh (no Japão); a britânica Priscilla Winter (na Índia); as australianas Rose Bachlor (na Índia), Amy Oxley (na China) e Alice Phillips (na Pérsia). Também as australianas Annie Gordon e Nellie e Topsy Saunders, que morreram num massacre de missionários anglicanos em Huashan, província de Fujian, China, em 1895. Ver, por exemplo, Davin, Delia. “British Women Missionaries in Nineteenth-century China”, Women’s History Review, vol. 1, nº 2 (1992). De um modo geral, os missionários protestantes tendiam a enfatizar o trabalho missionário das mulheres. em culturas que separavam rigorosamente a esfera feminina da masculina, nomeadamente na China, Índia, Japão e países islâmicos. Nestes países, as mulheres eram vistas como a figura crucial dentro da família. Converter a esposa e a mãe promoveria a conversão da família e, em última instância, de toda a nação. 27. Ramusack, Barbara. “Cultural Missionaries, Maternal Imperialists, Feminists Allies. British Women Activists in India, 1865–1945”. In: Western Women and Imperialism. Complicity and Resistance. Edited by Nupur Chaudhuri and Margaret Strobel. Bloomington: Indiana University Press, 1992. 28. Este tipo de noção desumanizante do ‘outro’, enquanto mera curiosidade animal, produziu fenómenos como o da triste história da ‘Venus Hotentote’, que morreu em 1815.

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os sorrisos brilhantes das mulheres. japonesas seriam um sinal claro do seu estatuto social e da sua ‘superioridade’ em relação às infelizes homólogas asiáticas. Comparar o Japão à China era usual nas descrições ocidentais do século XIX. Na década de 1860, a China era muito mais conhecida do que o Japão entre os ocidentais, cuja maioria aí chegava através de portos chineses. Uma vez no Japão, uma das paragens mais populares era, tipicamente, uma cidade portuária. Paradoxalmente, os visitantes ocidentais escreviam sobre as zonas mais cosmopolitas e em rápida modernização do Japão, nomeadamente os portos comerciais de Nagasaki ou Yokohama e, ocasionalmente, sobre Tóquio, a rebaptizada capital do imperador Meiji. Com o aumento do número de ocidentais a viajar para o Japão a partir de 1860, este país quase desconhecido tornou-se objecto de estudo, interpretação e descrição em numerosos livros e artigos29. A abertura do Japão facilitou o seu papel de substituto da China e a sua percepção favorável por parte do ocidente, que o exótico e relativamente desenvolvido Japão parecia disposto a imitar. Por seu turno, Anna elogia o “desejo japonês de desenvolvimento” e “readiness to adopt really useful innovations” (200), transmitindo assim a noção imperialista britânica de que abraçar a indústria seria o mesmo que abraçar a civilização. O Japão era considerado diferente da Ásia ‘selvagem’ em geral, o que levou à criação das habituais categorias e hierarquias baseadas em estereótipos raciais, como expressa esta passagem de George William Knox, em 1904: In our superficial way we [“nós”, os ocidentais, os povos ‘civilizados’] have classed Asiatics together and we have assumed our own superiority. It has seemed a fact, proved by centuries of intercourse and generations of conquest, that the East lacks the power of organisation, the attention to details, and of master over complicated machinery. Japan upsets our deductions by showing its equality in these matters, and, on the final appeal, by putting itself into the first rank of nations... Here is a people, undoubtedly Asiatic, which shows that it can master the science and the methods of the West.30

É contudo interessante notar a ausência de reciprocidade durante os raros contactos entre os D’Almeida e famílias japonesas do mesmo estatuto social (embora – de acordo com as opções retóricas da narrativa – de diferente estatuto racial e cultural). Quando Anna descreve a recepção a um grupo de senhoras japonesas em Nagasaki (207 e 270), o seu discurso apenas evidencia as diferenças: as senhoras rejeitam as cadeiras e sentam-se no chão; fumam pequenos cachimbos que Anna prontamente recusa; maravilham-se com o cabelo loiro de Rose; rejeitam o vinho do Porto e parecem ignorar o piano “with which they seemed quite astonished, probably never having heard the instrument before” (271). No entanto, quando os D’Almeida visitam um abastado mercador japonês em Nagasaki (271), Anna nota que os anfitriões tiveram o cuidado de adaptar a sua casa aos visitantes europeus, providenciando cadeiras e mesas. Anna menciona devidamente o “trabalho” a que os anfitriões se deram para receber o casal europeu, mas também escreve que tanto ela como o seu marido se “divertiram” muito com a visita, como se referisse uma 29. A maioria dos viajantes ocidentais no Japão dos finais da era Tokugawa (1859-67) e Meiji (1868-1912) era proveniente da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. Cerca de 60% dos visitantes antes de 1918 provinham destes países. 30.Knox, George William. Imperial Japan: the Country and its People. Nova Iorque: 1904, pp. 7-8.

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qualquer actividade infantil na qual haviam condescendido em participar31. Mais tarde, ambas as famílias assistem a uma soirée no teatro japonês em Nagasaki e, aqui, a classe social torna-se no principal critério de distinção: os D’Almeida sobem ao camarote do mercador e observam que “at the back of the pit there’s a raised platform for labourers and their families” (273). Com efeito, as noções de ‘contaminação’ e ‘contágio’ são recorrentes na forma como a vida urbana do século XIX era compreendida. Os mais ricos deveriam observar as massas a partir de posições de algum isolamento e distância, com base nas dicotomias ‘olhar’ versus ‘tocar’ e ‘desejo’ versus ‘contaminação’. Esta distância social reconfortante é reproduzida no teatro japonês, onde a classe mais alta observa o ‘outro’ do alto dos seus camarotes com vista para as massas. As descrições que Anna faz das suas actividades de lazer no teatro, a bordo dos navios, durante as excursões e visitas sociais, ou enquanto compra recordações e frequenta locais turísticos reflectem claramente a necessidade de prevalência desta noção de hierarquia social. Nas constantes comparações que Anna estabelece entre chineses e japoneses, os primeiros saem sempre desfavorecidos. Enquanto povo, os chineses são alegadamente “revengeful and cruel” (124), ,“offensive to the olfactory sense” (133), “unimaginative-looking” (129), “vindictive”, “a collection of puppet-shows” (130), “very annoying” (134), “filthy” (143), “a nuisance”, “excessively superstitious”, “the very idea of a Chinaman’s being polite, observing, or considerate, was too much for our risible muscles” (180). Segundo Anna, o povo chinês seria totalmente incapaz de assimilar a muito reverenciada e supostamente global língua. inglesa. No entanto, ao criar outra habitual comparação ‘nós’ (europeus) versus ‘eles’ (os chineses), desta vez sobre hábitos alimentares, Anna admite que as suas afirmações são elaboradas a partir de “the limited portion of the country we have travelled through, or of which we have obtained information” (164). Contudo, é fácil concluir que, para Anna, a verdadeira diferença reside no grau de deferência (ou de submissão) destes povos asiáticos para com o agente civilizador europeu: The people we have left behind [os chineses] are surly, impertinent, independent, self-sufficient, in their manner towards foreigners; whilst those among whom we now are [japoneses], poor and rich alike, have an innate politeness which is exceedingly pleasing, and address strangers in a respectful manner. (186-7)

Aqui, devemos salientar mais uma vez o jogo de palavras ‘a diferença é a deferência’, independentemente da forma que tal deferência possa assumir: “The Japanese are really very strict in punishing those who behave ill to Europeans” (211). Quando Anna sabe que um japonês foi sentenciado à morte por decapitação por ter maltratado o cavalo de um europeu, a sua tão proclamada compaixão humana desvanece-se, à medida que revela os seus profundos sentimentos de superioridade racial e imperial: “Although such merciless severity cannot be commended, we hope it may prove a salutary lesson to his fellow-countrymen” (213). Quando escreve sobre os pagens japoneses que seguiam a pé os cavalos dos europeus durante uma excursão, Anna refere-se a eles como “unfortunate beings”, 31. O mesmo tinha já acontecido em Xangai, onde as actividades diárias do ‘outro’ são reduzidas a uma escala infantil e observadas como uma atracção turística: “We used to amuse ourselves sometimes by watching the progress of this building, which they seemed to pile up as a child raises a house of cards” (142).

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que “performed this feat as if they were well accustomed to it” (237). Por fim, mas não menos importante, o seu comentário “In the Chinese wars [as infâmes Guerras do Ópio] our Sikhs [note-se o possessivo] took [Cantão] by storm, and slaughtered, without mercy, all found within the walls” (288) traduz a convicção de que a matança impiedosa será legítima, pois é inútil resistir ao avanço do império e da ‘civilização’ a qualquer custo32. Estes e outros episódios ao longo da narrativa levam-nos a concluir que o recurso em maior ou menor grau à violência é essencial para estabelecer a ‘natural’ e tranquilizadora hierarquia sócio-racial, através da qual o espaço estrangeiro se torna num território ordenado. O ‘selvagem’ deve transformar-se em ‘civilizado’ a todo o custo e até os turistas como Anna estão conscientes do seu próprio papel como representantes privilegiados do Império Britânico, mesmo quando viajam por aventura e prazer. Por esta razão, os perigos e os incidentes inesperados parecem menos ameaçadores, pois a família D’Almeida – tal como muitos outros turistas – age como se estivesse de facto a realizar uma viagem doméstica, dentro dos domínios do imenso Império Britânico, onde gozam da protecção de uma empatia colonial global.

Conclusão A Lady’s Visit to Manilla and Japan de Anna D’Almeida oferece-nos uma descrição atenta, pictórica e sensorial de uma experiência de viagem, utilizando com frequência uma linguagem poética e impressionista. A autora reproduz diálogos imaginários, opina sobre os mais diversos temas, resume lendas e contos populares, e fornece amplas citações de leituras prévias e de notas de outros viajantes. Este relato de uma viagem pelo Extremo Oriente – que estava a tornar-se moda entre a alta sociedade britânica das primeiras décadas do turismo global do século XIX – aborda de forma abrangente os mais variados aspectos sócio-culturais. Embora conscientes de que a literatura de viagens não é sinónimo de etnografia, a análise crítica da escrita de mulheres. viajantes como Anna D’Almeida oferece-nos uma visão única das práticas sociais, culturais e do quotidiano, dificilmente presente nas limitações pedagógicas e paternalistas dos comentários oficiais e das histórias formais. Os países que Anna visita tornam-se em algo mais do que meras coordenadas espaciais: são o local de relações humanas frequentemente difíceis, entre indivíduos diferentes na sua maneira de pensar, por vezes privados de qualquer tipo de empatia. Esta viagem é levada a cabo e narrada sob um preconceito claramente eurocêntrico, protestante e aristocrata. Acima de tudo, viajar é uma busca pelo prazer visual e, na maior parte das vezes, o nativo é apenas um elemento dispensável da paisagem, que não deve existir senão para deleite do visitante europeu. Podemos citar, a este propósito, Marc Augé, em Non-Places: Introduction to an Anthropology of Supermodernity:

32. O mesmo comentário aplica-se ao caso dos rebeldes Tae-Ping na China: “As, under such circumstances, we [europeus] could not look on and remain inactive, the allied armies have taken up arms in the cause, and have already taught these rebels some salutary lessons, with great loss to them and comparatively little to the Europeans” (168).

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Space, as frequentation of places rather than a place, stems in effect from a double movement: the traveller’s movement, of course, but also a parallel movement of the landscapes which he catches only in partial glimpses, a series of ‘snapshots’ piled hurriedly into his memory and, literally, recomposed in the account he gives of them […] we should still remember that there are spaces in which the individual feels himself to be a spectator without paying much attention to the spectacle. As if the position of spectator were the essence of the spectacle, as if basically the spectator in the position of a spectator were his own spectacle.33

A narrativa de Anna constitui também uma representação das impressões parciais obtidas a partir da sua vivência e memória selectiva do ‘oriental’, com particular ênfase na sua condição de espectadora, alguém que realmente ‘esteve lá’ e ‘viu com os seus próprios olhos’. Os critérios que presidem tacitamente a esta representação de diferentes países, culturas e sociedades lançam luz sobre a posição da autora na sua própria cultura e sociedade. No caso da narrativa de Anna, contudo, os critérios (e estereótipos) de classe, raça, etnia e religião são muito mais relevantes do que as questões de género, em contradição com as expectativas criadas pelo título, dedicatória e prefácio de A Lady’s Visit. Em relação às questões de género, Anna argumenta que, em países ‘civilizados’, homens e mulheres. devem ser considerados como companheiros. As ‘outras’ mulheres que conhece no decurso da sua viagem pela Ásia são meras vítimas dos elementos masculinos de uma sociedade ‘incivilizada’, que devem ser lamentadas dentro de um espírito de filantropia universal. Para Anna, as mulheres asiáticas são como espelhos invertidos do seu próprio estatuto de independência e modernidade, prova de que a ideologia imperial condiciona também a ideologia de género. No discurso da autora, as mulheres e os nativos são, respectivamente, vítimas de hábitos culturais e de métodos de civilização errados, situação que requer o auxílio e a compreensão do agente imperial civilizado e progressivo (e protestante). Para obterem o estatuto de ‘civilizados’, os países colonizados devem adoptar sem reservas os benefícios da indústria, renunciar aos ídolos homólogos do paganismo e do catolicismo e mostrar uma deferência incondicional para com os turistas, que funcionam também como embaixadores temporários do imperialismo. Em suma, A Lady’s Visit To Manilla and Japan é uma vívida descrição na primeira pessoa de uma viagem que foi levada a cabo tanto por lazer como por sede de experiência e conhecimento, através da casa global que era o Império Britânico, durante a segunda metade do século XIX.

33. Augé, Marc. Non-Places: Introduction to an Anthropology of Supermodernity, trad. John Howe. Londres e Nova Iorque: Verso, 1995, p. 86.

Morte em Lisboa: Afirma Pereira de Antonio Tabuchi Dalila Silva Lopes CEI - Centro de Estudos Interculturais Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto

Introdução O objectivo da minha linha de investigação dentro do CEI (Centro de Estudos Interculturais) do ISCAP consiste em responder à pergunta: Como é que Portugal é visto pelos ficcionistas não-portugueses? A principal razão pela qual resolvi seguir esta linha de investigação é a seguinte: ensaístas portugueses como Eduardo Lourenço e José Gil tendem a centrar-se na imagem ou representação que os portugueses têm de Portugal; na verdade, há uma tendência nos Estudos Culturais Portugueses (e, em certa medida, também nos Estudos Filosóficos Portugueses) para se dedicarem ao estudo da ‘portugalidade’, i.e., a essência de ser português. Na minha opinião, o problema destes estudos é a sua auto-referencialidade, e se a portugualidade é uma matéria a ser estudada, então penso que seria útil para o seu tratamento separar sujeito e objecto de investigação. Por isso decidi iniciar esta linha de investigação dentro do CEI, uma linha de investigação que inverte a tendência actual dos estudos sobre a portugalidade: em vez de estudar a imagem ou representação de Portugal tal como é concebida pelos portugueses, a minha tarefa é estudar a imagem ou representação de Portugal tal como é concebida pelos não-portugueses, neste caso pelos ficcionistas não-portugueses1. Para este artigo seleccionei o romance de António Tabucchi Afirma Pereira. Sobre o Autor António Tabucchi nasceu em Pisa, Itália, em 1943. Para além de ser escritor, foi também Professor de Literatura Portuguesa na Universidade de Siena, e é um dos principais especialistas em Fernando Pessoa, o lendário poeta português, sobre quem Tabucchi escreveu vários ensaios e cuja obra traduziu para italiano. 1. Cf. Lopes (2008), onde se estudam as representações de Portugal em Herman Hesse, Philip Roth e Paul Auster.

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Tabucchi conhece bem Portugal: viveu e estudou em Lisboa, e acabou por adorar o país e também Fernando Pessoa; numa entrevista ao UNESCO Courier citada por Gray (2005), Tabucchi vai ao ponto de considerar que a sua vida mudou completamente depois de, durante uma viagem de comboio, ter lido o poema de Pessoa ‘ A Tabacaria’, assinado por um dos heterónimos de Pessoa, Álvaro de Campos. António Tabucchi considera Fernando Pessoa e Portugal como parte da sua ‘bagagem genética’2, e isso é visível na sua obra: Portugal é o setting de grande parte dos seus romances (por exemplo, Any where out of the world, Requiem. Uma Alucinação, A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro e Afirma Pereira), e Pessoa é uma presença constante nos seus textos, embora em alguns deles não seja detectável numa primeira leitura. Cinco dos seus romances foram adaptados para o cinema: Nocturne Indien, realizado por Alain Corneau, Sostiene Pereira (Afirma Pereira, realizado por Roberto Faenza e escrito por Faenza e pelo próprio Tabucchi), Rebus, realizado por Massimo Guglielmi, A Linha do Horizonte, um filme português realizado por Fernando Lopes, e Requiem, realizado por Alain Tanner. Numa entrevista concedida em 2002 a Rui Martins, Tabucchi comenta as adaptações para o cinema dos seus romances do seguinte modo: É muito simples. Eu conto histórias, sou escritor, e o cinema precisa de histórias, e, às vezes, encontra-as na literatura. Não andei à procura do cinema, ele é que me encontrou. António Tabucchi é também activo politicamente: exprime em público, e com frequência, a sua opinião sobre questões como a intervenção militar no Kosovo, ou a violência provocada pela xenofobia. É também um dos fundadores do Parlamento Internacional de Escritores, uma organização cujo objectivo é proteger os escritores e intelectuais ameaçados de morte ou perseguição.

O Enredo O setting de Afirma Pereira é o Portugal fascista no Verão de 1938, com a Guerra Civil de Espanha do lado de lá da fronteira. Pereira, um homem gordo de meiaidade, é o editor da página cultural do vespertino Lisboa, um jornal diário que se auto-intitula como independente. O director do jornal concede a Pereira um certo grau de autonomia: o seu local de trabalho é uma sala, num edifício completamente à parte da sede do jornal, e os seus artigos não são normalmente submetidos à aprovação do director. Assim, Pereira trabalha sozinho, e também vive sozinho; não tem filhos e a sua mulher morreu há alguns anos. No início do romance, a única companhia de Pereira parece ser uma fotografia da sua mulher – e por isso ele fala frequentemente com essa fotografia –, mas em breve tudo começa a mudar a partir do momento em que Pereira contrata Monteiro Rossi, um jovem recém-licenciado em Filosofia pela Universidade de Lisboa que apresentou uma tese de licenciatura sobre a morte. A tarefa de Rossi consiste em escrever elogios fúnebres de escritores ou necrológios antecipados (pois uma figura 2. Em Requiem. Uma Alucinação (p. 82), o narrador escreve […] acho que Portugal está inscrito na minha bagagem genética.

Morte em Lisboa: Afirma Pereira de Antonio Tabuchi

importante pode morrer de um momento para o outro), enquanto Pereira contribui para a página cultural com excertos e traduções dos seus escritores franceses favoritos. Mas Monteiro Rossi cedo se revela uma constante fonte de problemas: escreve artigos que Pereira considera não publicáveis, na medida em que Rossi insiste em politizar as mortes e as vidas das figuras sobre as quais escreve; além disso, está permanentemente a pedir dinheiro a Pereira; e, para complicar ainda mais as coisas, Rossi (juntamente com a sua namorada Marta e com um primo que é membro da Brigada Internacional em Espanha) envolve-se em actividades políticas perigosas, nomeadamente, recrutando pessoas em Portugal para lutar em Espanha contra o General Franco, que é publicamente apoiado pelo regime português; e, sempre que tem problemas, Rossi vem pedir ajuda a Pereira. Embora Pereira não saiba exactamente porquê, ajuda sempre Rossi, ao ponto de pôr em perigo o seu emprego e a sua própria vida. Para além da entrada de Monteiro Rossi na vida de Pereira, outro acontecimento perturba a existência, outrora tão tranquila, de Pereira: o encontro com o Dr. Cardoso na clínica talassoterápica da Parede, nas proximidades de Lisboa, onde Pereira passa uma semana, a conselho do seu cardiologista, com vista a perder peso. O Dr. Cardoso, que está incumbido de o tratar, revela-se mais um psicólogo do que um dietista: estudou em França, e segue a escola de pensamento dos médecins-philosophes de Théodule Ribot e Pierre Janet, normalmente designada por ‘confederação das almas’. Após longas conversas em que Pereira conta ao Dr. Cardoso os recentes acontecimentos da sua vida, o Dr. Cardoso chega a uma conclusão: Pereira está a sofrer uma profunda modificação depois de ter conhecido Monteiro Rossi; de acordo com a teoria da confederação das almas, o ‘eu’ hegemónico de Pereira está a ser destronado por outro ‘eu’ hegemónico, e Pereira deve deixá-lo vir à superfície, pois não vale a pena lutar contra ele. O diagnóstico do Dr. Cardoso revela-se certo. No final do romance, Pereira acaba por compreender que a sua vida passada, que era segura e calma, terminou: Pereira tem que tomar uma posição de denúncia de tudo o que está a acontecer em Portugal. O momento próprio surge quando Monteiro Rossi é assassinado, no apartamento de Pereira, por homens à paisana que dizem ser da polícia política. Com inesperada astúcia, Pereira arranja maneira de iludir a censura governamental e consegue publicar um artigo na página cultural do Lisboa, denunciando o assassinato de Monteiro Rossi e instando as autoridades competentes a dar uma explicação cabal sobre quem é responsável pois tais actos de violência. Agindo com enorme rapidez, prepara uma ligeira bagagem, arranja um passaporte falso e prepara-se para deixar o país antes de a edição do Lisboa sair. Será Afirma Pereira um Testemunho? No original italiano, o romance tem um subtítulo – Una Testimonianza. Estra-

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nhamente, o subtítulo não aparece na tradução portuguesa3. Certo é que Tabucchi classifica4 Afirma Pereira (AP) como um testemunho, e talvez devêssemos levar esta classificação a sério. Além disso, o facto é que todo o romance está escrito em discurso indirecto, com inúmeras ocorrências do verbum dicendi ‘afirmar’, sempre conjugado no presente: ‘afirma Pereira’ ocorre ou no início do discurso indirecto – Afirma Pereira tê-lo conhecido num dia de Verão. (AP: 1) – ou intercalado – […] e finalmente, afirma Pereira, perguntou-lhe se se podiam encontrar […] (AP: 12) – ou no final do segmento de discurso indirecto – […] e Lisboa cintilava no azul de uma brisa atlântica, afirma Pereira. (AP: 12) (sublinhados nossos). Ora a pergunta que isto suscita de imediato no leitor é: perante quem são feitas as afirmações de Pereira?5 E a verdade é que não encontramos nenhum indício no romance que nos permita responder à pergunta: não há perguntas feitas por um presumível interrogador ou inquiridor, Pereira também não se refere a quaisquer perguntas, e a narrativa flui sem quaisquer indícios de que as afirmações de Pereira (que, ao fim e ao cabo, constituem todo o romance) correspondam à estrutura formal de um interrogatório. Por outras palavras, não sabemos quem é o narrador, mas de certo podemos excluir a hipótese de ser uma das personagens do romance, na medida em que todas elas são sempre referidas na 3ª pessoa, e um narrador omnisciente parece também estar fora de questão porque a única função do narrador aqui é relatar as afirmações de Pereira. Contudo, a profusão de ocorrências do segmento ‘afirma Pereira’ em todo o romance e a relevância que adquire por constituir o seu título levam o leitor a pensar em várias hipóteses. O setting de Portugal fascista em 1938 e o final aberto do romance (não conseguimos saber se Pereira consegue sair do país depois de escrever o artigo sobre o assassinato de Monteiro Rossi) abrem espaço para a suposição de que Pereira poderia ter sido apanhado pela polícia política; alguns excertos parecem sustentar esta hipótese: [1] […] o que ali tinha era um necrológio de Filippo Tommaso Marinetti, que acreditava na guerra, e Pereira pôs-se a lê-lo. Era realmente um artigo para deitar fora. Mas Pereira não o deitou. Guardou-o, não sabe porquê, e é por isso que o pode apresentar como documento. (AP: 53) [2] […] mas primeiro queria ler a efeméride sobre D’Annunzio que não tinha tido tempo de ler na noite anterior. Pereira pode apresentá-la como testemunho, porque a guardou. (AP: 97)

Estas referências a artigos (não publicados e não publicáveis) de Monteiro Rossi, considerando-os como ‘documentos’ ou ‘testemunhos’, podem, de facto, levar a supor que Pereira possa ter sido submetido a um interrogatório hostil, provavelmente levado a cabo pela polícia política, e que Pereira os tenha apresentado numa tentativa desesperada de ‘salvar a pele’, demonstrando ter recebido de Monteiro Rossi os necrológios e efemérides fortemente politizados sem nunca ter 3. No entanto, o subtítulo aparece na tradução inglesa – A Testimony. 4. Não é a primeira vez que António Tabucchi classifica os seus romances através de um subtítulo: já o tinha feito no seu romance de 1991 Requiem, que classificou como ‘uma alucinação’. 5. Kurz (1995) avança várias hipóteses interessantes, mas todas elas, na minha opinião, um pouco rebuscadas.

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autorizado a sua publicação; mas, por outro lado, estes mesmos excertos podem ser considerados a favor de uma hipótese contrária: a de Pereira ter conseguido sair de Portugal, provavelmente indo para França (tendo em conta o falso passaporte francês e outras razões que serão adiante apresentadas), e, aí chegado, ter feito um depoimento voluntário e detalhado, denunciando o que se passava em Portugal sob o regime totalitário salazarista, nomeadamente o assassinato de Monteiro Rossi, constituindo os textos apresentados (juntamente com o artigo de Pereira publicado no Lisboa) prova dos factos denunciados. A aceitarmos esta hipótese, Pereira terá feito um depoimento perante um interlocutor compreensivo e interessado em ouvir e escrever este testemunho; alguns excertos podem ser apresentados em favor desta hipótese: [3] Nessa tarde, afirma Pereira, teve um sonho. Um sonho lindíssimo, com a sua juventude. Mas prefere não o revelar, porque os sonhos não se devem revelar, afirma. Reconhece apenas que era feliz e […] com ele estava uma pessoa cuja identidade prefere não revelar. (AP: 80-81) [4] […] o sonho continuava […], mas Pereira prefere não dizer como continuava, porque o seu sonho nada tem a ver com esta história, afirma. (AP: 110) [5] Passou uma boa parte da tarde deste modo, pensando na infância, mas é um assunto de que Pereira prefere não falar, porque nada tem a ver com a história, afirma. (AP: 175)

Ora estas declarações, e em particular os segmentos ‘prefere não o revelar’, ‘cuja identidade prefere não revelar’, ‘Pereira prefere não dizer como continuava’ ou ‘é um assunto de que Pereira prefere não falar’, implicam que Pereira não é de modo nenhum obrigado a dizer o que não quer, o que exclui portanto a hipótese de um interrogador hostil, que, nesta conjuntura, seria a polícia política; ao mesmo tempo estas declarações revelam que Pereira só quer falar daquilo que é relevante para ‘esta história’, o que é consistente com a hipótese do depoimento voluntário, perante um interlocutor compreensivo e interessado em saber o que se passava em Portugal sob o regime totalitário salazarista. Acresce a isto que as últimas frases do filme de Roberto Faenza Sostiene Pereira, cujo argumento foi escrito por Faenza e pelo próprio Tabucchi, – frases essas que são ditas por uma voice over –, traduzidas para português diriam sensivelmente o seguinte: E para lembrar tudo isto, ele desejava realizar um sonho, um sonho muito belo, de olhos abertos, mas Pereira prefere não falar desse sonho, pois, se o quisesse fazer, tê-lo-ia contado a quem vos contou esta história (sublinhado nosso). Embora o filme seja o filme e o romance seja o romance, não devemos esquecer que Tabucchi é co-autor do argumento, e estas palavras parecem jogar definitivamente a favor da hipótese do depoimento voluntário, e, mais do que isso, parecem sugerir que esse depoimento terá sido feito perante alguém que lhe merece toda a confiança. De qualquer dos modos, Afirma Pereira é um testemunho, tal como o autor diz. E, embora a trama do romance pudesse ser exactamente a mesma se não fosse usado o discurso indirecto, o processo narrativo e o processo interpretativo do romance seriam completamente diferentes se não houvesse o recurso ao discurso indirecto: a cataforicidade que mantém o leitor em suspense logo desde o início até ao final (aberto) do romance perder-se-ia por completo. É que, de facto, o discurso indi-

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recto que perpassa todo o romance constitui uma técnica narrativa que Tabucchi domina com extrema sofisticação, lembrando constantemente e estrategicamente o leitor que está perante um relato de discurso. Assim, Tabucchi evita, por um lado, o narrador omnisciente; por outro, evita a narrativa na primeira pessoa, com Pereira provavelmente como narrador autodiegético, o que levantaria questões auto-referenciais6. Ao fazê-lo, obtém o melhor dos dois mundos: consegue fornecer no romance toda a informação sobre o protagonista, o que é característico do narrador omnisciente, e, simultaneamente, consegue contar a história do ponto de vista de Pereira sem lhe dar o estatuto de narrador7.

Lisboa em 1938 Ao contrário das outras obras de Antonio Tabucchi que constituem o que Fraticelli (2001: 256) considera a ‘trilogia de Lisboa‘ (Any where out of the world, Afirma Pereira e Requiem), Afirma Pereira é um romance bem ancorado no espaço e tempo. Tudo se passa no Verão de 1938, quando a 2º Guerra Mundial está prestes a eclodir e a situação em Portugal se torna cada vez mais perigosa para os opositores ao regime salazarista. Segundo Fraticelli (ibid.: 252), apesar do seu subtítulo (Una Testimonianza), Afirma Pereira é pura ficção, criada por um autor que conhece bem Lisboa (e a sua História). No entanto, esta ficção é tomada por muitos leitores como um texto-documentário sobre Lisboa em 1938, não só pelo facto de o enredo ser perfeitamente plausível, mas também porque Antonio Tabucchi parece estar muito empenhado em apresentar representações pormenorizadas de lugares, rotinas, acontecimentos e personagens-tipo (Kurz, 1995: 415), criando ao mesmo tempo uma rede de referências a personalidades importantes da cultura portuguesa (e não só). Apesar destes pormenores, a maior parte dos críticos e o próprio Tabucchi8 consideram Afirma Pereira não como um romance histórico ou político, mas como um romance existencial ou um romance de introspecção psicológica (Yee, 2003:1; Fraticelli, 2001: 253 e ss.; Fernández, 2002-2003: 161-162). Seja como for, o romance mostra-nos uma boa imagem de Lisboa (e Portugal) da época. Exceptuando duas saídas – uma para as termas de Buçaco e outra para a clínica talassoterápica na Parede – Pereira move-se principalmente na baixa de Lisboa: mora na Rua da Saudade, o seu escritório fica situado na Rua Rodrigo da Fonseca perto da Rua Alexandre Herculano, e frequenta o Café Orquídea, perto do Largo do Rato; há também referências a um restaurante no Rossio, onde Pereira vai uma vez com Monteiro Rossi, e ao British Bar no Cais do Sodré, onde 6. Fernández (2002-2003: 173) refere que, com esta técnica, Tabucchi consegue uma espécie de objectivação do ‘eu’. 7. Para comprovar que, com esta técnica, Tabucchi evita o narrador omnisciente e o narrador na primeira pessoa, conseguindo ao mesmo tempo, o melhor dos dois mundos, vide, por exemplo, os seguintes excertos: Afirma Pereira que lhe ocorreu uma ideia louca, mas que talvez pudesse pôr em prática, pensou (AP: 203), ou Afirma Pereira que só nesse momento compreendeu que se tratava de uma festa salazarista, e por isso não precisava de ser vigiada pela polícia. E só então reparou que muitas pessoas vestiam a camisa verde e traziam um lenço ao pescoço. Deteve-se apavorado, e num segundo pensou em várias coisas diferentes (AP: 22). 8. Numa entrevista concedida a Rui Martins (2002), Antonio Tabucchi diz: Para mim, tratava-se de acompanhar os tormentos de consciência do jornalista Pereira. Eu não atribuía ao relato uma dimensão política, mas uma dimensão existencial. Porém, com a eleição de Berlusconi, meu livro foi adotado como uma espécie de símbolo de resistência ao totalitarismo.

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também almoça uma vez com Monteiro Rossi. De acordo com Fraticelli (2001: 254), estas referências precisas a lugares revelam a intenção do autor de atribuir plausibilidade ao enredo (não esqueçamos que o autor classifica o romance, no seu subtítulo, como um testemunho). Além disso, Fraticelli (2001: 257) considera ainda que estes detalhes sobre a cidade de Lisboa, juntamente com outros detalhes sobre rotinas, clima, gastronomia e personalidades culturais, formam uma rede de códigos que nos fazem ver a cidade como um macrocosmos, e o seu habitante (neste caso, Pereira) como um microcosmos. De facto, na narração das rotinas de Pereira, a presença do setting parece ser tão forte que, por vezes, parece assumir o primeiro plano, deixando o protagonista em segundo plano: [6] Apanhou o eléctrico até à Alexandre Herculano e depois subiu a custo até à Rodrigo da Fonseca. Quando chegou junto da entrada estava ensopado em suor, pois estava um dia tórrido. (AP: 37)

As referências constantes a ruas e outros lugares da cidade estão frequentemente associadas ao calor extremo que sufoca Pereira, mas o que realmente é sufocante não é o calor, mas a escalada de intimidação, repressão e violência visível em toda a cidade de Lisboa: [7] Pereira afirma que naquela noite a cidade parecia nas mãos da polícia. Estavam em todo o lado. Tomou um táxi até ao Terreiro do Paço e debaixo das arcadas viam-se camionetas e guardas com espingardas. Talvez temessem manifestações ou concentrações de rua, e por isso controlavam os pontos estratégicos da cidade. Gostaria de ter continuado a pé, porque o cardiologista lhe tinha dito que precisava de andar, mas não teve coragem de passar diante daqueles militares sinistros, e por isso apanhou o eléctrico que seguia pela Rua da Prata e que parava na Praça da Figueira. Aqui desceu, afirma, e encontrou mais polícia. Desta vez teve de passar diante do pelotão, o que lhe provocou um ligeiro mal-estar. Ao passar ouviu um oficial dizer aos soldados: e lembrem-se rapazes que os subversivos estão sempre emboscados, é melhor estar de olhos abertos. (AP: 21) [8] Pereira sabia que os mercados andavam agitados, porque no dia anterior, no Alentejo, a polícia tinha matado um carroceiro que abastecia os mercados e era socialista. Por isso a Guarda Nacional Republicana estava estacionada diante dos portões do mercado. Mas o “Lisboa“ não tivera coragem de dar a notícia, ou antes o sub-director, porque o director estava de férias no Buçaco […], e quem teria coragem de dar uma notícia do género, que um carroceiro socialista tinha sido assassinado no Alentejo na sua carroça e tinha salpicado de sangue todos os seus melões? Ninguém, porque o país calava-se, não podia fazer mais nada senão calar-se, e entretanto as pessoas morriam e a polícia fazia o que queria. Pereira começou a suar […]. (AP: 15) [9] Saíu para a luz deslumbrante do meio-dia e dirigiu-se para o Café Orquídea. Quando passou frente ao talho judeu viu um ajuntamento de pessoas e deteve-se. Reparou que a montra estava estilhaçada e que na fachada tinham pintado palavras que o homem do talho estava a cobrir com tinta branca. Furou o ajuntamento e aproximou-se dele, conhecia-o bem, o jovem Mayer, […]. David, perguntou Pereira aproximando-se, o que é que se passa? É o que o senhor vê, doutor Pereira, respondeu David limpando as mãos sujas de tinta no avental, vivemos num mundo de patifes, isto é obra de patifes. Chamou a polícia? perguntou Pereira. Está claro que não, exclamou David, para quê? E recomeçou a cobrir as palavras com tinta branca. Pereira dirigiu-se ao Café Orquídea e sentou-se na parte de dentro, em frente da ventoinha.

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Pediu uma limonada e despiu o casaco. Já viu o que se passa, senhor doutor Pereira?, disse o Manuel. Pereira olhou-o espantado e perguntou: o talho judeu? Qual talho judeu, respondeu Manuel afastando-se, o pior não é isso. (AP: 58-59)

Para além de serem representativos daquele Verão de 1938 em Lisboa, estes excertos revelam simultaneamente a impotência de Pereira face ao que acontece à sua volta. Os excertos 8 e 9 também associam a opressão ao calor, e o excerto 9 faz referência a uma espécie de Kristallnacht de pequenas dimensões. No excerto 9, a resposta do empregado de mesa, Manuel, à pergunta de Pereira sobre o talho judeu indicia o facto de que não é pela imprensa que se sabe o que realmente acontece, mas sim por observação directa ou por relato oral. Isto é claro em todo o romance: o próprio Pereira – e não esqueçamos que Pereira é jornalista –diz: aliás pelos jornais nunca se sabe nada, o melhor é perguntar as notícias que correm por aí (AP: 81), e é por isso que faz constantes perguntas ao empregado de mesa do Café Orquídea e também ao Padre António, que, para espanto de Pereira, lhe explica tudo sobre a controvérsia que reina na Igreja Católica e no Vaticano por causa da Guerra Civil de Espanha (AP: 147-149). Impotência, resignação ou mesmo indiferença estão particularmente patentes nas palavras de Silva, um velho amigo com quem Pereira se encontra no Buçaco. Silva, que é professor na Universidade de Coimbra, exprime os seus pontos de vista sobre a situação em Portugal (para espanto de Pereira) do seguinte modo: [10] Não te preocupes [com o que está a acontecer na Europa] […], aqui não estamos na Europa, estamos em Portugal. […] A Espanha também fica longe […], nós estamos em Portugal. […] Ouve lá, Pereira, […] tu ainda acreditas na opinião pública?, pois olha, a opinião pública é um truque inventado pelos anglo-saxões, os ingleses e americanos, eles é que nos vieram com essa merda […] dessa ideia da opinião pública, nós nunca tivemos o sistema político deles, não temos a mesma tradição, não sabemos o que são ‘trade unions’, somos gente do Sul, Pereira, e obedecemos a quem grita mais, a quem manda. […] Eu ensino literatura e de literatura sei alguma coisa, estou a fazer uma edição crítica dos nossos trovadores, as cantigas de amido, não sei se te lembras da universidade, pois bem, os homens partiam para a guerra e as mulheres ficavam em casa a chorar, e os trovadores faziam recolhas desses lamentos, e o rei era quem mandava, compreendes?, o chefe era quem mandava, e nós sempre tivemos necessidade de um chefe, ainda hoje precisamos de um chefe. (AP: 65-66)

As opiniões de Silva coincidem perfeitamente com as do ditador Salazar: Portugal devia permanecer isolado do resto da Europa9; quanto menos educados e informados fossem os portugueses, mais fácil era governar; e qualquer tipo de mudança era encarado com suspeição e imediatamente rejeitado. Depois desta conversa com Silva, Pereira afirma ter-se sentido muito cansado (AP: 67). De facto, no meio da atmosfera sufocante de Portugal sob o regime totalitarista de Salazar, Pereira sente necessidade de algum tipo de orientação – orientação essa que só poderia vir de intelectuais portugueses –, mas não a encontra: professores universitários, como Silva, apoiam o regime, e Pereira não consegue 9. Mais tarde, quando Portugal estava envolvido na Guerra Colonial em África (e não só), Salazar reagia às críticas da opinião pública europeia dizendo que Portugal devia estar ‘orgulhosamente só’.

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entrar em contacto com os intelectuais que sabe serem contra o regime. Uma vez convida Monteiro Rossi para almoçar num restaurante no Rossio, supostamente o ponto de encontro de escritores, mas não encontram lá nenhum escritor; mais tarde, quando Pereira vai com Monteiro Rossi ao British Bar no cais do Sodré, o romancista Aquilino Ribeiro e o desenhador de vangurda Bernardo Marques estão sentados na mesa ao lado, mas Pereira não tem coragem de os abordar, por muito que o quisesse fazer, e, realmente, é com alguma desilusão que ouve Bernardo Marques dizer que já não tem vontade de desenhar porque isto é um país horroroso e Aquilino Ribeiro dizer que vai deixar Portugal e partir para Paris (AP: 106). Entretanto a censura continua, os jornais saem com grandes espaços em branco (AP: 131), e mesmo intelectuais importantes como António Ferro aderem ao regime: Ferro é o poderoso Director do Secretariado Nacional da Propaganda de Salazar e teve a ideia de fazer coincidir o Dia de Camões com o Dia da Raça. Isso leva imediatamente o director do Lisboa a mandar Pereira escrever uma efeméride sobre Camões, o que, por sua vez, leva Pereira a objectar que o Dia de Camões é o 10 de Junho, por isso não faz sentido comemorar o Dia de Camões no fim de Agosto. Além disso, e no que concerne à ‘raça portuguesa’, Pereira replica: [11] […] nós na origem éramos lusitanos, depois tivemos os romanos e os celtas, depois tivemos os árabes, que raça é que nós portugueses podemos comemorar? (AP: 187), ao que o director responde [12] A raça portuguesa […]. […] nós somos portugueses, descobrimos o mundo, realizámos as maiores navegações do globo, e quando o fizemos, no século dezasseis, já éramos portugueses, é isso que nós somos e é isso que deve comemorar, Pereira. (AP: 187)

Isto exemplifica perfeitamente o modo como Portugal em 1938 tentava copiar os maneirismos e as práticas do fascismo na Europa, revelando ao mesmo tempo a já bem conhecida característica da mentalidade portuguesa que consiste em estar constantemente presa aos feitos do passado, o que impede o país de encarar o futuro10. Pereira, claro, não tem outra alternativa a não ser obedecer ao director, mas reage a esta conversa com os seguintes pensamentos: [13] O António Ferro, pois, pensou, o pior é que era um homem inteligente e arguto, e pensar que tinha sido amigo de Fernando Pessoa, bem, concluiu, também aquele Pessoa escolhia uns belos amigos. […] Camões que fosse também para o diabo, pensou, o grande poeta que cantou o heroísmo dos portugueses, mas qual heroísmo, disse Pereira para si mesmo. (AP: 188)

O excerto 13 demonstra que o desapontamento de Pereira com os intelectuais portugueses se está a transformar em fúria. Neste ponto, é conveniente recordar um episódio anterior: a conversa entre Pereira e a Senhora Delgado na viagem de comboio de Buçaco para Lisboa. Nessa conversa, a Senhora Delgado, que era judia-alemã e tinha ascendência portuguesa, tinha argumentado que Pereira, como jornalista, devia denunciar o que se passava em Portugal e tinha referido o exemplo 10. Para um estudo detalhado desta característica vide Lourenço (2004) e Gil (2004).

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do escritor alemão Thomas Mann (AP: 72-75). Por isso, talvez agora Pereira já tivesse feito algum tipo de comparação entre a atitude dos intelectuais portugueses e a de outros intelectuais europeus. De qualquer modo, o que foi explicitado e citado nestes últimos parágrafos parece vir ao encontro da opinião de Fraticelli de que, para se entender verdadeiramente a visão que Pereira (ou Tabucchi) tem de Lisboa em 1938, é necessário decifrar uma rede de códigos literários que perpassa este romance (Fraticelli, 2001: 257 e ss.)11.

A Confederação das Almas Tal como já foi referido, o encontro entre Pereira e o Dr. Cardoso (que se deu na clínica talassoterápica) marca um ponto de viragem no romance, na medida em que o Dr. Cardoso lhe explica a teoria da confederação das almas, e, com base nessa teoria, prevê uma profunda mudança na vida de Pereira. Vejamos então como o Dr Cardoso explica esta teoria: [14] […] Théodule Ribot e Pierre Janet […] são médicos e psicólogos, mas também filósofos, defendem uma teoria que me parece interessante, a da confederação das almas. […] Acreditar que somos uma unidade independente, destacada da incomensurável pluralidade dos próprios eus, representa uma ilusão, aliás ingénua, de uma alma única de tradição cristã, o doutor Ribot e o doutor Janet vêem a personalidade como uma confederação de várias almas, porque a verdade é que temos várias almas dentro de nós, uma confederação que aceita o domínio de um eu hegemónico. […] O que se chama a norma, ou o nosso ser, ou a normalidade, é apenas um resultado, não uma premissa, e depende do controlo de um eu hegemónico que se impôs na confederação das nossas almas; caso surja um outro eu, mais forte e mais poderoso, ele vai destronar o eu hegemónico e tomar o seu lugar, passando a dirigir a coorte das almas, ou melhor, a confederação, e essa superioridade mantém-se até ser destronado por seu turno por outro eu hegemónico, por ataque directo ou por uma paciente erosão. Talvez, concluiu o doutor Cardoso, depois de uma paciente erosão haja um eu hegemónico que está a assumir a chefia da confederação das suas almas, doutor Pereira, e o senhor não pode fazer nada, o mais que poderá fazer é apoiá-lo. (AP: 124-125)

O novo ‘eu’ hegemónico que, na opinião do Dr. Cardoso, irá dirigir a coorte das almas de Pereira terá surgido depois de Monteiro Rossi e a sua namorada Marta terem entrado na vida de Pereira (AP: 123-124), e o processo de destronização parece ser por via de ‘uma paciente erosão’. Este processo irá culminar no fim do romance quando Pereira finalmente toma posição contra o que está a acontecer em Portugal. Entre esta explicação do Dr. Cardoso e o final do romance, o processo de ascensão do novo ‘eu’ hegemónico é lento e, do meu ponto de vista, marcado por quatro fases. Primeiro, Pereira fala sobre este assunto com a fotografia da sua falecida esposa (o que é um hábito frequente em Pereira), e diz-lhe que não está muito convencido (AP: 132). Depois vai visitar o padre António e também lhe fala do assunto (AP: 145 e ss.): tal como seria de esperar, a reacção do padre António é de total rejeição da teoria de Ribot/Janet, visto acreditar que a alma é una e indivisível e, por conseguinte, classifica a teoria da confederação das almas como heresia (AP: 146); mas, nesta fase, Pereira já está um pouco mais convencido e contra-argumenta 11. Opinião semelhante também em Kurz (1995: 417).

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que, se se substituir a palavra ‘alma’ pela palavra ‘personalidade’, a teoria deixa de ser heresia, e acrescenta ainda que está convencido de que não temos uma única personalidade, temos várias personalidades que coexistem entre si sob a direcção de um eu hegemónico, e confessa que se sente diferente do que era há alguns meses atrás (ibid.). Talvez por causa dessa mudança, Pereira tem coragem para publicar na pagina cultural do Lisboa a sua tradução do conto de Alphonse Daudet La dernière classe, que termina com as palavras ‘Vive la France’; embora Pereira não assine a tradução (aliás não costumava assinar as suas traduções, mas era sabido que era ele o responsável pela página cultural), o que é facto é que as palavras ‘Vive la France’, mesmo usadas noutro contexto (no caso do conto em questão, o da Guerra Franco-Prussiana) e escritas por outra pessoa, eram perigosas na altura, porque eram consideradas contra a Alemanha e qualquer tipo de crítica à Alemanha era proibido na altura (AP: 130-131); e, no entanto, Pereira admite ter sentido uma grande satisfação ao ler a sua tradução publicada no jornal (AP: 155, 157). A quarta fase, a mais complicada, é marcada pela conversa com o Dr. Cardoso no Café Orquídea: o médico diz-lhe que vai deixar Portugal para ir trabalhar numa clínica em Saint-Malo; Pereira reage pedindo ao Dr. Cardoso que não saia de Portugal porque o país precisa de pessoas como ele, mas o que o preocupa não é apenas o país, mas ele próprio, i.e., pressente que, sem a ajuda do Dr. Cardoso, vai ser muito difícil aguentar sozinho o processo de ascensão do ‘eu’ hegemónico (AP: 156 e ss.). Nesta conversa, o Dr. Cardoso vai um pouco mais longe no diagnóstico do processo de mudança de Pereira, quando admite que, no momento em que o novo ‘eu’ hegemónico vier à superfície, Pereira irá fazer muito mais do que ajudar Monteiro Rossi e Marta; o problema parece ser que Pereira tem um forte super-ego que continua a resistir, e por isso é que o conflito interno se arrasta (AP: 159-160). Esta conversa e o facto de o Dr. Cardoso ir deixar Portugal (o que eu considerei como a quarta fase) têm um efeito decisivo: Pereira fica completamente sozinho, sem qualquer orientação – e, como vimos, Pereira já tinha procurado orientação junto de intelectuais, mas nada tinha conseguido – e provavelmente só sozinho é que Pereira pode resolver o seu conflito interior: depois desta conversa, Pereira afirma ter sentido uma grande saudade e ter pensado que quando estamos verdadeiramente sós é o momento de nos medirmos com o nosso eu hegemónico que procura impor-se à coorte das almas (AP: 161). No que concerne à teoria da confederação das almas, impõem-se algumas observações. Um aspecto interessante é que o Dr. Cardoso usa a palavra ‘alma’, assim como também usa a palavra ‘ego’ ou ‘super-ego’ e justifica-se dizendo que é um sincretista, e, por isso, foi buscar umas coisas aqui outras acolá, incluindo a Freud (AP: 159). E se não nos cingirmos a Afirma Pereira e pesquisarmos noutros romances do autor, verificamos que Tabucchi parece brincar um pouco com estes conceitos, particularmente em Requiem. Uma Alucinação (R). Aqui, encontramos a seguinte conversa entre o narrador e o Cauteleiro Coxo, uma personagem do Livro do Desassossego (assinado pelo heterónimo de Pessoa, Bernardo Soares): [15] […] estou a ler um artigo de um filósofo francês sobre a alma, é curioso voltar a ler coisas sobre a alma, durante muito tempo ninguém mais falou dela, pelo menos desde a década de quarenta, agora

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parece que a alma está outra vez na moda, estão provavelmente a descobri-la, eu não sou católico mas acredito na alma num sentido vital e colectivo, talvez numa concepção espinoziana, o senhor acredita na alma? É uma das poucas coisas em que acredito, disse eu, […] quer dizer, não sei bem se é a alma , talvez seja o Inconsciente […]. Alto lá, disse o Cauteleiro Coxo, o Inconsciente, o que é que isso quer dizer?, o Inconsciente pertence à burguesia vienense do princípio do século, aqui estamos em Portugal e o senhor é italiano, nós pertencemos ao Sul, à civilização greco-romana, não temos nada a ver com a Mitteleuropa, desculpe, nós temos a alma. É verdade, disse eu, eu tenho a alma, está certo, mas também tenho o Inconsciente, quer dizer, agora já tenho o Inconsciente, sabe, o Inconsciente apanha-se, é como uma doença, eu apanhei o vírus do Inconsciente, acontece. (R: 17-18)

Vale a pena frisar a vasta e rica intertextualidade presente neste excerto: a rejeição de conceitos e terminologia freudianos é veiculada por uma das personagens de Pessoa, ou antes de um dos heterónimos de Pessoa; Tabucchi vai buscar esta personagem e inclui-a em Requiem. Uma Alucinação; ora este Cauteleiro Coxo recorda que se falou da alma até à década de quarenta – e recorde-se que a acção de Afirma Pereira decorre em 1938 – e afirma acreditar na alma num alma num sentido vital e colectivo, o que nos leva à teoria da confederação das almas; e tudo isto vem de uma personagem de um autor como Pessoa, que se desdobrou em múltiplas personalidades: os seus heterónimos. Mesmo tomando a conversa do excerto 15 como uma brincadeira à volta de conceitos e terminologia – eu, pessoalmente, interpreto-a como tal –, é inegável o tributo que Tabucchi presta a Pessoa: em Requiem. Uma Alucinação de modo muito claro, e em Afirma Pereira de modo mais subtil.

Morte e Redenção A morte está constantemente presente neste romance12. Como vimos, logo no princípio do romance, Pereira contrata Monteiro Rossi para escrever elogios fúnebres de escritores ou necrológios antecipados para publicação na Página Cultural do Lisboa; e escolhe Monteiro Rossi precisamente por este ter escrito uma tese sobre a morte. Além disso, há também o facto de Pereira falar frequentemente com a fotografia da sua falecida esposa. Portanto, na sua rotina diária, tanto privada como profissional, Pereira lida constantemente com a morte. Mas há mais, para além disto: Pereira afirma passar bastante tempo a meditar na morte (AP: 9), e parece especialmente perturbado pela a ideia da ressurreição da carne (AP: 16). A sua fixação na morte é ainda agravada pelo medo e pela sensação de impotência perante o clima de repressão e intimidação exemplificados nos excertos 7 e 8. Isto perturba-o de tal modo que chega a perguntar a si próprio em que mundo vive e a pensar que talvez não esteja sequer vivo, talvez já tenha morrido (AP: 17). Sem saber o que fazer, tenta arrepender-se, mas arrepender-se de quê? Mais uma vez, os códigos literários entram em acção: Pereira decide traduzir Honorine de Balzac, um conto sobre o arrependimento […] que seria publicado em três ou quatro episódios (AP: 79), acha que aquele conto sobre o arrependimento seria como uma men12. De facto, a morte tem também uma presença importante em outros romances do autor, tais como Requiem. Uma Alucinação e em The Missing Head of Damasceno Monteiro.

Morte em Lisboa: Afirma Pereira de Antonio Tabuchi

sagem numa garrafa que alguém poderia recolher (ibid.), e diz ao Dr. Cardoso que se reconheceu a si próprio neste conto (AP: 122); ao mesmo tempo, também diz que não se sente culpado de nada em especial, mas que sente vontade de se arrepender, sente saudades de se arrepender (AP: 123). Mais tarde, quando vai visitar o padre António, mostra vontade de se confessar, mas, como não cometeu nenhum pecado, recebe como resposta do padre que, se não cometeu nenhum pecado, não o faça perder tempo (AP: 146). Há inegáveis traços de ironia e humor em tudo isto: Monteiro Rossi é contratado por ter escrito uma tese sobre a morte, mas a tese, em parte, foi copiada13 e a morte não lhe interessa absolutamente nada; as conversas de Pereira com a fotografia da defunta esposa são bastante leves e, por vezes, até divertidas; os seus pensamentos sobre a morte e a ressurreição da carne por vezes redundam numa paródia (AP: 16); o seu desejo de arrependimento é alvo de troça pelo próprio padre António; e, finalmente, mesmo nos relatos dos incidentes que ocorrem sob o regime salazarista, há, por vezes detalhes que parecem propositados para aliviar o seu dramatismo, como no caso do excerto 8. Mas tudo o que foi referido até aqui sobre a morte não passa de pensamentos e relatos; nenhuma morte ocorreu ainda como componente do enredo do romance; a única que ocorre é a de Monteiro Rossi, e, em relação a esta, não encontramos quaisquer traços de ironia ou humor. Agora é a sério, e quando os homens que se intitulam de polícia política saem do apartamento e Pereira descobre que Monteiro Rossi foi espancado até à morte no seu quarto por dois dos homens, enquanto o terceiro impedia Pereira de intervir, o seu primeiro pensamento foi que tinha de se despachar, despachar mesmo, agora já não tinha muito tempo (AP: 200). Assim, a morte de Monteiro Rossi leva a que Pereira passe finalmente do pensamento à acção, e o modo como age é rápido e demonstra um notável e inesperado auto-controle. Tal como já foi referido acima, Pereira consegue iludir a censura e publicar o seguinte artigo no Lisboa em que denuncia o assassinato de Monteiro Rossi e incita as autoridades competentes a explicar cabalmente quem é responsável por tais actos de violência:

[16] Assassinado um jornalista Chamava-se Francisco Monteiro Rossi, era de origem italiana. Colaborava no nosso jornal com artigos e necrológios. Escreveu vários textos sobre escritores a nossa época, como Maiakovski, Marinetti, D’Annunzio, Garcia Lorca. Os seus artigos não foram ainda publicados, mas talvez o sejam um dia. Era um rapaz alegre, que amava a vida e que todavia fora encarregado de escrever sobre a morte, tarefa a que não se furtou. E esta noite a morte veio procurá-lo. Ontem à noite, quando jantava em casa do director da página cultural do ‘Lisboa‘, o doutor Pereira, que escreve este artigo, três homens armados irromperam pela casa dentro. Declararam pertencer à polícia política, mas não mostraram nenhum documento 13. Monteiro Rossi confessa que a tese tem partes copiadas de Feuerbach e de um espiritualista francês, e diz que o professor não se apercebeu e que os professores são mais ignorantes do que se pensa (AP: 24).

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que o confirmasse. Inclinamo-nos a excluir a possibilidade de se tratar realmente da polícia, pois estavam vestidos à paisana e porque acreditamos que a polícia do nosso país não use tais métodos. Eram verdadeiros facínoras, que actuavam com cumplicidades que desconhecemos, e seria bom que as autoridades indagassem sobre este ignóbil acontecimento. Eram chefiados por um homem magro e baixo, de pêra e bigode, que os outros tratavam por chefe. Os outros dois foram identificados pelo chefe, que várias vezes os chamou pelo nome. Se os nomes não eram falsos, chamavam-se Fonseca e Braga, são ambos altos e robustos, de tez escura e aspecto pouco inteligente. Enquanto o homem magro e baixo mantinha sob a ameaça de uma arma o autor deste artigo, o Fonseca e o Braga arrastaram Monteiro Rossi para o quarto para o interrogarem, segundo eles próprios declararam. Quem assina este artigo ouviu pancadas e gritos sufocados. Depois os dois homens disseram que o trabalho estava feito. Os três abandonaram precipitadamente a casa do abaixo-assinado, ameaçando-o de morte caso divulgasse o que aconteceu. O autor deste artigo dirigiu-se ao quarto, mas já nada pôde fazer, limitando-se a constatar a morte do jovem Monteiro Rossi. Tinha sido espancado brutalmente, e os golpes, desferidos com uma matraca ou a coronha de uma pistola, tinhamlhe fracturado o crânio. O seu corpo encontra-se actualmente no segundo andar do número 22 da Rua da Saudade, em casa do abaixo-assinado. Monteiro Rossi era órfão e não tinha família. Estava apaixonado por uma bonita e doce rapariga cujo nome desconhecemos. Apenas sabemos que tinha o cabelo dourado e que amava a cultura. A esta rapariga, caso nos esteja a ler, apresentamos os nossos mais sinceros sentimentos e a nossa afectuosa saudação. Apelamos às autoridades competentes para que investiguem atentamente estes episódios de violência que à sua sombra, e talvez com a cumplicidade de alguém, se perpetuam hoje em Portugal. (AP: 204-205) Imediatamente após o assassinato de Monteiro Rossi, o medo e a sensação de impotência que dominavam Pereira dão lugar a uma tomada de posição em relação ao que estava a acontecer em Portugal – algo que o Dr. Cardoso, a Senhora Delgado e até o empregado de mesa do Café Orquídea, Manuel, há muito esperavam –, e esta mudança é visível. Depois de escrever o artigo e fazer os preparativos para a sua publicação sem a interferência da censura, Pereira vai ao Café Orquídea, bebe um cálice de Porto (em vez da habitual limonada), e fuma um charuto como que para celebrar, não a morte de Monteiro Rossi, claro, mas para celebrar a sua própria mudança. Manuel, que o conhece bem, apercebe-se de imediato dessa mudança e comenta-a dizendo que acha que o Dr. Pereira está melhor (AP: 206). Ambos falam também sobre as notícias da Rádio Londres e Pereira sente-se suficientemente à vontade para dizer que acha que os ingleses têm razão quando dizem que Portugal vive numa ditadura e que a polícia tortura pessoas (AP: 206). Pereira está evidentemente consciente de que tem que deixar o país antes de o Lisboa sair e o seu artigo ser lido, e é exactamente isso que faz. E fá-lo, não com saudade, mas antes com o sentimento de que está de certo modo redimido da inércia que o tinha dominado. No final do romance, Pereira demonstra coragem e determinação: tinha testemunhado um assassinato e tinha-o denunciado publi-

Morte em Lisboa: Afirma Pereira de Antonio Tabuchi

camente. Assim, fez mais do que os intelectuais portugueses que admirava e de quem tanto esperava.

Nota Final Apesar de o objecto de análise deste artigo ser uma obra de ficção, consideroa altamente representativa de Lisboa naquele Verão de 1938, particularmente porque Tabucchi parece profundamente empenhado em fornecer minuciosos detalhes sobre lugares, pessoas e acontecimentos, que, de facto existiram. Esta forte ancoragem espácio-temporal confere assim ao romance um certo grau de verosimilhança. Por isso, tal como vimos acima, é considerado por alguns autores como um texto-documentário. Quanto ao resto, i.e., quanto ao enredo, é ficção, sem dúvida, mas, pondo a questão em termos muito simples, se não aconteceu, poderia ter acontecido.

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Representações de Portugal com Testemunhos de Celebridades: Versões da Cultura Portuguesa numa Campanha Publicitária Elsa Simões Lucas Freitas Universidade Fernando Pessoa

Why do companies spend huge sums to have celebrities appear in their ads and endorse their products? They think celebrities have stopping power. (Belch and Belch)

Introdução A publicidade tem sempre interesse em maximizar a utilização de qualquer estratégia que induza o estado de espírito desejado no seu público-alvo. Os testemunhos de celebridades, cujos efeitos podem ser variados e subjectivos até certo ponto, são certamente uma estratégia eficaz na transmissão de determinados sentimentos que se pretendem associar ao produto anunciado. Portanto, uma escolha correcta de celebridade é essencial, pois pode reforçar poderosamente a mensagem do anúncio e adicionar-lhe uma margem de sugestão e associações individuais, que farão com que este anúncio em particular se torne ainda mais memorável para os espectadores. Testemunhos deste tipo em anúncios fornecem pistas valiosas sobre a forma como um país se vê a si próprio e sobre quais dos seus nomes famosos corporizam as associações e comportamentos positivos que são idealmente associados com os cidadãos portugueses. O objectivo deste artigo – que se integra na área específica de trabalho e docência da autora, ao nível da análise semiótica do discurso publicitário – é analisar, com base num corpus real, uma das estratégias possíveis (e possivelmente mais eficazes) em publicidade de transmitir significados, de uma forma simultaneamente económica a nível de meios utilizados e apelativa para os públicos aos quais se pretende

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dirigir: os testemunhos de celebridades. Para esse efeito, foram seleccionados, em Outubro de 2008, alguns exemplos pouco usuais de utilização de testemunhos de celebridades na campanha publicitária do Banco Privado Português (BPP)1 onde, de uma forma bastante atípica, várias celebridades pertencentes à área cultural (que não o mundo do espectáculo de grande audiência ou personalidades do universo do futebol, mas antes da área da literatura, política e música tradicional portuguesa) transmitem os seus testemunhos pessoais sobre a sua relação com o dinheiro. Em todos os casos, este testemunho é apresentado sob a forma de um texto em página dupla, aparentando ser extraído de um livro, rodeado de uma variedade de objectos pessoais que são referidos no texto, e que ajudam a definir e a ilustrar a individualidade da celebridade cultural em questão. Todos estes testemunhos centram a sua estratégia num texto de tipo argumentativo, onde não predomina o aspecto visual, apresentando assim um ângulo inovador no que diz respeito aos efeitos persuasivos desta estratégia e, simultaneamente, contribuindo para o estabelecimento de um conjunto de valores diferenciados sobre a forma como Portugal e a sua cultura são vistos e representados nestas ‘representações de arte popular’ em que os anúncios se têm tornado.

A utilização de testemunhos de celebridades em anúncios O testemunho de celebridades é usado desde há muito em publicidade – pelo menos desde finais do século XIX – como uma forma eficaz de associar um conjunto de valores desejáveis ao produto ou serviço em questão (Wells et al 1998: 599; Yeshin 2006: 295). Esta estratégia tão disseminada fornece ao público um modelo a seguir (Belch and Belch 2004: 173), isto é, uma versão idealizada do utilizador posicionado dentro da esfera do próprio anúncio, que, por sua vez, está a ser observado pelo utilizador real colocado na esfera exterior. Este posicionamento postula uma situação onde (a) a celebridade simboliza uma forma correcta de ser no que diz respeito ao desempenho social e (b) o receptor da mensagem publicitária concorda com o carácter correcto e apropriado do comportamento da celebridade ao tentar reproduzi-lo em situações do dia-a-dia, através da aquisição de um determinado bem ou serviço. Através do uso de testemunhos de celebridades, os valores culturais vigentes e consensualmente aceites numa determinada sociedade tornam-se visíveis quando são deste modo corporizados num modelo apropriado. Ao estudar as celebridades escolhidas para testemunhar sobre produtos, é possível obter uma imagem nítida sobre a forma como as nossas identidades sociais são construídas e como nos percebemos uns aos outros em interacções sociais (Goddard 1998: 3-4). 1. Esta campanha foi divulgada em Portugal desde a fundação do Banco até ao momento em que este cessou actividade em finais de Novembro de 2008, assumindo os anúncios sempre os mesmos moldes. O corpus de análise seleccionado para este artigo faz referência a apenas alguns anúncios de entre muitos que foram sendo publicados ao longo dos anos no Caderno Principal do Jornal Expresso. Devido à polémica que, ainda no momento da publicação deste artigo, rodeia as circunstâncias do encerramento deste banco, importa esclarecer que os anúncios a esta instituição que aqui se referem foram apenas utilizados como estudo de caso, não devendo ser dessa escolha extraída nenhuma leitura política. A autora agradece à Direcção de Marketing do Banco Privado Português a autorização concedida em 20 de Novembro de 2008 (solicitada e concedida em data anterior ao encerramento do banco) para reproduzir os anúncios analisados neste artigo.

Representações de Portugal com Testemunhos de Celebridades: Versões da Cultura Portuguesa numa Campanha Publicitária

Apesar de esta estratégia, quando devidamente aplicada, com frequência garantir níveis mais elevados de recordação para marcas e mensagens publicitárias (Yeshin 2006: 296), ela pode igualmente ter um resultado oposto até certo ponto: o público tem consciência de que as celebridades estão a ser muito bem pagas para promover o produto ou serviço e a consciência desse facto pode acentuar o cepticismo e a desconfiança (Belch and Belch 2004: 173), dois riscos que a publicidade enfrenta há já muito tempo e que se tornam mais difíceis de ultrapassar com o aumento da literacia publicitária das audiências contemporâneas (Myers 1999: 203-204). É objectivo deste artigo analisar o funcionamento interno de uma campanha publicitária de um banco português que recorre à tão utilizada estratégia de utilização de testemunhos de celebridades mas que, simultaneamente, consegue ter em conta este aumento da familiaridade por parte do público com o sistema publicitário e fá-lo reverter em proveito da mensagem publicitária que está a ser transmitida. Como adiante veremos, a inovação reside no grau de subversão com que a forma é utilizada, o que, por seu lado, vai implicar uma inflexão no tipo de valores que estão a ser propostos. De facto, o objectivo desta campanha não é o de obter uma popularidade generalizada mas sim o de definir com precisão o seu público – e isto é conseguido através da utilização de várias técnicas. Entre elas, podemos apontar (a) a substituição de imagens por texto (de modo a que a habitual narrativa visual assuma aqui a forma de uma narrativa textual); (b) apropriação de características de um outro género; (c) enquadramentos sucessivos que emolduram a narrativa e realçam a sua natureza confessional; (d) utilização de caricaturas em vez de fotografias, que acentuam a proximidade e familiaridade relativamente à celebridade em questão e (e) utilização de elementos visuais concretos e realistas que ilustram / confirmam a história que está a ser contada. As campanhas de bancos e testemunhos de celebridades: uma representação prototípica de valores culturais. As campanhas publicitárias a bancos têm vindo a sofrer algumas alterações. Devido à existência de uma forte concorrência e do um mercado sobrecarregado em termos de oferta, o investimento publicitário tem aumentado, e as tácticas adoptadas também se tornaram mais agressivas. A seguinte citação ilustra a situação no Reino Unido que, em geral, se assemelha aos desenvolvimentos a que temos assistido em Portugal: Ads for financial services were once characterised by understatement and low budgets, but now the major brands are heavily marketed (accounting for four of Campaign’s top 100 brands by total spend). The sector is clearly being transformed by deregulation, mergers, new technology, and new brands. (Myers 1999: 37)

Nos últimos anos, os bancos e as instituições financeiras têm vindo a adoptar um número de estratégias cujo objectivo é o de tornar as instituições e os serviços oferecidos mais próximos e disponíveis para potenciais clientes. A ênfase, hoje em dia, é geralmente colocada nas características personalizadas destes serviços (mesmo se elas foram pensadas para vários segmentos do público), assim como na eficácia e nos rápidos resultados que estes serviços garantirão a quem os utilizar. É

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normalmente esta segunda ênfase que é reforçada pela utilização da celebridade, com um duplo objectivo: (1) demonstrar que a celebridade também usa o serviço (ou que o faria, em caso de necessidade) e (2) sugerir que o seu presente estatuto de celebridade, que normalmente implica qualidades conspícuas tais como riqueza, fama e sucesso profissional é consequência – pelo menos em parte – da sua associação com o banco a favor do qual estão a testemunhar. A fusão entre o banco e a celebridade é, neste caso, idealmente total, num processo muito simples de identificação que funciona nos seguintes moldes: reconhecer da celebridade / desejar ser como ele ou ela / identificar o modo de se tornar como a celebridade / tornar-se um cliente do banco2. Deste modo, estes anúncios normalmente acentuam a exterioridade, ou seja, a parte visível daquilo que significa ser uma celebridade. O stopping power da celebridade é, primeiramente, visual e neste facto reside a vantagem da sua utilização em anúncios, cujo funcionamento interno é uma luta constante contra o tempo. Apenas por estarem presentes, as celebridades correspondem semioticamente a signos (Cook 1992: 233) e têm a capacidade de funcionar como um forma de metáfora visual dinâmica, transferindo as associações desejadas desde o domínio secundário da metáfora (isto é, a celebridade) para o domínio primário – o banco. Celebridades muito utilizadas pertencem com frequência a áreas de elevada visibilidade, tais como futebolistas, actores de séries televisivas bem conhecidas, assim como apresentadores de televisão, que se pretende que transmitam, em poucas palavras, sucesso financeiro para aqueles que têm de ser cuidadosos com a forma como gastam o seu dinheiro.

A campanha BPP: uma nova versão da representação de valores culturais Por diferentes razões, sendo a mais óbvia a de que se estão a dirigir a um nicho de audiência, a campanha do Banco Privado Português apresenta uma abordagem inovadora no uso de testemunhos de celebridades. Virtualmente, poderia mesmo questionar-se se o conceito de ‘testemunho de celebridades’ está realmente a ser utilizado neste caso, já que, como veremos, a forma habitual de aplicação deste tipo de estratégia é quase totalmente subvertida. Para demonstrar a abordagem não-linear desta campanha – em oposição às campanhas tradicionais – cinco anúncios foram seleccionados de entre uma série publicitária que já existia há vários anos. Trata-se de uma campanha que consiste exclusivamente em anúncios de imprensa publicados semanalmente num único suporte, o caderno principal do jornal semanário Expresso. Esta campanha, a única que o Banco Privado Português teve, é referida pela sua direcção de marketing como a ‘campanha dos cronistas’, o que desde logo nos dá algumas pistas sobre o tipo de valores que estão a ser projectados. Embora não existam dados disponíveis sobre a receptividade do público-alvo a esta divulgação, o mero facto de ter havido continuidade e coerência absolutas na forma de o fazer, desde a fundação da ins2. Não se pretende sugerir aqui que as audiências reajam sempre a este esquema simplificado de forma totalmente previsível. Muitos outros factores devem ser considerados quando se avalia a forma como estes anúncios são interpretados pelos públicos e o impacto que acabam por ter nas vendas.

Representações de Portugal com Testemunhos de Celebridades: Versões da Cultura Portuguesa numa Campanha Publicitária

tituição bancária até ao seu encerramento, parece ser um indicador fiável de que a publicidade levada a cabo estaria a ser eficaz. Da mesma forma, o banco parece não ter sentido necessidade de alargar os seus esforços de divulgação a outros meios para além da imprensa, o que reforça a ideia de que se estaria a dirigir a um nicho muito específico de mercado. Os anúncios seleccionados foram (1) a escritora (Agustina Bessa-Luís), (2) o fadista (Carlos do Carmo), (3) o cirurgião (Eduardo Barroso), (4) o poeta e político (Manuel Alegre) e (5) a actriz dos filmes de Manoel de Oliveira (Leonor Silveira). Por questões metodológicas, apenas o anúncio (1) será aqui reproduzido na íntegra3. Para orientação do leitor, serão fornecidos pequenos resumos de cada um dos anúncios: o anúncio (2) apresenta uma série de reminiscências do fadista Carlos do Carmo, especialmente focadas em situações relacionadas com família e amigos. Paratextualmente, são representados dois objectos aos quais 3. Em seguida, reproduz-se o texto do anúncio (1), correspondente à escritora Agustina Bessa-Luís: “Papel Moeda Lembro-me. Por exemplo, lembro-me das conversas à mesa com os meus pais e da maneira como eram tratadas as coisas importantes. O dinheiro, antes de tudo o mais e tudo o que tinha a ver com finanças 1. Nunca se deixava perceber que a época era de franca prosperidade; ou que era tomada uma medida favorável; ou que um negócio tinha sido bem sucedido. Tudo o que pudesse influir no nosso humor, quanto à sensibilidade ao dinheiro, era posto de parte. Nunca sabíamos se podíamos gastar, e assim era-nos imposta uma severidade monacal, nem que fosse preciso anunciar uma regra moral 2. Mais tarde, li uma coisa que me pareceu interessante e que relacionei com as conversas à mesa da minha infância e já depois. Li que, no Banco de Inglaterra, se era tomada uma decisão importante, não era comunicada aos directores até ser posta em prática, para que o poder deles não os orgulhasse demais 3. Mas, de qualquer modo, os mais inteligentes tinham a noção de que a auréola do dinheiro estava a brilhar por cima das suas cabeças e que um dia haviam de subir quanto desejavam e enfim comprar o Jaguar prata. A família, tanto a rural como a burguesa, era muito cautelosa com o dinheiro 4. Falava dele com respeito e nunca os mostrava às crianças nem aos criados. Em geral, o dinheiro circulava em papel, não se usavam cheques. Meu pai tinha uma caderneta de cheques, à antiga, donde arrancava uma folha assinada, de vez em quando, arrancava uma folha assinada, mas eu raramente o via sair-lhe do bolso. A propósito de papel, quando fomos à Roménia no tempo de Ceausescu, aconselharam o meu marido (que era director do Contencioso num banco) a levar no bolso onde punha a carteira um maço de folhas de papel higiénico. Assim, o ladrão que o roubasse, em vez de dinheiro levava o papel. Pareceu-me um tanto estranho que um ladrão não conhecesse o toque do dinheiro, a não ser que estivesse dentro de uma boa carteira. A verdade é que aconteceu tal como foi previsto, e o ladrão levou o papel. Só mais tarde meu marido veio a saber que, na Roménia, o papel higiénico valia mais do que o dinheiro 5. Mas enganei-vos, meus senhores: quem conta isto é John Kenneth Galbraith, e a história passou-se na Rússia. A não ser que tudo fosse inventado, porque a imaginação vale mais do que o dinheiro. E que a palavra vale ouro 6, se eu bem entendi. Agustina Bessa-Luís (Escritora) 1 Já no Banco Privado Português, que só trata de dinheiro, é também este o tema principal em cima da mesa. 2 Também nós temos regras morais, uma delas +e não concedermos crédito. Facto este que ajudou a tornarmo-nos um dos bancos mais capitalizados do mundo no nosso segmento, com capitais próprios de cerca de 200 milhões de Euros. 3 Preferimos também a discrição na área em que somos referência, o Private Banking, que entendemos como Global Wealth Management (activos financeiros, imobiliário, aconselhamento fiscal, artes, etc.), não esquecendo áreas que são importantes e decisivas como o Corporate Advisory e o Private Equity. 4 Prudência nos gastos não é somente uma preocupação de famílias rurais ou burguesas mas de todas as que reconhecem o devido valor ao dinheiro. Foi para evitar qualquer inquietação que o Banco Privado Português criou a chamada Estratégia de Retorno Absoluto que, além de oferecer valorizações reais e potenciais muito competitivas, garante a conservação do capital investido. 5 Já os nossos investidores conhecem o valor exacto do dinheiro e sabem que nós o aplicamos com total independência. 6 Também as nossas palavras podem valer-lhe ouro, só precisa contactar um dos nossos Private Bankers, 213137000 em Lisboa, 226153915 no Porto, ou 0034912972500 em Madrid e descobrir por si mesmo.”

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o artista atribui grande valor sentimental. O anúncio (3), narrado pelo cirurgião Eduardo Barroso, relata em pormenor circunstâncias de deslocações profissionais aos EUA e o que uma tal viagem implicava em termos de planeamento e preparativos monetários antes de os cartões de débito começarem a ser regularmente utilizados. O anúncio (4), correspondente ao testemunho de Manuel Alegre, é um diálogo figurativo e irónico entre o poeta e o Dinheiro, enquanto representante da sociedade de consumo em que vivemos. O anúncio (5) testemunha na primeira pessoa o percurso profissional da actriz Leonor Silveira e o seu relacionamento com o dinheiro como um elemento importante nas suas decisões de vida. Todos estes anúncios apresentam uma disposição semelhante de elementos: são de dupla página, como se fossem um livro aberto. O texto dos anúncios está igualmente apresentado em colunas, como num livro, e em todos eles existem cinco ou seis notas à margem do texto. Colocada acima do texto, existe uma caricatura do cronista – sendo a única excepção o anúncio de Leonor Silveira, onde se usa uma fotografia emoldurada. Novamente em todos eles, encontramos uma variedade de objectos reais (e por vezes de tamanho real), tais como uma gravata, munições de espingarda, rolos de papel higiénico, fotografias, um maço de dólares entre as páginas de um livro, um lustre de cristal, entre outros. O texto termina sempre com a assinatura do autor – excepto no anúncio de Eduardo Barroso, o cirurgião. Tal como foi referido, o facto de esta campanha ter usado apenas um meio e uma única revista para ser divulgada durante vários anos dá-nos indicações precisas sobre o público-alvo que se tentava atingir. Reforça igualmente as características invulgares de uma campanha que, ao contrário da maioria dos testemunhos de celebridades, não se centra nas qualidades visualmente transmitidas da celebridade que utilizam, mas antes na sua vida interior e nos seus pensamentos ociosos sobre dinheiro. De facto, estas celebridades não reflectem sobre o seu relacionamento com um determinado banco, o que faz deslocar a questão do ‘testemunho’. Limitam-se a reflectir sobre dinheiro, usando o formato de livro para o fazer. A opção pelo texto escrito, relegando os elementos visuais para um papel de confirmação que garante a veracidade da história aproveita ao máximo as potencialidades do meio impresso: efectivamente, ler um anúncio numa revista, especialmente no caso de anúncios longos como estes, exige predisposição mental por parte do público (Freitas 2008: 14), assim como tempo para apreciar todos os pormenores. Estes são anúncios para serem lidos com tempo, desfrutando das múltiplas camadas de significação que resultam numa mensagem final unificada. Se olharmos com mais atenção para o anúncio da escritora Agustina Bessa-Luís, podemos ver que o seu texto, de natureza confessional como todos os outros, é preponderante em termos de disposição na página, e apenas as notas à margem introduzem a voz do banco. É como se as palavras de um sábio estivessem a ser comentadas através de pequenos apartes. Desta forma, desloca-se a institucionalidade do discurso para a celebridade convidada, relegando os encómios ao banco para um estatuto (literalmente) marginal. Mesmo o logótipo do banco surge como mais um adereço visual a ilustrar a história: em alguns casos ele surge como um marcador de livros destas ‘páginas

Representações de Portugal com Testemunhos de Celebridades: Versões da Cultura Portuguesa numa Campanha Publicitária

de livros’; noutro dos casos, ele é um quadro utilizado para decorar um cenário teatral no cenário da própria narrativa; noutro, ele é um utensílio para limpar uma espingarda. Deste modo, a identidade visual do banco está embebida na própria narrativa e é dela inextricável, sendo parte do efeito de trompe-l’oeil que o anúncio pretende transmitir. Todas estas estratégias contribuem para o carácter invulgar desta abordagem. A sucessão de enquadramentos contribui para encaixar a narrativa no seio de uma rede de comentários institucionais, como se, numa inversão total de papéis, fosse a instituição bancária a testemunhar a favor do discurso da celebridade. A subtileza desta campanha reside na sua abordagem cultural: a agressividade habitual das campanhas onde figuram celebridades e os seus êxitos é substituída aqui por uma ênfase em nomes portugueses famosos de uma cultura de elite e profissionais de topo (que normalmente não participariam em campanhas publicitárias) e as suas reflexões sobre o dinheiro – um elo de ligação muito subtil com o verdadeiro propósito do anúncio. Daqui a necessidade na insistência nos elementos paratextuais, que são os verdadeiros elos de ligação ao verdadeiro mundo da banca.

Conclusão A escolha da celebridade adequada e o apelo a valores mais relacionados com a cultura transformam-se numa vantagem para esta campanha e para a sua mensagem: esta abordagem de facto descreve o tipo de público que se está a tentar atingir. As outras campanhas que utilizam celebridades promovem normalmente valores internacionais e estereotípicos. De facto, não há muito nestas campanhas que possa ser especificamente descrito como ‘português’ em termos de valores. Normalmente, as celebridades utilizadas noutras campanhas, apesar de serem portuguesas, parecem ser escolhidas devido ao seu apelo universal no que respeita aos valores a serem promovidos. As celebridades são escolhidas de forma a corresponder à mensagem publicitária, já que esta pré-existe à escolha da celebridade que a vai ilustrar. Por outro lado, a presente campanha promove um tipo específico de valores culturais portugueses de elite, uma estratégia que também garante stopping power mas respeita as idiossincrasias distintivas da celebridade, onde o estilo de escrita corresponde ao que sabemos sobre elas: a singularidade na diversidade é aqui promovida. Neste caso, é o discurso institucional que tem de se adaptar à singularidade da celebridade, e não o contrário.

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Anúncio 1 A escritora: Agustina Bessa-Luís

Anúncio 2 O fadista: Carlos do Carmo

Anúncio 3 O cirurgião: Eduardo Barroso

Anúncio 4 O poeta e político: Manuel Alegre

Anúncio 5 A actriz: Leonor Silveira

VELHAS VOZES E NOVOS LUGARES: O DIÁLOGO ENTRE A CULTURA PORTUGUESA E NORTE-AMERICANA NUMA VIAGEM DE EUGÉNIO DE ANDRADE João de Mancelos Universidade Católica Portuguesa Fundação para a Ciência e a Tecnologia

“Le véritable voyage de découverte ne consiste pas à chercher de nouveaux paysages, mais à avoir de nouveaux yeux”. Marcel Proust (1871-1922), A la Recherche du Temps Perdu (1913-1927)

1. Na outra margem do Atlântico Foram mais de trinta dias, centenas de milhas aéreas, e cinco mil quilómetros de automóvel, para cruzar a América do norte, do oceano Atlântico ao Pacífico, numa jornada digna de Jack Kerouac (1922-1969), Bruce Chatwin (1940-1989) ou Bill Bryson (1951). Em 1988, Eugénio de Andrade (1923-2005) viajou através de florestas de sequóias quase tão antigas quanto os primeiros habitantes do continente; ao longo de intermináveis planícies, onde gerações de tribos ameríndias caçaram; e passeou pelas ruas de Brooklyn, que Walt Whitman amava. Nesse percurso, o escritor sofreu temperaturas escaldantes na Califórnia; uma atmosfera outonal na Nova Inglaterra; e ainda apanhou uma nevada digna do inverno mais rigoroso na fronteira do Canadá – várias estações concentradas em cinco semanas (Andrade, 1995: 187). Foi uma jornada impressionante, mesmo para um poeta viajado e erudito – e Eugénio não tardou a escrever acerca dessa experiência. Ainda bem, porque, plasmando a paisagem e as gentes em palavras, nos legou um dos mais singulares relatos contemporâneos de uma tournée literária. Tais impressões de viagem, ora apreciativas, ora disfóricas, estabelecem um contraste nítido entre a realidade geográfica e sócio-cultural do nosso país e a da América do Norte. Vinte anos depois da visita de Eugénio, essas notas, embora algo esquecidas pela crítica, permanecem polémicas e actuais.

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Para analisar a perspectiva deste escritor, pesquisei diversas fontes jornalísticas e poéticas que, em conjunto, permitem reconstituir os principais pontos de interesse da jornada, sem esquecer alguns deliciosos imprevistos. Refiro-me, concretamente, ao artigo “Eugénio On the Road”, de Alexis Levitin (1989: 14-15), publicado no Jornal de Letras, Artes e Ideias; a uma entrevista feita a Eugénio, recolhida na obra Rosto Precário (Andrade, 1995: 175-208); ao apontamento biográfico “Uma Casa para a Poesia”, de À Sombra da Memória (Andrade, 1993: 27-30); e a poemas alusivos a esta visita à outra margem do Atlântico (Andrade, 2005: 469-70, 500). São, pois, escritos ficcionais ou próximos, enquadráveis na literatura de viagens, onde o imaginativo convive frequentemente com o factual, a opinião com a História, e a poesia mistura as águas da verdade com as do fingimento (Disney, 1997: 121).

2. “Bárbaro e fascinante” Eugénio de Andrade foi, a par de Casimiro de Brito (1938), Egipto Gonçalves (1920-2001) ou Isabel Cristina Pires (1953), um dos poetas portugueses contemporâneos mais viajados, tendo no seu passaporte carimbo de países de África, América, Ásia e Europa, com nítida preferência para as regiões mediterrânicas. Havia sempre uma boa razão para o escritor percorrer o mundo: a participação num encontro literário, o simples repouso, ou a procura das paisagens físicas e humanas que inspiraram autores dilectos, como Virgílio (70-19 a.C.) e Horácio (65-8 a.C.). Nesta viagem aos Estados Unidos e ao Canadá, o objectivo inicial de Eugénio e do seu companheiro de jornada, o tradutor norte-americano Alexis Levitin, era cumprir uma dúzia de leituras bilingues, da sua obra poética. Os espaços escolhidos incluíam clubes, associações, centros de arte, e as universidades de Santa Bárbara, Harvard, Brown, Albany, Columbia e Temple, nalgumas das quais existem departamentos de estudos lusófonos (Andrade, 1995: 187). As leituras foram frequentemente seguidas de debate, visando questões como a escrita, a tradução e o gosto literário. Trata-se, portanto, na tipologia proposta por Fernando Cristóvão, de uma viagem erudita, em que imperam a curiosidade intelectual, e a partilha de saber, em instituições vocacionadas para a arte e para o ensino da literatura (Cristóvão, 1999: 48-9). No entanto, à margem desse contacto com os amantes das letras, ocorreram descobertas e imprevistos que concederam uma dimensão extraordinária à visita: o desafio de perceber outros valores e formas de ser. Tal cabe no âmbito da alteridade, um conceito ainda impreciso, porque complexo, mas comum no discurso pós-colonial. Descreve, de modo abrangente, o contacto, diálogo e interacção entre indivíduos e culturas, reflectindo acerca das diferenças, semelhanças e relações. Neste cotejo intervêm aspectos como a língua, gestos, arte, religião, relações sociais, económicas e históricas (Krysinski, 1997: 238-239). Tal permite estabelecer, com possíveis equívocos e ampla margem para o subjectivo, a identidade do Outro. Em simultâneo, ao perceber o Outro e ao ver-se como tal, o Eu reconhece-se como um entre vários, e exercita a auto-compreensão, através do contraste. Neste intercâmbio fluido e recíproco entre o Eu e o Outro, convivem receios e estereótipos, mas tam-

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bém imagens objectivas e interpretações científicas, que exprimem a curiosidade, repulsa ou atracção pela diferença. Na sua viagem pela terra do Outro, a imensidão da paisagem natural estadunidense foi o aspecto que de imediato mais impressionou Eugénio. Como recorda Peirce Lewis, aquilo que os norte-americanos têm a menos de história (do ponto de vista do colonizador, é claro) têm a mais de natureza (Lewis, 1990: 41). Impossível a um poeta telúrico permanecer indiferente a esta experiência – e Levitin alimentou esse gosto, ao escolher percursos junto a zonas emblemáticas do meio natural (o Mississípi e as cataratas do Niágara) ou urbano (como Nova Iorque ou Filadélfia). Nas suas palavras: “A caminho de Providence, em Rhode Island, passamos pelo meio da folhagem colorida do Outono, amarela, laranja e vermelha. Eugénio fica deslumbrado com as florestas intermináveis que existem aqui no Nordeste, a região mais povoada do país. Um amigo disse-lhe que na América não havia árvores, e agora verifica que na América só há árvores!” (Levitin, 1989: 14). Levitin tece ainda um comentário que revela um fenómeno curioso. Ao mostrar um país a alguém, também o anfitrião o contempla de forma mais atenta, perspectivando-se como o Outro, e reparando em aspectos até à época descurados: “(…) à medida que conduzo o meu visitante português de automóvel, de cidade em cidade, dou-me conta de como o meu país é vasto e pouco povoado. (…) Ainda é um país jovem!” (Levitin, 1989: 14). Eugénio reparou nesta magnitude natural e menciona-a num belo trecho do apontamento biográfico “Uma Casa para a Poesia”: “(…) era outono na Nova Inglaterra, e toda a gente sabe como os seus bosques são o paraíso dos esquilos, e as árvores em Vermont e New Hampshire, com a chuva e o vento demorados, ardiam sumptuosamente, num luxo que, se não fora vegetal, seria intolerável” (Andrade, 1993: 27). Por contraste, a paisagem urbana, de uma brutalidade inesperada, perturba-o: Eugénio sempre preferiu os espaços rurais ou marítimos, menos enxameados pelos turistas, e mais convidativos à introspecção, essencial ao labor de escrita. Levitin comenta: “Nova Iorque é um choque. Os traficantes de droga pululam na Oitava Avenida. De vez em quando damos com um mendigo que está deitado no chão, embrulhado num sobretudo roto e em jornais. A escuridão da noite é ameaçadora” (Levitin, 1989: 14). Eugénio transmite esta imagem negativa num dos seus textos mais celebrados, “Fim de Outono em Manhattan”, incluído no volume Ofício de Paciência (1994), surgido seis anos depois da visita aos Estados Unidos. Através da imaginação, o poeta viaja do estuário do Rio Hudson, à Itália de Virgílio e, por fim, à terra-natal, Póvoa de Atalaia: Começo este poema em Manhattan mas é das oliveiras de Virgílio e de Póvoa de Atalaia que vou falar. É à sombra das suas folhas que os meus dias cantam ainda ao sol.

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A sua canção vem do mar, mas é com as cigarras e o trigo maduro que aprendem a morrer. O ar debaixo dos seus ramos dança, alheio à luz suja de Manhattan. (Andrade, 2005: 500)

O poema gera um contraste, não isento de saudade, entre o meio pastoril impoluto e o espaço urbano, resumido na expressão “luz suja”. Porém, os versos finais sugerem a sublimação, através do acto de contemplar o mundo vegetal, limpando o ser humano da asfixia citadina. Estas preocupações ecológicas de Eugénio já haviam sido expressas em poemas como “Ao Miguel, no seu 4º aniversário, e contra o nuclear, naturalmente”, onde demonstra um misto de aflição e desgosto por já não ser possível “pousar num rio os olhos de alegria” (Andrade, 2005: 247). Tal indignação não resulta de um modismo ou do desejo – que o poeta, de resto, nunca teve – de ser politicamente correcto, mas sim de uma fidelidade à terra que permeia toda a sua obra, constituindo a sua linha temática mais vincada. Se a metrópole mais populosa dos Estados Unidos, com oito milhões de habitantes, impressiona disforicamente Eugénio, este encontra, nos espaços típicos de certos bairros étnicos, como Brooklyn, ou nos parques verdejantes, algum conforto. Eugénio equaciona as visões antitéticas, e descreve a cidade nestes termos: Quando Nova Iorque se parece com o que há de mais tranquilo e sereno e campestre em Londres ou em certos filmes de Woody Allen, e isso sucede por exemplo em várias ruas do Central Park, é um encanto; mas quando arreganha os dentes e mostra o ventre podre (e isso pode acontecer ao lado de Times Square ou da Broadway), então é um nojo. Tenho a impressão de que, se tivesse de viver nos Estados Unidos, mais facilmente escolheria São Francisco ou Boston, do que Nova Iorque. Ou então um lugar da costa do Pacífico, Big Sur, por exemplo. (Andrade, 1995: 188) Imagine-se, pois, a surpresa de Eugénio ao encontrar, no coração da grande cidade, um dos seus animais favoritos, o esquilo. Dedica-lhe este breve texto, quase apontamento, na sua proximidade à linguagem oral: Por toda a parte, desde Washington Square que os esquilos me perseguem. Mesmo em Camden, junto ao túmulo de Whitman, vinham com o Outono comer à mão. Mas é de noite que mais me procuram: os olhos negros, continhas acesas. Agora vou deitar-me à sombra do rio até um deles entrar neste poema e fazer a casa. (Andrade, 2005: 469-70)

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Nesta capacidade de condensar numa dúzia de versos, à maneira dos imagistas, um momento revelador ou múltiplas recordações, reside também o talento deste poeta caminhante. A viagem foi recheada de outros imprevistos. Levitin narra um deles, ocorrido em Santa Bárbara: Ao atravessarmos a região descrita por Steinbeck, nas proximidades de Monterey, encontramos um celeiro onde se amontoam dez mil livros velhos. O proprietário, um homem grande, com físico de lavrador, quando sabe que Eugénio é poeta, corre até casa e volta com um grande sorriso, entregando-lhe fotocópias de um poema que escreveu acompanhado pela tradução espanhola. Eugénio agradece ao homem e observa caridosamente que a poesia exige “trabalho e mais trabalho[,] muito trabalho”. (Levitin, 1989: 14) Ao longo da viagem, outros poetas envergonhados, desde uma empregada de hotel a jovens ambiciosos, viriam a prendar Eugénio com as suas primícias. Tendo em conta que o escritor rejeitava, por vezes, e sem a mínima cerimónia, os livros que os autores menos experientes lhe ofereciam, podem sentir-se honrados. Tal é, aliás, revelador de um comportamento dúplice de Eugénio, muito notado no seu círculo de amigos: em Portugal, declinava com frequência, entrevistas, encontros literários, ou idas à televisão; porém, nos Estados Unidos, procura encaixar entre as datas da tournée os convites culturais para jantares e sessões de leitura (Levitin, 1989: 14). Talvez porque, no estrangeiro, o visitante procura, regra geral, agradar aos anfitriões, e se molda às expectativas destes. Já noutros aspectos, Eugénio difere de um viajante típico, até pela sua cultura e sensibilidade atenta aos pormenores mais discretos. Para a generalidade dos turistas estivais, o trajecto diário inclui mais facilmente um aquaparque do que um monumento, e se as discotecas chegam a lotar, o mesmo não acontece com um museu ou galeria. Hodiernamente, as viagens tendem a ser pacotes promocionais, de tal modo mapeadas e sujeitas a um calendário que o espaço e o tempo para a descoberta de si e do Outro é mínimo. Toda a informação é digerida por um(a) guia solícito e sorridente que, ao subtrair o risco de nos perdermos ou a oportunidade para cavaquearmos com os habitantes locais, nos priva também do mais elementar prazer do viajante: a revelação de uma história curiosa, ou de um recanto que não teve a honra de figurar num guia da Lonely Planet. Diferentemente, Eugénio aprecia o convívio com outros escritores, trocando com eles toda a sorte de ideias. Ao mesmo tempo, admira a arte, sobretudo a monumental e a pictórica. Ciente desta preferência, Levitin propõe, em Minneapolis, um itinerário diferente: No dia seguinte, visitamos os museus, admiramos um quadro de cores berrantes, pintado por Francis Bacon, passeamos por um jardim-museu de escultura fundado há pouco tempo, onde apreciamos obras de Moore, Calder e Giacometi, visitamos o Guthrie Theater, o primeiro teatro de província que foi fundado na América (…), passeamos entre arranha-céus de vidro brilhante e percorremos o labirinto de pontes e passagens envidraçadas, suspensas por cima das ruas. (Levitin, 1989: 14)

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Desse contacto com a arte, a poesia detém, como é óbvio, primazia para Eugénio. Por vezes, o viajante, reencontra numa “terra incógnita”, expressão latina usada pelos navegadores, traços daquilo que conhecia e estimava a uma distância espácio-temporal. Foi o que sucedeu quando o poeta peregrino visitou lugares associados a duas vozes antigas que há muito sussurravam nos seus versos – Herman Melville (1819-1891) e Walt Whitman (1819-1892) –, e ainda aos escritores Henry Miller (1891-1980), e ao amigo Jorge de Sena (1919-1978). De todos estes, o bardo de Brooklyn merece-lhe uma estima literária particular, como evidenciam os diversos poemas em que Eugénio o menciona – com destaque, desde logo, para “Walt Whitman e os Pássaros” ou “O Rapazito de York” –, e ainda a dezena de referências elogiosas que lhe tece na sua obra em prosa. O escritor português chega ao ponto de confessar: “(…) em Whitman não foi só a poesia que me seduziu, foi também a personalidade, que é inseparável de quanto o poeta escreveu” (Andrade, 1995: 184). Não surpreende portanto que, após visitar a casa desse escritor e a de Melville, Eugénio afirmasse: (…) qualquer um destes homens teve na minha vida uma importância que pouquíssimos mais tiveram. Qualquer das casas preserva, de várias maneiras, a imagem de quem as habitou, imagem que tive oportunidade de ampliar com estadas em New Bedford (cidade que serviu de modelo a Moby Dick, e onde há um curiosíssimo Museu da Baleia), e em Camden, onde no velho cemitério se encontra Whitman, rodeado pela família, em túmulo que ele próprio desenhou. (Andrade, 1993: 27) Ainda a este propósito, Levitin recorda que, a convite de George Monteiro, professor na Universidade de Brown, Eugénio visita a colecção de livros raros e tem o privilégio de tocar numa edição original de Leaves of Grass. Este momento é precioso do ponto de vista literário e pessoal, por constituir o reencontro de um poeta com uma das suas influências mais nítidas (Levitin, 1989: 14).

3. No desfazer das malas O melhor das viagens é sempre essa salutar perturbação, resultado da diferença de lugares, costumes, línguas., mitosofias e identidades, essenciais para definir o Outro e o Si Mesmo. Os Estados Unidos da América, tanto pela vocação multi-étnica e multicultural, que ao longo dos tempos tem impressionado tantos viajantes, como pelo perfil de sociedade, não podiam deixar Eugénio indiferente, pela positiva e pela negativa. Mal chega ao aeroporto de Pedras Rubras, Eugénio resume a um jornalista as impressões dessa nação em dois adjectivos: “fascinante” e “bárbaro”. Fascinante, a paisagem da costa do Pacífico e da Nova Inglaterra; bárbara, a agressividade e o fraco nível cultural de numerosos norte-americanos (Andrade, 1995: 188). Por certo, bem mais terá ficado a Eugénio desta longa viagem recheada de descobertas, reencontros e imprevistos. De facto, na mesma entrevista, recolhida em Rosto Precário (1995), quando lhe perguntam o que mais apreciou, o poeta dá uma resposta surpreendente:

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Dos esquilos. Encontrei-os em toda a parte, desde a primeira manhã da Califórnia (“Mira, las ardillas!”, dizia-me um amigo mexicano, no seu jardim de Menlo Park), até às últimas horas americanas, junto às cataratas do Niágara. São uns animaizinhos graciosos e esquivos, saídos de uma écloga de Virgílio; espero que algum deles venha a entrar num poema meu, e nele se sinta em casa. (Andrade, 1995: 187)

Eugénio refere-se ao texto “Washington Square”, que tive a oportunidade de transcrever na íntegra, e onde alude também a Whitman. Finda a viagem pelos espaços, começara a odisseia através das palavras – um país que o escritor conhece como poucos e no qual se pode caminhar, sílaba a sílaba, até à eternidade. Porque, segundo o provérbio latino, “Discere, id est, peregrinari”.

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A CASA COMO ENUNCIADO: NARRAÇÕES DE ORIGEM ENTRE OS BUNAK – BOBONARO, TIMOR-LESTE Lúcio Manuel Gomes de Sousa Universidade Aberta, CEMRI

Introdução – Questões de tradução entre o local e o nacional A 20 de Maio de 2002 teve lugar em Dili – Tasi Tolu, a cerimónia de “independência/transição” de poder das Nações Unidas para as autoridades timorenses. As comemorações incluíram a presença de lia nain – os senhores da palavra, oradores rituais – provenientes de todos os distritos de Timor-Leste. A sua actuação no programa da cerimónia seria uma legitimação tradicional da nova nação. A cada grupo foram atribuídos alguns minutos de palco para enunciarem as Palavras na respectiva língua ritual. Por um acaso feliz tive a oportunidade de participar na reunião preparatória da deslocação do grupo que representaria o Distrito de Bobonaro nas comemorações nacionais. O teor da reunião foi-me traduzido em Tetum e português por um dos presentes, o administrador timorense do distrito. O debate aceso centrou-se em dois aspectos essenciais para os presentes: o que seria pronunciado e como iria ser feita a sua tradução para a audiência presente, para o mundo. No entanto, o tempo e o enquadramento final atribuídos a cada um dos grupos em presença viriam a revelar-se pouco congruentes com a preocupação e responsabilidade demonstradas pelos presentes na reunião referida. Penso que este episódio ilustra a dificuldade na tradução de intenções existente entre os vários actores em presença em Timor-Leste. Para os organizadores das comemorações, as Nações Unidas, plenas de modernidade, o acto cultural perpetrado não terá passado de elemento narrativo do guião, um elemento folclórico de tradição. Mas a tradição não é uma mera alegoria folclórica, ela é um sistema de compreensão do mundo, essencial ainda para as comunidades, sobretudo as isoladas de montanha, em que a subsistência diária é primordial. Torna-se assim um alicerce através

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do qual é possível escorar a comunidade, dar-lhe continuidade e operar mudanças. Negar este facto, pretender subverter a sua prática, é impossibilitar a tradução.

1. Considerações preliminares: sobre a possibilidade de traduzir a cultura A consulta de um dicionário como Houaiss (2003) permite verificar que a tradução, “acto ou efeito de traduzir” contém, entre os seus sinónimos, a transposição, a repercussão, a imagem/reflexo, a interpretação, a compreensão e a explicação. Segundo a mesma fonte, a tradução consiste em passar um enunciado emitido numa língua (língua-fonte) para o equivalente numa outra língua (língua-alvo). Este acto pode-se efectuar através de uma tradução justalinear ou livre/interlinear. No contexto da tradução cultural em apreciação traduzir consiste em passar ou transpor um enunciado “facto/processo” cultural/social procedente de uma determinada cultura (cultura-fonte) para o equivalente numa outra cultura/sociedade (cultura-alvo). Estamos assim perante a questão do confronto com a alteridade e a possibilidade de comunicação entre duas culturas. Entendemos por isso a tradução como uma troca, um intercâmbio não só necessária para a comunicação intercultural como essencial para a convivência entre comunidades/sociedades distintas. O acto de traduzir implica a existência de um conhecimento – a língua. ou a cultura do outro – e de um tradutor, de um intérprete, de alguém que funcione como um operador entre a fonte e o alvo. Mas este actor, tal como os restantes em presença, é implicado no processo, é um autor de tradução e de tudo o que lhe está associado. No caso timorense a presença deste tradutor pode ser entendida como provinda de um actor terceiro, a comunidade internacional, o antropólogo estrangeiro que interage localmente. Mas, a tradução como hipótese no contexto timorense só pode emergir do reconhecimento entre os próprios timorenses do seu papel como tradutores, isto é, há que capacitar localmente as pessoas a traduzir e compreender as suas culturas: neste sentido traduzir é produzir cidadania. Coloca-se então uma questão ao antropólogo: podemos traduzir, transpor, repercutir, dar uma imagem ou reflexo, interpretar, compreender e explicar a cultura e a sociedade Bunak para a cultura e a sociedade portuguesa? Penso que sim, desde que tenhamos em conta que traduzir é um processo, isto é, não se trata de um produto acabado que se possa substantivar mas sim de um método que compreende novas interpelações e constantes diálogos criadores com os nossos co-locutores. Para compreender as relações em presença no contexto de tradução (nós-outros), é pertinente revisitar o conceito de etnocentrismo, “A tendência para ver o mundo através da perspectiva da nossa própria cultura, ou a incapacidade para compreender culturas que são diferentes da nossa” (Barnard, 2002: 604 – tradução nossa). Em contexto de tradução estamos perante actores que estão em simultâneo na posição de imagem ou de espelho no sentido em que cada um se revê e possui a possibilidade de interpretar ou compreender o outro através dos ecos, as repercussões, daquilo que é traduzido.

A Casa como Enunciado: Narrações de Origem entre os Bunak – Bobonaro, Timor-Leste

2. Recolha de enunciados em observação participante No âmbito do trabalho etnográfico em curso o método privilegiado de recolha de dados assentou na observação participante. Os enunciados – e neste contexto os relativos à Casa – foram recolhidos e formados ao longo do tempo etnográfico intermitente em que decorreu o trabalho de campo (2003, 2004 e 2005-2006). A presença do antropólogo, apesar de imerso no contexto local, não é ubíqua. No caso em estudo o que se pretende é, num primeiro nível de abordagem, encarar estes enunciados no seu aspecto normativo, ideal, procurando desta forma apresentar um conjunto de concepções que norteiam a sociedade estudada. Ser antropólogo neste contexto implica traduzir um texto composto por vivências e sensações, desconfianças e desilusões, equívocos e mal-entendidos, pois os conceitos são eles próprios sujeitos a negociações locais. Qualquer acto de tradução requer o conhecimento da língua., entendida aqui na dupla dimensão língua. e cultura, ambas sujeitas a diferentes compreensões e interpretações por parte dos diferentes actores em presença, no tempo e no espaço. A essência do discurso traduz-se numa oratura cujo significado é relativamente conhecida/o por todos, mas que nem todos podem pronunciar. Esta reserva constitui um privilégio e uma fonte de poder. Os enunciados que iremos trabalhar são os elementos operativos utilizados de forma recorrente sobretudo em contexto ritual na cultura em estudo. Tal como tem sido referido relativamente às culturas do Sudeste Asiático e do Sudeste da Indonésia (Foz, 1980), estes enunciados são feitos através de regras de linguagem dual, classificando a língua. e o mundo num sistema dicotómico que se opõe ou complementa. Oposições e complementaridades fazem parte de um todo e a manutenção deste, a sua continuidade, é capital para este tipo de comunidade. Os textos utilizados neste artigo foram recitados pelo matas Paulo Mota, falecido em Agosto de 2005. 3. Recensão da Casa como enunciado: estrutura física e alicerce social A hipótese é a de interpretação da Casa como um meio de tradução inter-étnico e nacional em Timor-Leste. A noção de casa sagrada – uma lulik – é prevalecente em todo o país1. Torna-se assim um índice que permite transcrever simultaneamente a unidade e a diversidade em que se constitui esta nação. Ao contrário do que muitas vezes surge escrito, não existe apenas uma Casa sagrada em cada povoação timorense, situação que podemos descrever como “tradução” apressada de uma realidade. No entanto, a recorrência e importância anímica e identitária desta casa, embora sujeita a diferentes ópticas, é comummente aceite. A importância da casa nos estudos do Sudeste Asiático e em particular da Indonésia Oriental tem sido referenciada. A pertinência da Casa como entidade física e categoria cultural resulta, como refere Fox (1993) da:

1. Nos anos trinta o escritor Paulo Braga afirmava que “ (…) se o tempo, no exercício da sua eterna função destructiva, não as fosse eliminando, Timor nada mais seria do que uma massa compacta de uma lulik” (1935: 27).

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(…) capacity to provide social continuity. The memory of a succession of houses, or of a succession within one house, can be an index of important events in the past. Equally important is the role of the house as a repository of ancestral objects that provide physical evidence of a specific continuity with the past. It is these objects stored within the house that are a particular focus in asserting continuity with the past. (1993: 1)

É como diz o autor “(…) a mnemonic cultural design for the remembrance of the past” (1993, 4) ou “teatros de memória” (1993: 23) que “(…) for centuries represented an iconic marker of social and ethnic identity as well as cultural heritage.” McWilliam (2005: 28). Na sua dimensão mais esotérica, ligam concepções da origem do mundo, dos seres e da humanidade com a sociedade e os indivíduos actuais. A este respeito Waterson (2003) declara: “History is embedded in remembrances of origin house sites, genealogies, and routes travelled by founding ancestors. The recitation of such journeys, with their lists of place names, often told as if recounting the deeds of a single individual, appears to be the means by which the past migrations of all groups have been recalled” (2003: 17). No contexto de Timor-Leste a sua relevância e a ligação deste elemento localizado mas disperso por todo o território e a sua assimilação ao conceito de nação foi apresentado por vários autores (Centeno e Sousa, Ivo, 2001; McWilliam, 2005; Mendes, 2005). Embora muitas casas sagradas tenham sido destruídas durante a guerra e ocupação indonésia, não foram totalmente suprimidas. Tornaram-se um bastião da cultura e da identidade timorense pela sua capacidade simbólica. Foram também utilizadas como elemento turístico, facto que constitui uma herança do tempo colonial português até ao presente, que continua ainda por explorar academicamente. Paradoxalmente, em 1999 o seu símbolo foi usado politicamente pelos partidários da Autonomia. No entanto, na destruição pós-referendo, muitas casas foram objecto de ataque específico por serem consideradas uma fonte de resistência timorense (McWilliam, 2005). A sua plasticidade e resiliência demonstram como, apesar das mudanças “físicas” na sua construção, permanecem elementos fixos no território e objecto de práticas sócio-rituais (Sousa, 2008). A casa apresenta em Timor Leste uma variedade de formas e de estruturas simbólicas que se encontram ainda, na sua maioria, por estudar, embora se possam referir alguns estudos iniciáticos como Menezes (2006 [1968]) e Barros (1975). Uma síntese da casa timorense é apresentada na obra de Ruy Cinnati (1987). A respeito da concepção cosmológica da casa, a descrição de Cinatti é passível de se transpor para vários grupos etnolinguísticos timorenses: “Na estrutura da habitação revela-se o simbolismo cósmico: a casa é a imagem do mundo, a sua cobertura é o Céu, o pilar ou poste principal é assimilado ao ‘eixo do mundo’ que sustenta o imenso tecto celeste e desempenha um papel ritual importante: é na sua base que têm lugar os sacrifícios em honra do ser supremo, Marômac (…) Toda a construção e inauguração de uma moradia equivalem a um começo, a uma nova vida: para que a obra dure e ‘viva’ deve ser animada, isto é, deve receber ao mesmo tempo uma vida e uma alma” (1987: 34). Mais etnograficamente, Clamagirand (1982) identifica dois tipos de construção: a casa “uma” e o celeiro “lako” que analisa com detalhe, quer na sua concepção

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técnica quer na sua dimensão social. A casa linhageira, a uma lulin, é a base da sociedade que: A l`échelon collectif, l`organisation sociale se fonde sur une hiérarchisation des maisons autor des maisons de chefferie. Les rites sont accomplis par des “spécialistes” pour la communauté toute entière et en référence à une division east-ouest (…) la “maison” est le “couer” du groupe de frères aînes-frères cadets qui se réclament d`elle, les “maisons” porteuses d`un même nom se regroupent autour d`ne “maison mère” et les “maisons mères” se hiérarchisent à leur tour autour des chefferies, point central de la communauté. (1982, 293, 295)

Por sua vez, para os Mambai, estudados por Trauble (1986), a casa “fada”: (…) refers to dwellings and to social groups, or more precisely, the image of dwelling together in one place symbolizes ties that unite persons. An additional and socially critical feature of this representation is that the ideal state of coresidential unity is associated with the past. House groups are composed of people who recognize a common source or origin place, to which they return only on specified ritual occasions. The idea of common origins provides the basis for ritual cooperation in the present. (1986, 66) Hicks (2004 [1976]), relativamente aos Tetum que estudou, menciona a uma lulik como: (…) a building set aside for the storage of a descent group’s sacred possessions, and it is that place more than any other where the interests of ghosts and kin most tangible converge. There material artefacts symbolizing the bonds that unite these two categories of kin are stored and public rituals of reciprocity by which ghosts and the descent group collectively satisfy each other’s needs are carried out. (2004: 91)

A casa renova-se nas relações diárias através dos seres que nela habitam: humanos e não-humanos. A reprodução, simultaneamente espiritual, económica e social é a condição essencial da sua existência. O ritual, e neste contexto a tradição oral, desempenha um papel fulcral pois como refere Wouden “(…) a preservação e a continuidade do todo é assegurado pela interacção dos poderes cósmicos e humanos no ritual” (1968: 2). O ritual, é segundo Clamagirand: “(…) o ponto de contacto entre o social e o mito, é igualmente uma charneira entre o presente e o passado: (…) reflecte as tensões e os ajustamentos actuais mas relembra as normas ancestrais e assegura a coesão social e a participação numa mesma visão do mundo onde o social e o mito se ordenam num sistema classificatório dualista” (1982: 296) [tradução pessoal]. Através da sua prática, a casa, entidade física e social, é recriada e são renovados os laços que ligam os antepassados e seus descendentes e, desta forma, o passado, o presente e o futuro, pelo que “Não é exagero afirmar que a organização social nesta sociedade é uma organização ritual” (Trauble, 1986: 13). Para Lewis, esta organização funciona tanto no domínio religioso como no político e no exercício do poder: “The rituals of the domain can be seen as serving to organize and to provide an arena for the organization of otherwise autonomous clans that make up the domain. (…) The here and now of ritual, and the planning and arrangements that are required to produce a ritual, provide an arena for political manoeuvring and the exercise of power” (1988: 89, 91).

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São fundamento da sua identidade material e imaterial e essenciais para se reconhecerem como humanos e membros da sociedade. Como referem Barraud e Friedberg (1996) no seu artigo acerca dos Kei e dos Bunak: “Performing rituals is part of everyday work and necessary in order to be a human social being, to maintain the society through the continuity of the relationships with other beings (human and non-human) and, particularly in the case of these two societies, (but maybe also of other Indonesian societies) with the territory” (395-6). Esta dimensão ritual, muitas vezes associada na modernidade estatal meramente com tradição e folclore, está na base económica, religiosa e política de organizações sociais complexas que persistem em comunidades timorenses mas esquecidas ou ignoradas no dia-a-dia pelos poderes políticos e religiosos, que as solicitam somente em momentos de crise ou celebrações modernas. A continuidade desta realidade arquitectónica e social, apesar da guerra e das transformações ecológicas (menor cobertura vegetal e falta de madeira), demonstra a sua vitalidade local e nacional.

4. Contexto etnográfico: os Bunak Os Bunak são um dos grupos etnolinguísticos timorenses. É difícil identificar com rigor o número total de elementos deste grupo mas os dados disponíveis apontam para os 100.000, metade em Timor Leste e igual número em Timor Ocidental, Indonésia2. Em Timor Leste os Bunak predominam no distrito de Bobonaro, Suai (aqui são conhecidos como Marai) e em menor número no distrito de Ainaro. No distrito de Bobonaro localizam-se predominantemente nos sub-distritos de Bobonaro e de Lolotoe. Do ponto de vista linguístico os Bunak são considerados não-austronésios. Segundo Hull (2004), Timor Leste tem dezasseis línguas. indígenas que pertencem a duas famílias. Doze dessas línguas são de origem Austronésia e quatro são de origem não Austronésia ou Papua. Hull (2004a e 2004b) propõe a hipótese de estas quatro línguas terem origem nas línguas Papuas da Trans-New Guinea phylum faladas na Península de Bomberai na Papua Ocidental, Indonésia, distrito de Fakfak3. O substantivo Bunak designa simultaneamente um etnónimo e a língua.. No entanto, esta parece ser uma de nominação atribuída pelos seus vizinhos, tal como o Marai (que designa ema rai – gente da terra, da montanha por oposição aos Tetum da planície). A designação que os Bunak se atribuem é en gae, termo já mencionado por Almeida (1994 [1976]: 338). Esotericamente, a auto-identificação nos dísticos que compõem as recitações orais é: en1 hul2 gol3 en1 hot4 gol3 (pessoas1 novas3 (filhos) da Lua2 pessoas1 novas3 (filhos) do Sol4).

2. Os números apresentados são uma estimativa. Segundo Voegelin e Voegelin, 1977, citado pelo Ethnologue http://www.ethnologue.com/show_language.asp?code=bfn. Os elementos disponíveis no Recenseamento Geral de Timor Leste efectuado em 2004 também não contemplam estes dados numericamente. 3. Para além das dezasseis línguas. juntam-se mais quatro: o Português, o Indonésio, o Hakka, dialecto da comunidade chinesa-timorense, (maioritariamente) com origem na província chinesa de Guangdong. A pequena comunidade Macaense fala tradicionalmente o Cantonês. Há ainda uma variedade de crioulo português: o português de Bidau, falado em Dili, que se extinguiu nos anos sessenta.

A Casa como Enunciado: Narrações de Origem entre os Bunak – Bobonaro, Timor-Leste

5. A Casa Bunak como mapa e marcador Entre os Bunak a história da Casa é simultaneamente um relato, um mapa de um percurso e das relações de aliança com o espaço e com os outros (Berthe, 1971). Friedberg (1978) comenta que na sociedade Búnaque, “a unidade sociológica de base é a deu, termo que significa ao mesmo tempo habitação e grupo linhageiro exógamo. As Casas estão agrupadas em vilas que, ao contrário do que se passa nos grupos vizinhos, possuem uma realidade territorial e política” (1978: 15 – tradução nossa). Friedberg (1978, 1990), que estudou os Búnaque de Lamaknen, território indonésio contíguo ao distrito de Bobonaro, refere que a organização social local assenta tanto ritual como economicamente na Casa. Cada Casa possui os seus malu ai ba`a, os seus aliados por casamento, com quem estabelece relações de troca de pessoas e bens sobretudo por ocasião das grandes cerimónias de reconstrução ou reparação de casas e de funerais. Existem dois tipos de casamento, o virilocal e o uxorilocal, com prevalência do segundo no qual a mulher e os seus filhos se mantêm ligados à sua Casa de origem. A casa sagrada da linhagem é habitada por dois elementos, a irmã e o irmão classificatórios descendentes dos antepassados que fundaram a Casa. As casas de linhagem estão agrupadas em aldeias (tas) e cada aldeia possui o seu próprio território. São uma realidade territorial e política como refere Friedberg. No centro da aldeia existe o local de dança – mot – e um altar colectivo chamado bosok o op “altar e altura” que representa a “força da vida” dos seus habitantes. Também é chamado pana getel mone goron “ raízes de mulher, folhas do homem”, uma metáfora da vitalidade dual essencial: a feminina e masculina. As casas de linhagem possuem diferentes estatutos, havendo casas nobres e casas comuns. Entre as casas nobres existe uma diferenciação entre a casa feminina, que tem um estatuto superior e se ocupa do interior, e a casa masculina que se ocupa do exterior, das relações da aldeia com o mundo exterior. Há ainda outras casas nobres que auxiliam os chefes principais. No entanto, estes chefes encontram-se submetidos no interior das suas casas sagradas aos seus chefes internos que são os guardiães dos objectos sagrados e os responsáveis pelos rituais individuais e colectivos de membros da sua Casa. Este poder exterior denomina-se nola` – largo ou amplo e o poder interior til – estreito. 6. A Casa como estrutura física e entidade social Apesar da guerra a Casa persiste mas apresenta-se sob várias formas (ver Fig. 1). No entanto, os aspectos estruturais permanecem, quer se trate da casa sagrada quer da casa comum (no que se refere à comunidade em estudo). A análise que nos propomos efectuar apresenta dois eixos de transposição das relações em presença - um vertical e outro horizontal - trespassados por dois elementos aglutinadores - tempo e espaço. A casa Bunak divide-se conceptualmente em duas esferas de relações: as relações entre os vivos e as relações entre estes e os seus antepassados. A primeira

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esfera de relações insere-se num plano horizontal, correspondente à ocupação do pavimento, ladeado pelas paredes e respectivas portas (geralmente duas). A casa apresenta a este nível dois espaços distintos, um masculino e outro feminino, condição de reprodução e produção da casa: hamo mil pana sa ati mone sa hono zol o gin si oto o kae o deu o lesin oto lesin mil deu kae mil

no seu interior há uma mulher e um homem que se reproduzem e aumentam tornando a casa cheia, plena

A noção de casa está estritamente associada ao lar/lareira: nos versos rituais a chegada à casa de origem é descrita como oto hone here deu hopi, chegar ao lar/ lareira, chegar à casa. Figura 1: Tipos de casa Bunak

Foto 1: Bobonaro, 2003

Foto 2: Tapo, 2004

A Casa como Enunciado: Narrações de Origem entre os Bunak – Bobonaro, Timor-Leste

Foto 3: Tapo, 2004

O espaço feminino é considerado interior (deu mil – casa interior), marcado pela presença da lareira/lar, os apetrechos de cozinhar e os alimentos – nomeadamente o milho recolhido na última colheita (quadrado pontilhado nas fotos da Fig. 1). Trata-se de um espaço mais reservado, marcado por relações de afectividade entre os membros nucleares da casa e os seus familiares. O espaço masculino (laku – varanda) antecede este, é encarado como exterior e fica fronteiro à porta de entrada. A complementaridade de géneros define o espaço interior como uma totalidade. A esta adiciona-se as de relações de aliança que, por convenção ou afinidade, marcam as relações sociais da casa com as suas congéneres. Também aqui a divisão de géneros opera como marcador de posições. Os aliados dividem-se em tomadores de mulheres. e doadores de mulheres. Estes últimos possuem uma ascendência hierárquica resultante do facto de serem fonte e origem de vida. Nas relações com os antepassados, o espaço térreo é a superfície dos vivos, enquanto o tecto é associado com os mortos. A ligar um e outro encontram-se os postes que sustentam a casa: hima pana e hima mone (pontos negros na Fig. 1). Um enunciado essencial na comunidade em análise resulta do facto de a Casa sagrada não poder ser desabitada por humanos. Este facto é um índice de desunião, demonstra que a família não tem unidade e organização. Este facto isola a complementaridade que resulta da presença de humanos (elemento quente) e antepassados (elemento frio) no mesmo espaço. A ausência do elemento humano pode propiciar a mudança do estado das suas contrapartes e a destruição da casa. Como referido, os hima são postes que ligam aos antepassados, eles próprios designados como “postes” da casa. Outro elemento da casa, assegurado sobretudo pela mulher hima pana bali (a contraparte do hima gomo – chefe da casa) é a conservação dos cestos que contêm a riqueza da casa, constituídos por dois tipos de bens considerados ambos raízes da casa: raízes propriamente ditas e bens imputados como herdados pelos antepassados, objectos de ouro, de prata ou outros. meterei lolo uen meterei hot mil tata o bei hima o nulal taka o tubis na`e o nauk hima hone here ba`a nulal hopi ba`a

hoje, neste dia avós antepassados, postes e colunas cestos e alcofas junto dos postes, junto das colunas

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Na sua relação espacial com o território contíguo, a casa possui a rodeá-la o leo, espaço também designado como kintal, onde se situa a malu mit golo’ – o local de entrada e espera dos aliados. A Casa não pode ainda ser analisada sem pensar a sua inserção com as outras casas e a relação com o espaço sagrado central que existe em cada tas e onde se observa, num plano comunitário, a transposição das relações identificadas com os antepassados comuns às várias casas. A análise mais aprofundada destas relações terá de ser feita posteriormente

7. A Casa, os Homens e a origem dos Outros Em Tapo existem dezoito Casas sagradas principais designadas por deu hima ou deu po` – casa coluna ou casa sagrada. Hierarquicamente seguem-se no interior da mesma Casa as denominadas gosil1 gueg2 – respiração1 suor2 –resultantes da cisão das primeiras casas principais que fundam sub-linhagens. Enquanto as primeiras se localizam no tas mil as últimas situam-se fora deste. O seu nome é uma metáfora ao facto de ser nelas que se recebem os aliados quando chegam de fora e onde se discutem em primeiro lugar os problemas da Casa. A organização hierárquica das Casas não corresponde a uma ordem prevalecente desde o princípio dos tempos. Resulta do esforço e “politicu dos avos” – forma de explicar a astúcia e habilidade política dos antepassados – que moldaram a configuração actual da comunidade. Este facto reforça a necessidade de rever em Timor-Leste os pactos e convenções como procedências de organização política para além do parentesco. As Casas encontram-se associadas em doen, agrupamentos de carácter exogâmico que se repartem espacialmente pelo território do suco4 e possuem uma função eminentemente ritual. Cada doen tem associado uma área geográfica na qual se localizam uma fonte e um campo sagrados. Cada Casa associa-se directamente a outra Casa, quer por cisão da primeira (ou da segunda) quer por aliança denominada kau-ka`a (irmão mais novo – irmão mais velho). Para além desta rede interna em que as Casas se encontram associadas, há uma rede de aliança denominada malu ai fundada nos casamentos ou incidentes históricos que deram origem a sub-linhagens, e que regista as Casas como sendo ou não de origem Bunaque, com as quais os antepassados contraíram aliança por casamento, nomeadamente as Casas de onde vieram mulheres. (malu) e aquelas para onde foram mulheres (ai). As Casas sagradas principais estão sedeadas no tas mil. A memória-história da criação do tas e da junção das dezoito Casas faz parte da tradição oral que se divide em duas classes: a bei gua e tinu. A primeira é hurug, fresca, diz respeito a todos os rituais que se consideram frios/frescos e que se associam com o fluxo de vida e a morte natural. A via tinu, quente, relata as guerras e as mortes ocorridas nestas, bem como as que ocorrem de forma considerada não natural. A história do tas contada através da via hurug não enfatiza os conflitos armados que opuseram as casas mas sim a astúcia e malícia utilizada para conciliar os 4. Na divisão administrativa timorense, o suco corresponde à unidade mínima (constituída por uma ou mais aldeias). Corresponde de uma forma geral à freguesia no caso português.

A Casa como Enunciado: Narrações de Origem entre os Bunak – Bobonaro, Timor-Leste

interesses em presença, nomeadamente a atribuição dos títulos e funções rituais “nobiliárquicos”. A narrativa sobre a origem da casa é indissociável da cosmogonia e ela associase com a origem do Homem. Na tradição Bunak de Tapo, esta origem situa-se algures num local próximo na montanha (local sagrado e secreto) onde viveram e procriaram os primeiros antepassados. À primeira casa, oto kere no deu uen no – o primeiro fogo, o primeiro lar – está associado o primeiro campo que foi objecto de cultivo e também o local por onde no início se podia aceder ao céu, onde se encontrava o domínio do Sol e da Lua. Nos versos rituais, a presença e a unidade formuladas pela Casa surgem como: tita oto kere tita deu uen pan hilin no mug hilin no pan gibis no mug gibis no na oto ginil nina Luka Bati na o ba`a Raidol na o ba`a oto kere u ta deu uen ta

juntos ao primeiro fogo, no primeiro lar no Centro da terra e do céu no umbigo do céu e da terra a Casa chamada Luka Bati Raidol o primeiro fogo, o primeiro lar

A Casa fica no centro/umbigo da terra, no umbigo/centro do céu, o território considerado o centro e umbigo da terra. A Casa é o principal elemento identitário e o pilar da rede de interacção social. Cada indivíduo é, por nascimento, membro de uma determinada Casa. O estatuto é-lhe atribuído pela mãe, de quem ele recebe a linhagem. Este facto é determinante nas opções de vida pois condiciona as preferências de relacionamento com o outro sexo e a possibilidade de casamento, bem como facultará ou não o acesso ao desempenho de determinadas funções sociais. Os membros da mesma Casa estão compelidos a uma mútua assistência mas a proximidade de residência e redes de vizinhança são também relevantes. Este apoio é sobretudo importante por ocasião da (re)construção da casa sagrada ou da casa de um dos membros, altura em que todos são chamados a contribuir. O sistema de casamento predominante na actualidade é uxorilocal, denominado ton terel – em comum. Neste tipo de casamento, o homem vai viver com a esposa na casa dos seus pais num primeiro momento, havendo de seguida a construção de uma casa para o casal, normalmente após o nascimento dos primeiros filhos. Ao contrário dos vizinhos Quémaque, os Búnaque e em particular os de Tapo, não têm uma compensação matrimonial muito forte. Esta compensação, denominada pana gobol – o valor da mulher, é um pagamento que pode até ficar suspenso por acordo comum entre as partes. Aquilo que é valorizado é que a mulher tenha filhos e estes serão sempre pertença da sua Casa. As filhas são particularmente importantes pois são elas que asseguram a continuidade das Casas. Há ainda a possibilidade de adopção, quer de uma criança quer de um adulto. Neste sistema o divórcio é relativamente fácil, sobretudo se o pana gobol estiver suspenso. As histórias dos heróis Mali Sirak Mau Sirak, Asa Gulo` Mau Gulo` são um alicerce sobre o qual se fundamenta a origem dos seres humanos e dos antepassados de Tapo. No tempo em que a terra ainda é pequena, pan giral pu laba` , e após o aparecimento destes três grandes e a conclusão da sua gesta, segue-se a expansão da humanidade pelos cantos da terra que se vai lentamente abrindo:

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hamo na gibug gonion bai totug o agora os três caminhos estão completos gua gonion bai dap o as três vias estão inteiras Mali Sirak gie esen gol oa` gol a de Mali Sirak são os filhos do alto os filhos de cima Asa Gulo` gie lika gol luma gol a de Asa Gulo` são os filhos criados os filhos adoptados Mau Gulo` gie zigi gol bul gol a de Mau Gulo` são os filhos de baixo os filhos da base tita oto kere o tita deu uen o todos juntos no fogo primeiro todos juntos na primeira casa tita lete bul o tita malas bul o todos juntos na base da escada todos juntos na base dos degraus Matas Paulo Mota, 2004

A definição da terra vasta e larga marca a diferenciação essencial no pensamento histórico mitológico. Até então, o espaço terrestre era pequeno e limitado, assim como o número daqueles que nele habitavam. Com a expansão do espaço e o seu reconhecimento por parte dos heróis míticos, assistimos à expansão da própria humanidade. A dicotomia entre o irmão mais novo e o irmão mais velho é desenvolvida em cada situação havendo uma alusão ao irmão chinês, australiano e português, o último a sair. O caminho dos outros é conhecido mas o do irmão português está envolto em mistério, pois só se conhece o seu percurso até a uma porta onde desaparece, a dumi tazu. A expansão dos irmãos pelo mundo – terra seca e mar (mais novo) – marca a dispersão a partir da casa original dos Homens. E, no caso do irmão mais novo que se vai transformar no estrangeiro, ele é “portador do lápis e do papel”. ka` to tesi kau to ropo na os irmãos separam-se kau gini surat o papel … lapis na hone o mais novo fica com o papel e o lápis bai surat na gizi papel na kes o papel para escrever (…) (...) bata` na ba`a meti gutu bata` na ba`a hog na ba`a ali se definiu uma fronteira entre a terra e o mar ka` gini turul tul ezun gubul o irmão mais velho ficou com o sândalo e a cera pan lete no mug diso no sobre a terra firme ba`a na ukon ba`a na dari esta ficou o seu domínio, o seu poder kau gini kobi gol lus gol o irmão mais novo ukon gol eren gol surat o papel ficou com o pequeno domínio do papel bai na gomil lo bai na gon no que segurou na sua mão amo na bai gerel gini meti lugu bai gini mo rula e levou consigo através do mar iti no onal mo no iti na e partiu pelo mar Sul Loe na o bai Sil Loe na Sul Loe Sil Loe leten no diso no ba`ari ficou na terra firme

Neste juramento é atribuído a cada um o exercício de um poder específico. Ao irmão mais velho são facultados os poderes sobre o turul – sândalo e a ezun – cera e ao irmão mais novo o poder ukon gol eren gol surat o papel. Surge assim, pela primeira vez, a referência clara ao ukon – poder. O okul ou nalan, o poder ritual, é anterior ao poder ukon, na lógica da anterioridade do okul perante os outros. O poder ukon, neste contexto, é o primeiro dos poderes e marca de forma peremptória a legitimidade do irmão mais velho pela terra. Mas a este irá juntar-se um outro poder, derivado da incorporação do irmão mais velho numa estrutura sujeita ao sen oe`, os novos símbolos do poder, sinónimo da sujeição política no qual foram incorporados.

A Casa como Enunciado: Narrações de Origem entre os Bunak – Bobonaro, Timor-Leste

Em Bunak, estrangeiro é denominado ebi, e mesmo um natural do tas que tenha passado muito tempo ausente, por trabalho ou estudo, pode ser apelidado de ebi gol (jovem estrangeiro). Mas, na percepção local, todo o estrangeiro não faz mais do que regressar à sua origem. O estrangeiro é um dos irmãos que partiu em tempo e que regressa. Por isso, tudo o que dá (ex. UNTAET) nada mais é do que a recompensa à sua terra-mãe.

Conclusões Será possível traduzir a concepção da Casa entre os Bunak para outros grupos etnolinguísticos timorenses? Que contributo pode a sua tradução dar à construção da sociedade timorense? A noção de complementaridade entre géneros, homem e mulher, e entre os seres humanos e os seus antepassados é evidenciada pelos usos e prática da Casa como local e meio de continuidade social. Ao contrário de outras comunidades, entre os Bunak a persistência da residência na casa por parte dos humanos é uma condição da sua sobrevivência. A casa é parte essencial da origem da humanidade e nela se desenvolveu a humanidade. A sua divisão e dispersão inicial cria uma outra complementaridade, a etária, que se alia a uma hierarquia que estabelece a precedência do irmão mais velho perante o mais novo. O estrangeiro é este irmão mais novo, associado ao mar, dotado, no caso em apreço, dos apetrechos de uma autoridade exterior: o papel e o lápis; enquanto o mais velho assegura a posse da autoridade que permite dar continuidade à sobrevivência de ambos: a terra, considerada como a mãe de ambos. A tradução desta perspectiva é uma condição de conhecimento e de respeito mútuo entre aqueles que pretendem reconhecer em Timor-Leste princípios de continuidade da jovem nação.

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A CULTURA COMO TRADUÇÃO: EXERCÍCIOS ETNOGRÁFICOS EM DIÁLOGO 1 Paulo Castro Seixas Luís Vale Jorge Morais Sarmento Universidade Fernando Pessoa

1. A tradução cultural e a cultura como tradução A antropologia sempre implicou uma relação com a tradução. No entanto, uma reflexividade crítica e pluridimensional (desigualdade entre línguas., géneros e regimes representativos pela via da relação poder/conhecimento) é relativamente recente. O contexto de emergência da centralidade da tradução relaciona-se com a contestação de identidades a partir dos anos 50, com o surgimento do conceito de ‘Terceiro Mundo’, dos movimentos de descolonização e dos Estudos Pós-coloniais; o surgimento dos Estudos de Mulheres., depois Estudos de Género e, ainda, a centralidade da representação e da linguagem na análise e intervenção na (des) construção de identidades. Tendo este contexto como fundo, a consciência da centralidade da Tradução no trabalho antropológico tornou-se mais evidente com as preocupações específicas dos Estudos Culturais e com a culturalização dos Estudos da Tradução. Para além disso, podemos dizer que alguns desses contributos, com diferentes origens, procuram caracterizar a cultura como tradução. É, assim, possível identificar quatro tradições na área da tradução cultural: uma ligada à Antropologia, outra ligada aos Estudos Culturais, uma outra ligada aos Estudos de Tradução e, finalmente, uma tradição interdisciplinar que entende a cultura como tradução. É, de certo modo, esta última perspectiva que nos servirá, neste texto, para a hipótese que se apresenta: a da tradução como uma intersemiótica específica que, num determinado espaço-tempo, reflecte semióticas anteriores dispersas. Tal é o que se propõe 1) na tradução linguística: a escrita na sua relação com a oralidade; 2) na tradução semiológica: a ‘cidade genérica’ na sua relação com as urbanidades e, finalmente, 3) na tradução virtual: a literacia informática 1. Este texto inscreve-se no quadro da discussão teórica do projecto PTDC/ANT/81065/2006 (Fundação Para a Ciência e a Tecnologia).

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Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem

partilhada face às hiperlocalidades. Analisemos, primeiro, cada uma das tradições de pensamento relativas à tradução cultural que se propõem. A tradição antropológica, enquanto reflexão sobre a tradução como elemento central para a compreensão do trabalho antropológico de análise de culturasoutras, parece poder analisar-se em quatro perspectivas. Uma primeira perspectiva centra-se nos Modos de Pensamento ou ‘Modes of Thought’ (de Godfrey Lienhardt a Horton e Finegan), tendo tido repercussões na literatura sobre relações culturais, especificamente em Edwart T. Hall e em Samuel Huntington, criando-se a partir deste uma literatura sobre a guerra pela intraduzibilidade cultural (cf. Fikentscher, 1995 para um historial de ‘modes of thought’ como conceito). Uma segunda perspectiva, associada à tradição de Antropologia de Oxford, identifica a Antropologia com a ‘Tradução de Culturas ‘, sendo o ‘problema da tradução’ central em Antropologia. John Beattie é o autor central de tal perspectiva. No entanto, para além de Oxford, vários outros autores (Gellner; Needham; Leach) indicam tal centralidade (cf. Duarte, 2008: 16, 17). Esta centralidade levou à perspectiva interpretativa que concebe o antropólogo como um intérprete, escritor de culturas (Clifford Geertz) e à Antropologia como Interpretação. Uma outra perspectiva centra-se na análise de ‘séries’ ou numa ‘epidemiologia das ideias’ e pode remeter-se para Dumézil, Levi-Strauss, Foucault, Barthes e Dan Sperber. Finalmente, uma última perspectiva radica-se no movimento do ‘Writing Cultures’, que apresentou posições metodológicas experimentalistas, como a etnografia multi-situada de Marcus ou a Antropologia Dialógica, desenvolvida na década de noventa por Michael Taussig. Este experimentalismo, que tem como problema central a tradução, colocou a representação antropológica no centro da discussão e fez o caminho para uma Antropologia hipermediática em emergência (cf. Seixas, 1997 e Seixas, 2008). Os Estudos Culturais, inaugurados com Paul Willis e Raymond William, constituem também uma tradição com influência no campo da tradução cultural e da cultura como tradução. Pode-se dizer que os Estudos Culturais contribuíram para a problemática da tradução com pelo menos quatro perspectivas que relacionaram linguagem, representações e práticas sociais e poder. Uma primeira perspectiva centrou-se na problemática da cultura popular e na sua relação com a cultura hegemónica. Depois da asserção da importância da cultura popular, Stuart Hall definiu o popular como uma arena entre a produção por um determinado grupo social e a apropriação/consumo pelas massas. A questão da cultura popular numa arena de tradução relaciona-se também com a teoria do código linguístico do sócio-linguista Basil Bernstein, caracterizando o ‘código restrito’ e o código elaborado’ e de como eles se evidenciam na relação entre classe, família e contexto escolar. Uma segunda perspectiva centra-se nos Estudos Pós-Coloniais, tendo Edward Said, Franz Fanon, Paul Gilroy, James Scott, Louise Pratt, Homi Bhabha entre outros que trabalharam a complexa relação entre dominantes e dominados, feita de ‘zonas de contacto’, de hibridismos, de mimicry, etc. Uma terceira perspectiva começa nos Estudos de Mulheres. e continua nos Estudos de Género: Elizabeth Badinter, Judith Butler, etc. Finalmente, os Estudos de Media e, especificamente, os Estudos de Recepção evidenciam a importância da cultura na interpretação da mensagem dos Media.

A Cultura como Tradução: Exercícios Etnográficos em Diálogo

Quanto aos Estudos de Tradução, estes também sempre tiveram a consciência da importância da cultura, no entanto, começaram por caracterizar a tradução na dicotomia entre língua. de partida e língua. de chegada. É especificamente com o que se denominou a ‘Viragem Cultural’ (Cultural Turn) (Bassnett & Lefevere, 1990) que a tradução se passou a conceber como comunicação intercultural. No entanto, pode-se dizer que, pelo menos desde os anos 70, os Estudos de Tradução analisam e procuram classificar os elementos Culturais no âmbito da tradução. Segundo Albir (2004) na área dos Estudos de Tradução, e no âmbito da viragem cultural, podemos identificar quatro perspectivas ou problemáticas. Uma primeira centra-se na tradução como comunicação intercultural, classificando as diferenças culturais e seus reflexos nas línguas. e suas consequências no processo de transferência cultural. Trata-se de uma perspectiva tipológica, procurando classificar as diferenças culturais que afectam a tradução com Nida e retomada por Margot, Vlakhov e Florin, Newmark, Nord e Katan (cf. Albir, 2004: 608). Baseados nessas diferenças surge então a preocupação com a transferência cultural, havendo vários autores que procuram classificar aspectos a ter em conta e tipos de transferências, como Margot; Hewson e Martin; Vlokhov e Florin; Hervey e Higgins; Katan (id, 2004: 611-613). Uma segunda perspectiva relaciona tradução e ideologia e centra-se no facto de que ‘Se todo o processo de escrita é permeável aos condicionalismos ideológicos do contexto e aos do próprio autor, a reescrita que a tradução é também é reflexo dos mecanismos ideológicos’ (ibid: 616). Esta perspectiva foi desenvolvida pela chamada ‘Escola da Manipulação’ e teve em Lefevere ao longo dos anos oitenta um autor fundamental. Outros autores discutem o significado ideológico da visibilidade ou invisibilidade do tradutor; a questão da tradução politicamente correcta e a ética do tradutor; a necessidade de uma micro-análise que utilize a análise de discurso crítica no sentido de ressaltar as marcas ideológicas no texto traduzido; a necessidade de analisar o contexto institucional de recepção das traduções (o que se traduz, o sistema de apoio à tradução; o sistema educativo e a reprodução do cânone; ‘normalização’ da recepção, etc.). Uma terceira perspectiva relaciona tradução e pós-colonialismo, em completa interdisciplinaridade com os Estudos Culturais. A perspectiva pós-colonial não remete apenas para um após-o-colonial cronológico mas para uma análise crítica das representações e práticas sociais coloniais como arena de contestações em função do terceiro espaço que o póscolonialismo possibilita. A relação directa entre tradução e estudos pós-coloniais é diversa (Asad; Rafael; Cheyfitz; Robinson; etc.), criticando as traduções feitas por etnógrafos e antropólogos; o papel da tradução na colonização; como canal de descolonização; etc. Um dos conceitos fundamentais relativo à análise dos textos pós-coloniais é o de ‘Hibridação’, uma vez que tais textos estão entre duas culturas e é em função dessa ‘zona de contacto’ linguística e cultural que devem ser analisados. Finalmente, uma última perspectiva relaciona tradução e feminismo. Tendo surgido no Canadá nos anos 80, esta perspectiva relaciona o movimento feminista em geral com a critica literária feminista, tendo sido influenciada pelos Estudos de Mulheres. e Estudos de Género no âmbito dos Estudos Culturais. Seguindo Albir (2004: 627) esta perspectiva centrou-se na critica da terminologia e concepções sexistas da tradução, compilação e análise do papel das tradutoras

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na história da tradução, revisões de traduções de textos escritos por mulheres., análise de elementos sexistas nas traduções, etc. Finalmente, podemos caracterizar um conjunto de autores, textos e partes de textos que procuram ir mais além e caracterizar a cultura como um todo, como um processo de contínua tradução. É claro que, da análise de cada uma e de todas as tradições anteriores que discutem a tradução, não parece difícil chegar à ilação de que, entre idioleto e universais, toda a representação e prática social é tradução. No entanto, alguns autores estão na genealogia de tal concepção, para além da ‘antropologização da tradução’ que remonta a Schlegel e Schleiermacher (Duarte, 2008: 176), em especial: Walter Benjamin (1992) no seu texto de 1923, A Tarefa do Tradutor; Jacques Derrida (1992), especificamente no texto “Des Tours de Babel” e, finalmente, George Steiner (2002), no seu livro After Babel e, especificamente, no capítulo “Topologias da Cultura”. Mais recentemente, alguns autores, como Wolf (2008), utilizam mesmo o conceito de ‘cultura como tradução’, conceito que se cruza com outros como o de ‘terceiro espaço’ de Homi Bhabha (1994), ‘zona de contacto’ de Marie Louise Pratt (1991) ou a noção de ‘tradução num mundo contínuo’ de Tim Ingold (1994). Esta genealogia leva-nos a uma ideia da cultura como tradução contínua numa criatividade topológica em que as invariantes arquetípicas incluirão elas próprias a Diferença. Não desprezando os contributos seccionais das demais tradições sobre a tradução, consideramos que esta abrange as demais e é neste quadro, ainda que para já só esboçado, que sustentamos este pequeno exercício. A tradução de culturas dá-se no espaço e no tempo e a velocidade que levou à compactação do espaço-tempo teve como resultado o tudo-aqui-e-agora da contemporaneidade, tornando a tradução cultural a sua principal metáfora e elevando-a a um lugar central da ciência e política humanas (Ribeiro, 2005). Tal perspectiva que a própria experiência contemporânea nos possibilita pode servirnos para lermos (leia-se “propormos” uma retórica de tradução cultural) mundos diferentes no sentido de encontrarmos significados na relação entre esses mesmos mundos. Sustentados nestas quatro tradições, concebe-se a tradução como o mecanismo cultural básico, a ‘tensão essencial’ (Khun) entre o que é, cremos/queremos que é e o que pode, desejamos/tencionamos que seja, actuando desde o indivíduo às dinâmicas globais num espaço-tempo que é, ele próprio, parte da recriação. Esta ‘tensão essencial’ expressa-se sócio-culturalmente (do indivíduo à família, ao grupo – de idades, géneros, raças, classes sociais – à comunidade, à nação, etc), numa relação difícil entre reprodução e recriação (Benjamin); entre intraduzibilidade e obrigatoriedade da tradução (Derrida); entre topologias da cultura e a criação (Steiner). As condições materiais e o universo simbólico, ao mesmo tempo que sustentam argumentos tradutivos, são eles próprios continuamente traduzidos, sendo falacioso tomar partido (mas impossível não o fazer como parte do jogo de tradução em cada momento) por um materialismo ou racionalismo como explicação da cultura como tradução. O ‘discurso’ (Foucault) ou as ‘ideias’ (Sperber) e as suas ordens próprias, por um lado; os mecanismos de armazenamento e gestão da informação (oralidade, escrita, arquitectura, digitalização, hiperlocalização, etc) como suporte da arena ideológica por outro e, finalmente, as instituições e os

A Cultura como Tradução: Exercícios Etnográficos em Diálogo

modos de vida, constituem-se como uma trialéctica produtora de configurações culturais no espaço-tempo (auto e hetero interpretativas e interpretadas). As tradições da tradução possibilitam-nos algumas perspectivas: a da existência de diferentes ‘modos de pensamento’ que caracterizam ‘áreas culturais’, ‘civilizações’; a da importância da ‘tradução cultural’ entre culturas e subculturas (feita por antropólogos, por enviados especiais dos media, mas também por muitos e muitos outros: políticos, professores, psicólogos, assistentes sociais, turistas, etc); a relevância da complexa relação entre práticas, representações e ideologia na tradução linguística e cultural entre dominados e dominantes (homens-mulheres.; colonizadores e colonizados; produtores dos media e receptores; etc). Finalmente, perante tais perspectivas, podem sempre construir-se – e constroem-se – outras perspectivas (o desconstrucionismo de Derrida e o pensamento topológico de Steiner) e esse é o jogo, do qual a ciência é parte. É a consciência de que a tradução é o processo cultural central e que é a partir de teorias da tradução que poderemos compreender as relações e os processos culturais. O que neste texto propomos é, então, um exercício em que três etnografias em esboço são apresentadas e em que se procura explorar a noção da tradução como cultura em cada uma das etnografias, mas também nas relações possíveis entre elas. Cada etnografia implica um campo de tradução (linguística, semiológica, virtual) em que a intersemiótica (oral e escrita; urbano-local e de ‘cidade genérica’; navegação hiperlocal e de futurível programação partilhada) intrínseca define tais campos como em tradução-transmutação contínua genealógica e teleologicamente. As etnografias que indicamos abaixo servem, assim, o propósito de apresentar a hipótese da cultura como tradução e a tradução como elemento central da mudança cultural: a) uma etnografia sobre um mundo de aldeias e das suas relações em função da imaginação oral associada aos apodos ou nomeadas (que expressam auto e heteroconceitos); b) uma etnografia sobre o mundo urbano, o seu espaço de localidades e relações entre localidades, e sua relação com modelos agregadores como o panóptico e o heterotópico na ‘cidade genérica’; c) uma etnografia sobre o mundo virtual, as suas hiperlocalidades e relações entre elas, em função da interpretação diferenciada do utilizador e do hacker.

As etnografias foram consideradas relevantes para este exercício porque, apesar de todas elas serem contemporâneas, podem ser remetidas para mundos diferenciados, ou seja, mundos que nos habituámos a classificar como pré-moderno, moderno e pós-moderno numa tradução cultural por alteridades históricas. De forma breve, veremos como cada contexto apresentado é em si um contexto de tradução cultural e que quando ele é analisado, o próprio contexto de tradução muda pelo facto de ser analisado. Assim, as nomeadas típicas da imaginação oral fluida e aberta que sustenta a tradução cultural do mundo entre aldeias é transformada (porventura cristalizando localidades) quando o investigador trabalha sobre esse mundo e o traduz num documento escrito. O mundo urbano constitui, em si mesmo, uma inter-semiótica que traduz num único espaço linguagens dife-

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rentes de diferentes espaços (o espaço da aldeia; do monte sagrado e peregrinação; do campo de batalha, etc). No entanto, a partir da industrialização planetária, a ‘cidade genérica’ (panóptica e/ou heterótopica) começa a substituir as diferentes e dispersas urbanidades implicando uma análise do mundo urbano em função de ‘formatos’ semelhantes aos que servem à elaboração das hiperlocalidades e, ao analisar a cidade desse ponto de vista, é a própria concepção de cidade que desaparece. Por fim, trata-se de analisar o mundo do ciberespaço em função das hiperlocalidades mas a análise da relação entre hiperlocalidades pela perspectiva do hacker transforma a própria noção de relações entre hiperlocalidades segundo a lógica do utilizador. Neste último exemplo propõe-se, então, o hacker como modelo de vanguarda de uma literacia informática comum ou partilhada a constituir-se, a partir do qual analisamos a navegação do utilizador comum. Os três exemplos etnográficos que se apresentam de seguida servem apenas como exercício no sentido de uma argumentação mais geral: a de que a cultura é tradução e que a mudança cultural se dá na transferência de uma intersemiótica para outra, transferência esta que tem nos sistemas de armazenamento e gestão da informação e comunicação os seus eixos. Os exercícios etnográficos propõem-se em função de três espaços intersemióticos que consideramos fundamentais: o linguístico (oral e escrito); o semiológico (urbano-local e cidade genérica) e o virtual (hiperlocalidades e programação partilhada). Considera-se ainda que qualquer análise, no âmbito do mesmo espaço intersemiótico, feita segundo um modelo que considere uma determinada tradução cultural, altera as condições de tradução cultural existentes segundo um modelo retórico anterior. Ou seja, uma análise que parte de uma universo cultural escrito transforma as próprias condições de recepção (portanto de tradução) do universo linguístico oral sobre o qual se focaliza; por sua vez, a análise que se faça centrada no universo cultural urbano-local transforma as condições de recepção dos universos oral e escrito (linguístico) ao incluí-los na semiologia urbana mais lata; o surgimento da lógica comunicacional hiperlocal exerceu uma transformação quer no universo linguístico, quer no universo semiológico urbano tendencialmente hegemónico e por aí fora. É, no entanto, importante ter em conta que o processo não tem um único sentido: é na construção de uma vivência já trans-aldeã (quando as pessoas se movem entre aldeias) que a escrita sobre a tradição oral das aldeias faz sentido; é quando as cidades se tornam hegemonicamente representantes de relações entre Estados-nação, quer dizer na sua relação vivencial transnacional (quando as pessoas viajam entre cidades), que faz sentido pensarmos o urbano já não como cidades mas antes hiperlocalidades; a navegação entre hiperlocalidades é a exploração que fazemos no presente etnográfico do final do século XX – início do XXI – mas se a lógica que apresentámos não é falaciosa, podemos prever uma nova tradução em que o hacker e o Avatar se revelam como personagens actuais e possíveis metáforas dessa nova tradução, a da programação virtual como modo de produção e gestão da informação hegemónica, que sustenta novas formas de vida: as dos Avatares e suas relações de todos os tipos (profissionais, familiares, amorosas, etc). Convém, ainda, referir que tais mudanças se dão numa contínua arena de contestações entre resistências e contenções criadas pelo modo de vida ‘tradicional’ ou ‘original’ e os avanços e inovações do modo de vida ‘moderno’ ou

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A Cultura como Tradução: Exercícios Etnográficos em Diálogo

de ‘tradução’. Esta ‘tensão contínua’ é traduzida-interpretada tanto diacronicamente como sincronicamente, sendo, assim, parte da relação que estabelecemos entre indivíduos, grupos, comunidades, etc, em determinado espaço-tempo. Propõe-se, assim, com este texto uma espécie de Lei da Tradutibilidade Abrangente dos sistemas humanos de organização da informação, comunicação e vida assemelhando-se, assim, a uma espécie de jogo, a uma série de matrioskas russas de tamanhos iguais e diferentes, que vamos criando e ao mesmo tempo procuramos encaixar umas nas outras de forma correcta, num esforço contínuo. Cultura como tradução em três contextos diferentes Mundo Pré-Moderno

Tradução 1

oralidade

Tradução 2

escrita

Tradução 3

Mundo Moderno

Mundo Pós-moderno Interacções Etnográficas

Do nomear à narrativa escrita coerente e fechada

w

Tradução 4

civismo cosmopolitanismo

Dos lugares urbanos às novas centralidades globais

Tradução 5

Digitalismo

Tradução 6

Hibridismo

Principal campo de

Linguístico

Semiológico

Da Navegação na rede à literacia da programação partilhada

virtual

2. Oralidade e escrita: a cultura como tradução entre a nomeação e coerência escrita O primeiro contexto etnográfico no qual podemos articular alguns dos conceitos teóricos apresentados são as nomeadas transmontanas2. Tal como o próprio nome indica, estamos perante um processo de nomeação de um ou de vários indivíduos. Sendo que para o momento presente interessarão as nomeadas colectivas das diferentes comunidades ou aldeias transmontanas, ou seja, os nomes pelos quais são conhecidos e/ou reconhecidos os habitantes das diferentes comunidades e as suas diferentes dimensões. Nas palavras de Bourdieu (1998) estas operações sociais de denominação permitem estruturar a percepção que os agentes sociais têm do mundo social e assim, a nomeação contribui para construir a estrutura do mundo. Trata-se, fundamentalmente, de uma questão de identidade, de ser ou não ser, de pertencer ou não pertencer. Esta dimensão identitária obriga a um permanente diálogo do eu (individuo ou comunidade) com os outros (indivíduos ou comunidades), num exercício de entendimento daquilo que eu vejo nos outros que se 2. Também conhecidas por apodos, alcunhas ou anexins.

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Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem

assemelha ou difere de mim e naquilo que os outros poderão ver em mim que difere ou se assemelha a eles. Através destes vários processos constroem-se as identidades3 individuais e colectivas. E estas últimas são, por seu lado, centrais para a definição das identidades individuais, naquilo que Appiah (1994) chama de manuscritos, definindo-os como narrativas que as pessoas podem usar ao moldar os seus planos de vida e ao contar as histórias das suas vidas. Mas identidade é também a continuidade de um povo ou comunidade ao longo do tempo. Símbolos de identidade são aqueles que permitem mostrar e afirmar a sua continuidade, a sua permanência enquanto comunidade. Esta noção de identidade implica, obrigatoriamente, uma espécie de memória colectiva, com capacidade de interpretar e de reconhecer-se ao longo da história. A tradição ocupa aqui um lugar central, uma vez que coincide com a herança cultural colectiva. Numa região afastada e historicamente caracterizada por ambientes rurais, pelo isolamento geográfico das pequenas localidades e comunidades e pela permanente perda demográfica, Trás-os-Montes e as suas pequenas comunidades apresentamse como etnografias paradigmáticas deste processo de nomeação. Para Fontes (1992) conhecer as alcunhas de cada terra ajudaria a conhecer o feitio, o valor, os podres e as qualidades de cada aldeia. Segundo o mesmo autor, na região do Barroso é um hábito generalizado e um facto histórico ou mesmo uma lenda poderão estar na origem de uma nomeação genérica para todos os indivíduos de um povo. Estas nomeadas pressupõem uma denominação expressiva, espontânea e consciente, onde um conjunto de valores afectivos, estéticos, morais que se atribuem aos nomeados são nivelados, permitindo a atribuição de um único nome ao todo. Nos exemplos encontrados e estudados neste contexto transmontano, e a um nível semântico, podemos identificar diferentes e várias referências: ofícios e profissões (ex: carvoeiros, financeiros, esfola-cabras, chavelheiros) , paisagens (ex: monteses), fauna e flora (ex: raposos, torgueiros, cucos, carrasqueiros, rabas), alimentação (ex: bilhós, laregos, côdeas, toucinheiros), religião (ex: judeus), entre outras. A um nível retórico podemos distinguir dois diferentes tipos de associações: a similaridade através das metáforas e a contiguidade através da metonímia4. Perceber as razões ou os motivos que levaram à atribuição destas nomeadas não será tarefa fácil e, também por isso, o nosso esforço centrou-se na tentativa de compreender as narrativas existentes acerca dessas mesmas atribuições. No espaço existente entre as diferentes aldeia, cria-se um processo de diálogo cultural através das nomeadas que, tal como já foi dito atrás, permitem identificar e reconhecer os indivíduos como pertencentes a uma ou outra comunidade. Por exemplo, os da aldeia de Ousilhão, em Vinhais, são conhecidos nas aldeias vizinhas como Gaugueiros, mas eles apesar de o saberem não se reconhecem como 3. Os nomes pelos quais somos conhecidos e chamados constituem um aspecto central da nossa condição de pessoa – não só de quem somos para os outros, mas ainda de quem somos para nós mesmos, já que as duas coisas estão profundamente interligadas (Pina-Cabral, 2008: 237). 4. A metáfora e a metonímia são semelhantes na medida em que ambos os fenómenos constituem processos conceptuais que relacionam entidades. Mas a diferença é que a metáfora opera entre dois domínios, a metonímia opera dentro de um só (Balordi, 2001).

A Cultura como Tradução: Exercícios Etnográficos em Diálogo

tal, nem se sentem muito agradados com tal nomeada. Quando um habitante de Ousilhão se desloca a uma outra aldeia e entra numa taberna ou café, facilmente pode ser cumprimentado: - Olha o gaugueiro!... - Antes gaugueiro que trapaceiro! – Responderá o habitante de Ousilhão, querendo com isto dizer que será melhor ser falador do que aldrabão. Tentando perceber a razão desta nomeada, conseguimos encontrar diferentes versões: os habitantes de Ousilhão entendem esta nomeada como uma crítica pelo facto de eles serem faladores, por gostarem muito de conversar com toda a gente. Para os demais, o gaugueiro é aquele que fala demais e que se torna inconveniente muito facilmente. Um outro exemplo que poderemos dar é o da aldeia de Travanca, no concelho de Vinhais, que são nomeados por Torgueiros, mas que não gostam mesmo nada que os nomeiem assim, isto porque consideram que esse nome indica que serão rudes, animalescos, sem maneiras e sem educação, enquanto que para quem os nomeia, a razão deve-se ao facto de ser terra de muitas urzes, logo de torgas também, e os habitantes desta aldeia dedicam-se desde sempre à recolha destas espécies vegetais. Estes dois casos exemplificam muito bem o vigor e a intencionalidade do processo de nomeação, demonstrando as locais necessidades de identidade e diferenciação. Num registo oral, onde tradicionalmente as nomeadas acontecem, assistimos a uma grande flexibilidade e abertura nos processos, pois essa oralidade é manipulada e controlada pelos intervenientes e, historicamente, foi e é veículo de transmissão de conhecimentos. Num registo diferente, como a escrita, que acontece num mesmo espaço, mas num tempo diferente no qual o investigador tenta registar essa realidade, essa flexibilidade dá lugar a uma determinada tensão, dada a dificuldade sentida em alcançar toda a fluidez oral das nomeadas e, depois, a própria escrita apresenta-se como potencial redutora e cristalizante dessas realidades.

3. Civismo e cosmopolitismo: a cultura como tradução entre localidades urbanas e novas centralidades globais O axioma de que partimos neste texto é o de que a Cultura (entendida no sentido antropológico) é Tradução e a cidade (a urbe, a polis, a civitas, capital, a metrópole, a cosmopolis) é uma evidência disso mesmo: topologias em tradução ou, glosando Giddens, a Cidade é uma estrutura em continua estruturação. A própria origem da cidade enquanto estrutura espacial relaciona-se directamente com a tradução de um mundo organizado na oralidade para um mundo organizado pela escrita. Como diz Giddens: São os recipientes que armazenam recursos alocativos e autoritários que geram os principais tipos de princípio estrutural na constituição da sociedade (...). A armazenagem de informação, desejo argumentar, é um fenómeno fundamental que permite o distanciamento tempo-espaço e um encadeamento que une as várias espécies de recurso alocativos e autoritários em estruturas reproduzidas de dominação. A cidade, que sempre só se desenvolveu em conjunto com a elaboração de novas formas de armazenagem de infor-

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mação, sobretudo a escrita, é o recipiente ou o “crisol de poder” de que depende a formação de sociedades divididas em classes. (Giddens, 1989: 213)

A concepção da cultura como tradução leva a considerarmos que a própria cidade seja uma tradução da cultura como um todo, ou seja, a cidade é metáfora da cultura. Dito de outro modo, o alfabeto e a escrita possibilitaram uma tradução linguística da cultura, enquanto a cidade possibilitava uma tradução semiológica da mesma. Esta ideia de que a cidade traduzia a cultura no sentido de a “transladar ou mover lateralmente, avançar de um ponto para outro num plano nivelado” (Steiner, 1998: 492) pela aglutinação da mesma num local é também o que Giddens parece querer dizer-nos quando cita Munford, o qual expressa exactamente esta ideia: O começo da vida urbana, a primeira vez que a cidade propriamente dita se torna visível, foi marcado por um súbito aumento de poder em todos os departamentos e por uma ampliação do papel do próprio poder nos assuntos dos homens. Uma variedade de instituições existiria antes separadamente, reunindo seus membros num local comum de encontro, a intervalos periódicos: o acampamento dos caçadores, o monumento sagrado ou santuário, a caverna ritual paleolítica, a aldeia agrícola neolítica – tudo isso se aglutinou num lugar de reunião maior, a cidade. (...) A forma original desse recipiente durou cerca de seis mil anos; só há alguns séculos começou a se desintegrar. (Munford, cit in Giddens, 1989: 213)

Giddens refere que a desintegração do modelo se relaciona com a emergência dos Estados-Nação como nova realidade. Apesar de tal não ser completamente errado, talvez agora estejamos em melhor condições para perceber que a desintegração daquele modelo se relaciona antes com o alargamento progressivo no espaço, passando a semiótica urbana a ser uma linguagem compreensiva num cada vez mais largo espectro. Assim, a civitas traduziu-se em capital de Estado-Nação, em metrópole colonial e, finalmente, em cosmopolis. Ao mesmo tempo que tal processo se dava, aumentava a competência de manipulação da semiótica urbana como linguagem específica, sendo possível recriá-la onde quer que seja (do Deserto aos Pólos) e sendo também possível resgatá-la num único equipamento (das utopias corbusianas aos parques temáticos, aeroportos e hotéis actuais). Na explicação da transição descrita como modernidade tardia, pós-modernidade, globalização, planetarização ou de outra qualquer forma, um aspecto parece repetir-se: a centralidade da cidade como lugar de tradução/negociação do sentido e da forma das novas relações sociais. De Castells a Hannerz, de Saskia Sassen a Appadurai, de Robertson a Virilio, de Davis a Harvey, etc, é na cidade que se joga a nova transição. Propõe-se aqui que esta transição implica o upgrade da tradução linguística (ela própria entre a oralidade e a escrita) para uma tradução semiológica ou cultural cada vez mais global (entre a escrita e a pluralidade de códigos semiológicos), associada à passagem de uma comunicação bidimensional para uma comunicação tridimensional. A hipótese aqui apresentada é a de que, nesta transição, a arquitectura e o urbanismo constituem códigos semiológicos centrais. A genealogia da tradução arquitectónico-urbanística é longa, uma vez que o mais elementar dos elementos arquitectónicos (o bastão/pilar que se espeta no solo indicando o lugar onde se vai ficar um período de tempo) é, em si mesmo, uma metáfora da vida nas suas três dimensões, infra-terrestre, terrestre e extra-terrestre.

A Cultura como Tradução: Exercícios Etnográficos em Diálogo

No entanto, a emergência da cidade como fenómeno hegemónico é, porventura, um primeiro momento em que os códigos semiológicos (arquitectónico-urbanísticos) se estruturam num espaço-tempo concreto que reflecte vivências anteriores dispersas. A forma da cidade, determinados equipamentos urbanos (o mercado, o centro político, equipamentos religiosos, etc.) e determinadas cidades (cidades imperiais) foram-se constituindo como cada vez mais traduzíveis interculturalmente. No entanto, a industrialização e as suas três revoluções (da máquina a vapor, do motor de explosão e da máquina virtual) tornam a cidade numa linguagem cada vez mais intercultural, já não a um nível nacional ou imperial, mas cada vez mais global. Ou seja, a uniformização do espaço-tempo passou a uma lógica em que a arquitectura e o urbanismo transitam primeiro para um modelo panóptico e deste para um modelo heterotópico (usando os dois conceitos de Foucault), ainda que ambos coexistam no espaço: o primeiro para as zonas ‘desconectadas’ do mundo e das cidades e o segundo como modelo das zonas conectadas. Ou seja, existe cada vez mais um ‘urbanismo genérico’ e uma ‘cidade genérica’ (referida por Sorkin e Koolhas cit. in Cauter, 2004) e as zonas que não seguem este código semiológico arquitectónico-urbanístico, ficam desconectadas. Este urbanismo genérico, tipicamente heterotópico, implica um padrão de comunicação tridimensional, experiencialmente arquitectónico e urbanístico primeiro, mas cada vez mais virtual. Apresentemos esta ideia, em forma de exercício, a partir do objecto etnográfico que a região metropolitana do Porto – Portugal, nos possibilita. A região metropolitana do Porto viu o número de centros comerciais e de condomínios residenciais aumentar exponencialmente nos últimos 20 anos, desde a construção da primeira grande superfície do país em 1985, o Continente de Matosinhos. Em alguns casos (a ‘cidade das Antas’; a zona da ‘Arrábida’; a zona do Ikea…) as grandes superfícies e/ou os centros comerciais são os pólos agregadores de novas centralidades, de novas micro-cidades na extensão metropolitana. Noutros casos (Foz do Porto; Marginal de Leça; Marginal de Gaia; zona nobre da Maia) são os condomínios fechados ou reservados que se constituem como pólos de novas centralidades e é provável que o mesmo (de forma mais tardia) esteja a acontecer com determinadas funções laborais (zona industrial em Ramalde; zona industrial chinesa em Vila do Conde; campus universitário em Paranhos; Cidade da Justiça em Cedofeita; etc). Estas estratégias urbanísticas semi-planeadas evidenciam a construção da cidade como sistema de heterotopias, quer estas tenham a sua origem no consumo (a moeda como padrão), na produção (a burocracia como padrão) ou na habitação (a família como padrão). Mais, estas heterotopias tendem a assemelhar-se cada vez mais (como se a solidariedade mecânica estivesse de volta em substituição da orgânica), todas elas seguindo o modelo da cidade genérica (de Koolhas e Sorkin in Cauter, 2004; de Cauter, 2004; de Petti, 2007 e de Martin e Baxi, 2007 ), em que o espaço público urbano parece seguir o modelo do ‘Átrio’ e o urbanismo seguir o modelo do Aeroporto e do Hotel, nas suas lógicas ‘capsulares’. Seguindo estes modelos empíricos ou outros, o processo em curso parece evidenciar que está em curso uma padronização da experiência no espaço-tempo que sucede à

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padronização dos valores do espaço-tempo atingidos em função da hegemonia da velocidade dos transportes, por um lado, e das telecomunicações por outro, como refere Virilio. É, exactamente, a comunicação urbana que está a tornar a transição genérica heterotópica do espaço-tempo contemporâneo mais evidente, ao estar a mudar de um padrão bidimensional para um padrão tridimensional, ou seja, ao estar a instituir-se a telecomunicação como comunicação de proximidade, sendo a comunicação urbana colonizada pela telecomunicação planetária. Ou seja, em cada uma daquelas heterotopias urbanas torna-se mais fácil (entre colegas de trabalho, entre vizinhos e mesmo dentro da mesma casa e, evidentemente, em lugares públicos entre amigos ou mero conhecidos) o contacto via telemóvel ou sms, email ou Messenger. Este sistema de comunicação equipara cada vez mais aquelas 3 áreas da vida, numa tradução cultural em que o consumo, a produção e o mundo doméstico são comutativos. Pela via da generalização planetária da heterotopia, a experiência passa cada vez mais a ser similar em vários locais do planeta, sendo o Aeroporto, o Hotel e o Átrio os lugares/não-lugares onde se podem encontrar todas as diferentes funções (consumo; trabalho; família) sem paradoxo. Assim, torna-se expectável que o Aeroporto seja o modelo do novo urbanismo, o Hotel o modelo do novo equipamento e o Átrio o modelo do novo espaço público na nova centralidade. É preciso ter em conta que a lógica da cultura como tradução implica que qualquer consciência tradutiva é efémera, tornando o modelo encontrado rapidamente um modelo confundido pela reflexividade da própria cultura. Assim, ao mesmo tempo que se procura compreender a cultura de tradução semiológica da ‘cidade genérica’, esta recria-se em novas traduções heterotópicas e, para além disso, algumas das novas heterotopias (a da digitalização) parecem constituir-se cada vez mais como um novo campo de tradução com alguma autonomia (cf. Seixas, 2003). A hipótese que aqui se apresenta é que, com os novos recipientes de acumulação de informação, a rede e os terminais digitais, estabelece-se a relação necessária entre um único ponto no espaço e o planeta como um todo, atingindo-se com tal possibilidade o objectivo inerente à própria semiótica urbana, a ideia da cidade-mundo passar a estar num ponto que coincide com o indivíduo-cidadão (em potência pelo menos) através dos hotspots. Nesta nova situação cria-se uma nova semiótica e uma nova literacia em construção. É sobre ela que falaremos no exercício seguinte.

4. Navegação na rede e literacia informática: a cultura como tradução entre o utilizador e o hacker Os utilizadores da internet (como espectadores actuantes) não têm noção dos pilares que sustentam os sistemas de informação que cada vez mais interferem nas estruturas do real. O avanço da internet proporciona a todos acesso a informação proveniente de todo o mundo, promovendo a transnacionalização do conhecimento. Os fluxos de informação não reconhecem fronteiras físicas e raramente se acorrentam às normas e legislativas do real. Appadurai (1996) afirma existirem

A Cultura como Tradução: Exercícios Etnográficos em Diálogo

separações óbvias na economia cultural global. Não podemos entender o carácter complexo desta nova economia pelos métodos tradicionais dicotómicos ‘centro’ vs ‘periferia’ porque podem existir múltiplos centros e múltiplas periferias promovidas por novas formas de consumo, novas sociabilizações, novas identidades globais salpicadas pelo conhecimento cada vez mais profundo do outro. O saber deixa de estar remetido ao domínio de apenas alguns e passa a estar acessível a “todos”. A informação chegou às massas transformando-as, tornando-as mais críticas e esclarecidas “(…) porque oferecem à construção de eus imaginados e de mundos imaginados novos recursos e novas disciplinas” (Appadurai, 1996). Os fluxos de informação percorrem o mundo a um ritmo vertiginoso provocando “(…)a transformação do discurso quotidiano. Ao mesmo tempo, fornece recursos para toda a espécie de experiências de construção do eu em todo o tipo de sociedades e para todo o tipo de pessoas” (Appadurai, 1996). É neste contexto, numa cultura electrónica e globalizante, que surgem os hackers como resultado destas hipóteses de produção de subjectividades. A lógica de tradutibilidade entre a tecnologia e o sistema intercede em nome de indivíduos cada vez mais tecnológicos e inconscientemente adaptados ao mundo do futuro: um presente de passada larga que nos deslocaliza da realidade do agora e nos projecta em multi-realidades cada uma com os seus significados e arbítrios que legitimam a nossa actuação. Antes de tentarmos entender o conceito de hacker informático consideramos que a sua dialéctica com o real se baseia numa troca de informação com outra categoria que lhe é paradoxalmente oposta, há uma oposição binária entre dois elementos: os utilizadores de informática e os hackers informáticos. Embora nos possam parecer semelhantes, estão em pólos opostos no que toca à utilização da tecnologia, nomeadamente a informática. Os primeiros são utilizadores passivos e os segundos os construtores e conceptualizadores dessa utilização. Contrariamente, a virtualidade força a existência de indivíduos cada vez mais tecnológicos e no futuro o utilizador poderá tornar-se o conceptualizador da sua própria utilização. À luz dos estudos de tradução cultural, a zona de contacto do presente está entre hackers e utilizadores, mas em breve passará a estar entre humanos e tecnologia. Os utilizadores conduzem nas estradas virtuais segundo as indicações que lhe vão surgindo (indicações de hiper-localidades) seja pela sugestão de outros utilizadores ou ao googlarem determinados conteúdos. Os hackers conduzem por estradas virtuais que para a maioria dos utilizadores levam a becos sem saída. No cerne da proliferação/globalização tecnológica estão os hackers que fazem os programas, desenvolvem as tecnologias e detectam as vulnerabilidades dos sistemas informáticos. Nos hackers o código e o amplo conhecimento em determinada tecnologia, são uma expressão do eu que se define como arte na detecção de vulnerabilidades dos sistemas de informação. Através da observação, entrevistas a alguns hackers, análise de conteúdo e interpretação, notamos que os hackers identificam-se, ao que parece, pelo propósito de amostragem de uma determinada identidade ligada a determinados feitos, constituída por um nickname que participa activamente na globalização e que, paradoxalmente circula apenas entre aqueles que são “seus semelhantes”. Socia-

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bilizam através das narrativas que partilham entre eles, desde a partilha dos seus projectos, últimas vulnerabilidades, até ao estado tecnológico em determinado momento. Estas trocas servem como veículo de partilha de valores, prioridades éticas e sustentabilidade de uma cultura que molda o mundo tecnológico e, no entanto, passa totalmente despercebida à maioria dos indivíduos. As comunidades hacker relacionam-se através da troca destas narrativas (o como conseguiram invadir determinado servidor) que contam como e quem fez. Esse é o poder do hacker: o poder de saber. Segundo Goffman, há “mistificação” quando o actor (hacker) ocupa uma posição que é formalizada pelo distanciamento e criação de mecanismos que deixam a audiência em estado de mistificação perante ele. Nestas narrativas de passagem de informação, colada à descoberta de uma determinada vulnerabilidade, está o nickname do hacker que a descobriu. O nome ocupará o seu lugar de destaque no mundo virtual e, ao conjunto de actos que ele vai fazendo coloca-se cada vez mais distante e inatingível. No fundo, é alguém que existe não se sabe como, quando ou onde. Se a “monarquia, é na realidade uma criação de cada cérebro individual” (Goffman, 1993, p. 78) suscitando a todos a vontade de ser rei e de imaginar o que fariam na sua posição, no mundo da tecnologia os melhores hackers são também, uma criação gerada por estas narrativas que os mistificam. De facto, os hackers são indivíduos normais que vivem a vida de todos os dias como a maioria dos outros indivíduos mas com uma grande diferença: detêm o conhecimento que muitos gostariam de ter, proporcionando ao exterior a vontade imaginativa de ter este poder ou raciocínio lógico e tecnologizado. Mais ou menos resistentes, todos acabam por ser utilizadores (interactivos) da internet. Os “interfaces sócio-digitais” (Seixas, 2008) estão ligados e sincronizados ao real de forma cada vez mais intensa, provocando inúmeras dependências e disjunturas entre os dois mundos. Os utilizadores têm algumas suspeitas quanto à sua segurança quando conduzem na auto-estrada da informação. A vigilância feita pelas instituições reais não se adequa à incomensurabilidade e velocidade do mundo virtual. Neste contexto surgem os hackers que de uma ou de outra forma participam no desenvolvimento das tecnologias deslocando-se por estradas alternativas que não se encontram mapeadas na cibernética do mundo. Se procurarmos na internet comunidades hackers, vamos encontrar fóruns e sites objectivamente ligados a esta cultura. Estes sites, por si, contrariam um dos princípios básicos desta cultura: ser discreto. Tudo que é falado e publicado teve inicio nas comunidades desconhecidas ou hackers isolados que são os primeiros a descobrir as vulnerabilidades dos sistemas (0day, leia-se zeroday) . O 0day é o objectivo primordial de qualquer hacker ou comunidade hacker. É uma vulnerabilidade única totalmente nova que só o seu autor/explorador conhece, detentor de um poder real, global e transnacional. O primeiro a explorá-lo na sua totalidade é o hacker, autor da descoberta, depois essa informação é passada para a comunidade que a explora e a passa para outra comunidade (deixa de ser um 0day). A esta troca está ligado o poder meritocrático do detentor que oferece informação

A Cultura como Tradução: Exercícios Etnográficos em Diálogo

ao outro, subjugando-o pelo mérito (o poder de saber). Esta tensão existente na troca perde força à medida que se desloca para as comunidades periféricas e se afasta do centro/autor da descoberta. Quando o 0day chega às hiper-localidades mapeadas, na maioria das vezes surge em modo de narrativa ligado ao hacker e, mais tarde ou mais cedo, surge aliado a uma “cura”. Por exemplo, nos nossos computadores já todos estamos habituados à “Actualização de Segurança para o Microsoft Windows (…)”. Depois de algumas entrevistas exploratórias facilmente concluímos que as comunidades mais importantes encontram-se em locais a que ninguém tem acesso a não ser os próprios elementos de determinada comunidade. Sempre que tentamos lá chegar concluímos que são estradas virtuais sem saída, hiper-localidades desconhecidas. Tudo começa no IRC. O Mirc como base e meio de comunicação onde se encontram e trocam informação. As comunidades possuem canais de IRC vedados a todos os que não lhe pertencem. São grupos extremamente privados e de acesso praticamente impossível. Como nos diz um dos hackers que entrevistamos: “Na altura utilizávamos uma espécie, um pseudo IRC, era um IRC, mas era encriptado. As conversas estavam encriptadas, todos nós partilhávamos a mesma chave e dentro desse servidor, conseguíamos falar abertamente porque sabíamos que as nossas conversas nunca iriam ser interceptadas. Muito semelhante ao IRC, mas para entrar era preciso uma chave para encriptar a ligação”. Para tornarem a comunidade realmente privada as comunidades utilizam chaves de encriptação da ligação, facto que é quase suficiente para mais ninguém ter acesso às conversas do grupo reforçando-o pela privacidade. Estes hiper-locais de encontro assemelham-se a encontros reais privados entre um determinado grupo de pessoas que por terem regras e objectivos comuns chamamos de comunidade. Os hiper-locais privados (pela encriptação de dados) são o local físico onde os hackers se encontram e decidem o rumo a dar à comunidade, onde partilham informação e onde colocam desafios sempre com objectivo de aprenderem mais. As comunidades são constituídas por indivíduos de todo o mundo. Tipicamente são um “produto” da globalização. Poderemos ter comunidades constituídas por indivíduos de nacionalidade portuguesa, brasileira, americana, ou indiana, não existem fronteiras na sua constituição e os locais onde se encontram são hiper-locais totalmente independentes das localizações reais dos indivíduos que as constituem. Assim, podemos concluir que um hacker começa a sua actividade de forma isolada. Mais tarde, quando atinge um nível de conhecimento elevado, acaba por se destacar no meio de milhões. Destaca-se por características práticas tecnológicas, distingue-se de outros porque invadiu um determinado servidor que tem peso na economia real (um 0day). A partir desse momento ele começa a ser conhecido nos canais mais privados desta cultura e, mais cedo ou mais tarde, acaba por ser convidado a pertencer a uma determinada comunidade (convite que surge pelo mérito adquirido nos circuitos de informação). Esse convite pode vir do outro lado do mundo, a constituição de uma comunidade hacker nunca parte das relações sociais (reais) entre indivíduos. Muito pelo contrário, na maioria das comunidades hacker

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os elementos que as constituem nunca se encontraram fisicamente. Os seus laços de amizade e conhecimento são totalmente virtuais, não se baseiam nas regras da sociabilização de indivíduos através do real ou do contacto físico. São comunidades virtuais, que se encontram em hiper-localidades transnacionais virtuais, sempre dependentes da electrónica para poderem comunicar e com laços fortes promovidos pela curiosidade e pela partilha de conhecimento: são novas identidades globais salpicadas pelo conhecimento cada vez mais profundo do outro.

5. Perspectivas sobre as perspectivas Este texto foi produzido no âmbito de um processo de aprendizagem académica em que se confrontaram três pessoas com interesses investigativos bastante diferenciados e tal circunstância possibilita a situação adequada para explorar a hipótese da cultura como tradução. No entanto, em função do formato de aprendizagem e da preocupação com a coerência da proposta, este texto é relativamente conservador nas possibilidades que a hipótese da cultura como tradução possibilita. É, no entanto, possível, cremos, a partir deste texto e da sua hipótese, pensar outros textos, porventura mais heurísticos ainda; textos que procurem discutir/ traduzir novas problemáticas que possibilitem explorar a concepção de identidade cultural como tradução: a) A nomeação como problema central na cultura como tradução; a) A construção sócio-política de identidades/cidadanias alargadas como problema central na cultura como tradução; a) A relação entre condições materiais e representações culturais como problema central na cultura como tradução; a) As linguagens emergentes que problematizam as dimensões anteriores como problema central na cultura como tradução.

A concepção da cultura como tradução implica que todo o processo cultural a todo o tempo é tradução. Ora tal concepção implica um foco específico de forma a captar a tradução em função de determinadas estratégias investigativas. O que propomos é que a existência de novos nomes próprios e novos glossários são uma evidência da cultura como tradução; que tais nomes relacionam velhas e novas identidades de nível sócio-político; que tal tradução identitária implica leituras cruzadas entre condições materiais e representações culturais e que é nestas leituras cruzadas que surgem os novos nomes e os novos glossários, enfim linguagens emergentes capazes de, em determinado momento, reescrever a cultura.

REPRESENTAÇÕES DE PORTUGAL: UM CONFRONTO INTERCULTURAL Pedro Martins Università degli Studi di Siena, Itália

Quais as características, símbolos e influências da Cultura Portuguesa? Como se apresentam Portugal e os Portugueses aos olhos de um estrangeiro?

O presente artigo pretende, de forma bipartida, questionar e debater alguns dos principais aspectos relacionados com a cultura, em geral, e com a cultura portuguesa, em especial. Proceder-se-á assim, num primeiro momento, ao enquadramento teórico do tema, bem como a uma possível definição do conceito de cultura, tendo em conta não só a sua origem histórica e simbólica, mas também os principais elementos que a formam e caracterizam. Num segundo momento, e através de um exemplo prático baseado num questionário realizado a falantes de três línguas. europeias (portuguesa, italiana e alemã), procurar-se-á então interpretar o conceito de cultura portuguesa e, em particular, o resultado dos três pareceres obtidos. Propomos, portanto, uma breve e cuidada análise dos pressupostos que garantem o diálogo e o confronto intercultural no âmbito das representações da actual sociedade portuguesa.

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I. Do conceito de Cultura 1. Proposta de definição e enquadramento teórico. O termo cultura encerra, em si mesmo, duas acepções antropológicas clássicas que, contudo, divergem claramente quanto ao seu conteúdo. Num primeiro caso, deparamo-nos com o conceito uno e universal de cultura, tal como definido por E.B. Taylor em 1871: conjunto de saberes, crenças, costumes e comportamentos apreendidos e transmitidos pelo Homem-ser-social. Nesta acepção, a cultura não representa um dado natural inerente ao ser humano, mas sim um elemento interiorizado, a posteriori, pelo Homem evoluído e que o distingue dos demais grupos societários. A preservação e defesa destes valores depende, em larga medida, do sistema educativo estatal, pois este é responsável não só pela formação da personalidade cultural dos seus cidadãos, mas também por uma possível renovação cultural que se queira instituir. Esta visão é, contudo, criticada pelos estudos antropológicos que se sucederam, já que defendem a necessidade de definir a cultura, não como um estádio secundário contraposto àquele natural, não cultural ou primitivo, mas como um processo de criação, apreensão e transmissão dos vários elementos que compõem a cultura no seu todo. Ocorrendo estes fenómenos de forma diversa e em locais distintos, emerge em 1887, e como consequência lógica, uma segunda acepção, pluralista, do termo cultura (cfr. F. Boas), ou seja, não obstante a unicidade da condição humana, existem culturas humanas diferentes. Cada uma destas será, a partir de um núcleo de características comuns, individualmente identificada e delimitada face às demais o que, todavia, não deve conduzir a uma qualquer classificação hierarquizada ou comparatística daquelas e, muito menos, a uma sua definição unívoca. Prevalece, assim, um relativismo cultural que nos impede de determinar tout court uma só cultura. Reportamos aqui o exemplo apresentado em 1952 por Lévi-Strauss, pois é elucidativo da infinita quantidade de culturas e sub-culturas existentes, independentemente da amplitude do espaço geográfico seleccionado: “Si l’on cherche à déterminer des écarts significatifs entre l’Amerique du Nord et l’Europe, on les traitera come des cultures différentes; mais, à supposer que l’intérêt se porte sur des écarts significatifs entre (...) Paris et Marseille, ces deux ensembles urbains pourront être provisoirement constitués comme deux unités culturelles” (Izard: 1992). A cultura, as culturas representam, portanto, um fenómeno dicotómico fundamentado em dois vectores antagónicos, mas só aparentemente inconciliáveis: por um lado, a inevitável interacção e intercâmbio entre culturas ou, mais precisamente, entre aqueles que são os seus membros e, por outro lado, a necessária hermeticidade das mesmas enquanto forma de afirmação, de diferenciação, mas também, e sobretudo, de sobrevivência perante as restantes.

A Cultura como Tradução: Exercícios Etnográficos em Diálogo

Apresentadas que foram as duas principais correntes do pensamento antropológico clássico em relação ao termo cultura – a universalista / evolucionista de Taylor e a relativista de Boas – importa, ainda neste âmbito, descrever brevemente a evolução ideológica que entretanto se verificou. Deste modo, observamos que, já na segunda metade do século XX (1958), surge, pela mão de Lévi-Strauss, uma nova concepção – totalizante – de cultura, segundo a qual esta deve ser encarada, em especial, como um conjunto estruturado e articulado, quer de decisões inconscientes próprias do ser-humano-social, quer de manifestações institucionais e institucionalizadas da vontade social comum. Seguidamente, e já nas últimas décadas do século XX, nascem entendimentos (cfr. Drummond, Bourdieu, Sahlins) cuja base explora, em particular, a prática e a proliferação das culturas, introduzindo assim novos e importantes significantes (contra-cultura, sub-cultura, determinismo cultural) com o objectivo de melhor interpretar e compreender os modernos fenómenos culturais, visto que estes ocorrem, cada vez mais, numa escala global e múltipla, isto é, não só não estão limitados a uma só comunidade, como também se relacionam e interagem dentro de uma mesma sociedade.

2. Cultura e identidade. A noção de cultura encontra-se, quer na sua perspectiva universalista quer naquela relativista, sempre associada a um outro termo fundamental – Identidade - com o qual, por vezes, se (con)funde. A identidade de uma comunidade resulta, em especial, do sentimento de comunhão, união e identificação vivido entre os seus membros enquanto grupo de indivíduos. Estes, de forma isolada, contribuem colectivamente para a formação de uma identidade comum baseada na partilha de interesses e objectivos, na congregação de esforços e sinergias, na fruição de bens e serviços, criando, assim, uma imagem agregadora e representativa de todos os sujeitos que a constituem. Concorrem ainda para este resultado duas outras características: por um lado, a continuidade cronológica, isto é, a imagem criada terá de estar presente não só nos momentos e experiências pretéritas, mas também na vivência e projecção de factos futuros; por outro lado, a função diferenciadora, ou seja, esta mesma imagem terá de ser suficientemente independente, suficientemente exclusiva, de forma a que se possam diferenciar dos demais todos aqueles que com ela se identificam. Em termos práticos, verificamos, deste modo, que ambos os termos, cultura e identidade, se reúnem num único e novo conceito de identidade cultural. 3. Dos símbolos. Os símbolos, lato sensu, constituem a base da identidade cultural de uma comunidade. Da simples associação de bairro ao complexo mecanismo que o Estado-Nação encarna, todos os grupos de indivíduos criam, acolhem, assumem e defendem certos elementos-chave como o seu núcleo cultural identitário.

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Uma qualquer realidade comunitária dotada de identidade cultural é, portanto, indissociável de referências simbólicas próprias. Um símbolo, ao permitir o mútuo reconhecimento entre os indivíduos que com ele se identificam, bem como a necessária diferenciação das restantes congregações comunitárias, contribuem decisivamente para a unidade (para a unicidade) de todos os elementos que constituem aquele grupo cultural e identitário. Sob a forma, entre outras, de um objecto, de um sinal, de uma palavra, o símbolo possui, ainda, uma outra importante característica que o torna num dos factores mais significativos para a criação e manutenção da identidade cultural: a polivalência. Aquela, na acepção sugerida, é, obrigatoriamente, polivalente, visto que, para além de ser objecto de renovações esporádicas e concordadas de forma a que, intrinsecamente, mantenha, ao longo dos tempos, o seu valor e significado, representa também o (único) elemento capaz de reunir à sua volta indivíduos dos mais variantes quadrantes sociais, económicos, políticos, culturais e religiosos. Tomemos como exemplo um jogo de futebol realizado em Portugal por duas das principais equipas portuguesas. Este desporto, enquanto símbolo daquele país, tem o poder de congregar, num mesmo estádio, pessoas de classe baixa e alta, pobres e ricos, de esquerda e de direita, pouco e muito instruídas, pois, fruto da sua polivalência, permite inúmeras interpretações: para uns é visto como um evento desportivo, para outros como uma oportunidade para exprimirem a sua raiva e, para outros ainda, como um negócio lucrativo. Desta forma, constatamos que o símbolo assume um papel preponderante na vida de uma comunidade, já que, ao admitir exegeses concomitantemente desiguais e, por vezes, inclusivamente opostas, contribui para a co-existência, para a conciliação, para a fusão, do interesse pessoal com o comunitário, do indivíduo com a colectividade, do particular com o todo, “transformando a realidade da diferença na aparência da similaridade” (Guibernau: 1997).

4. Da formação da identidade cultural A identidade cultural resultará, portanto, de fenómenos diferentes consoante o tema seja encarado na sua perspectiva individual ou colectiva. Assim, no primeiro caso – perspectiva individual –, deparamo-nos com três principais concepções para a formação da identidade cultural de um indivíduo: o sujeito do Iluminismo; o sujeito sociológico, o sujeito Pós-moderno (Hall: 2001). O típico sujeito do Iluminismo, sábio, racional, consciente, é dotado ab initio de uma identidade que se situa no núcleo interior do próprio indivíduo. Aquela desenvolver-se-á de seguida acompanhando a evolução do sujeito, mas sempre centrada na sua própria pessoa e capacidades, excluindo, desta forma, a necessidade da presença ou do contacto directo com outrem. A identidade do sujeito sociológico é, por sua vez, criada e desenvolvida graças à relação do indivíduo com a sociedade, ou seja, porque necessita de interagir com terceiros, logo não é autónomo nem auto-suficiente, o seu núcleo interior resultará

Representações de Portugal: Um Confronto Intercultural

não só de factores internos e intrínsecos à sua pessoa, mas também, e sobretudo, de contextos e situações externas com as quais se confronta ao longo da vida. Por fim, o sujeito Pós-moderno é, em especial, caracterizado por não ter uma identidade ou núcleo interior fixo, imutável. Apesar de se tratar de um aspecto que, com as devidas adaptações, se observa também nos dois exemplos anteriores, neste último caso, constatamos que o próprio processo de criação de uma identidade não é, de todo, estável, coerente ou mesmo lógico. O indivíduo não é, assim, único ou unificado, pois, cada vez mais, assume diferentes identidades em diferentes momentos, mas também, e aparentemente de forma paradoxal, diferentes identidades num mesmo momento. A dificuldade das sociedades contemporâneas é, por conseguinte, conciliar indivíduos “multi-identitários” com os interesses e subsistência da própria colectividade. No que diz respeito à perspectiva colectiva, verificamos que o ser humano sempre sentiu necessidade de encontrar pontos de referência comuns que permitissem a sua identificação com um grupo, com um conjunto de indivíduos que lhe fossem semelhantes em termos de interesses, desejos e aspirações. Tal realidade foi, ancestralmente, representada por lendas, mitos e deuses e, tem, hoje, um exemplo máximo na ideia de Estado-Nação e respectiva cultura. A cultura nacional contribui para a formação de padrões (pseudo) universais relativos à língua., à história, à arte e aos demais elementos de uma sociedade que mais não são do que representações, identidades, estereótipos apócrifos, criados e imaginados para que exista um sentimento de identidade nacional colectivo ou, na expressão de Benedict Anderson, uma comunidade imaginada. Esta encontra-se, assim, fundada em três principais pilares “fabricados” propositadamente para tal efeito: 1) A narrativa da Nação (descrição estereotipada de contextos e experiências da cultura popular partilhados por todos os membros da comunidade); 2) A intemporalidade da Nação (representação unificada do grupo, fruto de um contínuo e sólido desenvolvimento da identidade nacional a partir da valorização exarcebada das tradições, dos ritos, et cetera); 3) A unicidade e a unidade da Nação (consideração do espaço nacional como algo único, composto por um conjunto de diversos factores – a língua., o povo e outros – que, no entanto, actuam como um todo). A comunidade imaginada perduraria, portanto, graças às memórias do seu passado, ao desejo de a viver em conjunto no presente e à vontade de perpetuar a sua herança através de factos e acções futuras. Esta concepção colectiva (colectivista) é, porém, passível de várias críticas. Homi Bhabha, por exemplo, demonstra, numa das suas obras, a latente impossibilidade de manter a Nação como uma realidade una e única (Bhabha: 2001). Desde logo, importa desmistificar o conceito de Nação holística, já que esta, em primeiro lugar, não deve ser vista como uma unidade homogénea, pois resulta da disseminação de povos e culturas diferentes que contribuem, ainda hoje, para a existência de variados elementos caracterizadores de uma sociedade enquanto polo aglutinador de um sem número de influências distintas. A dimensão material e temporal da Nação não se coaduna, por conseguinte, com o Historicismo, com a

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narrativa transparente e linear dos acontecimentos, razão pela qual a sua perda de significado é, por vezes, combatida através de metáforas e metonímias que visam a substituição idealizada da Nação de forma a que a identificação do povo com determinados referentes comunitários possa perdurar ad aeternum. Perpetua-se, deste modo, a comunidade imaginada que, recorrendo não só à integração marginal dos novos indivíduos, mas também à criação e constante renovação de signos, símbolos e ritos, bem como à assimilação de valores, objectos e ideias “estrangeiras”, transforma a realidade alheia e externa em espólio da Nação. Trata-se, assim, de uma constante perda e aquisição de identidade individual e correspondente aquisição e perda da identidade colectiva que, num movimento cíclico, originam a (des)construção dupla de uma Nação, mais ou menos assimilacionista, mais ou menos multiculturalista, mais ou menos interculturalista. Por outras palavras, assiste-se ao eterno debate entre comunidade imaginada e indivíduomembro-externo, isto é, entre a visão holística e a visão fragmentada ou pluralista da realidade. O sentido em causa, não é, contudo, obrigatoriamente antagónico, visto que o sujeito poderá situar-se num aparente “entre-lugar”, numa espécie de sociedade polimorficamente globalizada. Também Wieviorka analisou esta questão idealizando, para tal, o célebre Triângulo da Diferença (Wieviorka: 2002). Após identificar os três componentes correspondentes a cada uma das extremidades daquela forma geométrica (a Identidade Colectiva, O Indivíduo Moderno e o Sujeito), o autor afirma a necessidade de articular, harmoniosamente, este triângulo. Em termos ideias falaríamos, talvez, de um equilátero onde a Identidade Colectiva, ponto de referência para o Indivíduo Moderno enquanto membro de uma comunidade (imaginada ou não), deveria também dar azo às aspirações e aos interesses particulares do Sujeito. Por sua vez, o Sujeito, ao realizar as suas acções pessoais teria também em conta o seu papel de Indivíduo Moderno pertencente a uma determinada Identidade Colectiva à qual deve respeito. Manter este triângulo equilibrado não será, certamente, fácil, todavia, representa, possivelmente, a única forma de convivência saudável entre os seus vários elementos, senão vejamos: em casos limite, a total desconsideração do Indivíduo Moderno ou do Sujeito por parte da Identidade Colectiva poderá conduzir a fenómenos de genocídio e/ou de limpeza étnica, e o desrespeito da Identidade Colectiva por parte do Indivíduo Moderno ou do Sujeito poderá, por exemplo, suscitar sentimentos de não pertença ou de sobre-/hiper-valorização de si mesmo provocando a destruição daquela (v.g. a actuação dos Kamikaze). Seguidamente, e a partir de exemplos práticos relativos a algumas das características da identidade cultural portuguesa, procuraremos observar como os três testemunhos supra referidos permitem retomar, comprovar e alargar o leque de aspectos teóricos até agora mencionados.

Representações de Portugal: Um Confronto Intercultural

II. Representações de Portugal: um questionário. 1. Questões prévias. O questionário proposto, elaborado no primeiro semestre de 2006 e base material e prática deste estudo, representa assim um possível ponto de partida para a análise de alguns aspectos da cultura portuguesa (cf. Anexos). Para tal, idealizámos um questionário-tipo composto por vinte e dois itens divididos em duas secções: “Identificação Pessoal” e “A Cultura Portuguesa”. Não tendo este breve estudo, a fortiori, a pretensão de apresentar uma amostra representativa de toda a população que contacta com a cultura portuguesa, mas sim disponibilizar uma proposta para um eventual trabalho de investigação mais alargado, optámos por inquirir “apenas” três pessoas (uma de nacionalidade portuguesa, uma de nacionalidade italiana e uma de nacionalidade alemã). O resultado obtido, mas mais importante ainda, o método adoptados serão, portanto, o objecto das restantes páginas que compõem este artigo. 2. A população inquirida. Tal como referido, foram inquiridas três pessoas de diferentes nacionalidades (portuguesa, italiana e alemã). No que diz respeito ao primeiro caso, interessava-nos alguém jovem e que estivesse integrado na cultura portuguesa, a fim que pudesse ser considerado como “modelo”, como guia orientador indicativo de alguns dos elementos que melhor caracterizam esta cultura. Em relação ao segundo e ao terceiro caso, procurámos duas pessoas não portuguesas e com origens diversas – origem românica e germânica, respectivamente –, mas que, ao mesmo tempo, partilhassem pelo menos duas características relevantes para este estudo, nomeadamente, a faixa etária (22/23 anos) e, em especial, o tempo de permanência em Portugal (para ambas, 7 meses), pois só assim estaríamos perante duas pessoas que, em princípio, teriam interesses e experiências de vida semelhantes, mas, possivelmente, considerações diferentes sobre a cultura portuguesa. 3. O questionário. A elaboração deste questionário não foi, de todo, fácil. Para além da questão material relativa ao conteúdo do assunto que nos propusemos tratar, e da questão formal, isto é, o modelo adoptado para a apresentação e disposição do conteúdo em causa, existem ainda aspectos de carácter sociológico e psicológico que podem influenciar e determinar o resultado final de um questionário. Deste modo, optámos, por exemplo, por elaborar um questionário directamente na língua. materna dos inquiridos, procurando evitar quaisquer obstáculos e barreiras que pudessem impedir a livre e natural expressão de sentimentos e opiniões. Acrescente-se, ainda, que, apesar da eventual dificuldade na interpretação do propósito original de uma ou outra questão, todos os questionários foram preenchidos individualmente ou,

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pelo menos, sem qualquer orientação ou explicação sobre as respostas pretendidas. Todo o processo decorreu de forma livre e espontânea. Embora estejamos conscientes do valor residual que este questionário pode representar enquanto amostra de uma realidade muito mais abrangente, julgamos, contudo, particularmente importante proceder a uma análise interpretativa das questões e correspondentes respostas obtidas. Realce-se, desde já, que não se trata de corrigir ou de avaliar nenhuma das respostas dadas, pois o âmbito deste estudo não se coaduna com a procura de uma verdade única e absoluta. Pretende-se, simplesmente, a partir das informações recolhidas, abordar e conjecturar algumas hipóteses e raciocínios que permitam avivar o debate sobre a cultura portuguesa. Excluindo a primeira secção do questionário relativa aos dados pessoais dos inquiridos, debrucemo-nos, então, sobre a segunda, “A Cultura Portuguesa”. Desde logo, verificamos que a resposta à oitava pergunta foi, como esperado, um unânime sim. O objectivo desta questão não era, de facto, suscitar qualquer controvérsia, mas antes introduzir o tema, delimitar o assunto em causa. Já a pergunta número nove oferece-nos uma primeira divergência. Por um lado, definir a cultura portuguesa como uma realidade heterogénea será uma opção claramente compreensível, até porque, tal como sugerido na questão número dez, aquela resulta de diversas outras culturas que, ao longo dos tempos, influenciaram consideravelmente a cultura portuguesa. Não é, por isso, surpreendente verificar que não houve qualquer dificuldade em identificar, em especial, as culturas europeia, africana e árabe, como aquelas que se encontram mais presentes em Portugal, sobretudo, no que diz respeito às expressões artísticas, politico-organizacionais e até linguísticas. Por outro lado, considerar a cultura portuguesa homogénea poderá parecer um pouco incongruente. Chamando à colação as respostas à pergunta onze, observamos que, também neste caso, foram indicados grupos estrangeiros de origens bem distintas (brasileiros, africanos, europeus de leste) e com uma presença bem evidente na sociedade portuguesa o que, mais uma vez, pareceria ser incompatível com uma classificação homogénea da cultura portuguesa. Este raciocínio poderá, porém, ser aceitável e lógico se considerarmos que a influência e a presença de culturas estrangeiras em Portugal mais não são do que sub-culturas que, num plano mais elevado, não impedem a homogeneidade da cultura portuguesa. Mais interessante para a nossa análise são, porventura, as respostas dadas à questão doze, pois, neste caso é visível a diferença do valor da simbologia para uma pessoa de nacionalidade portuguesa e para duas estrangeiras residentes há menos de um ano em Portugal. Para a cidadã portuguesa, e embora aponte o Euro 2004 (o campeonato europeu de futebol) como momento decisivo para justificar a sua escolha, o símbolo mais típico de Portugal é a bandeira nacional, algo com um claro teor político, histórico e patriótico. Por sua vez, as cidadãs estrangeiras, desprendidas de qualquer vínculo nacionalista português, elegeram elementos da natureza (o sol, o mar) como os símbolos mais típicos de Portugal. A questão treze representa já um caso inverso, ou seja, entre os inúmeros pratos admissíveis, curiosamente, apenas as cidadãs não portuguesas indicaram aquele que, comummente, é considerado a base da cozinha portuguesa – o bacalhau.

Representações de Portugal: Um Confronto Intercultural

Os itens catorze e quinze são, claramente, pessoais, mas, pelo menos em relação ao primeiro caso, prevaleceu um alargado consenso, visto que, dos três exemplos solicitados, todos responderam de forma igual, nomeando o tempo (atmosférico) e a geografia paisagística do país como duas das principais vantagens de Portugal. O ponto quinze suscitou respostas muito variadas que talvez devam ser, individualmente, tidas em conta, pois, para além dos aspectos relacionados com a economia, com o (sub-) desenvolvimento e com a falta de organização, tal como indicados pela cidadã portuguesa, foram ainda apontados o sentimento de frustração das pessoas, a existência de uma sociedade não livre e liberal e o sistema de ensino (cidadã alemã), bem como a pobreza, a indiferença social e o racismo (cidadã italiana) como alguns dos principais males ou desvantagens de Portugal. Não obstante a incapacidade deste estudo para despoletar uma qualquer mudança imediata na realidade descrita, esperamos, contudo, contribuir com esta indicação para uma possível futura alteração dos aspectos negativos agora apresentados. As questões dezasseis e dezassete podem, inclusivamente, ser analisadas em conjunto, já que ambas procuram retratar os Portugueses. De realçar, como primeiro dado, o facto de as três pessoas inquiridas referirem, entre as três primeiras características dos Portugueses a simpatia e a ansiedade. Para a cidadã italiana é a timidez o aspecto mais marcante da personalidade do povo português, o que, de certa forma, é depois explicitado no item seguinte ao indicar como um dos estereótipos a não abertura ou a desconfiança no estabelecimento de relações inter-pessoais. No caso do parecer da cidadã alemã, salientaríamos, para além da melancolia, a afirmação de que os Portugueses estão sempre a falar, quer quando viajam de autocarro quer quando caminham pela rua. Uma última nota (não muito positiva) sobre o facto de os homens assobiarem quando vêem passar uma mulher (atraente). Por fim, a cidadã portuguesa também não nos fornece dados particularmente abonatórios sobre os Portugueses, pois não só os considera preguiçosos, mas também pessimistas, pouco cumpridores de regras e, até, gabarolas. Se, porventura, o questionário tivesse terminado na questão dezassete, teríamos podido verificar que o retrato traçado não teria sido muito favorável para os Portugueses. Todavia, o balanço geral é positivo, já que, tal como explanado na questão dezoito, as respostas dadas confirmam que todas gostam de Portugal: um país de pessoas simpáticas e dispostas a ajudar, e com um clima agradável e paisagens bonitas, em suma, um país que, não obstante tudo o resto, nos faz sentir em casa. A questão dezanove é a única que não tem uma total equivalência entre a língua. portuguesa e as línguas. italiana e alemã. No primeiro caso, pretendíamos indagar o grau de conhecimento da cultura portuguesa por parte da inquirida que, ao responder negativamente, julgamos ter subestimado as suas competências, pois, afinal de contas, preencheu o questionário partilhando, assim, os seus conhecimentos e opiniões. No segundo e terceiro casos procurámos obter uma informação factual sobre a data e o tempo de permanência em Portugal das inquiridas, a fim de poder comparar e garantir que os dados fornecidos provinham de duas pessoas que, recentemente e por um período prolongado, tivessem estado em contacto com a cultura portuguesa, isto é, que já tivessem podido conhecer, razoavelmente, Portugal, os Portugueses e a sua sociedade.

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III. Considerações finais. Após a análise de alguns dos principais aspectos teóricos sobre os conceitos de cultura e identidade e depois de termos procedido à exegese possível das questões práticas que constituem o questionário em apreço, julgamos ter contribuído positivamente para o fim inicialmente apresentado, ou seja, suscitar o debate em torno da cultura, em geral (características, formação, importância), e da cultura portuguesa, em especial (características, símbolos, influências). Recordamos ainda, novamente, que este breve estudo representa apenas uma proposta, pelo que auguramos, desde já, a existência de futuras, críticas e reinterpretações do material disponibilizado.

Anexos 1. Questionário em língua. portuguesa Muito obrigado por participar neste estudo. Os dados aqui recolhidos serão utilizados apenas para trabalhos de investigação sobre a Cultura Portuguesa. Deste modo, interessa-nos obter algumas informações genéricas sobre outros tantos aspectos culturais portugueses. O objectivo é, pois, procurar conhecer melhor todos aqueles que vivenciam a cultura portuguesa de forma a que o seu ensino/aprendizagem tenha (ainda) mais sucesso.

Identificação Pessoal 1. Nome (facultativo): Reservado 2. Sexo: Masculino 3. Idade: 26

Feminino

4. Local de Nascimento: Lisboa 5. País: Portugal 6. Nacionalidade: Portuguesa 7. Endereço electrónico: Reservado

A Cultura Portuguesa 8. Existe uma cultura portuguesa?

Sim

9. Como classificaria a cultura portuguesa?

Não Homogénea

Heterogénea

10. Quais são as principais influências que encontra na cultura portuguesa? (escolha e ordene apenas três opções: 1,2,3) 1 europeia

3 africana

asiátiaca

americana 2 árabe

outra

Representações de Portugal: Um Confronto Intercultural

Indique, por favor, dois exemplos claros para cada uma das influências mencionadas: 1) Cultura 2) Língua 3) Relacionamento 11. Entre as comunidades estrangeiras que, actualmente, vivem em Portugal, quais são aquelas cuja presença na sociedade portuguesa é mais notada? (escolha e ordene apenas três opções: 1,2,3)

1) Africana; 2) Brasileira; 3) Paises de Leste 12. Qual o símbolo mais típico de Portugal? Bandeira Nacional Porquê? Desde o Euro Indique, por favor, outros dois: Galo de Barcelos, Calçada Portuguesa 13. Nomeie, por favor, três pratos típicos da cozinha portuguesa: Cozido à Portuguesa, Tripas à moda do Porto (Norte), Moelas (Sul) 14. Indique, por favor, três vantagens de Portugal: Clima, Geografia, População 15. Indique, por favor, três desvantagens de Portugal: Economia, Desenvolvimento, Falta de Organização 16. O Português/A Portuguesa típico/a é: (escolha e ordene apenas cinco opções: 1,2,3,4,5) 1 simpático/a 3 ansioso/a

inteligente 4 extrovertido/a

5 preguiçoso/a

trabalhador(a)

tímido/a alegre

2 interessante

outro

17. Mencione, por favor, três estereótipos sobre o comportamento dos Portugueses: Pessimistas, Pouco cumpridores de regras, “Gabarolas” 18. De uma forma geral, gosta de Portugal?

Sim

Não

Porquê? Cultura, Clima 19. Julga conhecer, relativamente bem, a cultura portuguesa?

Sim

Não

20. Data: 12/04/2006 Muito obrigado!

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Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem

2. Questionário em língua italiana Grazie per la partecipazione al presente questionario. Tutti i dati che verranno raccolti saranno utilizzati soltanto per lavori di ricerca sull’insegnamento della Cultura Portoghese. Da Lei vorremmo, quindi, ottenere qualche informazione generale su alcuni aspetti di questa cultura. L’obiettivo è, dunque, capire meglio tutti coloro che vivono la cultura portoghese affinché il suo insegnamento così come il suo apprendimento abbiano (ancora) più successo. Dati Personali 1. Nome (facoltativo): Reservado 2. Sesso: Maschile 3. Età: 22 anni

Femminile

4. Luogo di Nascita: Tivoli (Roma) 5. Paese: Italia 6. Nazionalità: Italiana 7. Indirizzo di posta elettronica: Reservado La Cultura Portoghese 8. Esiste una cultura portoghese?

Si

No

9. Come definirebbe la cultura portoghese?

Omogenea

Eterogenea

10. Quali sono le più forti influenze presenti nella cultura portoghese? (scelga e ordini soltanto tre opzioni: 1, 2, 3) 3 l’europea 1 l’africana

l’asiatica 2 l’americana

l’araba

altro

Indichi due chiari esempi per ciascuna delle influenze scelte: 1) Musica, Cucina, Mostre, Esposizioni 2) Musica, Manifestazioni Culturali 3) Negozi, McDonald, Trasporti Pubblici, Organizz. Strutturali (Servizi) 11. Quali sono i gruppi stranieri che vivono, al momento, in Portogallo e la cui presenza è più evidente nella società portoghese? (scelga e ordini soltanto tre opzioni: 1, 2, 3)

Brasiliano; africano (colonie portogh.); italiani (?) 12. Qual è il simbolo. più tipico del Portogallo? Tejo/Mare Perché? Perché è un legame che si percepisce continuamente Ne indichi, per favore, altri due:

Representações de Portugal: Um Confronto Intercultural

13. Indichi, per favore, tre pietanze tipiche del Portogallo: ”Bacalhau”; Maiale; “Arroz Doce” 14. Menzioni, per favore, tre pro del Portogallo: Mescolanza Etnica; Tempo; Eterogeneità Paesaggistica 15. Menzioni, per favore, tre contro del Portogallo: Povertà; Indifferenza Sociale; Razzismo 16. Il Portoghese/La Portoghese tipico/a è: (scelga e ordini soltanto cinque opzioni: 1,2,3,4,5) 3 simpatico/a 2 ansioso/a

intelligente 4 estroverso/a

5 pigro/a

1 timido/a

intraprendente

interessante

allegro/a

4 Altro ”fedele”

17. Indichi, per favore, tre stereotipi sui comportamenti dei Portoghesi: Un iniziale chiusura nei rapporti, decisamente poca confidenza, scetticismo ma predisposizione, in un secondo tempo, a una lunga durata 18. In generale, Le piace il Portogallo?

Sim

Não

Perché? Penso di aver “intravisto” un po di saudade; è un paese che ti fa sentire a casa 19. È mai vissuto/a in Portogallo?

Sim

Não

Dove? Lisbona Per quanto tempo? (mesi / anni) 7 mesi Quando? (anno) 2005/2006 20. Data: 14 aprile 2006 Grazie mille!

3. Questionário em língua alemã Vielen Dank, dass Sie diesen Fragebogen beantworten. Alle Daten, die damit eingesammelt werden, werden nur für wissenschaftliche Arbeiten über die Lehre der portugiesischen Kultur verwendet werden. Es interessiert uns vor allem allgemeine Informationen über die portugiesische Kultur zu bekommen. Damit möchten wir diejenigen besser kennenlernen, die jene Kultur erleben und zudem die Lehre und das Lernen der portugiesischen Kultur (noch) erfolgreicher machen

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Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem

Persönliche Daten 1. Name (fakultativ): Reservado 2. Geschlecht: 3. Alter: 23

Männlich

Weiblich

4. Geburtsort: Gifhorn 5. Land: Deutschland 6. Staatsangehörigkeit: Deutsch 7. Email: Reservado

Die portugiesische Kultur 8. Gibt es eine portugiesische Kultur?

Ja

Nein

9. Wie würden Sie die portugiesische Kultur qualifizieren?

Homogen

Vielfältig

10. Welche sind die stärkesten Einflüsse auf die portugiesische Kultur? (wählen Sie nur drei nach Priorität aus: 1,2,3) 1 europäische 3 afrikanische

asiatiche

amerikanische 2 arabische

andere

Geben Sie bitte zwei genaue Beispiele für jeden gewählten Einfluss an: 1) Christentum/Katholizismus - Demokratie 2) Kunst - „Kachelkultur” 3) Kolonialismus in Afrika 11. 11. Welche sind die ausländischen Gruppen, die im Moment in Portugal leben und die man häufiger in der portugiesischen Gesellschaft bemerken kann? (wählen Sie nur drei nach Priorität aus: 1,2,3)

1) Brasilianer; 2) Afrikaner; 3) Osteuropäer 12. Was für ein Symbol wäre für Portugal typisch? Sonne Warum? Nennen Sie bitte weitere zwei: Drei-Master-Schiff, Weinflasche 13. Geben Sie bitte drei typisch portugiesische Speisegerichte an: Bacalhau Espiritual / à Braz, Torrada, Pastel de Nata 14. Nennen Sie bitte drei Vorteile Portugals: (1) Wunderschöne Stadt Lissabon mit viel Potenzial architektonisch, kulturell... (2) Wetter: viel Sonnenschein und Licht (3) Landschaftlich schön

Representações de Portugal: Um Confronto Intercultural

15. Nennen Sie bitte drei Nachteile Portugals: (1) Große Frustration unter den Menschen (2) Keine freie, liberale Gesellschaft in Bezug auf Kindererziehung, andere Kulturen,... (3) Das Bildungssystem 16. Der typische Portugiese ist/ Die typische Portugiesin ist: (wählen Sie nur fünf nach Priorität aus: 1,2,3,4,5) 1 nett

intelligent

arbeitsam

faul

arbeitsam

schüchtern froh

3 sehnsüchtig

extravertiert

andere 2 schwermütig; 4 stolz; 5 diskussionsfreudig

17. Nennen Sie bitte drei Stereotypen über das Benehmen der Portugiesen: (1) Große Anzahl alter Menschen/Männer, die im Park Schach spielen (2) Männer, die Frauen hinterherpfeifen (3) Gespräche unter Frauen und Männer auf der Straße, im Bus („chating”) 18. Mögen Sie Portugal im Allgemeinen?

Ja

Nein

Warum? Die Menschen sind zum großten teil sehr nett, freundlich und hilfsbereit, das Land ist wunderschön (inklusive die Küsten + Atlantik) 19. Haben Sie schon mal für eine lange Zeit in Portugal gelebt?

Sim

Não

Wo? Lissabon Wie lange? (Monate / Jahre) 7 monate Wann? (Jahr) 2005/2006 20. Datum: 14.04.2006 Vielen Dank!

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ESTEREÓTIPOS REGIONAIS E USOS DA CULTURA POPULAR: O RIBATEJO E OS CAMPINOS Pedro Silva Sena Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA/FCSH – UNL)

A imagem de um homem montado a cavalo segurando na mão uma vara esguia, comprida e pontiaguda, de calção azul e meias brancas, colete encarnado e barrete verde de dobra e borla vermelhas, com uma atitude ora orgulhosa ora absorta, junto a uma manada de touros pascendo, é reconhecível para um número significativo de portugueses, nomeadamente para aqueles que nasceram até aos meados do século XX. Ainda que menos frequente nos meios de comunicação de âmbito nacional e regional do que até há trinta anos, a imagem do campino (trabalhador manual especializado na criação e toureio de gado bovino (bravo) e na criação de gado equino), nas suas múltiplas versões e associações, continua a ser reproduzida e a circular amplamente – das revistas dominicais dos diários e dos semanários às páginas electrónicas. A maior parte das vezes, surge como ilustração ou como objecto de comentários em textos que remetem para e identificam dois territórios produzidos socialmente, “comunidades imaginadas” a duas escalas diferentes (cf. Bourdieu 1989 e 1998, e Anderson 1991). Estas imagens e estes textos – os subtextos possíveis das imagens e as imagens que são escolhidas para completar os textos –, fazem parte de discursos e de práticas de identificação e de instituição do Ribatejo onde os campinos são representados enquanto símbolo da província/região e mesmo da nacionalidade. Uma análise mais detida destes discursos e destas práticas põe em evidência o uso de alguns estereótipos (cf. McDonald 1993 e Herzfeld 1992) acerca dos campinos. cuja génese, continuidade e eficácia radicam em processos de objectificação e de nacionalização da cultura popular (cf. Handler 1988 e Löfgreen 1989). Estamos a referir-nos à função simbólica atribuída a este grupo e ao relativo consenso social e político em torno da mesma; a determinados atributos morais e da masculinidade (como a honra, a abnegação, a honestidade, a humildade, a coragem e a virilidade); a associação a determinadas práticas masculinizadas (como as entradas de touros

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Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem

e as picarias, o fandango e o jogo do pau) e a um vestuário específico (do qual são destacados amiúde o colete encarnado e o barrete verde); e, por fim, à referência a uma origem étnica precisa, nomeadamente as etnias islamizadas do Norte de África (cf. Sena 2000 e Silvano 2003). A produção e a circulação destes estereótipos vêm revelar, por outro lado, os conflitos e as diferentes estratégias de instituição em torno da definição do que é a cultura popular e a região – nomeadamente a sua identificação, o seu território, as suas “tradições”. Neste texto procuraremos, a partir de uma análise histórica, abordar sucintamente a produção literária e etnográfica dos estereótipos acerca dos campinos e dos modos através dos quais estes mesmos estereótipos constituíram parte dos processos de produção de categorias sociais e de identificação colectiva no Ribatejo, ao longo dos últimos cento e cinquenta anos. A partir do modo como Pierre Bourdieu (1989 e 1998) problematiza o conceito de ‘região’, entendemos aqui por ‘Ribatejo‘ a região – o dado território socialmente hierarquizado e delimitado, instituído e produzido no tempo – de limites indefinidos e disputados que o Distrito de Santarém, e, mais tarde, também, a Província do Ribatejo, vieram, em certa medida, configurar (cf. Ribeiro 1995 e Ferrão 2006). É no período que decorre entre os meados do século XIX aos meados do século XX, que os estereótipos acerca dos campinos e os seus nexos com a identificação do Ribatejo são formados, consolidados e estabelecidos, à medida que a cultura popular – nomeadamente a das classes dominadas rurais – é objectificada e nacionalizada (cf. Leal 2000, Medeiros 2003 e Ramos 2004). Por outro lado, e aqui sigo um argumento de João Leal, da mesma forma que os discursos nacionalizadores vão eleger e descontextualizar determinados aspectos culturais das províncias para os integrar como parte legitimada da cultura nacional, os discursos regionalistas subsequentes vão afirmar a província enquanto região e “quintessência” do país, recontextualizando e particularizando esses mesmos aspectos culturais no contexto da nação (cf. 2000). Os campinos constituem, para o caso do Ribatejo, um desses aspectos, ou temas, simultaneamente nacionalizados e particularizados pelos discursos de identidade nacional e de identificação regional. Neste contexto, a produção, selecção, negociação e reutilização destes aspectos culturais – como os estereótipos acerca dos campinos –, são o resultado de uma intensa produção erudita e de práticas como o folclore, cortejos e exposições etnográficas, certames e congressos regionalistas, monumentos e museus etc. – inclusive de iniciativa ou com apoio oficial estatal e local. Assim, podemos incluir o Ribatejo na sugestão que António Medeiros faz a partir da sua análise dos estereótipos referentes ao Minho, segundo a qual “(...) uma caractereologia das províncias – uma soma disponível de recursos de identificação estereotipada destas partes distinguidas no território do país – resultou de sobreposições mutuamente influentes de produções literárias, iconográficas e científicas, cujos contributos respectivos são relativamente inextricáveis (...)” (2003: 28). Ora é a partir destes recursos, e de algumas destas práticas, que os movimentos regionalistas organizados a partir da segunda metade do séc. XIX e as políticas do Estado Novo – inclusive o seu apoio vigilante a estes movimentos –, vão consolidar um quadro duradouro de imaginação etnográfica do país e das suas províncias/regiões.

Estereótipos regionais e usos da cultura popular: o ribatejo e os campinos

João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett e Alexandre Herculano são os primeiros eruditos que escreveram sobre os campinos de um modo influente, e fizeram-no a propósito de viagens que empreenderam pelo país em meados de oitocentos. Em Viagens na Minha Terra (1846) e Cenas de um Ano da Minha Vida – Apontamentos de Viagem (1853), respectivamente, as suas descrições e os comentários sugerem-nos, por vezes com ironia, não só a circulação de uma representação positiva do Ribatejo e dos seus habitantes, como, no caso de Garrett, a sua identificação implícita com as práticas tauromáquicas e, em particular, com aqueles que, por familiaridade ou por dever, ocupavam-se do gado bovino bravo. Nestas alusões, os campinos são apresentados como homens de honra, valentes, vivazes e rudes – atributos e atitude comuns nos discursos da masculinidade em contextos rurais europeus (cf. Vale de Almeida 1995 e 1997; cf., ainda, Cutileiro 1977 e 1988) –, com uma mesma origem étnica, seja a moçárabe, em Garrett, ou, em Herculano, a resultante “(...) da transfusão do sangue germânico, vindo pela segunda vez renovar parcialmente a raça mista, celto-romana e gótico-árabe do nosso país” ([1853] 1973: 193). Estes argumentos prefiguraram, desde logo, o desenvolvimento de alguns dos recursos de imaginação etnográfica da nação empregues nos discursos nacionalizadores que marcaram o final de Oitocentos e o início de Novecentos, nomeadamente a objectificação da cultura popular, a psicologia étnica e a etnogenealogia (cf. Leal 2000). Podemos recensear e inserir nestes discursos alguns textos literários e etnográficos em que foram desenvolvidos os estereótipos acerca dos campinos e o modo nacionalizador como aqueles escritores do romantismo português os caracterizaram. São exemplos: a peça Os Campinos, várias vezes reencenada e publicada entre 1874 e 1950, de João Salvador Marques da Silva (cf. [1874] 1877); “As Epístolas – A Mr. Jonh Bull”, “farpa” de José Ramalho Ortigão (cf. [1876] s.d.) a propósito da visita a Portugal do então Príncipe de Gales e da reprodução local de modos de sociabilidade britânicos; a descrição do Ribatejo e a alusão ao campino na introdução à História de Portugal de Joaquim Oliveira Martins (cf. [1879] 1989); a defesa enérgica e moral das práticas tauromáquicas em Os Gatos (cf. [1894] s.d.), de José Fialho de Almeida; alguns contos da recolha Na Azenha (cf. [1894] 1913) e a crónica “Os Campinos”, publicada na Ilustração Portuguesa (cf. 1908) e ilustrada com fotografias de Carlos Relvas, de Marcelino Mesquita; e a descrição do Ribatejo em Portugal Pittoresco e Illustrado: a Extremadura Portuguesa (cf. 1908) do polígrafo Alberto Pimentel. Os campinos e a sua actividade surgem implicitamente nestes textos como elemento identificador do Ribatejo – a sua descrição torna-se indissociável da referência aos primeiros e o inverso – e como parte do que constitui a cultura nacional legitimada. Por outro lado, é reflectida a sua ambiguidade social e a sua vulnerabilidade moral: ambiguidade enquanto trabalhadores contratados anualmente – por oposição à massa de camponeses assalariados – que beneficiam da proximidade e do favor do patronato em virtude do capital simbólico conferido às actividades tauromáquicas e coudélicas; vulnerabilidade moral enquanto homens ao mesmo tempo exaltados pelo perigo associado à sua actividade e prejudicados pelos longos períodos de isolamento que a mesma implica. É neste sentido que são

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então descritos, simultaneamente, como leais e impetuosos, crentes praticantes e supersticiosos, corteses e rudes, abnegados e independentes, viris e efeminizados pelas tarefas de cariz doméstico que têm necessidade de assegurar – como nota Alberto Pimentel. No entanto, a partir da implantação da República, com a afirmação política dos discursos regionalistas e dos discursos nacionalizadores, só vão ter continuidade os estereótipos acerca dos campinos que estavam em conformidade com a imagem idealizada e ruralizante do “povo” estabelecida nos seus pressupostos básicos desde o romantismo português. Os eruditos regionalistas que vão estar na origem da fundação da Casa do Ribatejo em 1942 recuperarão, durante os anos vinte e trinta, os temas da produção literária romântica e finissecular sobre o Ribatejo. Em relação aos campinos, será dada ênfase à sua exaltação moral e à identificação da região através da sua imagem, em detrimento de referências a ambiguidades ou a dissonâncias – pelo menos até ao neo-realismo. Em 1935, Francisco Câncio (1903-1973), erudito e professor, natural de Alhandra, publicava mais um milhar de exemplares da segunda edição de Ribatejo, a “monografia ilustrada” que dedicara à “sua terra” – a primeira edição, entretanto esgotada, havia surgido nos escaparates em 1929. Logo no início da obra, ao enumerar a diversidade das “gentes” da “terra ribatejana”, distingue e descreve o campino nestes termos: O campino é verdadeiramente a sentinela da lezíria. De calção e jaqueta – já vai longe o colete encarnado – meia branca,barrete verde debruado a vermelho, é ainda a figura ribatejana quemaior soma de tradições em si reúne. O gado olha-lhe a vara na campina deserta. É ele que o dirige novoltear do cavalo, que o guia, que o conduz.(...) O campino é sóbrio. Pouco o contenta. Passa a semana na lezíria e come do alforge que ao sábado avia na vila. Cavalga a faca felpuda, ligeira e tristonha, que se vira nos quartos traseiros, que salta abertas e valados, apartando o toiro, seleccionando ou juntando a manada. A palhoça é o seu abrigo nos momentos de folga. Mas, quantas vezes, ao frio e à chuva, não no tem melhor do que a manta lezirenta lançada sobre os ombros. E então olha o gado na campina tristonha e deserta. A chuva cai, a chuva bate. (...) (...) E o campino, sentinela da manada, guia e rei da planície, vela e sonha. O barrete verde debruado a vermelho é a sua coroa, o seu símbolo: – o verde, a cor das searas, a cor do Ribatejo em flor; o vermelho a cor do seu sangue de herói, a cor das papoilas rubras, bordando os trigais, matizando a campina. Em volta dele anda a saudade, a transparecer-lhe nos olhos parados e nostálgicos: – saudades do lar, da mulher, dos filhos pequeninos. O campino é a figura mais típica do Ribatejo – é o rei da planície, o herói ignorado de todas as horas, que não tem comendas, nem galardões. Que mais dizer dele?!… ([1929] 1935: 28-29) Pode-se afirmar, sem risco de paradoxo nem de exagero, que este encómio esgotava o “que mais dizer” do(s) campino(s) sem o ter esgotado. Na época em que Ribatejo é redigido e publicado, tornava-se recorrente este modo de representar

Estereótipos regionais e usos da cultura popular: o ribatejo e os campinos

os campinos em campos como a literatura, a geografia, a etnografia, a pintura, a fotografia e o cinema, bem como estes se tornavam emblemáticos no folclore, em festas e feiras, em cortejos e exposições etnográficas. “Que mais dizer dele?!...” constituía, portanto, o remate justificativo de uma síntese que já era possível fazer e o dispensar-se de tal esforço, evocando e remetendo para outras referências – textos, imagens, práticas – que o autor poderia pressupor partilhar com o leitor. Ficavam assim longamente estabelecidos os limites simbólicos dos estereótipos sobre os campinos.

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“SPEAKING PORTUGUESE AND WRITING ENGLISH”: REPRESENTAÇÕES DE PORTUGAL NA OBRA DE ROBERT SOUTHEY Maria Zulmira Castanheira Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa CETAPS-Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies

Autor prolífico de uma obra que se reparte pela poesia, história, ensaio, biografia, cartas, relatos de viagem, crítica literária, comentário político e social, tradução e edição, Robert Southey (1774-1843) foi uma figura proeminente e polémica das letras do seu tempo, que a posteridade viria, em grande medida, a votar ao esquecimento. Nos últimos anos, contudo, tem-se assistido a um renascer do interesse por este escritor, que visa reconduzi-lo a um lugar entre os maiores nomes do Romantismo inglês, nomeadamente os poetas canónicos William Wordsworth (1770-1850) e Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), seus amigos. Mas a importância e a influência de Southey extravasam os limites da cena literária e cultural britânica, garantindo-lhe também uma posição de relevo na história das relações anglo-portuguesas. A atracção pelo Outro, que caracteriza uma parte substancial da sua obra, manifesta-se de um modo muito particular na atenção que dedicou a Portugal, país que visitou por duas vezes, em 1796 e 18001801, e que lhe sugeriu um programa de estudos e publicações a que se entregou ao longo de toda a sua vida. A ligação sentimental que estabeleceu com Portugal, a ponto de ter acalentado, durante muitos anos, o confessado desejo de aqui fixar residência e passar o resto dos seus dias “speaking Portuguese and writing English” (Speck, 2006: 96), e o modo sistemático e pioneiro como trabalhou em prol da divulgação da história e da literatura portuguesas além-Mancha, difundindo uma imagem muito mais positiva deste país ibérico do que a até então veiculada, fazem de Southey o primeiro lusófilo inglês. Quando faleceu, em 1843, gozava de uma sólida reputação como hispanista e, em particular, como especialista em assuntos portugueses, depositando ele próprio nessa faceta da sua vasta produção literária as suas maiores esperanças de celebridade póstuma.

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O primeiro encontro de Southey com Portugal foi involuntário. Apenas por insistência da família, preocupada com o facto de o jovem não conseguir decidirse por uma carreira profissional e apostada em afastá-lo de Inglaterra para arrefecer os seus ardores revolucionários e também a sua relação amorosa com uma rapariga de condição humilde, Edith Fricker (1774-1837), aceitou Southey passar uma temporada com um seu tio materno, o Reverendo Herbert Hill (1749-1828)1, que entre 1782 e 1807 foi capelão da Feitoria Britânica em Lisboa. Por nunca ter acalentado o desejo de visitar a Península Ibérica, viajou contrariado e esse estado de espírito condicionou, claramente, o modo como apreciou negativamente a realidade portuguesa e igualmente a espanhola, pois entrou em Portugal vindo de Espanha. Por proposta do seu amigo e conterrâneo Joseph Cottle (1770-1853), importante editor de Bristol, dessa estada de alguns meses na capital lisboeta viria a nascer um livro de viagens intitulado Letters Written During a Short Residence in Spain and Portugal. With some account of Spanish and Portugueze Poetry, dado à estampa logo em 1797 e redigido a partir dos apontamentos e impressões coligidos durante a visita e também das cartas a familiares e amigos que enviara para Inglaterra. Começava assim Southey a construir a sua representação de Portugal, reproduzindo, em grande medida, nessa primeira obra, imagens do nosso povo já anteriormente postas a circular por outros viajantes, e contribuindo, até, para a cristalização de determinados estereótipos de sinal negativo, devido à reputação que foi conquistando como autoridade em matérias portuguesas – veja-se a frequência com que Southey passa a ser citado por outros forasteiros de visita a Portugal. Nas 551 páginas que compõem a sua narrativa de viagem, traça um quadro pouco atraente: queixa-se da sujidade, das pragas de pulgas, mosquitos e formigas, dos cães que infestam as ruas, dos mendigos exibindo terríveis doenças, da falta de iluminação pública, da elevada taxa de criminalidade, etc., e critica severamente a arrogância, preguiça, hipocrisia e superstição dos portugueses, suas instituições, pobreza, ignorância e corrupção. Acima de tudo, ataca com virulência a Igreja Católica Romana e as suas formas de culto, atitude típica dos viajantes ingleses protestantes que visitaram Portugal nos finais do século XVIII e para além dele. Apenas o clima e a paisagem natural lhe mereceram rendidos elogios, especialmente Sintra, um paraíso onde o seu tio possuía uma casa e que Southey teve, pois, oportunidade de desfrutar. Apesar de Portugal lhe ter desagradado a vários níveis, e de, por comparação, ter aprendido a valorizar muito mais o seu país natal – no que se revela o típico observador inglês em viagem pela Península Ibérica, sobranceiro e orgulhoso da sua superioridade civilizacional –, as palavras com que Southey conclui Letters Written During a Short Residence in Spain and Portugal. With some account of Spanish and Portugueze Poetry indiciam já a marca profunda que esta viagem deixou no jovem escritor e que viria a motivar a orientação de grande parte da sua obra: “I am now preparing for my return: I am eager to be again in England, but my heart 1. Herbert Hill foi forçado a deixar Portugal em 1807, devido à primeira invasão francesa. No ano seguinte casou com Catherine Bigg, amiga da escritora Jane Austen.

Representações de Portugal: Um Confronto Intercultural

will be very heavy when I look back upon Lisbon for the last time” (Southey, 1797: 547). Muitos anos mais tarde, numa carta de 23 de Abril de 1830 endereçada a John Wood Warter (1806-1878), seu futuro genro, Southey reconheceria precisamente o quão determinante fora a experiência vivida em Portugal: “My voyage was to Portugal, and you know how much it has influenced the direction of my studies” (Ch. Cuth. Southey, 1850: 98). Importância crucial essa que também o seu filho Charles Cuthbert (1819-1888), responsável pela edição de parte da correspondência do pai, sublinha no primeiro dos seis volumes de The Life & Correspondence of the Late Robert Southey: “My father’s visit to Lisbon seems chiefly to have been useful to him by giving him an acquaintance with the Spanish and Portuguese languages, and by laying the foundation of that love for the literature of those countries, which continued through life, and which he afterwards turned to good account” (Ch. Cuth. Southey, 1849-50: 273). Numa época em que a literatura de viagens era um género que gozava de grande popularidade, a obra de Southey foi recebida com interesse pelo público: a proválo as duas reedições que se sucederam em 1799, Letters Written During a Short Residence in Spain and Portugal , e 1808, Letters Written During a Journey in Spain and a Short Residence in Portugal, contendo, no entanto, alterações significativas, logo a começar pelo título. Na verdade, à medida que foi aprofundando os seus conhecimentos sobre Portugal, Southey ganhou consciência de que o seu primeiro olhar sobre aquele país e as opiniões que emitira acerca da literatura portuguesa tinham sido apressadas e pouco fundamentadas. “My own letters I dislike, because they would have been so infinitely better had I kept them unpublished till this time” (Warter, 1856: 331), confessou em 1805 numa carta à pintora e escritora Mary Barker, que conhecera em Portugal em 1800 e que se tornou a sua principal confidente. Por esse motivo, quando preparou as duas reedições, omitiu algumas partes da versão de 1797, acrescentou novos poemas, historietas e pormenores, eliminou certos comentários detractores, substituiu palavras mais duras por outras mais suaves, como por exemplo “bigotry” por “devotion” e “depraved society” por “mistaken system of society”, reconstruindo assim a sua visão de Portugal e tornando-a mais moderada. Tentou até incluir na segunda edição algumas gravuras de paisagens daquele país que o tio Hill lhe enviara, mas foi forçado a abandonar a ideia devido aos custos financeiros. Em Abril de 1800, Southey regressou a Portugal na companhia da mulher, Edith Fricker, agora por vontade própria e, por isso mesmo, com uma perspectiva muito mais optimista, como reconheceu em carta a Samuel Taylor Coleridge com data de 1 de Maio de 1800: “Four years’ absence from Lisbon have given everything the varnish of novelty, and this, with the revival of old associations, makes me pleased with everything. It even amused me to renew my acquaintance with the fleas, who opened the campaign immediately on the arrival of a foreigner” (Dennis, 1894: 121). A decisão de voltar ficou a dever-se a várias razões: não estava disposto a prosseguir os estudos de Direito que tinha iniciado; o seu médico, Thomas Beddoes (1760-1808), aconselhara-o a vir para Portugal para recuperar de problemas de saúde que o afligiam (lembre-se que muitos foram os doentes britânicos, sobre-

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tudo os pulmonares, que rumaram a Portugal nos séculos XVIII e XIX em busca de alívio para os seus males no ameno clima português); pretendia aprofundar os conhecimentos do país, sua língua. e literatura, que começara a adquirir em 1796; e, principalmente, queria encetar a investigação para um projecto que entretanto concebera e ao qual atribuía a maior importância: a escrita de uma História de Portugal. Também desta segunda estada, que se prolongou por mais de um ano, fez anotações, como chegou a dizer numa carta de 24 de Novembro de 1807 ao seu amigo John Rickman (1771-1840): “During my last residence in Portugal I noted down whatever came either to eye or ear, both senses being habitually upon alert. I have materials enough for a saleable volume” (Curry, 1965, I: 461). Mas tal volume nunca chegou a ser dado à estampa em vida do autor e, durante muito tempo, pensou-se que o diário que Southey mantivera em Portugal em 1800-1801 se havia perdido; até que Adolfo Cabral, Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o descobriu em Bristol no Verão de 1949 e o publicou, mais tarde, em 1960, sob o título Journals of a Residence in Portugal 1800-1801 and a Visit to France 1838. A leitura do diário da segunda residência em Portugal, bem como das cartas que então enviou para Inglaterra, mostra que Southey, durante esses meses, não só se entregou com grande dedicação à pesquisa literária e histórica na bem fornecida biblioteca do tio Hill e em arquivos públicos (Biblioteca Nacional, Torre do Tombo, Academia das Ciências), como teve também tempo para participar na vida social da comunidade britânica em Lisboa e Sintra, onde passou uma temporada entre Junho e Outubro, e ainda para fazer duas excursões pelo país, concretizando assim o sonho de se familiarizar com outras regiões de Portugal. Sintra mais uma vez o extasiou mas, ao ver tão amado espaço invadido por comerciantes portugueses endinheirados, reagiu com profundo desagrado em carta ao irmão Thomas (17771838) – “Cintra is too good a place for the Portuguese. It is only fit for us Goths – for Germans or English”2 –, usando palavras que antecipam as depreciativas que o famoso Lord Byron (1788-1824) viria a empregar ao falar daquele mesmo local no primeiro canto do seu poema Childe Harold’s Pilgrimage (1812): “Poor, paltry slaves! Yet born ‘midst noblest scenes / Why, Nature, waste thy wonders on such men?” (est. XVIII). Entusiasmado por se encontrar de novo em terras portuguesas, os textos datados desta época dão testemunho de um olhar menos preconceituoso e intransigente, mais aberto em relação ao espaço estrangeiro em que se movimenta. O relato das suas observações e pensamentos durante os passeios a Coimbra, em Março de 1801, e ao Algarve, no mês seguinte3, revelam um interesse e prazer autênticos em conhecer o centro e o sul de Portugal: deixa-se cativar pela beleza natural da paisagem que atravessa e regista momentos que haveria de recordar para sempre, nomeadamente a visita aos lugares associados a D. Pedro e D. Inês de Castro, em 2. Carta de 15 de Junho de 1800, incluída por Adolfo Cabral na edição do diário da segunda viagem de Southey a Portugal (Southey, 1960: 99). 3. Cf.: “Part II. Northward excursion to Coimbra” e “Part III. Southward excursion to Algarve” (Southey, 1960: 15-33 e 33-61).

“Speaking portuguese and writing english”: representações de Portugal na obra de Robert Southey

Coimbra, e os magníficos túmulos destes famosos amantes trágicos, em Alcobaça. A memorável excursão às províncias do Alentejo e do Algarve não foi isenta de riscos, dadas as pressões que Portugal então sofria por parte da França e da Espanha para virar as costas à sua velha aliada Inglaterra. Nestas circunstâncias, a presença de ingleses em território português levantava, por vezes, suspeitas, e foi exactamente o que aconteceu a Southey e ao seu companheiro de viagem, Samuel Waterhouse (um conhecimento que fizera em Portugal), em Lagos, quando, à meianoite, soldados irromperam pelo seu quarto numa hospedaria e os prenderam por não terem apresentado, à chegada, os passaportes ao Corregedor. Southey, o primeiro turista no Algarve, como recordam muitos sites promocionais daquela província que se encontram na internet, passou assim por um sobressalto que, todavia, parece não tê-lo indisposto. Úteis terão sido as cartas de apresentação que Southey e Waterhouse transportavam consigo, uma delas escrita pelo Reverendo Herbert Hill e dirijida ao Bispo de Beja, Frei Manuel do Cenáculo (1724-1814), um intelectual de renome internacional. Datada de 5 de Abril de 1801, está redigida em português e diz que o seu sobrinho está em viagem pelo Alentejo e o Algarve apenas com intuitos educativos, razão pela qual lhe recomendara fortemente que conhecesse o Bispo de Beja. O encontro veio de facto a acontecer e, no dia seguinte, Southey agradeceu-lhe a hospitalidade numa carta que é, provavelmente, a única existente escrita pelo seu punho na língua. portuguesa.4 Em Junho de 1801 Southey deixou Lisboa, sentindo-se satisfeito pela intensa investigação realizada, pelos materiais coligidos e por ter contactado com alguns homens de letras, bibliotecários e livreiros, nomeadamente o editor Bertrand e o censor Johann Wilhelm Christian Müller (1752-1814), que alguns anos mais tarde viria a traduzir um seu ensaio sobre a literatura portuguesa, como adiante veremos. A sua vasta correspondência, em que abundam referências e alusões a Portugal, prova que durante muito tempo acalentou o desejo de regressar e mesmo de aqui se estabelecer. Cite-se, a título de exemplo, a carta escrita ao amigo Charles Watkin Williams Wynn (1775-1850), em que declara um amor a Portugal que o leva, até, a aceitar defeitos anteriormente apontados com desprezo: “I like this country so well that I should be content to exchange the society & the fire & the fogs & and the bread & butter of England for the filth & the fruit & the sun of Portugal, with no better equipage thro life than a jack-ass” (Storey, 1997: 141). Ou uma outra, 4. Carta de apresentação escrita pelo Reverendo Herbert Hill, datada de 5 de Abril de 1801, e dirigida a D. Manuel do Cenáculo: “O Snr. Southey, o Portador desta, e hum sobrinho meu, vai fazer huma jornada â Alentejo e Algarve – aquellas partes de Portugal, que elle até agora não vizitou – e em quanto o unico objecto de suas Viagens hè de se instruir, tenho lhe muito encommendado que não deixe de ver e fallar com o veneravel Bispo de Beja; tanto para que se informe das cousas mais dignas de vêr daquella vizinhança, como para que me mande algumas noticias de V. Exa.” (Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora. Pasta 72, Cod. CXXVII). Carta de Robert Southey ao Bispo de Beja, D. Manuel do Cenáculo, com data de 11 de Abril de 1801: “Muito excellente Senhor, Não podemos certamente deixar passar esta occasião, para exprimir á sua Excelléncia, quanto sentemos os favores recebidos em Beja, tambem a grande vantagem, que achamos da sua recommendação, tendo sido muito bem servido hoje; e o Snr. João da Palma nós tem procurado bestas, e nós mostrado as curiosidades deste sítio. Outra mercé ainda pedimos, isto he, que os erros na forma, e na linguagem sejão escusados, esperando que Vossa Excellencia goze por muitos annos todas as felicidades possibeis: Eu e meu ficando sempre/ Seus criados obrigadissimos” (Cabral, 1959: 345).

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endereçada a Henry Thomas em 23 de Fevereiro de 1807: “Cintra! Cintra!...That place is the only place in the world that I love better than this [Keswick], and very probably I shall never quit this unless it be to reside in Portugal, where I would willingly go and take up my abiding-place for the remainder of my days” (Simmons, 1945: 120). Tal não veio, no entanto, a proporcionar-se, mas o facto de não mais ter voltado “To the land where the grapes and oranges grow” (Warter, 1856: 350), para salientarmos um traço idílico da representação de Portugal contido numa carta de Southey a Mary Barker, datada de 27 de Novembro de 1805, não impediu que dali em diante consagrasse grande parte do seu labor ao estudo e divulgação da história e da literatura portuguesas; e que o seu imaginário se alimentasse continuamente de imagens relacionadas com aquele país, como confidenciou numa missiva endereçada em 7 de Janeiro do mesmo ano à escritora e amiga Caroline Bowles (1786-1854), com quem viria a casar em 1838: “The language of my dreams is almost as often Portuguese as English” (Dowden, 1881: 368). Efectivamente, ao longo das décadas seguintes, e graças ao consistente trabalho que desenvolveu tendo Portugal como grande eixo temático, transformou-se no inglês que, no seu tempo, mais contribuiu para dar a conhecer aos seus compatriotas a herança literária e o passado histórico portugueses. Já instalado em Keswick, no Lake District, e na solidão da sua famosa biblioteca, em que chegou a reunir mais de 14 000 volumes (incluindo a biblioteca do tio, Herbert Hill, que herdou), muitos deles livros e manuscritos relativos a Portugal que constituíam uma colecção provavelmente única em Inglaterra5, Southey entregouse à redacção de obras de grande significado para a história das relações culturais anglo-portuguesas, nomeadamente as monumentais History of the Peninsular War (1823-1832) e History of Brazil (1810-1819), que chegou a considerar “the great literary labours of my life”6. Publicada em três volumes, perfazendo um total superior a 2500 páginas, a primeira narra, em tom empolgado, a luta heróica e patriótica dos povos português e espanhol, auxiliados pelas tropas britânicas, contra as hostes napoleónicas, apresentando a Guerra Peninsular como um memorável exemplo de combate pela liberdade, pela justiça e pela independência nacional7. Amigo de Portugal, a Southey deu grande satisfação, como disse em carta a Theodore Koster de 31 de Março de 1811, que os portugueses “whom everybody had thought himself priviledged to look upon with contempt, should be the first people to set an example of beating the French upon their own ground” (Leão, 1943: 44). A segunda, History of Brazil, igualmente em três extensos volumes, narra minuciosamente a história de uma colónia portuguesa que se revestia de enorme interesse comercial para os ingleses e valeu a Southey, na década de 30, a concessão do grau de Cavaleiro da Ordem da Torre e Espada (criada em 1808) pela Rainha

5. Ver: “Catalogue of the Spanish and Portuguese Portion of the Library of the Late Robert Southey, Esq. LL.D., Poet Laureate”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 178, Janeiro-Março 1943: 91-155. 6. Carta a John May (1775-1856), datada de 20 de Março de 1821 (Ch. Cuth. Southey, 1849-1850: 31). 7. Cf.: Castanheira, 2007.

“Speaking portuguese and writing english”: representações de Portugal na obra de Robert Southey

D. Maria II, a pedido de Almeida Garrett8. No século XX, mais precisamente em 1961, nova homenagem lhe seria prestada, desta feita pelo governo brasileiro, que custeou as despesas do restauro do túmulo do escritor, sepultado no St Kentigern’s Churchyard, Crosthwaite, Keswick, em Inglaterra. Originalmente a obra History of Brazil foi concebida por Southey como apenas uma das partes do seu mais ambicioso projecto literário, a escrita de uma História de Portugal, mas nunca chegou a publicar qualquer outro volume dos doze planeados, embora se tenha dedicado a esse trabalho durante mais de trinta anos. Desconhecendo-se o seu paradeiro desde 1901, ano em que surgiu descrito num catálogo do livreiro londrino Sotheran, o manuscrito da History of Portugal de Southey foi localizado apenas recentemente, em 2005, por Alexandre Dias Pinto, na biblioteca da Hispanic Society of America, em Nova Iorque. O investigador, que em Abril de 2006 apresentou na conferência anual da Associação Portuguesa de Estudos Anglo-Americanos (APEAA) uma comunicação em que descreveu o manuscrito (Pinto, 2007), encontra-se presentemente a preparar a edição crítica de uma secção do mesmo que, por certo, se revestirá de muito interesse no actual contexto de reavaliação da obra e do pensamento de Southey, em geral, e lançará, seguramente, uma nova luz sobre o alcance da sua pesquisa histórica e a sua visão de Portugal. No seu conjunto, History of the Peninsular War, History of Brazil e a incompleta History of Portugal constituem prova irrefutável da profunda convicção de Southey de que era fundamental dar a conhecer na língua. inglesa um pequeno povo capaz de praticar gloriosos feitos – “No nation has ever accomplished such great things, in proportion to its means, as the Portugueze” (Southey, 1810-1819, III: 696) – e cuja história constituía um exemplar percurso de grandeza e decadência, como disse ao irmão: “No country in her rise ever displayed more splendid actions, or exhibited a more important lesson in her fall” (Humphreys, 1978: 6). Paralelamente a estes trabalhos historiográficos publicados em volume, Southey dedicou-se à crítica literária, à tradução e à edição, meios em que também pôde desenvolver outros estudos, não só sobre a história, passada e contemporânea, mas também sobre a literatura portuguesas. É por esta razão que Félix Walter, na sua obra de referência intitulada La Littérature Portugaise en Angleterre à l’Époque Romantique, salienta o papel decisivo desempenhado por Southey na história da divulgação das nossas letras além-Mancha, até então quase só resumidas ao nome de Camões: Robert Southey est l’architecte principal de tout cet édifice anglo-portugais, dont ses ascendants littéraires avaient construit la charpente à loisir et un peu au hasard. Avant Southey elle ne consistait à vrai dire qu’en un seul étage, et dans cet étage il n’y avait qu’une pièce qui fût terminée; c’était la chapelle ardente dans laquelle se célébrait le culte de Camoëns. (Walter, 1927: 56)

Para além das traduções de vários poemas de autores peninsulares que se encontram espalhadas pelas suas cartas sobre Portugal e Espanha, recensões críticas e outros escritos, traduziu Amadis of Gaul, by Vasco Lobeira. (From the Spanish 8. Sobre esta condecoração, veja-se: Cabral, 1957.

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version of Garciordonez de Montalvo) (4 volumes, 1803) e reviu e corrigiu a tradução de 1588, de Anthony Munday (1560-1633), de Palmerin of England by F. de Moraes [also ascribed to L. Hurtado] (4 volumes, 1807), defendendo acaloradamente a autoria portuguesa destes dois romances de cavalaria. Também na imprensa periódica, de que foi colaborador assíduo durante quase quatro décadas, nomeadamente em revistas influentes e de grande circulação como Monthly Magazine, Critical Review, Annual Review, Foreign Review, Foreign Quarterly Review e, especialmente, a conservadora Quarterly Review, encontrou um veículo eficaz para levar a cultura portuguesa até ao público britânico e cimentar o seu estatuto de perito em matérias portuguesas e ibéricas. Atento às novidades do mercado livreiro relacionadas com Portugal, fez recensões sobre vários livros de viagens, por exemplo A General View of the State of Portugal9, de James Murphy, Travels in Portugal, and through France and Spain. With a dissertation on the Literature of Portugal, and Spanish and Portuguese Languages10, de Heinrich Friedrich Link, e Lisbon in the Years 1821, 1822 and 182311, de Marianne Baillie, dando não apenas uma súmula do conteúdo das obras e transcrevendo, por vezes, longos excertos, mas exprimindo igualmente as suas próprias opiniões acerca dos relatos e dos assuntos portugueses neles tratados. Alguns dos mais significativos artigos de Southey de temática portuguesa foram publicados na prestigiada Quarterly Review, designadamente um texto de 1829 intitulado “The Political and Moral State of Portugal”12, em que descreve, a pretexto de um conjunto de obras recentemente publicadas sobre Portugal, a situação política, económica e social deste país, desde o reinado de D. João V até à morte de D. João VI, bem assim como acontecimentos relacionados com a Guerra Peninsular. Um outro muito anterior, de 1809, elabora, a partir da crítica a um livro publicado em Londres havia pouco tempo, Extractos em Portuguez e em Inglez; com as palavras Portuguezas propriamente accentuadas, para facilitar o Estudo d’aquella Lingoa (1808)13, a traços largos, uma história da literatura portuguesa, desde as origens medievais até à actualidade. Johann Wilhelm Christian Müller viria a traduzir esse artigo para o idioma português pouco depois14, o que constitui um sinal da importância atribuída a Southey enquanto autoridade na matéria. Existe ainda uma recensão de 1822 à obra do camonista John Adamson (1787-1855), Memoirs of the Life and Writings of Luis de Camoens (1820)15, que lhe proporcionou a oportunidade de se pronunciar sobre o famoso poeta português, muito admirado por Southey enquanto sonetista e não tanto pela epopeia Os Lusíadas.

9. Critical Review (2nd series), vol. XXIV, September 1798: 25-33. 10. Critical Review (2nd series), vol. XXXVIII, June 1803: 157-168. 11. Quarterly Review, vol. XXXI, number 62, March 1825: 378-390. 12. Quarterly Review, vol. XLI, number 81, July 1829: 184-226. 13. Quarterly Review, vol. I, number 2, May 1809: 268-292. 14. João Guilherme Cristiano Müller. Memoria sobre a literatura portugueza. Traduzida do inglez. Com notas ilustradoras do texto. 15. Quarterly Review, vol. XXVII, number 53, April 1822: 1-39.

“Speaking portuguese and writing english”: representações de Portugal na obra de Robert Southey

Ainda que necessariamente breve, pretendeu-se com esta resenha lembrar o papel singular desempenhado por Robert Southey, escritor da primeira geração romântica inglesa, enquanto agente de mediação entre a Grã-Bretanha e Portugal. O interesse que nutriu ao longo da vida pela história e literatura portuguesas e o esforço que desenvolveu para a sua divulgação, fazem dele uma figura incontornável no panorama das relações culturais anglo-portuguesas. Muito crítico sobretudo no que diz respeito à política, à religião e à justiça, bem como a alguns costumes dos portugueses, reconhecendo embora, com o tempo, o seu carácter intrinsecamente bom16, mas apaixonado pelo clima, a paisagem e as crónicas de Portugal – pelo que a sua construção discursiva da alteridade é um misto ambivalente de atracção e repulsa –, Southey , com os seus conhecimentos profundos da língua. e do património histórico e literário portugueses, deu visibilidade ao nosso povo, sentindo até, como chegou a confessar em carta de 3 de Junho de 1815, que “the long attention which I have given to their history and the whole of their literature has given me a sort of intellectual naturalization among them” (Leão, 1943: 46). Aquele que um dia se definiu como “a Portuguese student among the mountains” (Ch. Cuth. Southey, Vol. II, 1850: 281)17 conquistou, assim, um lugar duradouro, como tanto ambicionou, na galeria dos mais relevantes lusitanistas18 e foi uma voz que deu um importante contributo para o diálogo intercultural luso-britânico.

16. Cf. “The Political and Moral State of Portugal“. Quarterly Review, vol. XLI, number 81, July 1829: 191. 17. Carta ao amigo Grosvenor Charles Bedford (1773-1839) de 23 de Abril de 1804. 18. Muito pintado em vida, pois era considerado pelos seus contemporâneos como um dos mais eminentes escritores da época, Southey figura também entre os nove lusitanistas retratados pelo pintor português Eduardo Malta (1900-1967). Ver: Catálogo da Livraria Duarte de Sousa. Séculos XV a XVIII. Lisboa: Secretaria de Estado da Informação e Turismo, 1974.

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II As linguagens do diálogo intercultural

A MARCA CULTURAL PORTUGUESA NO QUOC NGUR, A LÍNGUA. NACIONAL VIETNAMITA Alcindo Costa Universidade de Évora

Hội An (Faifo) Província de Quả Nam, Vietname Cidade Património da Humanidade

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Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem

“Ves, corre a costa que Champá se chama, Cuja mata é do pau cheiroso ornada; Vês Cauchichina está, de escura fama, E de Ainão vê a incógnita enseada; Aqui o soberbo Império, que se afama Com terras e riqueza não cuidada, Da China corre, e ocupa o senhorio Desde o Trópico ardente ao Cinto frio. Os Lusíadas, Canto X, 129

Luís de Camões, nas suas deambulações pelo Oriente, haveria de passar pelo episódio que o mesmo assinalou no próprio poema: o naufrágio que sofreu, na costa da Cochinchina, tendo perdido todos os seu haveres. Salvou-se a nado com o manuscrito d’Os Lusíadas. Quem hoje em dia aportar estas paragens não encontra marcas tão visíveis da presença portuguesa, mas através de um olhar mais atento, notará uma, que foi a marca de união e desenvolvimento na região: a romanização da escrita vietnamita. Quando vimos o nome de Portugal em chinês, em japonês, em sânscrito ou em vietnamita, os primeiros despertam-nos curiosidade, mas é o último, que se torna minimamente legível para um ocidental, isto obviamente se ele for desconhecedor de qualquer um dos sistemas de escrita apresentados. Para um falante da língua. portuguesa – há quem afirme mesmo que basta uns conhecimentos elementares de português – um olhar mais atento, provavelmente pela acentuação e pelo monossílabo final (esta língua. é monossilábica), despertaria a dúvida se não haveria ali mão portuguesa, tal como no crioulo de Cabo Verde, “Nha” significa minha, e “Nhá” é a abreviatura de “Sinhá”, no vocabulário do Brasil. Mesmo com mil anos de domínio de sucessivas dinastias do império chinês, que lhes impuseram o seu sistema de escrita ideográfica, e quando todos os outros vizinhos usam sistemas não romanizados, era estranho que o Vietname fosse uma excepção. A maior parte das respostas apontaria para os franceses; poderia até supor-se que fora o período colonial que tivesse operado a diferença. Hội An abriu-se aos navios e gentes de outros países. Era uma mistura cultural e foi também a porta de entrada ao catolicismo e à romanização da escrita vietnamita o (chữ) Quốc ngữ. As nacionalidades de muitos dos intervenientes neste processo de aproximação ocidental a estas regiões do oriente são também muito confusas. A mesma pessoa aparece referenciada ora como portuguesa, ora como espanhola; também algumas personagens surgem como italianas e como portuguesas, em vez de francesas: “During the 16th and 17th centuries, Western missionaries started to enter Viêt Nam. They used the language and the writing system to carry out their purposes. They began to study the Vietnamese language, and used the Latin alphabet to transcribe Vietnamese words. The representative was a Portuguese priest named

A Lady’s Visit to Manilla and Japan: Género, Viagem e Representações Interculturais

Alexandre de Rhodes (1591-1660)”1. Não existem dúvidas quanto à nacionalidade de Alexandre de Rhodes, mas aqui aparece incorrectamente referenciado como português. Tentaremos de uma forma sucinta demonstrar que o feito da romanização da língua vietnamita não é, e muito menos assim de uma forma tão abstracta, obra dos franceses. Será também, deste modo, uma tentativa para despertar o interesse e repor no lugar certo o valor que tiveram os missionários portugueses, pioneiros na transformação do sistema de escrita vietnamita. Existem documentos com mais de 2500 anos que ilustram a história do Vietname. No ano 111 a.C., o território dos Nam (Việt Nam) foi invadido pelos agressores Han. Conquistaram Phiên Ngung, a capital do país dos Nam, hoje Guangzhou, na actual província chinesa de Guangdong. Desde então, o Vietname foi repetidamente ocupado pelos poderes feudais chineses e, durante os dez séculos de dominação chinesa, foram várias as insurreições na tentativa de ganhar de novo a independência. Desde os vários governos feudais até ao estabelecimento de um estado feudal centralizado, passaram muitos anos. O período da chegada dos portugueses a estes territórios deu-se por altura da restaurada dinastia Lê, também conhecido pelo período dos Reis Lê e dos Senhores Trinh e marcado pelo conflito entre os Trinh, que governavam a norte, e os Nguyen, que governavam a sul, e que se arrastou até ao século XVIII. A Dinastia Nguyen começou em 1802 e chegou até 1945, com muitos conflitos bélicos. Os missionários portugueses estabeleceram missões entre eles. No século XVI, os textos portugueses começaram a fazer referência à CochimChina, mais tarde Cochinchina, nome que se refere só ao território governado pelos Nguyen. Mas este nome Cochinchina acabou por ser aceite pelos outros europeus e entrou no seu vocabulário. Por outro lado, o nome Tonkin (Tunquim ou Tunkim) deriva da palavra chino-vietnamita Dong King, ou Capital do Leste, e referia-se ao estado do norte, governado pela família Trinh. Este estado incluía a Capital Thang Long ou Kè Cho, conhecida hoje como Hà Nội (Hanói). Claro que a administração colonial francesa deu outra visão a todos estes termos e sua origem. Foi em meados do século XIX, quando as potências ocidentais procuravam consolidar os seus territórios coloniais e tentavam conquistar novos territórios, que a França tomou o poder no Vietname. Como os tratados internos tinham posto fim às dinastias feudais centralizadas, o Vietname tornou-se num país meio feudal, meio colonial. Seguiram-se as lutas pela independência, ainda antes da luta sobre as ideologias comunistas. Depois de vários acordos com a França, que esta não cumpria, e somente após os acordos de Genebra, o Vietname foi temporariamente dividido em duas zonas, com a linha de demarcação no paralelo 17. Seguiu-se a guerra contra a invasão pelos Estados Unidos da América, que durou até 1975. Finalmente, em Julho de 1976, a República do Vietname do Sul e a República Democrática do Vietname (Vietname do Norte) uniram-se para formar a actual República Socialista do Vietname. 1. Quảng, Mai Lý, Viêt Nam from Past to Future, Hà NộI, Thế Giới Publishers, 2007, p. 228.

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Hội An (Faifo) Existem várias versões para a origem do nome Faifo, mas pensa-se que será mais provável uma deformação fonética de Hoai Phõ, Hai Pho ou mesmo Hội An. Outra opção seria a transcrição fonética da pergunta “Co phà phõ không?” (Esta é a rua / cidade?). Mas Faifo era já referida nos finais do século XVI por navegadores e missionários, e surgiram também algumas variantes na escrita do nome: “In a letter-report from Father Louis Gaspar on the Cochinchina Mission, written in 1621 and published in 16282, two different spellings appear for what is assumed to be the same word: Facfo (p. 127) and Faifo (p. 129). Cadière explains that either the transcriber or typist made an error, that Facfo is actually Faifo”3. Hội An é uma vila, a sul de Da Nang, e foi contemporânea de Macau e Malaca. Foi ponto de paragem para os navios que faziam a rota do Oriente, e foram os portugueses quem fez a primeira incursão nestas paragens. Não havia barco com mercadores que não trouxesse também como passageiros alguns missionários. Primeiro os mercadores instalaram-se nesta zona, seguiram-se os missionários e, em 1535, o capitão António Faria, o primeiro militar português aqui a chegar, foi o responsável pelo estabelecimento do entreposto comercial português. No mesmo ano em que se estabelece aqui a feitoria de Faifo, os portugueses estabelecem-se também em Tonquim: “In the Southeast Asia as a whole, the 16th and 17th centuries saw great upheavals. Western powers, following the discoveries of new lands in the 15th century, were making inroads into the East. Their trade activities drew Asian countries into the system of regional and international trade then just making shape. Merchants ships, first from Portugal, then from Holland, Britain and France, began to call at Hoi An and other Vietnamese ports”4. Hội An, como importante porto nas rotas comerciais na Ásia, deixou entre várias relíquias valiosas, um legado também importante, que é o dialecto falado pelas gentes locais, considerado um fenómeno no sistema linguístico do Vietname. Observando esse dialecto é curioso descobrir variantes quando se estuda os nomes de lugares e o vocabulário profissional. Hội An era no Vietname, para além de um entreposto comercial, o centro cultural de contactos com o mundo exterior, em pleno século XVII. Era a porta marítima da antiga cultura Champa, e um dos primeiros lugares do Vietname a receber a influência da então moderna civilização ocidental. Foi inevitável o aparecimento de uma língua. franca. Uma das maiores influências entre a cultura vietnamita e a cultura da Europa latina foi a invenção do Quõc ngữ, a língua. nacional vietnamita: 2. Gaspar, Louis, La Mission de Cochinchina, carta de 1621, publicada em Histoire de ce qui s’est passé en Ethiopie, Malabar, Brésil export les Indes orientales, editado em 1628. Fotocópia na BAVH, nº 3-4, pp. 406-432. Na página 419, existe uma nota (12) de Cadière: “Facfo is a spelling mistake made by the copyist or the typographer, the right word being Faifo; the letter is again spelt wrongly as Taifo on page 129, line 12. But we must remark that the above-mentioned words. Caciam (Ke Cham) and Nouoc man (Nuoc Man), are attempts for romanizing Annamese nouns”. 3. AAVV, The National Committee for the International Symposium on the Ancient Town of Hoi An (third impression), Hà NộI, Thế Giới Publishers, 2006, pp. 183-184. 4. Idem, p. 27.

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At the time Pina wrote, early 1623, the Jesuits had two main residences, on in Hội An in Quảng Nam, the other at Quy Nhon (called Pulo Cambi by the Portuguese) in Bình Định; and two secondary piedsa-terre in Quảng Nam without a permanent European staff, one at Củra Hàn, the other at Kẻ Chàm. The letter states that at Pulo Cambi ‘Father Busome (Buzomi) lives alone with the Brother.’ For Hội An, besides himself he mentions the following missionaries: “Father Superior,” “the old Father,” and “Brother José.” According to the sources compiled by J. F. Schütte, in 1623 eight Jesuits were in fact living in Cochinchina. Among these, four were priests, three Portuguese and one Italian. The others, one Portuguese, one Chinese, and two Japanese were ‘temporal coadjutors,’ i.e. Jesuits who were not priests and generally confined to inferior tasks.5

Os missionários portugueses, que se interessaram pelas línguas. e que se instalaram no Tonquim e na Cochinchina anotaram estas diferenças linguísticas assinaladas em Hội An nas suas gramáticas e dicionários. Um dos vocábulos que serviram de exemplo e foi apontado por Alexandre de Rhodes no seu dicionário foi o vocábulo “nhà”, que significa casa e tem como variante “dà”. Nos dias de hoje os dois vocábulos coexistem em Hanoi, considerada a porta de entrada para o catolicismo no Vietname: In face of that difficulty, in Dang Trong in the 17th century, Portuguese traders enjoyed the effective assistance of their natural fellow travellers, namely Jesuitic missionaries, and were eager to preach the “Precepts of the Gospel” in far-away lands, outside Europe. On merchant ships there would be the presence of missionaries. However, at the beginning, the missionaries only came with the ships to stay for three or four months or so, then left when the ships were loaded with goods and weighed anchor. In that way, they were not bent on learning the local language, and consequently their preaching did not bear any fruit.6

Ligação Hôi An a Macau O missionário ia aonde ia o mercador ousado, este para os bens terrenos, o outro para ganhar as almas. Também eles procuravam espalhar a fé na própria língua. dos catequizados, compondo obras adequadas nela, (…) O Missionário que não sabe a língua. de suas ovelhas não pode ser missionário (…)7. No século XVIII, existia nesta região uma língua franca e nota-se a interferência de cerca de cem palavras que ilustram a língua vietnamita, que é falada entre Hội An e Da Nang. Os estudiosos assumem que há uma mistura entre o vietnamita falado na Cochinchina e o chinês falado em Guangdong. A província de Cantão (Guangdong) tem uma longa tradição quer nas rotas marítimas quer nos contactos com o mundo ocidental. A fundação de Macau e a chegada dos missionários a esta zona e as suas movimentações permitiram uma maior deslocação de conhecimentos sobre a cultura ocidental, e isso foi também acompanhado por influências linguísticas. Existem variadíssimos documentos, incluindo documentação oficial, que ilustram as ligações desta região a Macau. 5. Jacques, Roland, Portuguese Pioneers of Vietnamese Linguistics Prior to 1650, Bangkok, Orchid Press, 2002, p. 28. 6. AAVV, The National Committee for the International Symposium on the Ancient Town of Hoi An, p. 255. 7. Buescu, Maria Leonor Carvalhão, O Estudo das Línguas Exóticas no Século XVI, Lisboa, Biblioteca Breve, ICLP, 1984, p. 89.

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Nos princípios do século XVII, o concelho de bispos das missões portuguesas no Extremo Oriente, baseado em Macau, enviou para Hoi An uma missão de padres jesuítas, a fim de estabelecerem missões religiosas em Dang Trong. Este grupo era constituído pelo padre católico italiano Francesco Buzomi, pelo padre católico português Diego Carvalho, e três frades, dois japoneses e um português. Buzomi só regressou a Macau 24 anos depois em 1639, enquanto Diego Carvalho se deslocou para o Japão onde foi morto. Apesar das dificuldades na língua vietnamita e da falta de intérpretes, as missões foram bem sucedidas, e outras se seguiram: Encouraged by that achivement, the Macau Council of Bishops decided to strengthen the mission by sending a younger priest, who was able to learn the Vietnamese language quickly, and to preach directly without an interpreter. It was Father Francesco du Pina, a Portuguese, and a former student of F. Buzomi in theology at the Macau Seminary. He arrived in Dang Trong in 1617, and was to be the first European who spoke fluent Vietnamese.8

Quando o Japão baniu o cristianismo, levou a que muitos missionários dependentes do concelho de bispos em Macau fossem pregar para outras paragens. Foi o caso de um padre francês, Alexandre de Rhodes (apesar de não ser essa, segundo ele, a sua nacionalidade), que logrou chegar a Portugal e pedir autorização para se deslocar até Macau, algo interdito aos franceses. Esteve um ano em Macau a aprender japonês, com a intenção de se deslocar para o Japão. Contudo, acabou por se deslocar para Dang Trong, no Vietname: A. de Rhodes was the third Western missionary after F. di Pina and C. Borri who spoke Vietnamese fluently. This is to cite only the three most famous missionaries. In a document called minutes of the debate in 1645 by 36 Jesuitic missionaries on the formula of bapteme written by the priest Nguyen Khac Xuyen in the Van hoa nguyet san – 1960 (Cultural Monthly Review)9, the author mentions the name of 5 missionaries with the note peritus linguae, versed in the (Vietnamese) language, namely Antonio Barbosa, Balthassar, Pacchus, Albertus and Gaspar de Amaral. Particularly, the last name is followed by the note peritissimus linguae, meaning deeply versed in the language.10

Foi durante muito tempo praticada censura aos documentos históricos sobre a glória da dinastia dos Nguyen, e as fontes portuguesas nem sempre foram utilizadas para relatar os contactos e as relações privilegiadas que Portugal e Macau tinham com estas paragens e os governos de então. Existem inúmeras referências à importância das missões comerciais e religiosas, e ao respeito que os governantes das várias regiões tinham pelas mesmas. Para além da existência, como já referido, de uma língua. franca, era aos portugueses que se recorria quando se necessitava de um intérprete, assim como para questões quase diplomáticas: 8. AAVV, The National Committee for the International Symposium on the Ancient Town of Hoi An, p. 256. 9. Nguyen Khac Xuyen, “Around the problem of forming the chu quoc ngu”, Van hoa nguyet san, nº 48, JaneiroFevereiro 1960, pp. 1-14. 10. AAVV, The National Committee for the International Symposium on the Ancient Town of Hoi An, p. 257.

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Usufruindo de uma posição diferente das dos Europeus na mentalidade dos vietnamitas, os macaenses não deixam de participar, por seu lado, dos dois mundos: aos Ingleses da missão Chapman de 1778 pergunta-se em que é que eles diferem dos portugueses, que servem como povo de referência, e quando em 1793 o governador Da-nang/Tourane pretende oferecer um banquete em honra da missão Macartney, é aos navios macaenses que estão ancorados na baía que eles pedem emprestado o serviço de mesa, o queijo e o vinho da Madeira. É finalmente, a língua. portuguesa que deve ser utilizada pelos comerciantes europeus nas suas transacções no Vietname, uma vez que se trata da única língua. conhecida pelos intérpretes.11

Estas relações foram facilitadas também pela proximidade: estes mares asiáticos eram bastante conhecidos dos portugueses, e as carreiras comerciais cruzavam toda esta zona. Os navios que, por exemplo, tocavam em Malaca e se dirigiam a Macau, encontravam na sua rota os portos do Vietname.

Os Missionários Erigiram-se depois canonicamente, alem de outros, o Arcebispado de Goa, Primaz do Oriente, e os Bispados de Macau e Malaca, seus suffraganeos, por Bullas Apostolicas, que todos conhecem; ficando sempre estes tres Bispados do Real Padroado da Coroa de Portugal, do que ninguem jamais duvidou. Depois de erigidos estes Bispados, entraram em Tunkin pela cidade de Macau, e á custa da Fazenda Real, que sempre concorreu liberal com todas as despezas para o transporte e sustentação dos Missionarios, que pregaram o Evangelho naquelle vastissimo Reino,e por misericordia de Deus correspondeu copioso fructo aos trabalhos destes primeiros Apostolicos Missionarios; e só por este facto, prescindindo de outras rasões, ficaram as Missões de Tunkin pertencedo de direito ao Real Padroado, sendo a Coroa quem fez taes e tão grandes despezas com os Missionarios, que as fundaram.12 A primazia de toda a influência religiosa portuguesa no Oriente estava em Goa. O bispado de Macau dependia de Goa e era normalmente de Macau que partiam os missionários nas suas missões para as diversas regiões do Vietname. Instalavamse em Tonquim e na Cochinchina, regiões que também aparecem, muitas vezes, referenciadas como um todo. Mas a região que temos referenciado como Vietname era constituída por variadíssimos territórios, cada um com governantes diferentes, e não era um todo como país ou nação. Era inevitável que toda esta relevância que os portugueses tinham na região acabasse por despertar a cobiça dos mais diversos concorrentes. Os franceses tentaram exercer toda a influência que puderam junto do Papado em Roma, para questionar a justificação para esse domínio português:

11. Manguin, Pierre-Yves, Os Nguyen, Macau e Portugal – Aspectos políticos e comerciais de uma relação previlegiada no Mar da China, 1773-1802, Macau, Comissão Territorial de Macau para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, p. 56. 12. Álvares, António, Memória Sobre o Real Padroado da Corte de Portugal nas Missões do Reino de Tunkin, por Antonio Alvares, da Congregação do Oratorio de Lisboa, feita em 21 de Janeiro de 1802, e Resposta que deu o Procurador da Coroa, João Antonio Salter de Mendonça, em 9 de Abril do mesmo anno, Tudo copiado da Collecção de manuscriptos de Julio Firmino Júdice Biker, e por este publicado.

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Os Propagandistas Francezes reconhecendo que a christandade de Tunkin era governada pelos nossos Bispos de Macau e Malaca, requereram como remedio, que o Romano Pontifice subtrahisse de jurisdicção ordinaria daquelles Bispos os Christãos de Tunkin, Nankin e Cochichina; o que parece incrivel em Francezes, mas o facto he certissimo e consta dos seus mesmos requerimentos (…).13

Por outro lado, Portugal teve também dificuldade em marcar fortemente a sua presença de uma forma muito concreta. As missões, que não tinham assim tantos proventos, esperavam sempre a ajuda da Coroa, mas essa ajuda era tardia e por vezes inexistente, o que permitia a terceiros apresentarem questões de direito sobre estes territórios: “Nos séculos XVII e XVIII repetidas vezes se levantaram dúvidas entre a corte de Lisboa e a Santa Sé, acerca do governo eclesiástico da Cochinchina e do Tonquim, terras administradas por vigários apostólicos desde 1659”14. Os franceses estavam impossibilitados de ir para Macau e para os territórios do Oriente, onde a presença portuguesa era já assinalável. Para fugir a essa questão da interdição aos franceses, Alexandre de Rhodes utilizou, poderia dizer-se, um subterfúgio, uma questão de cariz diplomático, para finalmente se juntar à missão em Macau e ultrapassar as questões levantadas pelos franceses ao direito do domínio dos portugueses: En consultant les abondants archives de la mission jésuite du Viêtnam, on ne peut s’empêcher de poser la question: qui a mandate les jésuites pour l’évangélisation de ce pays? Il faut d’abord dire clairement qu’ils tiraient leur légitimé du mandat general reçu dans le cadre du padroado, dont il a été question plus haut. Concrètement, les décisions étaient prises et les feuilles de route signées par leur propre “visiteur dês missions du Japon et de Chine”, personnage important résidant à Macao, et qui avait toute autorité, déleguée par le préposé général des jésuits.15

Foi pelo receio da perda de influência na região, e para dar maior força às missões já aqui instalados, que a coroa portuguesa se decidiu a solicitar ao Papa a nomeação de um Bispo para Tunquim. Como já referido, Alexandre de Rhodes evocou o seu estatuto especial de não francês. Como tinha nascido em Avignon, esta cidade-residência papal durante vários anos era considerada não francesa, dependendo directamente do Papa em Roma (“I do not think that my birthplace can be obtacle to me leaving for Índia. In fact, I am from Avignon and a subject to the Sovereign Pontiff”16). Foi este pormenor que permitiu a Rhodes evocar a sua cidadania papal e solicitar a Lisboa autorização para fazer parte de uma missão no Oriente. Esta autorização era necessária, até porque teoricamente as missões eram custeadas pela coroa Portuguesa, e Portugal excluía dos seus territórios de além-mar os cidadãos franceses:

13. Idem, p. 5. 14. Fortunato de Almeida, A História da Igreja em Portugal, vol. III, Porto e Lisboa, Livraria Civilização,1968, p. 21. 15. Jacques, Roland, De Castro Marim à Faïfo: Naissance et développement du padroado portugais d’Orient dês origines à 1659, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, pp. 147-148. 16. Carta publicada em Christus, 8, 1955, pp. 535-539.

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Tout autant que l’Église de Conchichine, celle du Tonkin était portée à la base par les notables et les catéchistes. C’est ici que cês derniers ont reçu leur structuration, oeuvre d’abord, semble-t-il, d’Alexandre de Rhodes, mais qui reçut sa forme définitive sous le supériorat de Gaspar do Amaral en 1636, et son approbation officielle par les autorités de la Compagnie de Jesus de Macao en 1652.17

Seria necessário uma investigação mais profunda, de modo a podermos afirmar que se deveria repor uma verdade objectiva sobre o valor dos trabalhos preliminares feito pelos missionários portugueses, nesta questão da origem da romanização da escrita vietnamita, que genericamente é sempre atribuída a Alexandre de Rhodes: 1624-1627 – P. Alexandre de Rhodes. Nasceu em Avinhão em 15 de Março de 1591 duma família originária de Aragão, na Espanha e ingressou na Companhia aos 18 anos. Partiu de Lisboa para Goa em 4 de Abril de 1616, e demorou-se dois anos e meio ali e em Salsete; dali seguiu para Macau, aonde chegou em Maio de 1623. Em 1624 foi enviado com o P. Matos à Cochinchina, onde em três semanas aprendeu “os diversos tons e a maneira de pronunciar todas as palavras” e dentro de seis meses começou a pregar. Em 1627 foi mandado ao Tonquim com o P. Pêro Marques. Em 1630 saiu de Tonquim e passou 10 anos em Macau, até que em 1640 foi enviado de novo à Cochinchina; expulso por Nguyên, saiu deste país aos 3 de Julho de 1645. Partiu de Macau para a Europa em 20 de Dezembro de 1645, chegando a Roma em 27 de Junho de 1649; da Europa partiu para a Pérsia, falecendo em Ispahan em 5 de Novembro de 1660. O P. Rhodes tem sido considerado o inventor da escrita romanizada da língua. anamita. Assim, em A Short History of Viet-Nam (Nguyen, Van Thai; Nguyen, Van Mung. Saigon: 1958, p. 200), afirma-se: “As duas mais fortes e permanentes influências culturais dos ocidentais foram a criação da versão romanizada da escritura da língua. vietnamita, que foi realizada por Alexandre de Rhodes e Pigneau de Behaine e a propagação da fé católica que levou a muitos uma nova filosofia de vida”. Isto é falso. Estas duas influências culturais são obra dos jesuítas portugueses. O P. Rhodes foi apenas o maior propagador dessa escrita romanizada, não o seu inventor. Segundo o Dr. Ngue-gen Nam Côn, o verdadeiro inventor do Quôc-ngu foi o P. Francisco de Pina.18

Apesar de Alexandre Rhodes fazer menção ao trabalho dos seus irmãos portugueses da ordem de Jesus, ele não foi suficientemente humilde ao ponto de admitir que nem todo o trabalho fora seu. Partiu para o Oriente, mais propriamente para Goa, em 1616, tendo anos mais tarde seguido para Macau. As missões portuguesas já se encontravam no Vietname, melhor dizendo em Tonquim, Cochinchina, junto dos Nguyen e do reino de Annan. Quando saiu pela primeira vez de Macau, em 1624, para o Vietname, Rhodes ia num grupo cujo superior era o Padre Gabriel de Matos e em todas as outras missões nas quais se incorporou Rhodes nunca foi superior das mesmas. Pode não parecer relevante, mas Rhodes minimiza o trabalho dos Padres António Barbosa e Gaspar de Amaral, pelo facto de estes terem chegado tarde demais a estes territórios para terem melhores conhecimentos das línguas. locais (“1624-1638 – P. Gabriel de Matos. (…) Foi reitor, substituto, do Colégio de S. Paulo, de Macau, de 1620 a 1621; de 1621 a 1622, foi Visitador da Província de Japão e Vice-província da China. Em 1624, partiu para a Cochinchina 17. Jacques, Roland, De Castro Marim à Faïfo, p.147. 18. Teixeira, Manuel Pe, Missionários Jesuítas no Vietnão, Edição do Centro de Informação e Turismo de Macau, 1964, p. 15.

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como superior dessa Missão, levando consigo cinco religiosos, um dos quais era o P. Alexandre de Rhodes”19). Na verdade, como já referido, o Padre Francisco Pina foi o primeiro europeu a falar fluentemente a língua. vietnamita. Iria ser o professor de Alexandre Rhodes e este torna-se no terceiro europeu fluente nessa língua., depois de Pina e Borri. Contudo, existiam referências a mais um grupo de missionários que também falava a língua., no qual estavam incluídos os padres António Barbosa e Gaspar de Amaral, sendo respectivamente peritus linguae e peritissimus linguae. Qualquer trabalho por eles realizado sobre a língua. vietnamita não pode ser menosprezado: 1629-1646 – P. Gaspar do Amaral (…) o padre Gaspar do Amaral era columna da província de Japão, de que fora já provincial e sete annos superior da missão do reino de Annam, a qual promoveu em grande virtude e exemplo de sua pessoa, zelo e prudência entre trabalhos e grandes perseguições que houve em seu tempo! O P. Amaral compôs um dicionário anamita-português, que serviu de base ao P. Alexandre de Rhodes para o seu célebre dicionário anamita-português-latim.20 1636-1642 – P. António Barbosa (…) Compoz um tratado na lingua que serve para instruir os cristãos, e ainda gentios, em todos os principios da nossa santa fé. Compôs ainda um dicionário português-anamita, de que se serviu o P. A. de Rhodes para o seu dicionário anamita-portuguêslatim.21

De uma forma velada, o Padre Alexandre Rhodes acabaria por fazê-lo. Os dicionários que ambos estes padres elaboraram, o tomo português-anamita e o tomo anamita-portugês, tinham como introdução um breviário explicando algumas regras da língua.. Alexandre de Rhodes faz o mesmo no seu dicionário, refere o trabalho dos referidos padres, mas há como que um passar de esponja pelo real valor do trabalho dos seus colegas: “Hoàng Tiến mentions another two pioneers of Quoc Ngu, whose lexicographic work is unfortunately not known except through the foreword of Alexandre de Rhodes’ Dictionary. But Tiến overlooks the name of Francisco de Pina, the third name cited in this text”22. Estávamos num período difícil da vida de Portugal: o domínio filipino e a restauração da independência trouxeram relações complicadas com a Santa Sé. Para Rhodes, a publicação em Roma do seu dicionário em língua. portuguesaanamita-latim (os dicionários trilingues não eram inéditos: o mesmo já se tinha passado com a língua. japonesa) não estava muito facilitada, pois não o fez em língua. francesa, em lugar da portuguesa. A situação parece resolver-se quando Alexandre de Rhodes publica em Roma a sua obra Dictionarium annamiticum, et latinum, op Sacrae Congregrationis de Propaganda Fide, in lucem editum ab Alexandre de Rhodes, e Societate Jesu, Romae, Typis et sumptibus ejusd. Sacr. Congreg. 1651 e, como forma de prefácio, refere o trabalho de António Barbosa e Gaspar de Amaral: 19. Idem, p. 13. 20. Idem, pp. 61-62. 21. Idem, p. 66. 22. Jacques, Roland, Portuguese Pioneers of Vietnamese Linguistics, p. 12.

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O P.e Cardière observa: na advertência colocada à cabeça deste último livro (Diccionarium annamiticum), o P. Rhodes informa que ele se serve, para o compor, dos trabalhos de dois jesuítas portugueses, Gaspar de Amaral e António Barbosa, um dicionário anamita-português do primeiro e um dicionário português-anamita do segundo. Mas cumpre notar que estes dois missionários chegaram ao país de Anam muitos anos depois do P. Rhodes, quando este dominava perfeitamente a língua. anamita, na qual pregava havia muito tempo; que ele se serviu dos dicionários que os seus dois confrades haviam feito – cada qual certamente para seu uso pessoal de romanização dos sons anamitas. Em todo o caso, é preciso dizer que esta obra é, para a época em que foi publicada, uma espécie de obra-prima. Este léxico foi a base de todos os trabalhos ulteriores, que simplesmente o completaram e às vezes o estragaram. Os conhecedores saboreiam ali um finíssimo sentido da fonética e a ingenuidade duma transcrição que tem desafiado até aqui todos os assaltos.23

O Manuductio ad linguam Tunckinensem é o título do conjunto de 22 manuscritos escritos em latim e em quốc ngữ, que constam da documentação histórica dos Jesuítas na Ásia, relacionado com a influência destes na aprendizagem das línguas. do Vietname, na romanização do alfabeto e na ajuda para uma melhor aprendizagem dos tons desta língua., elemento bastante importante para o estudo da fonética: We have already deduced that the source-text taken up by Borges and Rhodes was drafted in Portuguese, although the extant versions are both in Latin. Pina worked at a time when the prestige of Portuguese as a cultural language was intact, and its dominant position as a language of communication between Europeans in the Far-East was as yet uncontested. Portuguese Jesuits made up the large majority of the ‘Province of Japan’. Twenty-five years later these circumstances had changed. In the case of Rhodes, switching from Portuguese to Latin is easy to understand, since he published in Rome at a time when the Holy See had broken diplomatic relations with Portugal. In the case of Borges there were two main motives: as a German-speaking Swiss he probably knew Latin better than Portuguese, and most of the new missionaries sent to stay with him in Tonkin were non-Portuguese. A surprising clue pointing to a Portuguese original is given by Alexandre de Rhodes: he forgot to translate two Portuguese words (‘irmaõs,’ ‘brothers,’ and ‘irmaãs,’ ‘sisters’), at the top of page 13 of his edition. The theory of a Portuguese sourcetext also explains in part why, in many cases, parallel sentences of the two phonetic descriptions have a similar content rendered by different Latin phrases; and why, in other parts, the Latin definitions of the Manuductio are closer to the Portuguese than to the Latin given in Alexandre de Rhodes’ Dictionary.24

O (chữ) quốc ngữ O (chữ) quốc ngữ é a escrita da língua. nacional vietnamita, ou seja, a sua forma romanizada, mais conhecida por quốc ngữ (língua. nacional), sendo portanto a escrita oficial. Serviu também para unir as várias famílias linguísticas. O Vietname é composto por 54 grupos étnicos e três famílias linguísticas principais (em alguns documentos consideram-se cinco). A língua. vietnamita, que pertence à família das línguas. austro-asiáticas, é aceite como a língua popular por todos os grupos étnicos. Não é uma língua. inflexional como as línguas indo-europeias. É uma língua. monossilábica. As palavras são as unidades básicas do vocabulário e também as 23. Teixeira, Manuel Pe., Op. Cit., pp. 16-17. 24. Jacques, Roland, Portuguese Pioneers of Vietnamese Linguistics, p. 37.

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unidades de pronunciação. Quase todas as palavras separadas têm um significado. Quando duas palavras, com dois significados diferentes, são combinadas para formarem uma nova palavra, esta palavra terá um significado bastante diferente. A entoação é difícil para um não vietnamita, pois a alteração do tom muda o significado da palavra. A língua. vietnamita tem 6 tons, cada palavra pode ser pronunciada de seis maneiras diferentes. No moderno sistema de escrita, para as diferenciar, elas são acentuadas graficamente. Por exemplo, a palavra “ba”, em cada um dos tons, muda o seu significado: Ba: pai Bà: avó, senhora Bá: conta, espalhar Bả: banir Bã: cansado Bą: registo Devido a este sistema tonal, a língua. vietnamita é tida como uma língua. musical, sobe e desce como as sete notas musicais, é uma língua. de poesia. Contudo, estes seis tons tornam-na mais difícil de pronunciar para os ocidentais de língua. indo-europeia. Criar uma nova palavra na língua. vietnamita é bastante fácil e interessante, pois a unidade básica da palavra é monossilábica. Duas palavras monossilábicas podem ser combinadas para fazer uma palavra composta de duas sílabas. Por exemplo: Hoả xa (comboio) é a combinação entre Hoả (fogo) e Xa (veículo). As palavras compostas que são formadas a partir de duas palavras separadas não têm o significado das duas palavras combinadas: mudam e têm um significado mais genérico. Outra maneira de combinar palavras na língua. vietnamita é a chamada repetição. A partir de uma palavra monossilábica, mantendo a primeira consoante e adicionando mais vogais, pode-se criar novas palavras. Estas têm significados diferentes. Por exemplo: a palavra original é Lanh (frio – uma questão física). A nova palavra, por repetição, Lanh Lùng (frio – no sentido moral). O acento circunflexo, sobre o “â”, “ê” e “ô” como característica das vogais semi-fechadas, é uma influência directa da língua. portuguesa. É uma língua. tonal, dispondo de 26 ditongos e 18 tritongos, onde notamos mais uma marca: a forte influência do til nas palavras. O processo de imposição e generalização da grafia dos ditongos nasais, provenientes da convergência das terminações –om, -am, -ão, em curso desde a reforma ortográfica da Chancelaria Real de D. Dinis, de que fala Lindley Cintra está, pois, prestes a terminar, fixando-se na terminação –ão. Til representa, na ortografia portuguesa, uma marca de originalidade, na medida em que utiliza, de forma autónoma e diferenciada, um sinal que, ausente das grafias italiana e francesa, se reduz, na castelhana, à função de abreviatura ou suprimento de n apenas.25 25. Buescu, Maria Leonor Carvalhão, A Língua Portuguesa, Espaço de Comunicação, Lisboa, Biblioteca Breve, ICLP, 1984, p. 39.

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Outra característica da língua. vietnamita reside na gramática: os plurais, género dos nomes, tempo e modo dos verbos não são claramente identificáveis e terão que ser observados no contexto. Devido à sua posição geográfica e às diferentes influências históricas por parte da China, a língua. vietnamita tem uma enorme influência da língua. chinesa, havendo por isso grande quantidade de vocábulos com essa origem. Não existem dados concretos sobre se o antigo sistema linguístico tinha ou não um sistema de escrita. O sistema de escrita chinesa era usado administrativamente e ensinado nas escolas. Contudo, os intelectuais vietnamitas que tinham uma consciência nacional, com base nos caracteres chineses, criaram o nôm script para registar a língua. vietnamita. E assim, durante vários séculos, coexistiram no Vietname estes dois sistemas: o chinês e o nôm script. O alfabeto acabaria por ser constituído por 37 grafemas, nomeadamente vinte e nove letras e oito dígrafos: A/a, Ă/ă, Â/â, B/b, C/c, Ch/ch, D/d, Đ/đ, E/e, Ê/ê, G/g, Gi/gi, H/h, I/i, K/k, Kh/ kh, L/l, M/m, N/n, Ng/ng, Nh/nh, O/o, Ô/ô, Ơ/ơ, P/p, Ph/ph, Q/q, R/r, S/s, T/t, Th/ th, Tr/tr, U/u, Ư/ư, V/v, X/x, Y/y Em outros documentos, faz-se referência ao mesmo número de letras, mas aponta-se a existência de 10 dígrafos e 1 trígrafo, acrescentando: gh, ngh e qu. O dígrafo “qu” serve para anteceder as vogais “e” e “i” como em português, sendo a mesma regra aplicada para o “gh”. Em virtude de ser uma língua. tonal, utiliza 5 diacríticos para assinalar as variações de tom, havendo no entanto mais diacríticos. Alexandre de Rhodes himself acknowledged it in the preface of his dictionary: In the compilation of this dictionary, I have not only relied on the help of the native people who help me learn the language during the twelve years of my stay in Dang Trong and Dang Ngoai, but also have learned from other missionaries. I studied together with Francesco di Pina, a Portuguese belonging to our humble Jesuitism. He is a man well versed in the native language and is the first man who dared to preach in the native language. Besides, I also make use of the work of other missionaries who also belonged to Jesuitism, especially Gaspar de Amaral and Antonio Barbosa. Both of them compiled each a lexicon, the Vietnamese-Portuguese lexicon by Mr. Gaspar de Amaral and Portuguese-Vietnamese lexicon by Mr. Antonio. Regrettably, both died very young. Taking advantage of the works of both of them, I compiled a new lexicon with Latin annotations.26

Seria demasiado ambicioso provar ou repor alguma verdade não esclarecida com este trabalho. Não basta ter a coragem do Pe. Manuel Teixeira quando, a propósito da propagação da fé católica e da romanização do alfabeto vietnamita, em que vê esse esforço atribuído a Alexandre de Rhodes, afirma: “Isto é falso. Estas duas influências culturais são obra dos jesuítas portugueses”. É preciso dedicação e trabalho para consubstanciar essas afirmações. Não bastou o padre Rhodes afirmar que pegou no trabalho de Gaspar de Amaral e António Barbosa, e concordar que retirou proveitos desse trabalho, juntando um novo léxico com anotações em latim e publicando um dicionário em Roma, para trazer maior glória aos missionários portugueses.

26. AAVV, The National Committee for the International Symposium on the Ancient Town of Hoi An, p. 262.

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Aqui, nem se poderia pôr em questão a rivalidade entre as diversas sociedades missionárias estrangeiras, que subestimavam os trabalhos realizados pelos outros, pois todos pertenciam à mesma ordem. É indiscutível o valor e os ganhos que esta revolução linguística trouxe para a cultura vietnamita. Francisco de Pina ensinou vietnamita, cochichinês, tonquinês ou anemita a Alexandre de Rhodes e há sempre uma questão que se coloca quando o trabalho de um discípulo é tão valorizado: será que o trabalho do mestre pode ser totalmente ignorado? Hoje em dia, os vestígios dos “putao nha” em Hội An são inexistentes, as suas casas foram substituídas por outras e onde outrora foram os seus locais sagrados e os cemitérios, ainda se poderá encontrar uma cruz ou outra, mas são agora arrozais ou pocilgas. Nos encontros internacionais que se realizam em Hội An, juntando vários países e discutindo a cultura vietnamita e a influência estrangeira nesta cidade, Portugal e os portugueses não costumam estar presentes. Porém, existe um número considerável de palavras que foi transcrito para a língua. vietnamita por influência portuguesa, como por exemplo: chìa = trà (chá) e chiu = chũ’ (letra, carta). O facto não parece muito evidente, mas permanece o reconhecimento por parte de alguns estudiosos de que a influência portuguesa foi real.

A GUERRA DAS PALAVRAS: O PARALELISMO LEXICAL NO DISCURSO RITUAL FATALUKU 1 Aone Van Engelenhoven Universidade de Leiden, Holanda Instituto Nacional de Linguística, Díli, Timor

Introdução Com 30.000 falantes, o Fataluku é a quarta língua. da República de TimorLeste. Geneticamente pertence ao ramo não-Austronésio de Timor-Alor-Pantar, do grupo da Trans-Nova-Guiné (Engelenhoven 2006, Donohue e Schapper 2007). Considerando que Hull analisa o dialecto Fataluku como caracterizado por certos arcaísmos (Hull, 2005: 1), Naerssen (2007), num artigo inédito, convincentemente argumenta que há duas línguas. que devem ser distinguidas. Uma delas é Oirata, falada na ilha de Kisar no Sudoeste das Molucas (Indonésia), caracterizada pela sua morfologia conservadora, a outra, Fataluku, exclusivamente falada no vizinho distrito de Lautem, que se encontra na extremidade oriental da República de Timor-Leste. Línguas. vizinhas do Fataluku são o Makalero, confinado ao subdistrito de Iliomar, que faz fronteira com o distrito de Vikeke (Huber 2008), e os dois dialectos Makasai gravemente ameaçados – Sa’ani e Naini –, falados no subdistrito de Luro, que faz fronteira com o distrito de Baukau. Todos estes também pertencem ao mesmo subgrupo de Timor-Alor-Pantar. Pelo menos duas outras línguas. foram faladas na região: Makuva e Rusenu ou Nisa. O Makuva é uma língua. Austronésia do subgrupo Oriental, Extra-Ramelaico, próximo dos isolectos marítimos de Luangic-Kisaric no Sudoeste das Molucas e do conjunto de dialectos Karui-Waimaha-Midiki-Naueti nos distritos de Manatutu, Baukau e Vikeke. O Makuva está confinado ao subdistrito de Tutuala e foi, durante muito tempo, considerado como quase extinto. No entanto, acabou por ser 1. Este texto foi elaborado no quadro no projecto PDTC/ ANT/81065/2006 (Fundação Para a Ciência e a Tecnologia).

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submetido a um processo de “ocultação de língua.”, a fim de evitar a sua extinção (Engelenhoven e Valentim 2006, Engelenhoven In Press). A investigação em curso sugere que o Rusenu ou Nisa foi anteriormente falado no subdistrito de Lautem, onde se extinguiu na primeira metade do século XX (Andrew McWilliam, pc). Um último semi-falante da língua. foi encontrado em Janeiro de 20072. Os dados até agora indicam que Rusenu / Nisa foi um dialecto Fataluku. Figura 1: O Fataluku e suas línguas. aparentadas ‘não-austronésicas’3.

O Fataluku tem agora cinco dialectos mutuamente inteligíveis. Os dialectos do Norte e Noroeste são falados na vila de Lautem e na região da costa norte, na fronteira com o Distrito de Baukau. Os dialectos do Centro e do Sul são falados no subdistrito de Los Palos, dos quais o último está confinado ao município de Lorehe4. O dialecto Oriental é exclusivamente falado no subdistrito de Tutuala. Uma característica exclusiva desse dialecto é que tem, por vezes, uma vogal médiaposterior [o], onde os outros dialectos têm uma vogal fechada-posterior [u] em posição final e uma oclusiva palatal [j] no início, que corresponde, noutros dialectos, a uma fricative alveolar sonora [z]. Os dialectos Norte e Noroeste distinguem-se pela retenção da oclusiva pós-alveolar [Í], em relação aos dialectos Central, Leste e Sul que se caracterizam no mesmo lugar na palavra por uma oclusiva palatal [c], 2. Uma vez que nenhuma análise linguística foi publicada nesta língua, remeto para as entrevistas aos media holandeses, as quais podem ser encontradas http://www.fataluku.com/staff/interviews/. 3. Os números indicam os dialectos existentes em cada língua. No caso de Alor-Pantar, refere-se ao número de línguas.. 4. Esta classificação segue a de Hull (2005) de forma evidente. Valentim (2001) prefere combinar os dialectos do norte e noroeste num único dialecto, e distingue o lecto de Kakaven, ao pé da fronteira dos subdistritos de Los Palos e Iliomar como um dialecto separado.

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e pela oclusiva glotal que está ausente no Oriental e obsoleta nos outros dialectos. O dialecto do Sul, de Lorehe, distingue-se, principalmente, por vogais longas que estão ausentes ou obsoletas nos outros dialectos. Partilha com o dialecto Oriental um aproximante palatal [j], que corresponde a uma fricativa alveolar [z] nos outros dialectos. Uma característica que se espalha a partir do dialecto Central para os outros é a tendência de suprimir as vogais finais, como, por exemplo, nope (“amanhã”), que frequentemente se torna nop. Quadro 1: Correspondências de sons nos dialectos Fataluku. ‘divida’ ‘cavalo’ ‘sono’ ‘esposa’ ‘existe’

Noroeste fa/ifa/inu kuÍa taza zeu ane

Norte fa/ifa/inu kuÍa taza zeu ane

Centro faifainu kuca taza zeu ane

Sul faifainu kuca taja zeu a˘ne

Este Faifaino kuca taja Ôeu ane

Na tradição oral local, à excepção de dois clãs, Kati Ratu e Tutuala Ratu, todos os clãs do distrito têm origem fora de Timor e trouxeram consigo a sua própria língua. ancestral (Gomes, 1972). O Makuva foi a língua. original dos dois clãs indígenas. Os dois clãs imigrantes, Cailoro Ratu e Latuloho Ratu, foram mais ou menos responsáveis pela divulgação do Makuva e do antecessor do Fataluku, respectivamente. Após séculos de guerra, ambos os clãs e os clãs que deles derivaram uniram-se sob “um discurso correcto” (Fatalukunu) numa sociedade uniforme. Foi a própria língua. do latu loho Ratu, referida acima como Nisa, que foi escolhida como o “discurso correcto”. No entanto, o Makuva conseguiu sobreviver, como uma língua. falada, até ao início dos anos sessenta do século XX. Isto é geralmente explicado pelo facto das aldeias onde era falado, Loikero, Porlamano e Pitileti, estarem isoladas do resto do distrito. Esta mudança de cenário linguístico explica o porquê dos Fatalukus serem geralmente relutantes à aprendizagem de outras línguas., embora o bilinguismo Makasai-Fataluku e Makalero-Fataluku ter sido verificado nos municípios de Serelau e Lorehe, respectivamente5. Sugere, igualmente, intenso contacto linguístico entre clãs linguisticamente diversos antes de terem sido unificados. A investigação em curso confirma esta hipótese.

As tradições orais Fataluku: o paralelismo lexical As tradições orais Fataluku distinguem tipos falados e tipos cantados. As tradições orais faladas são classificadas como rata lolo (histórias do passado), as 5. Relato pessoal de Paulino dos Santos (Los Palos) e do falecido Prof. Henri Campagnolo (mensagem de email de 25 de Outubro de 2004).

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quais são história-oral de acontecimentos, e no lolo (histórias do antigamente). Nas tradições orais cantadas distinguem-se o vaihoho e o mamunu, que são poemas cantados e fórmulas repetidas (ladainhas) com poder sagrado ou médico, respectivamente. Como na maioria das línguas. da região, as tradições orais Fataluku fazem uso de fórmulas e de provérbios que exemplificam uma história. Às vezes, porém, essas fórmulas estão numa língua. que não é Fataluku e, consequentemente, já não é compreendida pelo público6. A prova mais evidente do contato entre línguas. é o paralelismo lexical extensivo nas tradições orais Fataluku, o que parece totalmente compatível com os pares lexicais encontrados nas línguas Austronésias marítimas do Sudoeste das Molucas. Fox (2005) atesta o mesmo fenómeno na língua. não Austronésia Bunak e na vizinha Austronésia Kemak, analisando tal como uma explícita influência desta última sobre a primeira. Van Engelenhoven (1997) analisou o impacto bastante pragmático do discurso no Sudoeste das Molucas. Salientaram-se três aspectos: a) a focalização na mensagem central de um texto, b) a indicação da verdade historiográfica, c) a confirmação da erudição do narrador. Uma comparação de três amostras de textos de diferentes tamanhos (um discurso, uma narrativa histórica e uma oração) revelou um número relativamente igual de paralelismos. Figura 2: Quantidade de palavras e pares de palavras, em três histórias do agulhão-vela (Sudoeste das Molucas). palavras emparelhadas 4000 2000 0 Leti

Moa

Luang

Este fenómeno está espelhado nas três variantes estudadas do mito do agulhãovela que é recorrente em toda a tradição oral historiográfica do Sudoeste das Molucas7. Embora os textos se diferenciem consideravelmente em tamanho, cerca 6. Noutro lugar (Engelenhoven, 2008) desenvolvi que o seu carácter de branqueamento semântico torna estes ditos proverbiais bastante mal sucedidos como instrumentos na memorização de narrativas. Tal é bastante evidente na transcrição de Josselin de Jong (1937) de um mito Oirata que contém pequenas canções numa língua que ninguém compreende. Valentim (2002: 114) acidentalmente mencionou um exemplo no seu dicionário: “Woro-konai: uma palavra que uma pessoa pronuncia quando conta histórias do passado (nós não sabemos o seu significado)”. O facto é que Valentim é membro do clã Cailoro ratu que ainda usa o Makuva nos seus rituais e a forma da palavra sugere que é, de facto, Makuva. 7. Apesar de não tão publicamente como no Sudoeste das Molucas, este mito parece muito simplista em relação aos mitos do Ma’aleki ratu no subdistrito de Tutuala.

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de 10% de todas as palavras de cada texto estão consistentemente emparelhadas (figura 2). Um olhar mais atento sobre os diversos tipos de pares revela, no entanto, a divergência do texto Moa onde cerca de metade do montante total dos paralelismos são nomes (ver figura 3). Figura 3: Percentagem de palavras emparelhadas que são nomes em três histórias do agulhão-vela (Sudoeste das Molucas). to tal

de no m es

no m es

em parelhado s

100% 50% 0% Leti

Moa

Luang

No mesmo artigo, indicou-se que a composição dos pares lexicais é condicionada por certas regras, numa língua. como o LETI. Padrões similares de paralelismos são encontrados em línguas. vizinhas, quer sejam geneticamente relacionados com o LETI (Leste-Moanese e Meher) ou não (Oirata). Este facto sugere que o fenómeno do paralelismo suplanta o plano da especificidade da língua. e, como tal, merece uma abordagem antropológica do assunto. Uma comparação entre o paralelismo lexical do LETI Austronésio e do Fataluku não Austronésio mostra que o mecanismo é idêntico em ambas as línguas.. Ambas as línguas criam combinações de substantivos ou verbos de sinónimos ou antónimos. O LETI, diferentemente do Fataluku, no entanto, ainda tem alguns pares de palavras gramaticais. Ambas as línguas usam o paralelismo lexical para confirmar o estatuto social do orador. Diferentemente do LETI, no entanto, a função pragmática do paralelismo lexical assinala um discurso ritual em Fataluku. No LETI, ele é sobretudo utilizado para destacar elementos importantes numa narrativa. Van Engelenhoven (1997) observou que a estrutura, ou sintaxe se se quiser, do paralelismo lexical no Oirata não Austronésio da ilha de Kisar e do LETI Austronésio pareciam idênticos. Os padrões acabam por ser os opostos dos encontrados na língua Austronésia da maioria Meher da ilha de Kisar, que está em constante competição com a população Oirata. Uma comparação do LETI, do qual o Oirata é uma derivação do século XVII (Josselin de Jong, 1937), com o Fataluku propõe um cenário diferente. Para uma clarificação, analisaremos uma outra comparação com outra língua. timorense Austronésia, Rotinese, que é falada na ilha de Roti, ao largo da ponta sul de Timor e à volta da cidade de Kupang. Um primeiro olhar para a ordem das palavras em pares de substantivos, por exemplo, mostra que a ordem deriva das características do referente do substantivo. Em combinações de substantivos que se relacionam com as dimensões, aqueles que

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denominam a entidade mais pequena precedem os que denominam a entidade maior, em LETI e em Fataluku. Em Roti, porém, os que referem a entidade maior antecedem os que referem a menor. Isto é apresentado no Quadro 2a abaixo: Quadro 2a: Pares lexicais relacionados com as dimensões em Fataluku, LETI e Rotinese. Língua Fataluku: Leti: Rotinese: Fataluku: Leti: Rotinese:

Par Lexical pua // vata pua // nura nupu // puan peleku // loiasu loi // spou baluk // tonak

Glosa ‘noz de areca // coco’ ‘noz de areca nut // coco’ ‘coco// noz de areca’ ‘proa // barco’ ‘proa // barco’ ‘barco // proa’

O quadro 2a sugere que o Fataluku, o LETI e o Rotinese utilizam a mesma motivação para combinar este tipo de substantivos. Isto não implica, porém, que todas as combinações nas três línguas. sejam iguais. A combinação lesu / / lau (lenço / / pano) encontrado no Fataluku realmente segue a regra ‘pequena antecede grande’, mas não foi comprovada nas outras duas línguas. O LETI e o Fataluku também mostram o mesmo padrão de género no paralelismo, em que substantivos denominando entidades femininas precedem os que denominam entidades masculinas. Aqui também, o Rotinese mostra uma construção oposta na qual o substantivo feminino é antes colocado no lado direito. Note-se, porém, que o quadro 2b confirma a percepção timorense partilhada dos falantes de Fataluku e Rotinese, permitindo que, em ambas as línguas., “lua” e “sol”, unidades do sexo feminino e masculino, respectivamente, constituam um par lexical. No entanto, em LETI “sol” só pode combinar com “estrelas”8.

8. No Sudoeste das Molucas, por exemplo Ewaw, “lua” e “sol” combinam-se seguindo a estrutura Fataluku: vuan//lear (lua//sol). Desde que Hull (1998) defendeu que estas línguas. derivavam do Proto-Timorese, pode-se sugerir, talvez, que este par lexical é um paralelismo original Timorense. Se assim é, torna-se necessário explicar porque é que a lua tem uma função tão marginal (se alguma de todo) em Leti.

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Quadro 2b: Pares lexicais relacionados com o género em Fataluku, Leti e Rotinese. Língua Fataluku: Leti: Rotinese:

Par Lexical tupuru // nami püata // müani mane // feto

Glosa ‘mulher // homem’ ‘mulher // homem’ ‘homem // mulher’

Fataluku: Leti: Rotinese:

nalu // palu ina // ama aman // inan

‘mãe // pai’ ‘mãe// pai’ ‘pai // mãe’

Fataluku: Leti: Rotinese:

uru // vacu Vunu // lèra ledo // bulan

‘lua // sol’ ‘Estrelas // sol’ ‘sol // lua’

O par “lenço / / pano” acima referido sugere já que o Fataluku pode ter combinações que são únicas e desconhecidas nas outras línguas.. Como tal, o paralelismo lexical pode muito bem ser língua.-dependente e não um “fenómeno de empréstimo”, como sugerido por Fox (2005) e Van Engelenhoven (1997). Isto é confirmado, por exemplo, pelos pares Fataluku relacionados com a direcção em relação ao mar, como é mostrado no Quadro 2c. Os pares de LETI e Rotinese aqui são semelhantes, ainda que ambas as línguas obedeçam aos seus próprios padrões de tamanho. Como tal, no LETI a palavra para “ilha” precede aquela para “terra”, enquanto no Rotinese é o contrário. Comparado com ambos os casos, os termos Fataluku divergem (impresso em negrito). Interessante é que parece faltar no Fataluku uma palavra para “ilha”, conceito que é transferido para palis-ana (bóia-adjectivante) “algo que flutua”9. Só no último exemplo, Fataluku e LETI usam o mesmo padrão, enquanto que o Rotinese prefere utilizar um padrão excêntrico.

9. Pode ter relação com isto o facto do conceito de ‘mar’ ser representado por tahi, o qual é um derivativo evidente do Proto-Austronésico tasik “mar”. Tal parece lembrar a observação de Hull (2004) de que a cultura original relacionada com a língua Fataluku não tinha qualquer relação com o mar e com a observação de McWilliam (2007) de que apesar de ser uma língua não-Austronésica, a cultura Fataluku é prototipicamente a Austronésica.

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Quadro 2c: Pares lexicais relacionados com a direcção e o mar em Fataluku, LETI e Rotinese. Língua Fataluku: Leti: Rotinese: Fataluku: Leti: Rotinese: Fataluku: Leti: Rotinese:

Par Lexical mu’a // tahi lïòra // rïaa tasi // dae palis-ana // tahi nusa // rai ingu // nusa ira // tahi üèra // taski liun // sain

Glosa ‘terra // mar’ ‘mar // terra’ ‘mar // terra’ ‘ilha // mar’ ‘ilha // terra’ ‘terra // ilha’ ‘água fresca // água do mar’ ‘água fresca// água do mar’ ‘oceano // mar’

O quadro 2d, finalmente, é uma comparação confinada ao Fataluku e ao LETI. Considerando que, em LETI “porco” tem sempre de estar na posição final, em Fataluku é “galinha”, que está sempre nessa posição. Além disso, o Fataluku combina substantivos denominando certos animais, o que não pode ser feito em LETI, por exemplo, “cavalo” e “búfalo”. Da mesma maneira, no LETI podem fazer-se combinações com “água”, que são impossíveis em Fataluku. Quadro 2d: Pares lexicais relacionados com animais em Fataluku, Leti e Rotinese. Fataluku: iparu // pai pai // aca pipi // aca kuca // arapou ira // aca ira // pala iri // aku aca // tani

Leti: ‘cão// porco’ asu // vavi ‘porco// galinha’ sivi // vavi ‘cabra // galinha’ pipi // vavi ‘cavalo // bufalo’ ? ‘água // madeira’ üèra // ai ‘água // jardim’ üèra // vatu ‘urina // excrementos’ üèra // tèi ‘madeira // ramo’ ?

‘cão// porco’ ‘galinha // porco’ ‘cabra // porco’ ‘água// madeira’ ‘água // pedra’ ‘água// excrementos’

Em suma, o paralelismo lexical Fataluku parece ser um fenómeno específico, sem ligações claras com os tipos de paralelismo encontrados nas línguas. vizinhas. Enquanto, por exemplo, o LETI tem uma clara motivação fonológica para a ordem dos verbos, este não é de todo o caso no Fataluku. O LETI e o Fataluku, aparentemente, utilizam o paralelismo lexical para ampliação e redução dos referentes. Esse fenómeno parece ser uma característica comum do paralelismo lexical das línguas. timorenses (por exemplo Mambai, Côrte-Real 1998) e pode ser intrínseca ao paralelismo lexical em geral. Por exemplo, o par LETI koni / / maanu (gafanhoto / / ave) e o par Fataluku (ave / / galinha), ambos se referem ao conceito exponenciado de “animal voador”, exemplificando assim

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a mesma extensão referencial. Alternativamente, o par LETI elva / / püòna (jardim / / ninho) e o par Fataluku tua / / pala (vinho de palma / / jardim) exemplificam o fenómeno inverso de redução referencial para o conceito de “plantação”.

No lolo: A Guerra das palavras Este ponto centra-se no paralelismo lexical como um meio de discurso ritual. Abordaremos este aspecto através de uma análise concisa de um no lolo, aqui intitulado “Senhor do Pano Dourado”, em função do seu primeiro versículo: (pano ouro senhor). Este no lolo pertence ao clã Resi Ratu e foi transcrito por um dos seus membros, Filipe da Costa Meneses, como parte de sua tese de licenciatura, em 1997, na antecessora da Universidade Nacional de Timor-Leste, em Díli. Ela é única no seu género, uma vez que é a única alguma vez publicada10. O texto “Senhor do Pano Dourado” é composto de 848 dísticos. Cada linha contém um membro de um par lexical. Isto é exemplificado pelas palavras sublinhadas em (1) abaixo11: (1)

Tua

hoik=i

hin

la’a//

mu’a

varuk-u

hin

la’a

Palmeira de leque

saw=DEM

POS

go

soil

dig-NOM

POS

go

‘Eles vão onde a palmeira de leque esculpida está// para onde a teta da terra está.’ (FCM0008)

Um olhar mais atento aos 848 dísticos revela que 193 (23%) contêm nomes, enquanto que 168 (20%) são mais ou menos frases fixas caracterizando pares lexicais tua / / pala (vinho de palma / / jardim), maraku / / catanu (marca / / sinal), IA mari / / Tulia (pegada / / trilho), ca’u-hafa / / malai (chefe / / rei)12. Estas últimas funcionam como “momentos de descanso” no âmbito do desempenho que o executante usa para pensar, antecipando o que vai dizer a seguir. Isto implica que apenas 487 dísticos (57%) são usados de facto para “dizer a narrativa”. Sendo uma recitação poética, em vez de um contar de história, o paralelismo lexical no no lolo precisa de ser analisado diferentemente das narrativas do Sudoeste das Molucas. Uma vez que um no lolo é inteiramente composto de pares lexicais, não há pertinência na distinção entre palavras “normais” e palavras emparelhadas como foi feito para as narrativas do Sudoeste das Molucas nas figuras 2 e 3. A utilização do paralelismo lexical para substantivos, interpretámo-la como uma indicação da verdade historiográfica do no lolo executado como foi explicado no ponto 2. A execução de um no lolo é, em si mesma, prova da erudição do executante e não precisa ser confirmada, uma vez mais, através da utilização do

10. Em conjunto com outras publicações de especialistas Timorenses durante a ocupação Indonésia, uma variante traduzida e analisada está para ser publicada pela Universidade Fernando Pessoa, no quadro do projecto Traduzindo a Cultura, Cultura da Tradução. 11. Seguindo as convenções da análise poética, o número entre parêntesis indica a linha no poema no lolo. Assim, FCM 0008 é a oitava linha na versão de Filipe Costa de Menezes (1997). 12. Respectivamente 49, 37, 32, 25 e 25 dísticos.

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paralelismo lexical como no Sudoeste das Molucas13, ainda que os 20% das frases fixas exijam competências performativas. Apesar de ser necessário mais investigação antes de ser solidamente confirmada, a função dos substantivos parece equivaler à das narrativas do Sudoeste das Molucas, nas quais eles são arquétipos de outras narrativas (Van Engelenhoven 2008). Neste artigo explicamos que os nomes são “pedaços de narrativas” que se combinam numa nova história. Se isto é verdade para o no lolo, isto significa que cada execução, que se sabe poder durar horas, é uma combinação única de “pedaços”, que dependem do contexto da execução. Então, o executante “só” precisa de memorizar os nomes e não a totalidade do no lolo. A prova que sustenta esta ideia é exactamente os 20% de frases fixas que contêm paralelismos lexicais, mas que não acrescentam quaisquer informações à narrativa. Eles são, na verdade, apenas pontos de descanso do executante que assim pode “arquitectar” o que está prestes a ser recitado. Uma das características mais marcantes de uma execução de um no lolo é a recitação de tipo violento e irritado, como se o executante quisesse pronunciar todos os pares lexicais o mais rapidamente possível. De certa forma, esta é realmente a ideia por trás de tudo. Recitar um no lolo é, geralmente, referido como algo timine “quente”, de que o intérprete tem de se livrar o mais rapidamente possível. Senão, ele – e eventualmente o público? – sofrerão consequências negativas da execução. Uma performance, por outras palavras, prefigura um cenário de guerra em que as palavras são nítidas armas que podem ferir o próprio, se não forem lançadas fora rapidamente. Do mesmo modo, cada execução de no lolo implica uma disputa de direitos, quer estes se refiram a terras, estatuto ou qualquer outra coisa. Um olhar mais atento sobre o “Senhor do Pano Dourado” revela que não existe, de facto, propriamente uma história. Pelo contrário, é uma enumeração de lugares onde estiveram os antepassados dos Resi Ratu e que, por causa disso, são propriedade do clã. Como consequência do que acima foi explicado, as “verdadeiras narrativas” estão escondidas nos nomes que aparecem neste itinerário. Um clã que gostaria de desafiar os direitos de propriedade Resi Ratu em relação a uma parcela de terreno, só pode fazê-lo executando outro no lolo contendo outros nomes que provem que os seus direitos à propriedade são mais antigos do que os do Resi Ratu. Uma das questões remanescentes da investigação é se as tradições orais Fataluku desenvolveram uma estratégia de “fraude literária”, como nas tradições do Sudoeste das Molucas, com a qual determinados pares lexicais e, consequentemente, o no lolo pode parecer mais genuíno do que os dos adversários.

Conclusão Uma comparação preliminar entre os paralelismos lexicais do Sudoeste das Molucas, especificamente LETI, e do Fataluku revela que ambos partilham os mesmos padrões em “pares universais”, por exemplo, dimensões e género. O 13. Isto foi uma vez mais confirmado durante o Quarto Workshop Fataluku em Taibesse, Dili (Março, 6-7, 2009), o qual foi organizado pela ONG Kaliuete de Tutuala e financiado pela FCT. Apesar de ter sido apresentado num ecrã de computador, ninguém foi capaz de recitar o fragmento de no lolo discutido durante aquela sessão.

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Fataluku difere do Sudoeste das Molucas nos seus pares específicos, por exemplo, direcção em relação ao mar. Uma questão que precisa ser respondida é se os pares específicos Fataluku equivalem a outros, noutras línguas. timorenses, ou se eles são únicos. Cada par lexical contém conhecimento ritual. Como tal, a perda de tradições orais inevitavelmente implica perda de conhecimento ritual e uma mudança (ou perda?) irreversível da identidade cultural.

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A OUTRA FLORBELA ESPANCA: REFLEXÕES SOBRE A PROSA ROMANESCA E FICCIONAL TRADUZIDA Chris Gerry Departamento de Economia, Sociologia e Gestão, UTAD Centro de Estudos Transdisciplinares para o Desenvolvimento, UTAD José Eduardo Reis Departamento de Letras, UTAD Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, FLUP

1. Introdução Representem Portugal nos idos anos de 1920. Representem, naquela época tão politicamente conturbada quanto literariamente pujante, uma talentosa, porém ainda desconhecida jovem e emocionalmente frágil poeta, que, sem ter ainda editado a parte mais significativa da sua obra, se orienta para a prática de outro género literário e começa a trabalhar como tradutora profissional. Com a última actividade tem ela em vista dispor dos meios financeiros que lhe permitam custear a publicação de uma colecção de poemas recentes da sua autoria, contra a vontade do seu terceiro marido que, gentilmente, e com a autoridade que lhe advém de ser médico, a procura dissuadir de o fazer por temer uma recidiva do seu estado de saúde mental, propenso a episódicos estados depressivos. Flor Bela de Alma da Conceição, nascida nos finais de 1894 em Vila Viçosa, foi uma filha ilegítima de uma empregada doméstica, Antónia da Conceição Lobo, e João Maria Espanca, um empresário e comerciante de província dedicado a múltiplas actividades, do negócio de cabedais à comercialização de material de fotografia, passando pela de projeccionista de filmes mudos. Após um primeiro, se bem que limitado, sucesso literário com a publicação de dois livros de poesia, Florbela Espanca, que entretanto adoptara o nome patronímico, com vinte e poucos anos parecia acusar uma crise de inspiração poética, ao mesmo tempo que se deparava com grandes dificuldades em encontrar um editor interessado na publicação da sua mais recente produção literária em verso.

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Porém, nos anos de 1926 a 1930, Florbela parece ter sido arrebatada por uma onda de inspiração narrativa e ficcional que se traduziu na produção de um conjunto apreciável de composições escritas sob a forma de contos1. Simultaneamente, iniciou a sua actividade como tradutora de romances sentimentais de autores estrangeiros, que, na sua quase totalidade, foram publicados em 1926 e 1927. Em finais de 1930, após ter obtido a garantia da publicação dos seus poemas inéditos, em consequência do progressivo agravamento do seu estado de saúde, físico e mental, Florbela ingeriria uma forte beberagem soporífera, e morre no dia do seu trigésimo sexto aniversário. Este artigo tem em vista cumprir dois objectivos fundamentais: contribuir para o alargamento do conhecimento crítico da obra narrativa de Florbela Espanca e sondar, no que deve ser entendido como um prolegómeno a um estudo subsequente mais profundo, em que medida a sua produção contista denota apropriações temáticas e estilísticas do tipo de obras narrativas por si traduzidas nos últimos anos da sua vida. A análise que aqui apresentamos resulta, por um lado, da tradução inglesa dos contos de Florbela Espanca feita pelo primeiro dos dois autores deste artigo2 e, por outro, de uma primeira leitura dos romances traduzidos por aquela autora. Na primeira parte do artigo contextualizamos a prosa romanesca e a prosa ficcional traduzida por Florbela Espanca, apresentando uma breve digressão sobre mulheres. escritoras, seus leitores e o emergir da tradução profissional no Portugal da viragem do século. Seguidamente, inventariemos as obras que a Florbela traduziu e as razões que determinaram essa sua actividade. Na parte central do trabalho procuraremos fundamentar porque é que a autora terá privilegiado, nos derradeiros anos da sua vida, a escrita narrativa em detrimento da lírica. A última parte do artigo procurará avaliar algumas das eventuais conexões entre os planos de expressão e de conteúdo dos contos de Florbela e o tipo de obras que entretanto foram objecto da sua actividade como tradutora.

2. Mulheres. escritoras, seus leitores e o emergir da tradução profissional no início do século XX em Portugal O número de mulheres. escritoras oitocentistas portuguesas é francamente escasso quando comparado com o de outras culturas literárias europeias, e mais escasso ainda é o número das que foram publicadas por editoras de referência. Contudo, no limiar do século XIX assistiu-se a um súbito crescendo da edição de poesia no feminino e, no início do século XX, ao aparecimento de uma escrita proto-feminista, e ao subsequente desenvolvimento de uma estética literária protagonizada por mulheres, marcada tematicamente por uma atitude reactiva face aos horrores da primeira guerra mundial. Há um consenso entre os historiadores literários que as primeiras e mais importantes mulheres. escritoras portuguesas que 1. Previamente a esta fase da sua vida literária, conhecem-se apenas algumas incursões de Florbela no género narrativo materializadas no breve texto em prosa que escreveu no dia do seu décimo terceiro aniversário, intitulado “Mamã”, e nas narrativas que compôs quando tinha aproximadamente vinte anos “Amor de sacrifício”, “Alma de Mulher” e “A oferta do destino”. 2. A publicar por Seagull / Faiolean (Universidade de Bristol/Universidade Nacional de Irlanda) em 2009.

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viram as suas obras publicadas no período sob análise foram as que se dedicaram fundamentalmente ao género lírico (Pazos Alonso, 1977). Na segunda década do século XX, as jovens da classe média que haviam beneficiado do progressivo alargamento das oportunidades de educação viriam a constituir o escol de mulheres. adultas com a literacia necessária à formação de um público leitor qualificado e com o poder económico imprescindível ao aparecimento de um mercado editorial e livreiro orientado para difusão de temas femininos. Do lado da procura, as mulheres letradas passaram a cultivar outro tipo de hábitos de leitura para além dos da poesia sentimental, e a aceder a publicações dirigidas às suas novas exigências de informação sobre um leque mais vasto de assuntos femininos, outrora veiculados apenas por revistas de moda, de lavores e de gestão doméstica. Do lado da oferta, muitos editores passaram cada vez mais a difundir no mercado uma literatura romanesca de origem estrangeira, sobretudo francesa, espanhola e inglesa, em tradução portuguesa. É neste contexto que os impulsos comerciais dos editores convergentes com o conservadorismo moral das elites sociais contribuíram para a emergência de um movimento de renascença cultural católico, à semelhança do que, meio século antes, havia já sucedido em França. Na segunda metade do século XIX, sectores da intelectualidade francesa procuraram impregnar a literatura popular e erudita com valores doutrinais católicos. Com o propósito de se captarem os leitores da classe média formatados pelo gosto de uma literatura sensacionalista e popular, o movimento de renovação católica promoveu a edição mais abundante de material literário de conteúdo ético-pedagógico orientado para a “aperfeiçoamento moral”. E fê-lo ou de maneira indirecta, exercendo a sua influência junto de editores alinhados com os seus objectivos, e/ou de maneira directa, fundando editoras dedicadas à sua causa3. Foram muitos os escritores franceses – quer consagrados, quer neófitos – que se mostraram dispostos a trabalharem dentro dos parâmetros propostos por aquele movimento e a responderem à crescente procura pelo público leitor de uma literatura “de bons costumes”. Em Portugal, e apesar do apelo à defesa dos valores do catolicismo já ter ressoado nalguns sectores da elite letrada, a verdade é que uma combinação de factores – a debilidade política e económica do país, a hegemonia de formas pré-modernas de aculturação de largos estratos da população confinados ao analfabetismo e à influência ideológica de um catolicismo romano de matriz tridentina e a contraditória postura cultural dos intelectuais – inviabilizou quer o modelo mais evangélico de ressurgimento cultural católico que tinha ocorrido em França, como o desenvolvimento de uma indústria editorial nacional relativamente auto-suficiente. No início do século XX, num contexto de grandes tensões económicas, políticas e doutrinais, que emergiu tanto um movimento estético e literário de ímpeto vanguardista, em torno, sobretudo, do grupo modernista da 3. É provável que o editor mais inequivocamente empenhado neste renascimento cultural e literário tenha sido La Bonne Presse, fundada em 1870 pela Ordem Agostinha da Assunção, editora ainda activa hoje em dia sob a designação Bayard Press. Além de publicar jornais diários e outros materiais de informação de índole religiosa, editou também romances (por exemplo na Collection Bijou e na Collection des Romans Populaires) em concorrência com outras editoras de orientação católica menos explícita, como por exemplo a Petit Echo de la Mode, responsável pela famosa Collection Stella, dirigida a um crescente mercado juvenil e feminino.

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revista Orfeu, como um movimento de feição nacionalista de pendor nostálgico e metafísico, de algum modo tributário da grande tradição literária do romantismo europeu, o saudosismo. Dado que a tradução de textos estrangeiros constitui-se numa condição necessária à expansão do mercado editorial português orientado fundamentalmente para difusão de literatura ficcional romanesca, os editores tiveram de reconsiderar a natureza diletante e artesanal dos processos de tradução praticados até então, de maneira a satisfazerem as exigências de uma crescente procura de publicações periódicas e obras de ficção romanesca pela classe média. Assim, para garantir uma oferta adequada a essa nova realidade, passaram os editores a fomentar a produção nacional de literatura de consumo e, nesse processo, a adquirirem os direitos de difusão, em tradução portuguesa, de obras literárias estrangeiras. Procedem então à organização de “linhas de produção” para, com eficácia e rapidez, disponibilizarem obras de autores estrangeiros susceptíveis de serem fidelizáveis pelo novo público leitor. Muitos dos editores decidem contratar tradutores, inclusive senhoras da classe média oriundas da primeira geração de mulheres. instruídas, com a incumbência de se ocuparem do translado para português de romances de composição literária acessível ao grande público, fazendo distribuir em simultâneo obras do mesmo autor por vários tradutores4. A partir da primeira metade da década de 1920, muitos editores, recorrendo à mencionada estratégia produtiva de traduções “em série”, lograram aumentar as suas listas de autores estrangeiros e competir com sucesso num mercado editorial em fase de crescente expansão5.

3. As obras traduzidas por Florbela Nas Obras Completas de Florbela Espanca, o seu editor Rui Guedes (1986, pp. 95-96) fornece-nos um inventário dos romances traduzidos pela autora. O Quadro 1, concebido a partir desse inventário e complementado por nossa própria investigação, apresenta as informações bibliográficas disponíveis e a sinopse dos livros traduzidos por Florbela. As primeiras traduções realizadas por Florbela foram executadas para a editora portuense “Figueirinhas”. A sua primeira tradução a ser publicada foi A ilha azul (L’île bleu) de Georges Thierry, em 1926, seguida, no mesmo ano e no ano seguinte, por duas obras da autoria do romancista sentimental e popular francês M. Maryan, respectivamente, O segredo do marido (Le secret du mari) e O segredo de Solange (Le secret de Solange). Os restantes traduções de Florbela foram, porém, realizadas por encomenda de uma outra editora do Porto, a “Civilização”. Com excepção da versão portuguesa de um romance do autor espanhol Armando Palácio Valdés publicado em 1932, depois da morte de Florbela, todas as outras traduções editadas pela “Civilização” vieram curiosa4. Por exemplo, à época em que Florbela traduzia L’Île bleu de Georges Thierry para a Figueirinhas, Sousa Martins traduzia para a mesma editora um outro romance de Thierry, Traição Redemptora, publicado em 1927. Três livros de Jean Thiery publicados pela Civilização foram vertidos para português por três tradutores diferentes. O canto do cuco (Florbela), Vítimas (Aurora Jardim) e O romance dum solteirão (ou por Abílio Campos Monteiro ou pelo seu filho Germano), todos publicados entre 1926 e 1929. 5. No início do século XX em Portugal, o estatuto cultural da tradução era considerado marginal ou mesmo ancilar relativamente ao processo criativo literário.

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mente a lume no mesmo ano de 1927. Dado que Florbela começou provavelmente a traduzir por volta de 19256, a sua produtividade nos últimos cinco anos da sua vida é verdadeiramente notável: nesse período de tempo, a par da sua actividade literária sobretudo como autora de contos, Florbela traduziu, em média, um número superior a mais de dois livros por ano. Visto que os editores de Florbela tinham de responder célere e simultaneamente à procura diferenciada do pequeno mercado livreiro nacional, os romances que lhe foram solicitados que traduzisse variaram quer quanto ao género quer quanto à sua qualidade literária. Era inevitável que alguns desses romances estivessem destinados ao sucesso comercial imediato, concebidos por autores menos talentosos mas de alta produtividade (por exemplo, Georges Thierry e Claude Saint-Jean7). Porém, se bem que perdure a ideia que Florbela apenas traduziu obras “cor-derosa” de categoria literária inferior (Bessa-Luís 1984, p. 172), o facto é que muitos dos autores cujas obras ela verteu para português já haviam sido reconhecidos e granjeado reputação internacional (por exemplo Palacio Valdés, Rameau, Maryan, Champol, de Peyrebrune e Benoit) e, nalguns casos, até obtido a consagração do mérito do seu respectivo talento8.

4. As razões de Florbela para traduzir Os motivos de Florbela para se dedicar à tradução parecem ter sido fundamentalmente de ordem pecuniária e não de ordem literária: a relação que manteve com o seu terceiro marido, Mário Lage, um médico de estatuto relativamente modesto, se bem que financeiramente estável, não foi propriamente promotora de grande liberalidade económica. Em consequência da firme resistência de Lage em aceder aos seus pedidos de financiamento da edição dos seus poemas, sem fontes de rendimento próprio, Florbela viu-se na contingência desesperada de ter de ganhar dinheiro para sustentar o projecto de publicação dos seus textos. Algo secamente, Agustina Bessa-Luís (1984, p. 172) sintetiza a situação de Florbela assim: “não tem dinheiro, vive na casa dos sogros, não tem editor, traduz romances medíocres e está doente”. Ainda a este propósito, na sua biografia ficcionada de Florbela, Cristina Silva (2003, p. 150) parece ter sido capaz de identificar claramente os motivos das incursões de Florbela na área da tradução profissional; através da personagem de Florbela oferece a seguinte explicação: Tentei várias vezes sondar o Mário sobre a possibilidade de me financiar a publicação. Ele comprava-me casacos de peles, vestidos novos, mas não investia o seu dinheiro em edições. (…) Vi as melhores intenções na sua atitude, um gesto de quem amava e temia que eu me em6. Agustina Bessa Luís (1984, p. 132) afirma que Florbela iniciou a sua actividade de tradutora em 1926, na sua residência em Matosinhos, para onde foi morar com o seu terceiro marido. Uma vez que as suas duas primeiras traduções foram publicadas em 1926, é admissível supor que ela tenha iniciado o seu trabalho nos finais de 1924, início de 1925. 7. O conhecimento que se tem hoje em dia desta categoria de autores é muito variável, oscilando entre breves informações e o desconhecimento total acerca da sua identidade para além da autoria das obras que mencionámos. 8. Os romance de Champol , Les justes e Soeur Alexandrine venceram prémios literários franceses; em 1919, Pierre Benoit foi um dos primeiros escritores a vencer o Grand Prix du Roman da Académie Française com o seu romance L’Atlantide. Palacio Valdés obteve vários prémios literários e foi indigitado para o Nobel da literatura.

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brenhasse por caminhos de fantasia dos quais poderia não haver regresso. Ainda assim, sem o conhecimento do meu marido, tentei retomar alguns dos contactos dos tempos de Lisboa. Sugeriram-me que fizesse traduções.

Quadro 1. Dados bibliográficos e temática dos romances traduzidos por Florbela Autor Georges Thierry

Título e editora Original L’île bleue, Paris, Maison de la Bonne Presse, 1924

Título e editora Português

Temática e grau de correspondência com a tipologia proposta por Holmes (2003)

A Ilha azul, Porto, História de aventuras. Um atentado Figueirinhas, 1926 anarquista contra um nobre russo exilado na França falha porque o assassino apaixona-se pela filha da pretendida vítima. Apenas a intervenção de um trio misterioso e exótico recém-chegado das Ilhas Celebes evita o sucesso de uma segunda tentativa.

Madame Le secret du mari, O segredo do marido, Porto, Maryan Paris, FirminDidot, 1907 Figueirinhas, (Biblioteca das Famílias), 1926

Enredo clássico tipo enjeu-obstáculorival. Um pai esbanja a dote da sua filha, destruindo a unidade e a confiança no seio da família. Só no seu leito da morte logra reconciliar-se.

Madame Le secret de Maryan Solange, Paris, Gautier, 1888

O segredo de Solange, Porto, Figueirinhas, (Biblioteca das Famílias), 1927

Enredo clássico de tipo enjeu-obstáculo-rival. A condenação e o encarceramento injusto do pai da protagonista Solange, com base na falsa acusação de ter forjado um testamento, impedem-na de se casar com o médico Saviniano. Finalmente, Saviniano desmascara o verdadeiro culpado, que se suicida.

Claude SaintJean

Dados bibliográficos desconhecidos

O castelo dos noivos, Porto, Civilização, (Biblioteca do Lar), 1927

Vários enredos clássicos de tipo enjeuobstáculo-rival entrelaçados. Adoptando a forma narrativa epistolar, nesta história representam-se as tribulações da vida sentimental da Dionisia (de estirpe nobre), da sua amiga Helena (de uma família burguesa) e dos seus parentes.

Jean Rameau

Le roman du bonheur, Paris, Albin Michel, 1926

O romance de felicidade, Porto, Civilização, (Biblioteca do Lar), 1927

Enredo clássico de tipo enjeu-obstáculo-rival. Numa tentativa consciente de praticar um acto filantrópico, um viúvo rico adopta um rapaz de uma família pobre, mas a sua generosa, protectora e indulgente educação transforma o seu pupilo num adolescente amoral e mimado, cuja conduta e o levará não só à ruína material como a ser abandonado pela jovem mulher que ama.

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Título e editora Original

Título e editora Português

Temática e grau de correspondência com a tipologia proposta por Holmes (2003)

Le chante du coucou, Paris, Petit Echo de la Mode (Collection Stella); data desconhecida

O canto do cuco, Porto, Civilização, (Biblioteca do Lar), 1927

Romance sentimental anti-divórcio. A história narra as vidas de duas mulheres.. Uma delas “nasceu para ser amada” segundo as convenções sociais em vigor; a outra opta pelo “caminho errado” e vê a sua vida destruída.

George Doña Quichotta, de Peyre- Paris, Librairie Plon, 1903; Paris, brune Hatier, (Collection Hermine) 1906

Dona Quichotta, Porto, Civilização, (Biblioteca do Lar), 1927

Romance sentimental sobre a crueldade e o abandono conjugais. A mãe da protagonista Germana abandona os seus filhos devido à crueldade intolerável do seu marido. Após 18 anos de ausência, regressa para os rever e conhecer. No seu leito de morte, como por efeito de um sacrifício redentor, toda a família se reconcilia.

Champol Dados bibliográficos desconhecidos

Dois noivados, Porto, Civilização, (Biblioteca do Lar), 1927

Romance sentimental sobre o casamento. Mediante a justaposição narrativa de duas histórias distintas e autónomas faz-se o relato de dois casamentos, um que corresponde aos valores burgueses convencionais e um outro que termina tragicamente por se afastar do cumprimento das prescrições matrimoniais instituídas.

Pierre Benoit

Mademoiselle de la Ferté: um romance da actualidade, Porto, Civilização, (Colecção de Hoje e Colecção Civilização), 1927

Variação do enredo clássico de tipo enjeu-obstáculo-rival. Anne, a epónima heroína da história, perde o seu noivo para a rival Galswynthe, uma protestante. O noivo morre, e Anne cuida da viúva tísica durante as últimas meses da vida. É Anne e não a família burguesa do falecido noivo que herda a fortuna de Galswynthe.

Armando Maximina, Maximina: Palacio Victoriano Suárez, romance da Valdés Madrid, 1887 actualidade, Porto Civilização, (Colecção de Hoje), 1932

Romance sentimental sobre inocência. Um jornalista madrileno casa-se com uma rapariga simples da província. Perde o emprego, a honra, a fortuna, e a sua inocência política. A sua jovem esposa, Maximina, morre após o nascimento do seu primeiro filho, mas, com o apoio dos seus leais amigos, reencontra o sentido da sua vida, empenhando-se a educar o seu filho de maneira a garantir a sua futura realização humana.

Autor Jean Thiéry

Mademoiselle de la Ferté Paris, Albin Michel, 1923

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Ao auto-identificar-se inicialmente pelo nome completo de Felisbella Espanca Lage, Florbela parecia querer manifestar reservas em autorizar que o seu nome artístico surgisse identificado com a autoria das suas traduções. Porém, nos livros que traduziu posteriormente, Florbela parece ter-se resignado, com maior equanimidade, a aceitar ser identificada pelo seu sobrenome associado ao seu estatuto civil de mulher casada, Florbela Espanca Lage. Não é porém de descartar a hipótese de essa sua opção de auto-identificação onomástica como tradutora resultar de uma combinação de vários factores derivados quer da sua crescente frustração por não encontrar um editor interessado em publicar o seu terceiro livro de poemas, quer de uma prolongada ausência de inspiração poética, quer ainda pela sua crescente verificação do desinteresse por parte do público leitor nas virtualidades estéticas e comunicativas do género lírico9.

5. Porquê Florbela optou por escrever contos Por que é que subitamente Florbela Espanca suspende a sua prática literária como autora lírica e se reorienta para o género narrativo do conto? Se bem que ela tenha composto alguns textos em prosa por volta dos seus 21 anos, a sua produção literária foi predominantemente exercida no campo da poesia lírica, mais concreta e intensamente sob a forma do soneto. A sua recolha de textos poéticos O livro de mágoas fora publicado em 1919 e O livro de Sóror Saudade em 1923. Todavia, entre 1924 (o ano em que se divorciou pela segunda vez) e 1928 (quando publicou o seu segundo livro de contos dedicado ao seu irmão, Apeles, recentemente falecido), Florbela sentiu-se incapaz de se dedicar à escrita literária em verso. Se bem que essa sua atitude indicie uma espécie de temporária suspensão da sua criatividade como autora lírica, é de admitir que por essa época Florbela tenha cultivado uma deliberada intenção de se reorientar para uma outra modalidade de expressão literária. Rui Guedes (in Espanca 2000, p. 16) é um dos estudiosos da obra de Florbela que sustenta a ideia de que a decisão da autora em se dedicar, a partir de 1926, à escrita de uma série de contos tem a sua provável explicação nos estímulos criativos exercidos pela sua debutante actividade como tradutora de romances sentimentais estrangeiros. De modo contrastivo, Agustina Bessa-Luís sugere que Florbela terá sofrido um enfraquecimento do vigor poético que terá caracterizado a sua obra literária anterior e, devido a “um aceleramento da senilidade intelectual” (1984, p. 91), terá sido compelida a optar pelo género narrativo do conto – um comentário, diga-se a propósito, que parece desvalorizar uma forma narrativa que a própria

9. Em cartas a amigos e a mentores, Florbela comunica a sua frustração por não encontrar um editor para os seus poemas inéditos. Por exemplo, numa missiva datada de 15 de Maio de 1927 a José Emídio Amaro, o director da Revista Portuguesa, uma publicação periódica que havia sido recentemente lançada no mercado, ela afirma: “Devo dizer-lhe, porém, que há muito que não faço versos; o soneto que lhe envio (…) pertence a um livro Charneca em Flor (…) que naturalmente não chegarei a publicar. Os portugueses parecem-me saturados de versos e eu, francamente, um pouco saturada de os fazer (…) Tenho ultimamente virado toda a minha atenção para traduções e para um livro de prosa em que trabalho e que queria pronto para o ano em Outubro; não há tempo, pois, para as musas” (Espanca 1986, p. 69).

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Agustina tem praticado com alguma regularidade10. A mesma autora sustenta ainda que a morte do seu irmão Apeles terá levado Florbela a adoptar uma forma literária com menor índice de adequação à auto-revelação intimista, como seria a do verso lírico que até então praticara; esta perspectiva, no entanto, parece ser desmentida não só pelo conteúdo marcadamente autobiográfico dos seus contos, mas também pelo facto que a Florbela terá já começado a escrever a sua primeira colectânea de contos antes da morte de Apeles. Parece pouco rigoroso explicar que a decisão de Espanca em se dedicar à escrita de contos terá simplesmente derivado de uma reacção psico-neurótica: isto porque é mais razoável assumir que, dada a pouca relevância conferida até então por Florbela ao modo narrativo, terá sido justamente o seu trabalho, que entretanto iniciara, de leitura analítica, subjacente à prática da sua tradução literária do texto em prosa, que a terá estimulado a cultivar um novo género atinente com os protocolos de composição estéticos próximos dos das formas literárias que vertia para a língua. portuguesa. É claro que o seu trabalho de tradutora levou-a a tomar contacto com uma série de textos cujo estilo e conteúdo romântico-sentimentais não apenas reflectiam as exigências do mercado editorial, mas também operavam como um género instrumental ao serviço do ressurgimento dos valores católicos. Essa sua experiência de tradutora, envolvendo operações linguísticas de transferência e de equivalência semântico-estilística para a língua. portuguesa de mensagens literárias veiculadas originalmente em língua. estrangeira, não podia, portanto, deixar de influenciar – de modo directo ou indirecto, linear ou refractado, consciente ou inconsciente – a geração de alguns traços temático-expressivos dos seus textos ficcionais. Além disso, é de admitir que, apesar do sucesso da publicação em vida dos seus livros de sonetos, a recepção que estes mereceram quer do público, quer da comunidade literária – críticos, literatos, poetas, escritores – foi de tal maneira incongruente com as suas expectativas que a dissuadiram de se devotar inteiramente à actividade da escrita literária. Assim, se a ausência de sinais públicos e objectivos de reconhecimento da sua qualidade literária podem ter tido um efeito sísmico na sua auto-estima e no entumecimento da sua neurose, essa falta de correspondência das suas expectativas literárias pode também ter determinado as suas opções estéticas. Dado que não possuía os meios materiais que pudessem assegurar a sua independência económica, viu-se obrigada a ter de tomar decisões pragmáticas relativamente à sua carreira literária11.

10. A própria Agustina Bessa Luís, mais conhecida como romancista, publicou uma colectânea de contos em 1971 com o título A Brusca. 11. Florbela já o tinha feito anteriormente quando, aos vinte anos, tomou a decisão de estudar Direito em vez de Letras na Universidade de Lisboa. Esta decisão decorreu da dificuldade por si entrevista de assegurar a sua independência económica apenas como professora na escola particular que fundara com o seu marido.

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Assim, entre 1926 e 1927, Florbela parece ter-se dedicado a reunir fontes de informação e a preparar o material temático necessário à escrita de uma série de contos que viria a reunir sob o título de um deles O dominó preto. A sua redacção seria todavia interrompida devido à morte, não se sabe se acidental ou suicida12, do seu irmão Apeles em consequência da queda no rio Tejo do avião de instrução da Marinha que pilotava. A dor de Florbela não deu porém origem à escrita de um manancial de poemas, mas, antes, à elaboração de uma segunda série de oito contos, As máscaras do destino, cuja composição viria a concluir menos de um ano passado após o fatídico acidente do irmão. Pouco tempo após a morte da própria Florbela, em 1930, Guido Battelli, um professor de literatura e cultura italianas da Universidade de Coimbra, responsabilizou-se pela edição destes oitos contos bem como dos sonetos ainda inéditos de Florbela. Contudo, só em 1982 seria publicado a outra série de contos incluídos em O dominó preto.

6. A qualidade disputada dos contos Não obstante o relevo conferido, praticamente logo após a sua morte, à obra lírica de Florbela, o facto é que académicos e críticos portugueses não se têm ocupado com a atenção requerida da análise da componente narrativa da obra da autora. Rui Guedes, grande divulgador da obra e da biografia de Florbela Espanca, na introdução à sua edição dos contos de Florbela Espanca (Espanca, 2000, pp. 9-10), informa que: Com cerca de 33 anos de idade [Florbela …], decide organizar um livro de contos de sua própria autoria a que chamou “O Dominó Preto” (…) Mas alguns meses depois de ter iniciado [o livro …], morre tragicamente o seu irmão Apeles (…) Este choque violento impede-a de fazer poesia durante bastante tempo, mas não a impede de passar para o papel a sua angústia num novo livro de contos “As Máscaras do Destino” totalmente dedicado à memória do seu irmão (…) Todos os contos constantes deste livro foram escritos em 1928 e, porque são intimamente sentidos, contêm prosa da melhor qualidade.

Agustina Bessa-Luís (1984, p. 161) mostra-se em geral depreciadora do trabalho em prosa de Florbela Espanca, dizendo, a propósito da pesquisa que levou a cabo para redigir a biografia da poeta, que: Pude ler o manuscrito de Florbela que contém os seus contos de 1928, e isso permitiu-me entrar no acontecimento objectivo do último tempo da sua vida. Trata-se de literatura chamada de bons sentimentos, isto é má literatura. Estava em voga, e está ainda, a novela de magazine, cuja heroína é nimbada do mais indecente maniqueísmo. É o tema da ascensão negativa13, que se consuma numa paralisação de todo o impulso real.

12. Os sinais apontam para o suicídio ou, se não, para um imprudente desdém pela sentido de continuidade da sua própria vida. Apeles, ao que parece, terá caído numa profunda depressão em 1925, após a morte da sua noiva (ou, talvez a rejeição de Apeles por alguém com quem pretendia casar-se); além disso, o seu distanciamento em relação a Florbela, após o casamento desta com o médico Mário Lage, tê-lo-á deixado sem o apoio emocional que até então tinha recebido da sua irmã. 13. No conto “A paixão de Miguel Garcia”, Florbela (2000, p. 221) recorre à noção de “ascensão negativa” (“Há quem suba a descer”) para narrar a crescente sublimação da consciência de um jovem a par do seu crescente sentimento suicida devido a um amor não correspondido.

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Por seu lado, o crítico literário Eduardo Pitta (2007) mostrou-se também pouco laudatório nos seus comentários à obra narrativa de Florbela aquando de uma recente edição de sete dos seus contos (Espanca, 2007), afirmando que: “É muito nítida a clivagem entre sonetos e contos, na medida em que os segundos, quase sempre enredados num irresolúvel spleen, se caracterizam por trejeitos kitsch de menor conseguimento. Não viria daí grande mal se a prosa sustentasse o mimetismo decadentista, o que nem sempre acontece, como os contos (…) amplamente ilustram”. Rolando Galvão (s/d) é outro crítico que, apesar de reconhecer o mérito literário da componente lírica da obra de Florbela, considera, como muitos outros, que os contos da autora revelam ter sido excessivamente modulados por uma fraseologia romântica e melodramática e por uma definição estereotipada das personagens: Ao longo dos contos encontram-se frases de grande beleza e força. (…). Não podemos porém deixar de os considerar por vezes carecendo de uma certa densidade. Um excessivo uso de palavras e imagens, que pouco ou nada acrescentam ao que pretende sugerir, contribui para uma menos conseguida “análise profunda dos sentimentos e paixões”, observa Y. Centeno14. E, como nota a mesma escritora, quase permanente é a qualificação das mulheres. em puras e impuras, em excelentes e megeras.

Pode-se contudo facilmente rebater que o estilo da prosa narrativa de Florbela reflecte traços semântico-espressivos da sua poesia apaixonadamente efusiva, algo, aliás, que ocorre nas incursões narrativas de outros poetas, nomeadamente na do seu contemporâneo Mário de Sá Carneiro. Maria da Graça Orge (2002, pp. 21-22), se bem que mais cautelosa nas considerações que faz sobre a obra narrativa de Florbela, também faz notar o excessivo recurso à construção estereotipada das personagens: Os factores que podem justificar a inferioridade do “O dominó preto” [em comparação com “As máscaras do destino”] são a preferência dada a personagens estereotipadas, regidas por um conjunto de valores burgueses de pura submissão às normas comportamentais instituídas que jamais são contestadas. Assim, as personagens masculinas são poderosas e dominadoras, enquanto as mulheres. ora se arrastam numa cega abnegação ao companheiro, ora o destroem sem quaisquer escrúpulos.

No entanto, é pertinente relembrar que personagens definidas pela sua configuração estereotipada, são-no frequentemente após terem sido concebidas em contextos inovadores de representação literária que, devido a processos simplificadores de codificação e a um iterativo uso narrativo dos seus traços de identidade, acabam por se cristalizarem em previsíveis e erodidas fórmulas de caracterização composicional.

14. A referência é ao prefácio escrito por Yvette Kace Centeno para acompanhar a edição de 1982 da colecção de contos O Dominó Preto.

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7. As principais fontes narrativas dos contos de Florbela Espanca 7.1 Aspectos autobiográficos. Com o propósito de avaliar a importância dos motivos, signos e processos narrativos, deliberada, velada ou involuntariamente apropriados por Florbela como fontes literárias reconhecíveis nas obras por si traduzidas e transferidas para a composição de alguns dos seus contos, é conveniente determo-nos brevemente na consideração de outros factores15 que tiveram um efeito ponderoso na expressão e no conteúdo da sua obra ficcional em prosa. Quase invariavelmente Florbela utilizou episódios mais ou menos dramáticos da sua própria vida na configuração fabular dos seus contos. Se bem que material autobiográfico seja apenas umas das reconhecidas fontes, que coexistem com outras, do seu trabalho literário, uma breve análise de um dos seus contos, “À margem de um soneto”, servirá como exemplo paradigmático da dimensão autobiográfica da sua obra, considerada fundamental por muitos comentadores. Maria da Graça Orge Martins (2002, pp. 15-16) sustenta que “a prosadora e a poetisa têm uma só obsessão, a sua auto-revelação narcísica que se desdobra e dispersa em múltiplas personagens”, afirmando ainda que este traço da obra de Florbela é ilustrado no conto “À margem de um soneto” em que participam duas personalidades femininas: a poeta, a quem a história é narrada por um amigo, aparentemente médico de profissão, e uma das duas personagens centrais da história, uma romancista brasileira, autora do tipo de literatura sensacionalista que o movimento cultural do renascimento cultural católico identificava como sendo moralmente perigoso16. No soneto epónimo17, deparamo-nos com uma exegese sobre o efeito que a tumultuosa imaginação literária da romancista brasileira exerceu sobre a sensibilidade excessiva do seu marido, a par da pungente expressão da dor da alma da poetisa, reflexo, mediado pela semiose literária, da dor da alma de Florbela. Maria da Graça Orge Martins considera que tanto as personagens da poeta como da romancista constituem facetas da complexa persona da própria Florbela, sustentando ainda que a coexistência conflituosa na imaginação do Major L, marido da personagem da escritora brasileira, de tantas versões da sua própria esposa, os alter-egos femininos por ela inventados nos seus romances, não representam senão as múltiplas “máscaras do destino” que Florbela utilizou em diferentes momentos da sua vida passada.

15. No que respeita a influência da sua própria poesia, é de salientar que alguns dos contos de Florbela são permeados por uma forte consciência lírica. Ela utiliza com frequência recursos líricos, chegando mesmo a citar os seus próprios poemas. A influência do seu estilo poético, da sua leitura competente e da sua produção epistolar na composição dos seus contos ultrapassa porém o teor deste artigo. 16. Esta popularidade está em conformidade, aliás, com o facto histórico e sociológico de o público leitor brasileiro dos fins do século XIX, princípios do XX, manifestar índices de variedade de leitura mais comparáveis, na dimensão do mercado editorial, com a realidade cultural francesa do que com a portuguesa (Coelho 1983, pp. 214-216). 17. O soneto mencionado no título ocorre de facto no enunciado do conto e consiste num poema da autoria da própria Florbela, “Loucura”, publicado postumamente na segunda edição de Charneca em Flor, preparada por Guido Battelli, e que inclui um conjunto de poemas sob o título Reliquiae. No referido soneto, o último terceto reza assim: “Ó pavoroso mal de ser sozinha / Ó pavoroso e atroz mal de trazer / Tantas almas a rir dentro da minha!”

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Agustina Bessa-Luís (1984, p. 165), por seu lado, reconhece que Florbela ao narrar, neste conto, a ruptura do casamento entre as personagens da romancista brasileira e o seu marido Major L., está muito provavelmente a fazer uso literário das circunstâncias reais associadas ao seu segundo divórcio. O casal improvável retratado no conto parece ser uma imagem refractada da relação desarmoniosa de uma Florbela, intelectualmente dotada, mas na sua própria opinião, não atractiva na sua aparência física, com o fogoso, mas intelectualmente limitado, oficial da GNR que tomou como seu segundo marido. A tese de Agustina, na biografia que escreveu sobre a autora, é de sugerir que Florbela, no que concerne à natureza da relação que desenvolveu com o seu segundo marido, incarnou a imagem de uma mulher fatal progressivamente fortalecida na sua auto-estima à medida que a do seu companheiro se afundou no desgosto e num progressivo enlouquecimento. No entanto, e muito embora Florbela cultivasse uma filosofia de vida amorosa relativamente livre no que diz respeito aos costumes dominantes à época, era-lhe inconcebível, pela firmeza e honestidade do seu carácter sinceramente apaixonado, admitir a promiscuidade ou a traição, mesmo quando confrontada com um casamento com alguém incapaz de atender às suas íntimas expectativas. A sua potencial multíplice personalidade não deixava de integrar a dimensão da mulher leal e até intelectualmente íntegra, que são os traços com que compõe a personagem da romancista brasileira, seu provável alter-ego, neste seu conto que, combinando faces do seu ser, do seu desejar ser e do seu dever ser, reflecte caleidoscópica e refractariamente tensões íntimas e dados da sua vida pessoal. O protagonismo, em vários dos contos escritos por Florbela, de uma femme fatale, mulher sedutora, exótica, que leva os homens ou ao descontrole ou à destruição, dificilmente se adequava à imagem, dominante à época, da mulher dócil e moralmente inabalável do modelo feminino propagado pela moral de inspiração católica. Sobre o fascínio que a imagem dessa mulher fatal poderá ter exercido no imaginário de Florbela, manifestada ora nos seus contos, ora na visão de si mesma, pode-se aventar a hipótese que ela tenha sido adquirida a partir do acesso que a autora teve, desde a sua adolescência, ao visionamento de narrativas cinematográficas em que pontificavam actrizes como Theda Bara, Pola Negri e Myrna Loy, entre outras. Esta hipótese tem alguma razão de ser, se se tiver em linha de conta que o pai de Florbela foi, como dissemos acima, um dos pioneiros divulgadores do cinema na província de Portugal, o que muito naturalmente terá proporcionado a que a sua filha tivesse observado, com detalhe e repetidamente, o desempenho fílmico de papéis de mulheres arrebatadoras, e que – tomando em linha de conta o conhecimento dos seus dados biográficos – com eles se tenha mesmo identificado. O facto é que Florbela haveria de utilizar com persistência motivos narrativos desenvolvidos a partir da concepção não só de personagens femininas sem escrúpulos e sedutoramente fatais (como as que se representam nos contos “Mulher de perdição”‘, “O sobrenatural”, e em “O dominó preto”), mas também aquelas que inocente ou involuntariamente levam os homens à ruína (como nos contos “O crime do pinhal do cego”, “Amor de outrora”, “À margem de um soneto” e “A paixão de Miguel Garcia”).

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7.2 A leitura competente de Florbela Espanca. Embora Florbela tenha escrito, em 1928, que estava cercada por “bons livros e amigos fanáticos” (Espanca 1986, p. 95), o seu grande amparo espiritual provinha dos poetas e romancistas cujas obras lia entusiasticamente. Sabe-se que Florbela era uma leitora compulsiva, e que fazia com regularidade empréstimos de livros às bibliotecas, deslocando-se frequentemente também as livrarias de Lisboa e do Porto no encalço das novidades literárias, sobretudo romances franceses e livros de poesia. Assim, complementarmente às obras que os editores solicitaram a Florbela traduzir e que ela terá acordado fazer, é de admitir que os livros que terá lido por escolha pessoal possam ter contribuído para a composição temática e estilística dos seus contos. Desde muito cedo, Florbela estava consciente de que o “empréstimo” de material estético proveniente das leituras que fazia era um processo comum da actividade da escrita literária. Tal como ela escreveria em 1916 a um editor dos seus poemas, que a teria questionado sobre se ela era de facto a autora da poesia que lhe enviara (Espanca 1986, p. 115): Tenho a consciência absoluta dos versos serem meus [… A] meu ver é uma indignidade revoltante firmar, com o próprio nome, versos alheios (…) Que uma frase, um sentido, a reunião de duas palavras, uma maneira de dizer que eu já tivesse lido ou ouvido, é natural … e disso nem os maiores poetas se livram, quanto mais eu que ao pé deles faço a figura de uma formiga olhando um astro.

Romances populares de vários tipos integravam uma parte substancial da biblioteca pessoal de Florbela inventariada após o seu falecimento: obras de Henri Bordeaux e Guy Chantepleure (ambos publicados pela “Figueirinhas”) e de Henri Ardel e Maryan (publicados tanto pela “Figueirinhas” como pela “Civilização”). Possuía também exemplares doutros autores franceses – Lichtenberger, Boylesve, Corthis, Lucie Delarue-Mardus, Foley e Duvernois. Quer o facto de a maioria destes autores terem sido publicados pela editora francesa Arthème Fayard, quer o de nas folhas de rosto destes livros Florbela ter aposto uma data correspondente ao mês de Agosto de 1924, constituem fortes indícios de que a editora Figueirinhas lhe terá solicitado que compulsasse aqueles textos com vista à sua tradução. Florbela também copiava citações de tudo o que lia (quer obras emprestadas por bibliotecas, quer livros comprados) e que anotava num caderno de notas. Nestes seus apontamentos encontram-se referências a obras de Emerson, Duvernois (um dos seus autores preferidos), Mauriac, George Sand e Collete, entre outros, e a poemas de Verlaine, Maeterlinck e Eugénio de Castro. Na correspondência que trocou regularmente com a sua amiga Júlia Alves, Florbela mencionou os seus escritores e poetas favoritos – quer estrangeiros (por exemplo, V. Hugo, Wilde, de Staël, Gyp, de Coulevain, Duhamel e, novamente, Duvernois), quer nacionais (entre outros, Guerra Junqueiro, Júlio Dantas, Augusto Gil, e António Correia de Oliveira). No diário que escreveu no derradeiro ano da sua vida, menciona a lei-

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tura de Maria Bashkirtself18 e Lucie Delarue-Mardrus19, cujas vidas revelam, muito mais do que as personagens femininas que povoavam os romances que Florbela traduzia, traços comuns com a sua própria vida. Um exemplo representativo de empréstimos de material proveniente das suas leituras é fornecido pelo conto “O sobrenatural”, incluída na sua colectânea As máscaras do destino. Nesta breve narrativa, a protagonista feminina, uma femme fatale conhecida por Gatita Blanca, recém-chegada a Lisboa, ceia com um grupo de jovens amigos “de vida fácil” (Espanca 2000, p. 252). Na conversa, algo etilizada, tida após a refeição, ela define um burguês como alguém que pelo menos uma vez na sua vida sentiu verdadeiramente o medo. Como prelúdio à história gótica que tenciona narrar, Mário de Menezes responde que se esta definição é para ser reconhecida como legítima, então ele considera-se um ‘affreux bourgeois’, repetindo a mesma afirmação enunciada por um dos seus embriagados interlocutores no início da conversa. Ora é relevante referir que um dos autores cujos romances apareceram frequentemente na “Colecção de Hoje” da Editora Civilização foi Clément Vautel20: em 1929, a Civilização lançou um dos seus romances mais recentes Sou um burguês terrível (Je suis un affreux bourgeois, originalmente publicado em 1926 pela editora francesa Albin Michel). Florbela não traduziu Vautel, mas é verosímil supor que ela já tivesse lido o romance no original francês. Uma outra possível explicação para o uso da expressão de auto-caracterização irónica “affreux bourgeois” por uma das personagens do conto “O sobrenatural”, numa fase crucial da narrativa, radica na possibilidade de Florbela ter sido abordada pelo editor da “Civilização” para traduzir o romance de Vautel para a colecção “Biblioteca do Lar”, colecção para a qual ela já havia traduzido a Mademoiselle de la Ferté, de Benoit, e a que também se destinava a versão portuguesa em que estava a trabalhar de Maximina, de Palacio Valdés. Aparte tais juízos especulativos, o facto é que a expressão afirmativa “affreux bougeois” configura um nítido empréstimo frásico proveniente do universo romanesco em língua. francesa que Florbela conhecia bem por colaborar como tradutora com a editora portuguesa que à época difundia no nosso idioma a obra de Vautel. Um outro exemplo, entre vários, de um eventual empréstimo frásico é o caso do conjunto de narrativas breves intitulado Amour d’antan que Chambol, um dos autores franceses que Florbela traduziu, e cuja obra ela teria conhecido, publicara em 1903. Se bem que o conto epónimo incluído nessa colectânea não seja 18. Maria Bashkirtseff (1860-1884) é uma pintora ucraniana radicada em Paris, conhecida como autora de um diário que escreveu nos últimos anos da sua breve vida. No seu próprio diário, Florbela interroga-se como é que “na grande alma [de Bashkirtseff] pode existir um tão grande medo da morte” (Espanca 2000, p. 273). 19. Lucie Delarue-Mardrus, prolífica poetisa francesa e romancista da Belle Époque, escreveu inócuos romances populares. Os seus apaixonados poemas de amor inspirados pela sua relação com Natalie Clifford Barney apenas foram publicados após a sua morte. Para além de possuir um exemplar na sua biblioteca de Le pain blanc, Florbela refere ter lido um dos seus romances Monnaie de singe, título este que não consta porém na bibliografia geral de Delarue-Mardrus. 20. Clément de Vautel, pseudónimo de Clément de Vaulet (1876-1954), autor e jornalista francês, ficou conhecido do público leitor português por um conjunto de romances satíricos e humorísticos, traduzidos para a Collecção Hoje da Editora Civilização.

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tematicamente ou estruturalmente semelhante ao conteúdo do conto “Amor de outrora” escrito por Florbela, há a destacar o facto de o título deste equivaler em português ao título daquela colectânea. Poder-se-á especular se se trata apenas de uma mera coincidência (não sendo o título escolhido por Champol totalmente singular), ou se se trata de um empréstimo lexical, consciente ou inconsciente, da autora portuguesa, utilizado ou como mero título evocativo ou como um pretexto para uma reflexão sobre um enredo para um conto, também autobiográfico, ainda por escrever. 7.3 A influência do “romance sentimental popular” na prosa de Florbela Espanca. É curioso que um dos primeiros livros a ser traduzido por Florbela – Le secret de Solange, escrito por M. Maryan e publicado por Figueirinhas no início de 1927, e cuja preparação em 1926 coincide com o período de escrita de uma parte significativa da colectânea O dominó preto – a protagonista feminina, enfrentando circunstâncias emocionais e económicas dificílimas provocadas pelo encarceramento injustificado do seu pai, escreva, tal como Florbela o fazia como tradutora, romances sentimentais populares para ganhar a sua vida. Esta coincidência entre temática ficcional e experiência circunstancial biográfica constitui apenas uma das muitas ocasiões em que a Florbela se teria encontrado a traduzir para o português temáticas, cenários e diálogos ficcionais com uma forte ressonância agridoce e irónica, coincidentes com ocorrências da sua própria vida. Mas qual foi precisamente o género de literatura que Florbela se incumbiu de traduzir? A resposta a esta pergunta tem de ser dada e compreendida, em primeiro lugar, à luz do contexto cultural coevo da autora. No panorama literário nacional de 1920, e apesar de muitos textos eruditos em línguas. estrangeiras terem sido vertidos para o português (bem como um conjunto de monografias de teor devocional, político e de auto-aperfeiçoamento existencial), o facto é que a maioria dos tradutores profissionais parece ter-se dedicado ao que se pode designar por “literatura de bons sentimentos”, isto é, a uma ficção popular, com tipologias e atributos distintos e variados. Nem sempre, porém, são coerentemente discerníveis os critérios orientadores da política de publicações das referidas editoras: se algumas das colecções de livros estrangeiros traduzidos promoviam de forma mais ou menos explícita a suposta superioridade moral dos valores tradicionais, livros de outras colecções subvertiam tematicamente essa aparente orientação axiológica dominante. Chegaram mesmo a ser lançadas colecções que abrangeram obras com “propósitos ideológicos” aparentemente contraditórios: por exemplo, em meados dos anos 20 a editora Civilização criou a sua “Colecção de Hoje”21, que integrava uma grande variedade de romances, desde ousadas e controversas narrativas de autores cubanos como

21. A colecção subintitulou-se “Biblioteca dos romances da actualidade: publicação em série dos modernos romances francezes, hespanhoes e italianos mais em voga”.

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Álvarez Insúa22 e Alfonso Hernández Catá23, até obras levemente satíricas e de natureza gnómica como, por exemplo, os romances de Vautel. Ademais, os editores portuenses com quem Florbela colaborou procuraram disponibilizar colecções temáticas bastante diversificadas, nem todas elas constituídas apenas por ficções românticas populares. Esta generalização aplica-se mais especificamente às obras que Florbela traduziu: nalgumas verifica-se que a sua temática configura o que comummente se designa por romance de personagem (como se verifica em Maximina, de Palácio Valdés); outros resistem aos clichés característicos dos romances populares de conteúdo prosélito associados ao renascimento católico, entremeando a narrativa com especulações filosóficas de cariz mais céptico e equívoco (como sucede no Romance de felicidade, de Rameau). Quatro traduções de Florbela (dos livros de Thiéry, Saint-Jean, Peyrebrune e Champol) foram publicadas pela “Civilização” na sua “Biblioteca do Lar”, subintitulada “Colecção dos melhores romances portugueses e estrangeiros”, uma série que explicitamente promovia o género de motivos temáticos sancionados pela ordem católica. No início de cada livro desta colecção o editor informava o potencial comprador de que: “Na actividade intensiva da vida moderna, em que o tempo falta, nem sempre os pais encontram horas disponíveis para passarem pelos olhos os livros que suas filhas desejam ler, sujeitando-os primeiro a um justo e imprescindível exame (…) A “Biblioteca do Lar”, série de romances escrupulosamente seleccionados, oferece neste ponto uma garantia e uma segurança absolutas”. Além dos quatro romances populares sentimentais, no sentido mais convencional e conservador do termo, traduzidos por Florbela, a mesma série compreendeu obras da autoria de Delly24, Henry Ardel, M. Maryan, B.A. Jeanroy, M. La Bruyère e Paul Bourget, assim como alguns romances de escritores portugueses, nomeadamente Eduardo de Noronha25, Abílio de Campos Monteiro (ele próprio um dos editores da “Civilização”) e Aurora Jardim Aranha (autora conhecida por Florbela, que também traduziu para a mesma editora). Antes de abordamos concretamente o grau de influência exercida pelas obras traduzidas por Florbela sobre os contos por ela escritos, é aconselhável atender às características específicas da modalidade narrativa que, supostamente, constituiu a matéria-prima das suas actividades de tradutora e que, eventualmente, terá servido de fontes às suas breves composições em prosa, a saber, o romance sentimental popular da viragem do século XIX para o século XX. Holmes (2003,

22. Alberto Alvarez Insúa (1885-1965) viveu em Havana, Cuba, e é o autor do famoso romance erótico La mujer fácil (1909), bem como do El negro que tenía el alma blanca (1922) em que aborda o tema das relações interraciais. Foram vários os seus livros que foram traduzidos para a “Collecção de Hoje” da Civilização. 23. O autor, jornalista e diplomata Alfonso Hernandez Catá (1885-1940), considerado o patriarca do conto literário cubano, é sobretudo reconhecido pelas obras que escreveu sobre temas controversos como os da ditadura, da homossexualidade e da raça. 24. Os romances populares sentimentais escritos por Jeanne Marie Henriette de La Rosière Petijean (1875-1947), sob o pseudónimo de Delly, muitos deles em colaboração com o seu irmão Henri Fréderic Joseph (1876-1949), constituem o análogo francês dos autores ingleses Mills e Boon. 25. O escritor Eduardo Noronha (1859-1948) foi oficial do exército e jornalista (secretário de redacção do Novidades de Emídio Navarro, que, no final da monarquia, era dos mais respeitados diários).

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p. 17) descreve essa forma literária tal como foi sobretudo praticada por autores franceses do seguinte modo: O romance […] está estruturado em torno duma relação que se desenvolve entre duas pessoas […]. É a mútua atracção entre elas que desencadeia o enredo; a possibilidade de se consumar a sua união é o dispositivo que faz evoluir a narrativa, a procura que motiva o virar das páginas. O que está em jogo, o enjeu, é a possível concretização de um amor paixão duradouro e mutuamente correspondido. A narrativa está sustentada numa série de obstáculos que retardam ou finalmente impedem o ansiado desfecho. Entre esses obstáculos há a destacar os rivais, particularmente as rivais femininas, que agem por oposição ao modelo positivo ou ideal feminino incarnados na heroína. Em parte, o romance aborda sempre o modo de se ser uma mulher.

Muito embora alguns elementos do típico género sentimental possam ser identificados pontualmente em outros contos de Florbela, podemos considerar que apenas dois, ambos da colectânea de “O dominó preto”, correspondem à classificação proposta por Holmes, a saber: “Mulher de perdição” e “Amor de outrora”. 7.3.1. Mulher de Perdição Apesar de se tratar de um texto inacabado, “Mulher de perdição” surge incluído em quase todas as edições da colectânea de contos O dominó preto e dos Contos Completos até agora publicados. Este texto incompleto parece configurar a primeira tentativa de Florbela escrever sob a forma literária do romance ou da novela26; a sua composição dá indícios de constituir os dois primeiros capítulos de um projecto narrativo mais vasto, distendendo-se por um número de páginas que duplica a média do espaço gráfico dos demais contos. “Mulher de perdição” apresenta ainda um desenlace cuja irresolução e ambiguidade temática o distingue estruturalmente do esquema narrativo dos demais contos27. Para além de se tratar, segundo Agustina Bessa-Luís (1984, p. 162), de um dos contos de Florbela que exibe marcas autobiográficas mais fortes, a estrutura narrativa de “Mulher de perdição” ajusta-se grosso modo à definição dada por Holmes para o tipo de romances que, à época, constituem os principais objectos de tradução de Florbela. Neste conto, João Eduardo e Helena são as personagens representativas do par convencional de jovens namorados. A sua relação não é familiar ou socialmente condenada pelo que o critério do enjeu parece, a priori, frustrar qualquer possível desenvolvimento narrativo. O vector da diegese que personifica o obstáculo é representado pelo estado psíquico do próprio João Eduardo. Sucumbir à vontade parental levá-lo-ia inevitavelmente a um casamento honrado e à concretização, moralmente legitimada, dos seus efeitos sucedâneos de constituir uma família, sustentar um lar, prosseguir uma carreira. No íntimo, porém, João Eduardo anseia 26. Aparte a narrativa carecer de um desfecho concludente, também a inconsistência da composição das personagens dos amigos de João Eduardo, delineadas com grande pormenor no início da narrativa e subsequentemente erodidas quanto à sua funcionalidade diegética, parece apontar para a ideia de que este texto se tratava de um work in progress que configuraria uma história elaborada sob a forma de novela. 27. O único comentário de Florbela sobre este conto é de que se tratava de “primeiros ensaios (coisas para aproveitar) ou antes, para não aproveitar … Tolices!” (Espanca 2000, p. 51).

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por um tipo de relação apaixonadamente arrebatada e inevitavelmente escandalosa, desencadeada em circunstâncias imprevisíveis por uma mulher cuja posse o não leve relutantemente a pensar como causa de infelicidade e como ilusório o sacrifício da expectativa da sua cómoda existência de futuro homem de família. Reine Dupré, a misteriosa femme fatale, é quem acaba por protagonizar esse anseio e, no quadro das relações lógicas da significação da narrativa, é ela quem desempenha a função de oponente rival, não só obviamente de Helena, mas e, sobretudo, é ela que desencadeia a irrupção do João Eduardo atraído pela fantasia de um enamoramento com uma mulher exótica, oponente do João Eduardo proto-doméstico, conformado ao modelo social e ideologicamente dominante. O desenlace da história deixa em suspenso a resolução da dúvida de se saber se João Eduardo, por destemida força de vontade ou por abdicação à razoabilidade do senso comum, logra banir da sua consciência a forte atracção pela personificação feminina da sua fantasia erótica e pulsão afectiva, ou se ela acabará mesmo por triunfar. A instância funcional da rivalidade opera simultaneamente num plano concreto, na medida em que se manifesta na oposição da ameaça que constitui Reine para Helena, e num plano imaginário-abstracto, uma vez que o conflito entre conformidade burguesa e auto-afirmação passional tem apenas como cenário a consciência da personagem João Eduardo. No entanto, a história não reproduz totalmente a estrutura clássica da fórmula narrativa do romance sentimental popular: como estereótipos, ambas as personagens femininas, Helena, o epítome angélico da imagem convencional feminina, e Reine, a irresistível mulher-sereia, agenciam uma intriga que não se limita a servir de pretexto ficcional para Florbela representar os tormentos, mais masculinos do que femininos, da existência humana e dos seus dilemas emocionais28. Na segunda parte desta história, uma intricada especulação psicológica29 complexifica e confere espessura diegética a uma estrutura fabular relativamente elementar. Nela, Florbela narra em pormenor a situação arquetípica do enamoramento obsessivamente apaixonado e dos tormentosos sofrimentos que lhe estão associados. Numa dado momento da diegese ocorre um longo debate interno, no decurso do qual João Eduardo disseca os seus sentimentos por Reine, primeiro sob o signo do senso comum, para, a seguir, dar livre curso às suas fantasias românticas e sensuais. De modo subtil, o narrador intercala este monólogo com comentários intrusivos que realçam a inconsistência do fio argumentativo de João Eduardo, declarando ironicamente que, na sua presunção de se considerar invulnerável ao desejo por aquele tipo de mulher sedutora30, ele limitava-se a demonstrar a segurança fictícia da “salamandra que nenhuma labareda tocara ainda” (Espanca 2000, p. 87). Ape28. Não se trata de um exemplo único, quer do género sentimental popular quer dos contos de Florbela. Em quatro deles – “À margem de um soneto”, “O dominó preto”, “A paixão de Miguel Garcia” e “O sobrenatural” – o enfoque é colocado nos caprichos da paixão masculina, seja ela retribuída ou não. 29. Uma parte significativa do texto de um dos romances traduzidos por Florbela, Le roman du bonheur, de Jean Rameau, é orientada para um mesmo tipo de especulação psicológica e ética – desta vez sobre se os seres humanos podem encontrar a sua própria felicidade ao procurarem gerá-la nos outros. 30. O pai de João Eduardo estabelece o contraste entre os vícios das “raparigas modernas” com as virtudes da sua própria esposa e de Helena da seguinte maneira: “acho-as levianas, egoístas, calculadoras, e um tudo-nada ridículas com as suas modas e maneiras masculinas” (Espanca, 2000, p. 64).

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sar do João Eduardo julgar ilusoriamente que detém o controlo da situação, a voz narradora declara que “uns olhos de opala tinham-no enfeitiçado e aquela olhar de pedra preciosa, fria e impassível, não o largaria mais” (Espanca 2000, p. 87). A narrativa inacabada “termina” numa clave ambígua, com um devaneio de João Eduardo representando o seu desejo por Reine, a um tempo exaltante e abjecto. 7.3.2. Amor de outrora. “Amor de outrora”, incluído também na colectânea O dominó preto, é o segundo conto de Florbela que ilustra a esquematização proposta por Holmes, fundada nas categorias “enjeu-obstáculo-rival”, para explicitar a estrutura funcional do romance sentimental popular. Trata-se de mais um texto cuja génese vários comentadores reconhecem como estando associada a dados autobiográficos, nomeadamente à contínua dependência de Florbela em relação aos seus médicos e, concretamente, a algumas das circunstâncias envolvendo o seu terceiro casamento com o médico Mário Lage. De novo, a história incide sobre os dilemas da relação de dois jovens enamorados, Cristina e Manuel, ligados afectivamente nos tempos idos da sua infância, destinados, portanto, a permanecerem mutuamente fiéis. Apesar de essa sua relação adolescente ser, nas palavras de Agustina, “provinciana, casta” (Bessa-Luís 2004, p. 162), dissolveu-se subitamente por razões que permaneceram inexplicáveis à limitada mundividência de Cristina. O enjeu é estabelecido, quando, por acaso, ela reencontra novamente Manuel, que, entretanto, havia casado. Será que desta segunda vez poderão finalmente concretizar o amor dos tempos idos? Cristina acaba então por reconhecer que, apesar do ressurgimento do sentimento de amor por Manuel, o poder da moral convencional, manifestado nas escolhas existenciais do seu apaixonado, o matrimónio que entretanto contraiu, o filho que entretanto gerou, a carreira que entretanto abraçou, constituíram-se em irremovíveis obstáculos à renovação do seu desejado enlace. Após várias inquirições de consciência e provações de alma, Cristina toma a decisão de suspender definitivamente a sua tempestuosa relação com Manuel, apesar de preservar a suspeita íntima de que a sua felicidade pessoal deveria prevalecer sobre a sua subordinação às expectativas dos costumes vigentes. Se há que identificar na lógica relacional de significação da narrativa um agente que desempenha a função do rival que coloca obstáculos insuperáveis à possibilidade da ligação entre os apaixonados se materializar, ele é representado pela personagem do jovem filho de Manuel, Tony, que, justamente, incarna o potencial de sofrimento que o abandono do lar pelo seu pai podia humanamente comportar: “[Os homens] choram, sim. O papá é homem e ele chora (…) Foi ontem à noite. Foi à minha caminha (…) e esteve a chorar muito ao pé de mim, que eu bem vi” (Espanca 2000, p. 13). É finalmente uma exclamação de Tony, ao retirar do lago o seu barco de papel ensopado – “Derreteu-se” – que está na origem da frase final proferida por Cristina – “Tudo se derrete neste mundo” (Espanca 2000, p. 132) – cujo sentido encerra o enunciado do seu infeliz destino.

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8. Em jeito de conclusão: a temática da erosão dos valores tradicionais no romance sentimental popular e nos contos de Florbela Espanca Após termos examinado em que medida os contos de Florbela se podem conformar aos traços estruturais, definidos por Holmes, do romance sentimental popular, concluímos este artigo com uma avaliação da frequência e intensidade com as quais o seu trabalho de escrita contista se apropriou de um dos temas que surge recorrentemente enunciado tanto nos romances que traduziu como, genericamente, no romance sentimental popular, a saber a decadência, tanto económica como moral, de uma aristocracia arruinada, progressivamente debilitada e asfixiada pela ascensão da burguesia comercial e industrial. Tal como sucedeu em França, também em Portugal um dos baluartes da defesa dos valores tradicionais católicos era constituído por segmentos desta mesma aristocracia, cujo estatuto económico, social e político se vinha degradando ao longo do século XIX. De facto, um número apreciável de romances vertidos para português por Florbela incide neste tema, e os leitores portugueses já teriam desenvolvido uma certa familiaridade com ele, tendo mesmo surgido glosado na obra de escritores eruditos portugueses oitocentistas, por exemplo nalguns romances de Eça Queiroz, como A Ilustre Casa de Ramires e os Maias. A representação dos efeitos devastadores da modernização nos valores tradicionais foram também narrativamente trabalhados por Florbela nalguns dos seus contos, mas de um modo que não podia deixar de perturbar – mesmo que de modo quase inócuo à luz da nossa mentalidade contemporânea pós-moderna – a integralidade dos princípios católicos e das convenções burguesas da sua época. Não o fez porém sem ambiguidades de expressão, que parecem configurar angustiosas hesitações existenciais e dilemas psicodramáticos da própria autora. Por exemplo, se na sua vida pessoal Florbela se rebelou contra o princípio da submissão feminina no seio da instituição casamento, essa sua afirmação de liberdade parece contrariar o desenlace do conto “Amor de outrora”, no qual a Florbela-autora acaba por comunicar a mensagem, em tom talvez relutante, de que as aventuras extra matrimoniais e o subsequente possível divórcio têm um efeito destrutivo na estabilidade da vida familiar burguesa, estabilidade que ela própria, desde a sua infância, desejou integrar e que, como adulta, procurou esforçadamente por cultivar, por via dos matrimónios que foi contraindo ao longo da sua vida. Já no conto “A paixão de Miguel Garcia”, Florbela defende resolutamente o direito ao suicídio contra todos os ensinamentos cristãos e prescrições morais da época. No conto “O regresso do filho”, o que sobretudo suscitou a sua atenção foi a luta pela sobrevivência do pequeno camponês e não as dificuldades da manutenção dos privilégios dos proprietários terratenentes. Nos contos “Mulher de perdição” e “O sobrenatural”, ridiculariza tematicamente os costumes da elite cosmopolita; no entanto, em “O dominó preto”, não se mostra renitente em expor, com afável simpatia, as desonestidades dos pequenos comerciantes e as intrigas conflituosas típicas das gentes dos bairros pobres de Lisboa. A crise económica e social bem como dos valores das populações pobres do meio rural constitui a outra face da moeda da crise de uma aristocracia em decadência.

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Muito embora vários dos romances que Florbela traduziu situem a sua acção parcial ou totalmente na província, a sociedade rural surge neles quase exclusivamente representada na perspectiva das classes poderosas, sendo que, por via de regra, os desfavorecidos são retratados como objecto de gentis acções caridosas ou com escárnio pelos socialmente favorecidos. Por oposição a esta temática de aceitação resignada da ordem vigente, os contos de Florbela de teor pastoral – “O regresso do filho”, “O resto é perfume” e “O crime do pinhal do cego” – comunicam-nos uma visão mais matizada dos camponeses pobres, justapondo, na caracterização que deles nos dá, a representação dos seus sentimentos mais complexos, e muitas vezes contraditórios, da fatalidade, da solidariedade, da nobreza moral humana, da violência animal. Poder-se-á dizer que estes contos de Florbela manifestam uma maior afinidade com a estética literária socialmente comprometida de um Merimée, de um Maupassant, ou de um Zola, estética que se furta à figuração de estereótipos comportamentais e à declinação de fórmulas narrativas padronizadas, tais como os que são utilizados no tipo de romances sentimentais populares que a nossa autora traduzia. A representação da condição tanto social como individual feita por Florbela na sua obra em prosa releva, a nosso ver, de uma consciência da vida e do mundo afim das concepções trágicas e até fatalistas da existência humana, impotente no seu pessimismo atávico em se confrontar com as mudanças em curso no Portugal da viragem do século. Ao longo da sua vida, Florbela não se deteve a procurar consolos cosmopolitas ou pastorais para a sua apaixonada, inquieta e angustiada procura de sentido partilhado da vida; no entanto, o anseio por encontrar alguma estabilidade psico-emotiva foi-lhe apenas esporadicamente concedida no âmbito da relação cúmplice que manteve com o seu irmão, fora do qual apenas encontrou a prova amarga da rejeição, incompreensão e discriminação. De certa maneira, o psicodrama existencial de Florbela é dominado pela omnipresente influência de dois mundos, inextrincavelmente entrelaçados. Por um lado, o mundo dos homens em que pontificou um pai idolatrado e uma imagem ideal masculina, fonte de inevitáveis decepções e de divórcios em série, de um virtual companheiro que pudesse igualar a imagem ideal do seu irmão. Por outro lado, o mundo da literatura: primeiro com a sua dimensão exclusivamente pessoal, veiculada sobretudo através do modo de expressão lírico, mas também sob a modalidade narrativa do conto com matizes autobiográficas e traços de composição temática de índole catártica; e, segundo, com a sua dimensão de índole instrumental, acessória, mas de algum modo operando dialogicamente com aquele, o mundo literário da tradução, ou seja da mediação entre uma estética literária sentimental produzida em língua estrangeira, e a sua recepção por um público letrado nacional, predominantemente feminino e pequeno burguês, constituinte da base social destinatária e consumidora de um emergente e florescente mercado editorial em língua. portuguesa.

A LÍNGUA. COMO ESPAÇO DE ‘BRINCRIAÇÃO’ EM MIA COUTO Cristina Ferreira Pinto CEI - Centro de Estudos Interculturais e Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto

“... o idioma estabelece o meu território preferencial de mestiçagem, o lugar de reinvenção de mim. Necessito inscrever na língua do meu lado português a marca da minha individualidade africana. Necessito tecer um tecido africano e só o sei fazer usando panos e linhas europeias.”1

A relação entre língua. e literatura é especialmente complexa e controversa na África pós-colonial. O facto de as línguas. europeias terem surgido na vida dos Africanos na sequência de um projecto de colonização tem sido, certamente, o factor crucial nesta questão da língua. e que tem feito gerar sensibilidades diferentes dividindo os escritores africanos em duas facções: os “rejeccionistas”, que rejeitam a ideia de uma literatura africana em língua. europeia, e os “experimentalistas” que encaram a língua. europeia como uma língua. válida para as literaturas africanas, desde que se proceda a uma africanização dessa língua. A africanização da língua. europeia, ao situar etnicamente o escritor africano, vai assumir-se como um instrumento de autenticidade linguística. A escrita ficcional de Mia Couto caracteriza-se por um processo de mestiçagem, de contaminação entre o português e as várias línguas. e variantes dialectais moçambicanas. Este autor tem sido considerado uma espécie de mágico da língua, recriando a língua. portuguesa em direcções novas e inesperadas2. Couto faz questão de frisar que o seu processo literário de desobediência “às regras de trânsito da língua.”3 tem uma base de autenticidade: os cruzamentos e mestiçagem de que a língua. portuguesa estava a ser alvo em Moçambique4. 1. Mia COUTO in “Auto-retratos”, Jornal de Letras, 08/10/97. 2. Dada a revolução que opera a nível linguístico, Couto tem sido comparado ao escritor brasileiro João Guimarães Rosa. 3. Mia COUTO in OLIVEIRA, Catarina, “Contador de ‘estórias abensonhadas’, Lusitano, Lisboa, 00/06/10. 4. Mia COUTO in JEREMIAS, Luísa, “Sou um contrabandista entre dois mundos”, A Capital, Lisboa, 25/05/00.

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Em situação de contacto com as línguas. locais, a língua. portuguesa foi sofrendo, ao longo do tempo, diversas transformações. O contacto entre línguas gera quase sempre diglossia, ou seja, leva a que se registem fenómenos de contaminação, de hibridismo, de uso de estruturas linguísticas pertencentes a uma determinada língua. quando se fala ou escreve outra. A língua., neste caso portuguesa, é abalada nas suas estruturas léxico-semânticas e morfossintácticas para melhor veicular os ritmos das línguas moçambicanas. Mas não podemos deixar de chamar a atenção para o facto de que a recriação a que a língua. portuguesa é sujeita nos textos literários de Mia Couto não é, única e exclusivamente, mimética do falar popular. De facto, qualquer língua. literária é quase sempre uma língua mais ou menos laboratorial com um propósito, político ou outro, não existindo uma transposição total da realidade social para o domínio da literatura. Este é precisamente o caso de Mia Couto, intensificado ainda pelo facto de ele ser um homem de laboratório, um biólogo. O nosso estudo da ‘brincriação’ linguística operada por Couto, da desconstrução e da africanização da língua. portuguesa padrão, incide sobre dois romances, A Varanda do Frangipani e O Último Voo do Flamingo, e desenvolve-se em torno da organização retórica do discurso a nível da ordem léxico-semântica e morfossintáctica.

1. Organização retórica do discurso Mia Couto propicia-nos um distanciamento em relação aos modelos europeus ao construir a alteridade linguística. Ele procede à subversão da língua. europeia, num esforço de construir uma identidade literária africana; parte de uma matriz europeia e transforma-a, operando diversas formas de desvios nas suas obras de ficção, sem que haja prejuízo para o entendimento do texto. Uma das características da escrita de Mia Couto é, precisamente, o “brincriar” com a língua.: “... ‘brincriar’ quer dizer criar brincando. […] É uma espécie de fractura que quero introduzir na escrita para que ela deixe passar uma luz, uma outra maneira de ver a realidade. E isso só pode ser feito através dessa desarrumação, não só linguística, mas também do próprio processo de construção da escrita e da narrativa”5. Para este autor, os desvios linguísticos desempenham, assim, um papel duplo: por um lado, têm uma função estética, por outro, são sinais de fractura entre dois mundos. Tratando-se de uma linguagem literária, ela não pode apenas ser alvo de uma mera análise linguística, mas, dado que a subversão da língua. em Couto constitui, efectivamente, um dos parâmetros fulcrais de descolonização literária, consideramos importante sistematizar os principais vectores de ruptura com as regras normativas da língua.6. A língua. como símbolo da portugalidade e a sua

5. Mia COUTO in SERRANO, Filomena, “Brincar com a língua”, Jornal de Notícias, 01/06/08. 6. Queremos ainda salientar que não pretendemos ser exaustivos na citação de excertos das obras, pelo facto de que as ilustrações apenas ganham sentido se contribuírem para o alargamento de significados ou de evidência.

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participação na constituição dos cânones literários7 são factores que importa referir aqui, de modo a que toda a “desarrumação” da língua. portuguesa, toda a ‘brincriação’ linguística operada por Couto se assuma plenamente como um factor de construção de uma imagem de moçambicanidade. 1.1. Ordem léxico-semântica No que diz respeito aos desvios de ordem léxico-semântica, a técnica de Couto é inovadora, na medida em que introduz uma série de termos e de expressões só encontradas a nível do (in)imaginável. A língua. literária de Couto caracterizase, com efeito, por uma ânsia neológica. A inovação lexical neste autor baseia-se, principalmente, na amálgama (mot-valise) e no processo morfológico da derivação (por prefixação e sufixação)8. Amálgama Sendo uma das grandes características estilísticas do autor a criação de neologismos através da fusão de duas palavras, numa síntese “abensonhada”, apresentamos apenas alguns exemplos a título ilustrativo: • nomes “fraqueleza” (VF, p.22) “ocavidades” (UVF, p.37) “criançuras (VF, p.37) “pensageiro” (UVF, p.79) • verbos “estremexe” (VF, p.27) “dactilogravavam” (UVF, p.48) “salpingavam” (VF, p.53) “atabaralhou” (UVF, p.139) • adjectivos “esparramorto” (VF, p.23) “cabisbruto” (UVF, p.67) “tristonta” (VF, p.133) “espatifurado” (UVF, p.185)

Derivação No Português de Moçambique, é frequente criar-se palavras novas a partir das que existem, graças aos morfemas derivacionais e a escrita de Couto ilustra, precisamente, esta tendência. Apresentamos, de seguida, apenas alguns dos exemplos mais significativos, por classe gramatical, tendo consciência de que esta é uma das áreas mais ricas no que toca à inventividade de Mia Couto.

7. Gilberto Matusse recorda-nos que saber falar português era um dos requisitos para se ascender ao estatuto de assimilado e que a base de toda a tradição literária escrita herdada pelos escritores moçambicanos é em língua. portuguesa. Cf. MATUSSE, Gilberto, A construção da imagem de moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa, texto policopiado, dissertação de Mestrado em Literaturas Comparadas Portuguesa e Francesa (sécs. XIX e XX), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Univ. Nova de Lisboa, 1993, p. 80. 8. Apesar de este processo muito produtivo de formação de palavras ter a ver essencialmente com questões de ordem léxico-semântica, ele estabelece pontes com a secção seguinte.

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• nomes -

com base num nome “terceiro-idosos” (VF, p.13) “caveiraria” (UVF, p.217) “asilados” (VF, p.22) “infernezas” (UVF, p.219)

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com base num verbo “piagem” (VF, p.34) “falagens” (UVF, p.85) “querências” (VF, p.48) “desaguação” (UVF, p.212)

-

com base num adjectivo “malucarias” (VF, p.70) “moribundição” (UVF, p.50) “redondura(s)” (VF, pp.122 e 132) “direitura” (UVF, p.221)

• verbos -

com base num nome “avaselinava” (VF, p.20) “labirintoar” (UVF, p.19) “luava” (VF, p.136) “metafisicou” (UVF, p.28)

-

com base num verbo “esvoar” (VF, pp. 27 e 149) “esvapora” (VF, p.28)

-

com base num adjectivo “abruptando-se” (VF, p.144) “instantaneavam-se” (UVF, p.20) “tremendeou” (VF, p.149) “pequeninar” (UVF, p.51)

• adjectivos -

com base num nome “penumbroso” (VF, p.21) “continencioso” (UVF, p.77) “açucarosas” (VF, p.122) “prateleirado” (UVF, p.164)

-

com base num verbo “gatinhoso” (VF, p.33) “voável” (UVF, p.118) “viventes” (VF, p.150) “arfalhudo” (UVF, p.184)

-

com base num adjectivo “anonimada” (VF, p.123) “minusculado” (UVF, p.190)

A grande maioria das formas citadas até agora formou-se por sufixação, característica da flexão portuguesa, por oposição à flexão banta que tende mais para a prefixação9. Na criação de palavras por prefixação, ou mesmo na derivação parassintética, Couto revela uma predilecção por prefixos como:

9. Cf. LEITE, Ana Mafalda, “Transformação das formas tradicionais na poesia de José Craveirinha”, Colloque International – Les littératures africaines de langue portugaise: à la recherche de l’identité individuelle et nationale, Paris, Fondation Calouste Gulbenkian, Nov.-Dec. 1984, p. 379.

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– des• nomes “desvontades” (VF, p.28) “desmodos” (UVF, p.108) “despedaços” (VF, p.114) “desencontrão” (UVF, p.51) • verbos “desconseguiu” (VF, p.99) “desfalavam” (UVF, p.18) “desroupasse” (VF, p.99) “descomparando-a” (UVF, p.30) • adjectivos “desumbilical” (VF, p.12) “desconjugal” (UVF, p.48) “despoeirados” (UVF, p.32) “desajeitoso” (UVF, p.88) – in• nomes “inutensílio(s)” (VF, pp.12 e 151) • verbos “inimaginava” (VF, p.66) “inacreditei(tou)” (UVF, pp.43 e 219) “inexiste” (VF, p.99) “insubstanciando-se” (UVF, p.215) • adjectivos “inautorizados” (UVF, p.65) “inesquelético” (UVF, p.216) – re• verbos “remorrer” (VF, p.16) “restreava” (VF, p.147) “rebebeu” (VF, p.95) “redesistiu” (UVF, p.166)10

Todos os vocábulos citados, inexistentes na língua. portuguesa, são verosímeis, pois na sua criação foram empregues formas de construção de palavras ou morfemas derivacionais próprios desta língua.. Couto parte em busca de “estranhos novos ecos” através da incorporação de morfemas que em vez de ferirem a língua a enriquecem11. As inovações que têm como ponto de partida o léxico são ainda provocadas pelo recurso a expressões idiomáticas, a frases feitas ou, melhor dizendo, a ‘frases desfeitas’, na medida em que Couto procede, na maioria das vezes, à desconstrução e recriação da metáfora lexicalizada portuguesa. Dado ser um processo estilístico muito utilizado por Mia Couto, apenas faremos referência às expressões que se caracterizam por um maior grau de imaginação e criatividade. Couto recorre a diferentes estratégias para gerar a diferença:

10. Saliente-se que Couto, por vezes, cria novas palavras através da substituição do prefixo já existente pelo seu inverso. Ex: “sobresistir” (VF, p.36) em vez de “subsistir”. 11. Cf. TRIGO, Salvato, Ensaios de literatura comparada-afro-luso-brasileira, Lisboa, Vega, s.d., p.65.

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substituição de um vocábulo por outro pertencente, à mesma área vocabular “de ventre e alma” (VF, p.11) “desfazia trinta por nenhuma linha” (UVF, p.25) “meteu os dedos pelas mãos” (UVF, p.33) “dos pés aos cabelos” (UVF, p.139)

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substituição de um termo por outro semanticamente oposto “quem fala consente?” (VF, p.121) “não fosse o diabo destecê-las” (UVF, p.28) “calar-me com os meus botões” (UVF, p.124) “direitos desumanos” (UVF, p.172) “descargo de inconsciência” (UVF, p.174) “meu dito, meu desfeito” (UVF, p.175)

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substituição de um termo por outro foneticamente semelhante “passados a poente fino” (UVF, p.51) “foi um ver se te enfias” (UVF, p.95) “amor com amor se apaga” (UVF, p.172)

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substituição de um termo por outro apenas através da alteração de um fonema “a berro e fogo.” (VF, p.121) “um tipo levado da broca” (UVF, p.108) “Vivia à razão de juras.” (UVF, p.135) “meter a moca no trombone” (UVF, p.155) “lavado seja Deus” (UVF, p.175)

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inversão da ordem das palavras na frase “com alma e corpo” (VF, p.28) “em idade de flor” (VF, p.94) “escrevendo torto por linhas direitas” (UVF, p.175) “um quanto e tanto” (UVF, p.191)

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reelaboração dos termos do cliché original, dando-lhe novas dimensões “sem quentura nos panos” (VF, p.76) “nem pão nem queijo” (VF, p.79) “nem de amarelo sorriu” (VF, p.90) “a verdade tem perna comprida e pisa por caminhos mentirosos” (UVF, p.110) “parecia estar agora na sétima quinta” (UVF, p.126)

Concluimos, assim, que muitos são os trocadilhos que têm por base expressões muito portuguesas. A desconstrução é feita, por vezes e como acabámos de ver, por associação paronomásica, em que há o abandono de determinada palavra logo que ela evoca outra de significante semelhante mas de significado distanciado e mesmo

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antitético. No experimentalismo da escolha de palavras, o som desempenha um papel muito importante, pois, muitas vezes, Couto brinca com a proximidade do oral e a sua transcrição directa. Mas o trocadilho também acontece quando, outras vezes, o autor substitui uma ou duas palavras da expressão portuguesa corrente pelo seu antónimo, ou, simplesmente, quando a modifica, conservando o seu ritmo, mas estabelecendo a ruptura. De qualquer forma, em todas as situações, a estranheza ocorre na medida em que há sempre uma deliciosa frustração de expectativas para os ouvidos portugueses. Com estes jogos de palavras, Couto diz o que tem a dizer, transgredindo regras a que o discurso está sujeito e das quais ele se liberta parcialmente. Trata-se de uma língua. que se quer livre de estereótipos, dos quais se ri, mas que os aponta no próprio acto em que os nega. O autor nega a metáfora lexicalizada para, depois, a restituir com uma qualidade diferente. Outro aspecto que nos parece mostrar uma preocupação africanizante da escrita de Couto diz respeito à presença de excesso significante12. Não se tratando de meros pleonasmos ou redundância informativa13, estão presentes em Couto diversos tipos de excesso do ponto de vista lexical que vão ter implicações a nível semântico e morfossintáctico. “…perigos muito mortais…” (VF, p.15) “…mulher tão demasiado parideira.” (VF, p.29) “Para ela, os flamingos eram eles que empurravam o sol…” (UVF, p.49) “situação muito contrária.” (UVF, p.77) “mau azar” (UVF,p.135) “boas felicidades” (UVF,p.159) “muitíssimo gravíssima” (UVF,p.171) “muitíssimo enorme” (UVF, p.173)

Este fenómeno não acontece por desconhecimento de Mia Couto do funcionamento e das estruturas da língua. portuguesa, constituindo, pelo contrário, mais uma estratégia deliberada com vista a obrigar essa língua. a veicular a retórica e a estética africana. O uso, por exemplo, de superlativos anómalos de adjectivos que, pelo seu significado, não permitem graus, é vincadamente popular. 1.2 Ordem morfossintáctica O processo de africanização da língua. em Mia Couto ultrapassa o nível meramente lexical para chegar ao morfossintáctico. Este autor submete a língua. portuguesa a jogos morfossintácticos de transgressão à norma que produzem efeitos estéticos notáveis deixando, simultaneamente, transparecer uma oralidade recriada e o imaginário africano subjacente. A criatividade linguística de Couto 12. Cf. TRIGO, Salvato, Do Logotetismo ao Genotetismo: José Luandino Vieira – O percurso de uma escrita, dissertação de Doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, s.d., p. 532. 13. À excepção talvez de “Eu não fora gerado logo inicialmente, no início do casamento” (UVF, p.167).

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assenta na exploração das potencialidades estruturais do português, mas deixando as portas abertas à influência que sobre este exercem as estruturas das línguas. moçambicanas, tal como afirmámos, um pouco à semelhança do que se passa na fala do povo moçambicano. Temos, por isso, de ter consciência de que, por vezes, o que se nos afigura como um desvio à língua. portuguesa padrão, é, na realidade, a forma normativa para o Português de Moçambique. Os desvios na flexão verbal constituem um dos domínios explorados a nível morfossintáctico, numa tentativa de imprimir um cunho de estrangeiridade no uso dos verbos: “…como eu não tivesse outros bens me sepultaram com minha serra e o martelo.” (VF, p.12) “Não acho que vai adiantar.” (UVF, p.85) “Não é que elas deixam de ver as coisas.” (UVF, p.106)

A obliteração do conjuntivo e o uso do indicativo, por exemplo, tornam-se uma marca de africanização da expressão, na medida em que as línguas. bantas alicerçam mais a frase no aspecto do que no modo14. Apesar das infracções às restrições sintácticas, esta é uma questão com repercussões semânticas. Registe-se também uma certa tendência para a forma perifrástica que constitui uma outra marca de africanidade da expressão15: “…o português lhe vai apresentar razões para deitar morte no mulato.” (VF, p.35) “…era dele que Marta e os velhos…faziam abuso.” (VF, p.57) “Bateu à porta…, entrou e se deu assento.” (VF, p.99) “Por fim deu pausa ao espancamento…” (VF, p.115)

No entanto, na ficção de Couto, encontramos, de um modo geral e à semelhança do que se verifica no Português de Moçambique, a forma perifrástica com omissão da preposição de ligação: “Você está respirar?” (VF, p.64) “Nhonhoso, está sonecar?” (VF, p.70) “Está ver aquele caminhozito?” (UVF, p.54) “Está-me entender, filho?” (UVF, p.167)

Ainda a nível de formas verbais, encontramos em Mia Couto duas atitudes em relação à negativa. Por um lado, verifica-se uma dimensão de excesso veiculada por uma dupla negação: “Não que eu hoje precise de sentir nenhuma passagem dos dias.” (VF, p.48) “Nem cemitério eu não teria, ali no asilo.” (VF, p.49) 14. Cf. TRIGO, Salvato, Do Logotetismo ao Genotetismo, op.cit., p. 332. 15. Contudo, ela é omitida quando seria mais usual utilizá-la, como por exemplo, em “Todos se contentaram” (UVF, p.141).

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“…sou miúda. Nem vinte não tenho.” (UVF, p.63) “Nem este moço não pode traduzir.” (UVF, pp.157-8)

O recurso a duas marcas de negação é uma característica do português oral de Moçambique gerada por princípios de gramática inerentes a várias línguas. moçambicanas16. Por outro lado, ocorre a omissão de um dos termos da negação, quando na norma europeia há dupla negação: “Falava com ninguém?” (VF, p.47) “Ele escutava quase nada.” (UVF, p.139) “Ele queria viver em nenhum tempo.” (UVF, p.165)

Também estes desvios, apesar de constituírem infracções de natureza sintáctica, acabam por ter fortes implicações de ordem semântica. Poderíamos até considerar que se trata mesmo de infracções de natureza sintáctico-semântica. No que respeita ainda a verbos, e na sequência da falta, em geral, nas línguas. bantas, de uma fronteira rígida entre diferentes categorias de verbos (por exemplo, entre verbos transitivos e intransitivos), Couto joga transgressoramente com as propriedades de subcategorização dos verbos. Nesta linha, se um verbo deveria ser utilizado transitivamente, ele opta pela forma intransitiva, o que também ajuda a veicular um certo cariz elíptico do discurso: “O administrador arreganhou em surdina.” (UVF, p.26) “Os dois homens fitavam além parede, olhar entorpecido.” (UVF, p.83) “Já encetei com esses sul-africanos que apareceram aqui…” (UVF, p.98) - Mas a situação inversa também ocorre: “Meu arco quem o brincaria, agora?” (VF, p.37) “Converso-lhe…?” (VF, p.48) “E falou a explicação que jamais ouvira.” (UVF, p.143)

Ainda a nível morfossintáctico, ocorrem desvios na utilização do: • artigo

Relativamente a esta classe, tanto encontramos omissões, fenómeno que resulta do facto de o artigo não existir nas línguas. bantas, “…esta era minha última e definitiva residência.” (VF, p.35) “Sentiu-se só, com toda África lhe pesando.” (UVF, p.104) “…olhos em olhos.” (UVF, p.50)

16. Cf. CAVACAS, Fernanda, Mia Couto: um Moçambicano que diz Moçambique em Português (texto policopiado), dissertação de Doutoramento em Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Julho 2002, p. 173.

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como inserções desviantes: “Foi morto ao tiro.” (VF, p.18) “Afinal tínhamos as tantas coisas, nós?” (VF, p.37) • pronome

As práticas mais desviantes neste âmbito, dizem respeito: -

ao uso do pronome reflexo em verbos não reflexos, “Meu tio…acordou-se com a barriga no inverso lado.” (VF, p.67) “Quando ele descobriu o velho Mourão…desatou-se a gritar.” (VF, p.86) “Saiam-se daqui.” (UVF, p.137) “O senhor me pergunta por esses soldados que desapareceram-se.” (UVF, p.157)

-

ou à sua ausência em verbos reflexos, “Mourão, deixe disso.” (VF, p.71) “Sentámos os três num banco…” (VF, p.87) “A tal senhora…ainda pensei que tivesse dissolvido no âmbito da explosão.” (UVF, p.94) “Tão poucas foram as vezes que divertimos juntos, eu e o meu velho.” (UVF, p.217)

-

e à sua posição, “Eu pensei você já tinha-se apagado.” (VF, p.86) “Até chamou-me belzeburro.” (UVF, p.98) “Mas tanto faz-me.” (UVF, p.126)

Apesar de, nestes casos em que a norma do português padrão ditaria a anteposição do pronome relativamente ao verbo (próclise), Couto ter recorrido à posposição do mesmo (ênclise), nas outras situações em que normativamente se colocaria o pronome após o verbo, Couto, normalmente, envereda pela tendência africana de anteposição: “…os governantes me queriam transformar num herói nacional.” (VF, p.13) “Marta lhe corrigiu o cepticismo.” (VF, p.43) “…ela…, finalmente, me havia de conhecer…” (UVF, p.50) • adjectivo

Um dos desvios mais recorrentemente verificados é a anteposição do adjectivo relativamente ao substantivo. Na língua. portuguesa, verifica-se uma certa liberdade em relação à colocação do adjectivo, contrariamente, por exemplo, à língua. inglesa com regras de algum modo fixas para a sua colocação. O adjectivo antes do substantivo provoca uma certa sentimentalização da frase em detrimento de uma maior objectividade. Em Couto é usual a colocação anteposta do adjectivo: “…iria escutar…as humanas vozes do asilo.” (VF, p.18) “Apenas as cansadas pernas…me inconvinham.” (VF, p.50)

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“Estêvão Jonas…ocupava a inteira largura da porta.” (UVF, p.19) “…exigia-se…prestação de imediatas contas.” (UVF, p.32) • preposição

Quanto a esta classe, as práticas mais frequentes são: -

a omissão, “Está ver?” (VF, p.82) “Eu não gosto as maneiras…” (UVF, p.155) “…ele [o flamingo] não se ergue no ar…igual os restantes pássaros.” (UVF, p.190)

-

a inserção, “Sim, namorar nela mesmo...” (VF, p.83) “Os caniceiros costumam de comentar-me.” (UVF, p.172)

-

mas, especialmente, a troca: “Disso eu já me resignei.” (VF, p.13) “Se ocupou…a essa estranha missão.” (VF, p.114) “…até me pesam por vergonha que tenho neles.” (UVF, p.97)

As línguas. africanas caracterizam-se, de um modo geral, por uma concisão que assenta numa sobriedade de meios. A nível sintáctico, é notória a tendência de aglutinação da língua. banta através da supressão dos elementos conectores de constituintes sintagmáticos e/ou oracionais, dispensáveis semanticamente, facto que acarreta uma concentração de força expressiva nas palavras utilizadas, por exemplo nos nomes e verbos: “Parecia ela estava em véspera de lágrima.” (VF, p.32) “Só esta fica despida, faz conta está para chegar um Inverno.” (VF, p.47) “Está compreender, Excelência?” (UVF, p.29) “Aproveito dizer isto…” (UVF, p.84)

Esta tendência para o apagamento de elementos relacionais é característica do modo expeditivo africano, aquilo que Salvato Trigo designou de “sintaxe canguruística”, na medida em que, dados os vácuos relacionais causados pela ausência das palavras de ligação, o pensamento evolui por saltos17. Observa-se, por conseguinte, dois movimentos opostos: – por um lado, a simplificação e a economia, com a elipse de verbos, pronomes, artigos, etc. como realidade constante a nível textual; – por outro, a inflação de termos ou partículas pleonásticas, como a dupla negativa, a que aludimos atrás, ou a acumulação de expressões com o mesmo 17. Cf. TRIGO, Salvato, Do Logotetismo ao Genotetismo, op.cit., p. 171.

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valor semântico, como por exemplo: “E se fosse tudo factualmente autenticada verdade?” (UVF, p.174). Sabendo que é, essencialmente, na sintaxe que reside a identidade de uma língua., a sua dissolução parcial constitui um dos vectores mais significativos que a escrita coutista adopta para atingir os seus objectivos de construção de moçambicanidade. Pensámos que a melhor forma de concluir este estudo sobre Mia Couto seria simplesmente registar o seu testemunho sobre a forma como ele opera as “brincriações” com a língua. portuguesa: Venho brincar aqui no Português, a língua.. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique… A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o vôo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem, é idimensões?[…] Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocamos essoutro português – o nosso português – na travessia dos matos, fizemos que ele se descalçasse pelos atalhos da savana. Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas – o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.18

18. COUTO, Mia, “Perguntas à Língua Portuguesa”, 97/04/11, in: http://pintopc.home.cern.ch/pintopc/ wwwAfrica/Couto_Mia/brincar_pt.htm.

O INFINITIVO PESSOAL E OS SEUS EQUIVALENTES NA LÍNGUA. ALEMÃ Katrin Herget Universidade de Aveiro

1. Introdução Com este artigo pretende-se contribuir para a análise das possibilidades de tradução da forma verbal infinitivo pessoal ou infinitivo flexionado para alemão. Esta forma verbal, exclusivamente presente em português, constitui um problema para o falante da língua. alemã que estuda a língua. portuguesa, dado que o infinitivo pessoal não existe em alemão. A própria designação é por si só um paradoxo. Faz parte do conhecimento gramatical básico que uma forma verbal pode ser realizada de dois modos diferentes: ou está no infinitivo ou é conjugada, de acordo com a pessoa gramatical. A realização simultânea de ambas as formas não existe nem nas línguas. germânicas nem nas restantes línguas românicas. O presente artigo tem como objectivo apresentar as diferentes possibilidades de tradução do infinitivo pessoal do português para alemão. A análise foi feita a partir de um corpus de textos jurídicos, retirados da página Web EUR-LEX (http:// eur-lex.europa.eu/). Trata-se de uma página Web da União Europeia que oferece um acesso imediato e gratuito aos regulamentos dos Estados-membros da União Europeia, e que permite efectuar pesquisas por palavra ou por frase inteira. Para além disso, os textos são disponibilizados simultaneamente em alemão e em português. 2. Raízes linguísticas e utilização do infinitivo pessoal O infinitivo pessoal não é um fenómeno gramatical recente, sendo possível reconstituir a sua utilização ao longo da história do português. Muitas gramáticas da língua. portuguesa contêm referências muito antigas quanto à utilização desta forma gramatical. Na Gramática do Português Antigo de Joseph Huber de 1933 encontra-se o seguinte passo: “Esta indicação das relações pessoais no infinitivo já se encontra nos textos portugueses mais antigos; em documentos latinos já cerca do ano 1000 surgem formas esporádicas”.

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Também Paul Teyssier, na sua obra História da Língua Portuguesa, faz referência a esta forma verbal arquetípica da língua. portuguesa: “O infinitivo flexionado ou ‘pessoal’ – Trata-se de um infinitivo que possui as desinências pessoais (teer, teeres, teer, teermos, teerdes, teeren). Este tempo, atestado já nos textos mais antigos, é um traço específico do galego e do português, sendo desconhecido do leonês e do castelhano. Ex.: “Guardade-vos de seerdes escatimoso ponteiro – poema satírico de Afonso X” (1997: 29). Teyssier refere-se ao rei D. Afonso X, o Sábio (1221-1284), rei de Leão e Castela e autor de várias obras históricas, artísticas e jurídicas. Entre as obras jurídicas destacam-se sobretudo os dois importantes códices de leis Las Siete Partidas e Fuero Real. Nestes códices arcaicos já aparece o infinitivo pessoal – uma prova de que este fenómeno gramatical tem raízes profundas. Desde a criação da Romanística por Friedrich Diez nos anos 20 do século XIX, a forma verbal do infinitivo pessoal tem sido objecto de diversas análises (cf. Wernekke 1885, Otto 1888, Michaëlis de Vasconcellos 1891). A formação do infinitivo pessoal ocorre com verbos regulares tanto no infinitivo como no futuro do conjuntivo. Enquanto a primeira e a terceira pessoa não têm terminação, a segunda pessoa e também as formas do plural apresentam as seguintes terminações: -es, -emos, -des, -em. Com o infinitivo pessoal a língua. portuguesa dispõe de uma forma gramatical que liga o pessoal com o impessoal (cf. Schwamborn 2004: 51). Na gramática de Cunha e Cintra (1984) pode ler-se que o infinitivo pessoal tem um sujeito e é flexionado ou não em conformidade com a pessoa gramatical. Ao contrário, o infinitivo impessoal não tem sujeito porque não se refere a uma pessoa gramatical. Na Gramática Portuguesa de Hundertmark-Santos Martins (1998) são apresentados os diferentes modos de utilização do infinito pessoal. Pode-se observar que o infinitivo pessoal é utilizado sobretudo na língua. falada, porque através do seu uso se podem evitar construções subordinadas introduzidas por que, que exigem o uso do conjuntivo. Esta reflexão encontra-se também em Dunn (1928) que na sua Grammar of the Portuguese Language faz a seguinte observação: Whereas, in general, the simple or impersonal infinitive is used if the action is described only in a vague or general way without referring it to any special agent – as when the subject of the principal verb and of the infinitive is the same – the personal infinitive, on the other hand, is often the equivalent of a clause beginning with que, and is used when the principal verb and the infinitive have different subjects and, even though the subject is the same for both verb and infinitive, when it is desirable to bring out clearly the fact that the act is referred to or affects a determined person or persons (1928: 496).

No entanto, o infinitivo pessoal não é só utilizado na língua. falada, mas também nas linguagens de especialidade. Como já foi dito, esta análise baseia-se num corpus constituído por textos da linguagem jurídica. Dado que a linguagem jurídica aspira a concisão e precisão, o uso do infinitivo pessoal representa uma das possibilidades para conseguir esta economia de língua..

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Almeida ressalta na sua Gramática Portuguesa (1980) três vantagens do infinitivo pessoal: clareza, que resulta da nomeação do sujeito; beleza pela maior variedade estilística e finalmente precisão pelo encurtamento das orações subordinadas. Em seguida, mostrar-se-á como estas estruturas de economia de língua. podem ser transferidas para alemão.

3. Reflexões sobre a transferência do infinitivo pessoal para alemão A estrutura sintáctica do infinitivo pessoal não existe na língua. de chegada, o que leva automaticamente a um problema de tradução. Para a resolução deste problema de tradução pode contribuir a aplicação das técnicas de tradução. O estudo das técnicas de tradução na área das Ciências de Tradução não é recente. Desde a classificação de Vinay/Darbelnet de 1958 no âmbito da “Stylistique Comparée”, muitos autores têm apresentado propostas para uma sistematização das técnicas de tradução (Catford 1965, Malblanc 1968, Nida/Taber 1969, Newmark 1988, Deslile 1993, Schreiber 1993 entre outros). A presente análise baseia-se na classificação de Gallagher (1982) que, na sua obra German-English Translation. Texts on Politics and Economics, apresenta sete técnicas de tradução com base nos translations shifts de Catford (1965). Gallagher expandiu o modelo de Catford alargando-o para além dos structure shifts. Antes de analisarmos e descrevermos as mais importantes técnicas de tradução para mostrar como facilitam a tradução de estruturas com infinitivo pessoal, vamos brevemente referir a classificação de Gallagher e exemplificar cada categoria por ele proposta. Classificação segundo Gallagher (1982): I. Borrowing: -

empréstimo linguístico para colmatar lacunas lexicais na língua. de chegada (o uso das palavras Fado ou saudade em alemão; Leitmotiv em português)

II. Calquing: -

tradução literal dos constituintes de um composto (al. Übermensch (Nietzsche) – pt. superhomem)

III. Literal translation: -

tradução literal de uma frase (al. Sie las ein Buch. – pt. Ela leu um livro.)

IV. Transposition: 1) Class-shifts - alteração da classe de palavra (aqui: adjectivo al. Er war bei den Prüfungen sehr erfolgreich. pt. Ele teve muito sucesso nos exames.

substantivo)

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2) Intra-system shifts - mudança de categoria dentro de um sistema (aqui: activo

passivo);

mas também alteração de singular para plural ou artigo definido para artigo zero; al. Mir wurde gesagt, dass (...) - pt. Disseram-me que (...) 3) Structure-shifts - o shift mais comum; aqui acontece uma mudança na estrutura dentro da mesma categoria (categoria = unidades linguísticas que estão subdivididas em hierarquias como frase, grupo de palavras, palavra e morfema) pt. Brasil é o terceiro país em crimes cibernéticos. al. Bei der Computerkriminalität steht Brasilien weltweit an dritter Stelle. 4) Inter-rank shifts - o equivalente da língua. de chegada encontra-se numa outra categoria que na língua. de partida al. Das ist unfassbar! - pt. Incrível! (aqui: mudança de frase para palavra) 5) Level shifts - mudança da gramática para o léxico numa língua. e vice-versa pt. Ele tem falado muito em ti. – al. Er hat in der letzten Zeit viel von dir gesprochen. (Pretérito Perfeito Composto

in der letzten Zeit (léxico)

V. Modulation: mudança da perspectiva 1) Positive/negative al. Es war nicht leicht, ihn davon zu überzeugen. pt. Foi difícil convencê-lo disso. 2) Cause/effect al. Vorfahrt beachten. - pt. Cedência de passagem. (A Vorfahrt é o pressuposto para a passagem) 3) 1st person/2nd person pt. Vem com a gente. – al. Komm mit uns mit. 4) Abstract/concrete al. Baukastensystem pt. sistema modular 5) Shift of imagery al. Mehrmotorenantrieb – pt. accionamento seccional VI. Equivalence: tipo extremo da modulação; sobretudo na fraseologia al. zwei Fliegen mit einer Klappe schlagen - pt. matar dois coelhos com uma cajadada só VII. Adaptation: tipo extremo da equivalência; palavra da língua. de chegada é utilizada num contexto comunicativo semelhante ao da palavra da língua. de partida al. Der Himmel über Berlin (filme de Wim Wenders) – pt. As Asas do Desejo

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4. Características da linguagem jurídica Para poder contextualizar o problema de tradução analisado neste artigo, é necessário fazer uma breve introdução às características da linguagem jurídica. Ao classificar a linguagem jurídica como linguagem de especialidade é imprescindível questionar as características essenciais das linguagens de especialidade. Em geral, são referidos traços fundamentais como terminologia normalizada, precisão, sistematicidade (cf. Busse 1998: 1383), sendo estes também típicos da linguagem jurídica. Para além disso, Steger (1988: 126) atribui à linguagem jurídica características como “dignidade”, “eficiência”, “correcção linguística”, “clareza”, “concisão”, “respeito pelo uso corrente da língua.” e “linguagem acessível para todos os públicos”. Esta enumeração reflecte bem o facto de a linguagem jurídica – ao contrário de outras linguagens técnicas – combinar de forma indissociável o léxico específico e o léxico geral: “Der Wortschatz der Rechtssprache stammt überwiegend aus der Gemeinspracheallerdings wird häufig mit den fachsprachlichen Wörtern ein andererInhalt verbunden als mit den gleichlautenden allgemeinsprachlichen Wörtern” (Daum 1981: 86). A linguagem jurídica utiliza, por exemplo, palavras da linguagem corrente como propriedade e posse, atribui-lhes, porém, um significado jurídico. Entre o direito e a língua. existe uma relação muito estreita, pois todas as normas jurídicas são expressas verbalmente. O facto de os juristas se servirem da língua para interpretar textos legais impõe grandes exigências à linguagem jurídica: “Die Rechtsstaatlichkeit verlangt ein objektiv-rational arbeitendes, wissenschaftlich fundiertes Justiz- und Verwaltungssystem. (...) Diesen Anforderungen wird nur eine hochentwickelte Fachsprache gerecht, die alle notwendigen Inhalte klar, eindeutig und vollständig wiedergeben kann. Das ist das Gebot der Präzision“ (Otto 1981: 51). Busse (1998: 1388) ressalta sobretudo o facto de a linguagem jurídica alemã ser caracterizada pelo “princípio da abstracção”, o que está relacionado com o esforço de “conservar” os textos jurídicos durante muito tempo e de estes se poderem adaptar a uma realidade em constante alteração. A escolha de conceitos jurídicos abstractos leva, porém, a um grande espaço de interpretação, isto é, a uma “grande abertura semântica”. Esta indeterminação semântica coloca o tradutor perante um grande desafio, pois ele tem de ter um conhecimento suficientemente profundo nesta área específica. 5. Análise do corpus Nesta secção, far-se-á a análise do corpus e a descrição dos exemplos retirados da referida página Web (cf. Introdução). 1. Para efeitos da presente directiva, entende-se por: - “equipamentos terminais”: os equipamentos destinados a serem ligados à rede pública de telecomunicações, nomeadamente: a) A serem directamente ligados ao terminal de uma rede pública de telecomunicações;

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1.’ Im Sinne dieser Richtlinie ist/sind - “Endeinrichtungen” Einrichtungen, die an das öffentliche Telekommunikationsnetz angeschlossen werden sollen, d. h. a) die direkt an die Anschlußeinrichtung eines öffentlichen Telekommunikationsnetzes angeschlossen werden sollen O infinitivo pessoal é reproduzido em alemão através de uma oração subordinada relativa. A estrutura com o infinitivo pessoal exprime tanto um processo como também o modo deste processo (cf. sollen, verbo modal de cariz prescritivonormativo). A alteração do modo depende do contexto. A preposição a e também a locução prepositiva a fim de, que introduzem uma estrutura com infinitivo pessoal, exprimem um fim ou uma intenção. Segunda a sistematização de Gallagher trata-se de uma transposição, nomeadamente de um level shift. Este level shift consiste na representação de uma construção gramatical através de uma construção lexical. Em alemão, o infinitivo pessoal é exprimido através de uma palavra adicional, isto é, o verbo modal sollen. Além disso, trata-se de um structure shift, sendo o infinitivo pessoal representado por uma oração subordinada. 2. No caso de um ou vários dos exemplares dos productos controlados não estarem conformes, o organismo notificado tomará as medidas adequadas. 2.’ Ist eines oder sind mehrere der geprüften Produkte nicht konform, so trifft die benannte Stelle geeignete Maßnahmen. Neste exemplo, o infinitivo pessoal aparece depois da locução prepositiva no caso de. Em alemão a conjunção foi omitida, pelo que o verbo finito está no início da frase. O uso de orações sem conjunção é uma das características da linguagem jurídica. Ao traduzir a frase para alemão o modo não é alterado. Por um lado, pode-se identificar um structure shift, pois a locução prepositiva no caso de é transposta para alemão através da inversão. Por outro lado, é possível identificar um intra-system shift, passando o infinitivo pessoal a presente do indicativo na língua. de chegada. 3. A partir de 1 de Janeiro de 1993, as autorizações de trabalho sazonal serão automaticamente renovadas aos trabalhadores sazonais titulares de um contrato de trabalho sazonal ao regressarem ao território da Suíça. 3.’ Ab 1. Januar 1993 wird eine Saisonbewilligung für Saisonarbeiter, die über einen Saisonarbeitsvertrag verfügen, bei ihrer Rückkehr in das Hoheitsgebiet der Schweiz automatisch erneuert.

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Neste caso ocorre uma transposição. O infinitivo pessoal é introduzido pela preposição a e pelo artigo definido o, que pode ser traduzido de várias maneiras para alemão, isto é, através de bei, wenn, als, während. Na versão alemã, o infinitivo pessoal português encontra correspondente num substantivo e num pronome possessivo. Enquanto o substantivo exprime uma acção (Rückkehr), o pronome estabelece uma relação com o agente sob forma de uma dêixis. Os grupos nominais são característicos da linguagem jurídica. Observa-se aqui a ocorrência de um class-shift que consiste na alteração da classe de palavra, transformando o verbo regressar no substantivo Rückkehr. 4. […] Incentivos dirigidos, em particular, aos trabalhadores desfavorecidos ou mais idosos a permanecerem ou regressarem ao mercado de trabalho. 4.’ […] besondere Anreize für benachteiligte oder ältere Arbeitnehmer, damit sie auf dem Arbeitsmarkt bleiben oder dorthin zurückkehren. Aqui ocorre um intra-system shift, isto é, a mudança da estrutura do infinitivo pessoal para o presente do indicativo. Para além disso, existe um structure shift, sendo o infinitivo pessoal representado em alemão por uma oração final (damit ...). 5. Os Estados-membros que recorram à faculdade prevista no primeiro parágrafo estabelecerão as normas que os trabalhos a efectuar devem respeitar para serem considerados “de reduzido volume”. 5.’ Die Mitgliedstaaten, die von der in Unterabsatz 1 gebotenen Möglichkeit Gebrauch machen, legen die Modalitäten fest, denen die zu verrichtenden Arbeiten entsprechen müssen, um als Arbeiten von geringem Umfang zu gelten. Este exemplo representa igualmente um intra-system shift, no qual o infinitivo pessoal passa a infinitivo com zu em alemão. 6. No caso de as autoridades competentes terem verificado que a restituição solicitada era incorrecta e que a exportação não foi efectuada, não sendo, por consequência, possível qualquer redução da restituição, o exportador pagará o montante equivalente à sanção referida nas alíneas a) ou b) do n.o 1 6.’ Stellen die zuständigen Behörden fest, daß die beantragte Erstattung unrichtig war und die betreffende Ausfuhr nicht erfolgt ist, so daß eine Verminderung der Erstattung nicht möglich ist, so zahlt der Ausführer den der Sanktion gemäß Absatz 1 Buchstabe a) bzw. b) entsprechenden Betrag, den er zu zahlen hätte, wenn die Ausfuhr erfolgt wäre.

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A tradução alemã consiste numa estrutura característica da linguagem jurídica: a oração condicional não é introduzida por conjunção. Frases como: Wird die Strafdrohung während der Begehung der Tat geändert, so ist das Gesetz anzuwenden, das bei Beendigung der Tat gilt (StGB § 2,2), nas quais a conjunção condicional wenn é omitida e o verbo finito se encontra em posição inicial, são expressão de um estilo conciso, característico da linguagem jurídica. Segundo Gallagher (1982) trata-se neste caso de uma transposição constituída por structure shift e intra-system shift. 7. Medida nacional que dispõe que os professores que trabalham a tempo inteiro e os que trabalham a tempo parcial estão obrigados a trabalhar o mesmo número de horas extraordinárias antes de terem direito a uma remuneração. 7.’ Nationale Regelung, wonach vollzeit- und teilzeitbeschäftigte Lehrkräfte einen Anspruch auf Mehrarbeitsvergütung erst ab der gleichen Zahl geleisteter Mehrarbeitsstunden haben. Neste exemplo estamos perante uma mudança de perspectiva, isto é, uma modulação. De acordo com a taxonomia de Gallagher trata-se de um shift of imagery. A conjunção temporal antes de, que na frase portuguesa introduz o infinitivo pessoal, não é exprimida em alemão igualmente através de uma oração temporal, mas antes pelo advérbio erst e pela preposição ab. Enquanto em português é representada uma ordem temporal, a frase alemã revela que os professores têm um direito que é limitado a posteriori (erst ab). Por conseguinte, em português observa-se uma ordem progressiva, enquanto que em alemão temos uma estrutura regressiva. A ordem regressiva em alemão é menos transparente e exige mais atenção e memória por parte do leitor, dado que a informação mais relevante aparece só no fim da frase. Devido a esta característica na estrutura tema-rema em alemão surgem muitos casos de transposição na tradução do português. 8. DECISÃO DA COMISSÃO de 9 de Outubro de 1996 que autoriza a França a pagar o prémio para a transformação de animais retirados da produção antes de ultrapassarem vinte dias de idade 8.’ ENTSCHEIDUNG DER KOMMISSION vom 9. Oktober 1996 zur Ermächtigung Frankreichs, die mit der Verordnung (EWG) Nr. 805/68 des Rates über die gemeinsame Marktorganisation für Rindfleisch vorgesehene Verarbeitungsprämie für im Alter von weniger als 20 Tagen aus der Produktion genommene Tiere zu gewähren Neste exemplo o infinitivo pessoal segue-se à conjunção temporal antes de. Na versão alemã a construção de preposição a + artigo + forma verbal foi omitida e

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substituída por uma frase preposicional (im Alter von). Neste caso trata-se tanto de uma transposição como também de uma modulação. O class shift resulta de uma substituição da conjunção e do verbo, usados em português, por uma locução adverbial. Quanto à modulação, trata-se de um shift of imagery. Enquanto em português é ressaltado um processo através do verbo ultrapassar, em alemão exprime-se um estado (weniger als). 9. Ao delinearem a colaboração em matéria de segurança e justiça, os EstadosMembros reconheceram a vigência do referido princípio nos artigos 54.° e seguintes da convenção 9.’ Die Mitgliedstaaten haben im Rahmen der Zusammenarbeit auf dem Gebiet der Sicherheit und der Justiz die Geltung des genannten Grundsatzes in den Artikeln 54 ff. SDÜ anerkannt. Neste exemplo, o infinitivo pessoal é introduzido por uma conjunção temporal que exprime uma acção de simultaneidade (pt. ao delinearem a colaboração, de. beim Entwurf der Zusammenarbeit). A tradução oficial im Rahmen der omite o verbo e serve-se duma frase preposicional. Esta economia da língua. que resulta da utilização duma preposição em alemão não é só típica para a linguagem jurídica, mas também para textos de especialidade (p. ex. especificações), dado que orações subordinadas muito complexas podem ser reduzidas desta maneira. Esta transposição pertence à categoria do class shift, pois pode observar-se uma transição do verbo (delinear) para o substantivo (Rahmen).

Conclusão Ao traduzir construções com infinitivo pessoal para alemão tem que se diferenciar uma série de cenários que vão da simples transposição sintáctica até modulações semanticamente complexas em conjunto com transposições. Foi o objectivo desta análise mostrar que tipo de estratégias o tradutor tem de aplicar ao traduzir textos jurídicos do português para alemão. Chegámos à conclusão que há um conjunto de exemplos nos quais o tradutor tem de fazer uma transposição simples. Porém, encontram-se sobretudo em textos de linguagem específica construções com o infinitivo pessoal que requerem maiores reformulações em alemão e têm, por consequência, uma transposição mais complexa ou uma modulação. Um grau de dificuldade mais elevado é atingido quando se tem de recorrer a uma transposição complexa para traduzir a frase portuguesa para alemão. Até aqui foram apenas referidas as transformações a nível sintáctico. Com um grau de dificuldade cada vez maior é necessário que o tradutor faça tanto reformulações sintácticas como semânticas. As alterações sintácticas consistem na comparação dos sistemas de língua. em questão, enquanto as alterações semânticas baseiam-se na comparação de textos protótipos para determinada área especializada. A necessidade de uma mudança de perspectiva na tradução é sobretudo evidente em diferentes sistemas

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jurídicos. Nos sistemas jurídicos português e alemão existem diferentes tradições legais devido a sistematizações conceptuais divergentes. O grau de dificuldade mais elevado na transferência de estruturas com infinitivo pessoal para alemão é atingido quando aparecem transposições complexas em conjunto com mudanças de perspectiva (modulações). Em tais casos é necessário que o tradutor, na sua função de “polihistor”, active o seu conhecimento geral. Na transição do nível sintáctico para o semântico, ocorre no âmbito da modulação uma mudança da Linguística Contrastiva para a Linguística Textual, dado que a mudança de perspectiva que o tradutor realiza na língua. de chegada só é possível se ele tiver conhecimento da situação comunicativa.

PRIMEIRAS VANGUARDAS E METRÓPOLES: A ESTÉTICA CULTURAL MIGRATÓRIA E OS CENÁRIOS TRANSCULTURAIS EM BERLIM E LONDRES 1 Manuela Veloso Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto

[…] The frontiers interpenetrate, individual demarcations are confused and interests dispersed. […] We all today (possibly with a coldness reminiscent of the insect-world) are in each other’s vitals – overlap, intersect, and are Siamese to any extent. (Lewis, “The new Egos”, Blast 1, 1914).

Há uma grande ligação entre as metrópoles e as práticas e ideias dos movimentos de vanguarda (Williams, 1989: 37)2. Paris, Londres, Nova Iorque e Berlim são as grandes metrópoles modernas, sendo que as características inerentes a cada 1. Este artigo foi elaborado no âmbito do Projecto “Interidentidades” do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Unidade I&D Financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, integrada no Programa Operacional Ciência e Inovação 2010 (POCI 2010-SFA-18-500). 2. Sobre a definição do conceito de “Vanguarda Histórica”, vd. o estudo de Margarida Pereira, em A vanguarda histórica na Inglaterra e em Portugal – Vorticismo e Futurismo (1998), pp. 19 e passim. A autora faz uma exaustiva apresentação das diversas definições que vão surgindo em torno do termo “Vanguarda”: “as […] definições que vão surgindo acabam por estabelecer o conceito de vanguarda em dualidades oposicionais em que a arte vanguardista surge como um factor desestabilizador de uma qualquer ordem estabelecida” (p. 19). Segundo esta autora, porém, os epítetos sempre evanescentes para o termo revelam-se “vagos e abrangentes”, o que parece evidenciar a natureza de indefinição que está inerente à latitude do conceito de “Vanguarda”. Imprescindível ao entendimento do termo “Vanguarda” é o livro de Matei Calinescu, intitulado Faces of Modernity: Avant-garde, Decadence, Kitsch (1977), assim como os vários estudos de Peter Bürger, dos quais destacamos Theorie der Avantgarde (1993), em que o autor apresenta como intuito principal dos movimentos de vanguarda a destruição da instituição arte enquanto ordem separada da praxis social, lembrando uma das mais importantes divisas hegeliano-marxistas, segundo a qual as revoluções falhadas acabam sempre por ter uma reverberação no reforço do que procuravam transformar.

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uma delas e geralmente associadas à noção de metrópole são variáveis. Falamos das massas, da velocidade, do desenvolvimento das novas tecnologias, da coexistência de riqueza e de pobreza, da estética cultural migratória e dos cenários transculturais que o início do século XX potenciou nestas cidades. Numa Europa em que deflagraria a primeira guerra com o epíteto de “Mundial” e em pleno processo de industrialização, vivia-se na iminência do colapso e, simultaneamente, do vislumbre sempre adiado de melhores condições existenciais. A guerra, as máquinas, a luta das mulheres. pelo sufrágio universal, as migrações massivas e a vivência única nas metrópoles do início do século XX geram inéditas dimensões percepcionais. É neste clima geomental de constante fluxo que emerge o fenómeno das vanguardas artísticas na Europa como resposta colectiva e de provocação à crise que se instalava, percepcionada por poetas como Georg Heym (1887-1912) de forma inquietantemente clara. Exemplo disso é o seu poema “Der Gott der Stadt”/ “O Deus da Cidade” (1910)3, que cito em pleno, dado o seu significado paradigmático neste contexto: Auf einem Häuserblocke sitz er breit. Die Winde lagern schwarz um seine Stirn. Er schaut voll Wut, wo fern in Einsamkeit Die letzen Häuser in das Land verirrn.

Escarrapachado sobre um quarteirão À sua volta acampam negros ventos. Ele olha irado, ao longe, a solidão De últimas casas em campos nevoentos.

Vom Abend glänzt der rote Bauch dem Baal, Die groβen Städte knien um ihn her. Der Kirchenglocken ungeheure Zahl Wogt auf zu ihm aus schwarzer Türme Meer.

Baal ao pôr-do-sol, pança luzindo, À volta ajoelham as grandes cidades. De um mar de negras torres vem subindo O eco monstruoso das trindades.

Wie Korybanten-Tanz dröhnt die Musik Der Millionen durch die Straβen laut. Der Schlote Rauch, die Wolken der Fabrik Ziehen auf zu ihm, wie Duft von Weihrauch blaut.

Na rua, a multidão música entoa, Em dança coribântica exaltada. Das chaminés fabris o incenso escoa E sobe até ele, em fragrância azulada.

Das Wetter schwelt in seinen Augenbrauen. Der dunkle Abend wird in Nacht betäubt. Die Stürme flattern, die wie Geier schauen Von seinem Haupthaar, das im Zorne sträubt.

No seu sobrolho crepitam temporais. Narcotiza-se em noite o escuro dia. Como os abutres, esvoaçam vendavais Em cabeleira irada, que arrepia.

Er streckt ins Dunkel seine Fleischerfaust. Er schüttelt sie. Ein Meer von Feuer jagt Durch eine Straβe. Und der Glutqualm braust Und friβt sie auf, bis spät der Morgen tagt.

Estende no escuro a mão de carniceiro. Um mar de fogo varre, num estremecer, Toda uma rua, que acaba num braseiro, Até que o dia tarde a amanhecer.

3. Tradução de João Barrento, incluída no seu livro Expressionismo Alemão – Antologia Poética. O poema original também se encontra nesta edição bilingue. Vd Barrento, 1976: 136-137.

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A ordem estética, a que retrospectivamente se chamou Modernismo e que se tem revelado atemporal, por ser paradigma do que é “o novo”, é o nosso terreno de movimentação. Incidiremos em dois pontos concretos no mapa da avant-garde internacional: o Expressionismo messiânico na cultura germânica e o Vorticismo na cultura anglo-saxónica. O fermento sociológico do Vorticismo é, em primeira análise, muito semelhante ao do Expressionismo e redunda, da mesma forma, no uso da força interior individual e do direccionamento artístico alternativo ao Zeitgeist, distorcendo-o ou desmantelando-o. O distanciamento contemplativo, quer do Vorticismo, quer do Expressionismo transfigura a circunstância antebellum em interiorização satírica – no caso do Vorticismo – e em interiorização espiritualizada, no caso do Expressionismo. Ficamos, assim com um enfoque contextual balizado pelo primeiro conflito mundial, com as pátrias correspondentes aos movimentos da nossa análise em partes inimigas, muito embora com posturas estéticas muito coincidentes, o que é de extrema pertinência neste contexto, dado que é nosso objectivo avaliar a transversalidade estético-ontológica nos casos que seleccionámos. Era imprevisível o impacto que a Grande Guerra teria nas cidades de que falamos. Em todo caso, era um dado adquirido que os artistas e escritores também seriam escrutinados à luz de uma nova e reveladora perspectiva: o soldado substituiria o boémio e a maquinaria massiva de combate seria posta em confronto com os homens, seus progenitores.

Jacob Epstein, Rock Drill, 1916.

A Primeira Grande Guerra surge, deste modo, como uma experiência vivida por todo um potencial humano que a arte já tinha unificado. Por essa razão, nos pareceu-nos pertinente incidir particularmente em Berlim e Londres vivenciadas por Else Lasker-Schüler e Wyndham Lewis, assim como abordar a forma como cada um deles expressa, na escrita e nas artes visuais, a terra firma que cultivam, nas suas fases expressionista e vorticista, respectivamente.

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Numa perspectiva globalista, ainda que de enfoque na diversidade, será interessante constatar que a itenerância é um factor comum aos dois autores, que nos levarão a avistar passagens da urbanidade de vanguarda berlinense e londrina. Else Lasker-Schüler (1869-1945) nasce em Wuppertal Elberfeld, na região do Ruhr e morre na Palestina. De origem judaica, é reconhecida como escritora e artista plástica da vanguarda alemã das primeiras décadas do século XX. Lasker-Schüler vive em Berlim de 1894 a 1933, ano em que inicia o seu exílio em Zurique. Em 1932 tinha recebido o prémio Kleist. A partir de 1939, vive em Jerusalém, onde morre aos 61 anos. Do outro lado daquela que viria a ser a primeira guerra com epíteto de Mundial, os climas geomentais habitados por Percy Wyndham Lewis (1882-1957) são igualmente heterogéneos: de ascendência irlandesa, por parte da mãe, e norte americana, por parte do pai – nasce num iate, ao largo de Nova Escócia, no Canadá vive nos Estados Unidos, em Londres, a sua cidade mãe, mas também em Paris, Munique, várias cidades em Espanha, Holanda, Normandia, Bretanha e Nova Iorque. Enquanto Wyndham Lewis combate pelo Canadá na Primeira Grande Guerra, em Berlim, entre a polémica e a consagração, Else Lasker-Schüler dá conta da sensação de viver num mundo cada vez mais caótico, ameaçador e instável, do ponto de vista pessoal e nacional. Em “Heimweh”, escreve: “Ich kann die Sprache / Dieses kühlen Landes nicht, / Und seinen Schritt nicht gehen. […]” [“Não sei falar a língua / deste país frio, / Nem seguir-lhe os passos. (…)”]4. Mas é justamente na instabilidade e na fragilidade da vida berlinense que Lasker-Schüler encontra uma intensa afinidade pessoal e espiritual que converte numa poderosa metáfora para a arte. A capacidade de conversão da adversidade em energia criativa é igualmente recorrente nos ideais lewisianos e surge, desde logo, na primeira parte do manifesto da Blast 1 (1914), órgão veiculador do movimento, sedeado em Londres: 1. Beyond Action and Reaction we would establish ourselves. 2. We start from opposite statements of a chosen world. Set up violent structure of adolescent clearness between two extremes. 3. We discharge ourselves on both sides. 4. We fight first on one side, then on the other, but always for the SAME cause, which is neither side or both sides and ours (Blast 1: 30).

Else Lasker-Schüler era a única mulher entre os mais conhecidos dos novos poetas, como Gottfried Benn, Georg Heym, Jakob von Hoddis, Alfred Lichtenstein, Georg Trakl, Ernst Stadler, Ernst Lotz, August Stramm e Franz Werfel. Lasker-Schüler entrou na avant-garde berlinense mal o Expressionismo começou a desenvolver-se e o peso da sua liderança neste meio torna-se imenso. Juntamente com Herwarth Walden chega a fundar o clube de arte Verein für Kunst (1904-1909), onde tinham lugar performances literário-artísticas. A sua reputação como poeta, a sua energia e contactos, bem como apetências empresariais, serviram também para fundar Der Sturm, onde publicou extensas páginas. 4. Tradução minha.

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Por seu lado, em Londres, em Julho de 1913 – juntamente com Edward Wadsworth, Fredrick Etchells e Cuthbert Hamilton – Wyndham Lewis rompe com o círculo de Roger Fry, por razões apontadas numa carta trazida a público, segundo a qual a invectiva Omega Workshops redundava em “Prettiness, with its midVictorian languish of the neck (…) despite the Post-What-Not fashionableness of its draperies” (apud Materer, 1985: 4). Estes quatro artistas viriam a formar o núcleo central do Rebel Art Centre, fundado por Lewis, em Março de 1914, com o apoio financeiro de Kate Lachmere. Nesta altura estava prestes a ir para o prelo o primeiro de dois números da revista Blast. Entretanto, já tendo como membros os pintores William Roberts, Jessica Dismorr e Helen Saunders, bem como o escultor francês sedeado em Londres Henri Gaudier-Brzeska, o Rebel Art Centre anunciava aquilo a que se propunha: “(…) by public discussion, lectures and gatherings of people, familiarize those who are interested with the ideas of the great modern revolution.” Ezra Pound assume a responsabilidade da rebelião literária e faz jus à classificação que Lewis dele faz de “poet and impresario” ao dar o nome ao movimento vorticista. Os dois números da Blast demarcam o território da vanguarda literária e artística londrina mais radical: o Vorticismo gerado por Lewis e Pound. Os veementes manifestos e editoriais, que evidenciam ser da autoria de Lewis, declaram a sua drástica reacção ao Romantismo e ao Vitorianismo, a qualquer tipo de sentimentalismo e de sensacionalismo e propõem uma arte “nórdica”, satírica, que acompanhe, a ritmo muito próprio, o passo da dinâmica moderna e da máquina e que em muito se distingue da atitude do Futurismo de Marinetti, como se pode ler na última parte do Editorial da Blast 1: AUTOMOBILISM (Marinetteism) bores us. We don’t want to go about making a hullo-bulloo about motor cars, anymore than about knives and forks, elephants or gas-pipes. Elephants are VERY BIG. Motor cars go quickly. Wilde gushed twenty years ago about the beauty of machinery. Gissing, in his romantic delight with modern lodging houses was futurist in this sense. The futurist is a sensational and sentimental mixture of the aesthete of 1890 and the realist of 1870. The “Poor” are detestable animals! They are only picturesque and amusing for the sentimentalist or the romantic! The “Rich” are bores without a single exception, en tant que riches! We want those simple and great people found everywhere. Blast presents an art of Individuals.

Sendo a Grã-Bretanha o primeiro país industrializado, deve de todo em todo evitar a excitabilidade italiana face à modernidade. O próprio “Vórtice” continha em si a ideia da mente criativa como fonte de energia dos tempos modernos, como desencadeadora de uma infinidade de modos de vida configurados pelos “New Egos”de que Lewis também falava. Essa energia teria também um poder magnético sobre Londres como capital cultural, atraindo artistas e intelectuais de todo o mundo, tal como sucedia com o círculo Der Sturm, em Berlim.

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Imagem do vórtice, tal como aparece na Blast.

Pela sua história, pelas suas estruturas nacionais e sociais, Berlim não funcionava como Londres ou Nova Iorque como Paris. Tal facto é testemunhado pelas numerosíssimas revistas literário-artísticas que pululavam nas cidades, assim como pelas exposições que fertilizavam o seu terreno artístico. Se Paris e Nova Iorque eram pontos “obrigatórios” de interesse no meio artístico, em Berlim também existia uma grande força centrípeta para os artistas e intelectuais de todo o mundo. Paradigma da mobilidade europeia, Berlim era imensa. Tal como Nova Iorque era uma cidade que recebia muitos imigrantes. Ao contrário da “vertical” Nova Iorque, cidade dos arranha-céus, Berlim, como Paris e Londres, eram representadas como cidades femininas. A topografia feminina de Berlim incluía, como todas as metrópoles, a boémia, uma boémia bem característica: dos cabarets e dos cafés que se convertiam em salões literários, performativos e de grande intercâmbio de pessoas, artes e ideias. Durante a Primeira Grande Guerra, o ânimo da cidade estava forçosamente mais ao cuidado das mulheres.. Os cafés eram ponto de encontro de cultura e subcultura, onde privavam mulheres que faziam boxe (Vicki Baum), bailarinas (Anita Berber, Valeska Gert), poetas (Else Lasker-Schüler), actrizes e realizadoras (Marlene Dietrich, Leni Riefenstahl) com todo o tipo de artistas, editores de revistas e jornais, donos de galerias, mecenas, políticos, etc.

Kirchner, Cena de Rua em Berlim, 1913.

Na Londres vitoriana, a vida de rua intensifica-se também, com a mecanização, com a grande quantidade de pessoas que aí afluíram para trabalharem, a que vulgo

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se chama “as massas”, bem como as elites que frequentavam os hotéis de luxo, os grandes armazéns comerciais, os teatros, as galerias, os restaurantes e também os cafés que emergiram pela cidade. Pierre Bourdieu, avalia deste modo a questão da explosão morfológica – que podemos aqui identificar com a reconfiguração das cidades – como factor indutor à emergência de um meio artístico e literário fortemente diferenciado: […] a boémia –, que será ao mesmo tempo laboratório social do modo de pensamento e do estilo de vida característicos do artista moderno e do mercado em que as audácias inovadoras em matéria de arte e arte de viver encontrarão o mínimo indispensável de gratificações simbólicas. Este processo […] conduz à instauração de um estado crítico da instituição favorável à ruptura [...] (Bourdieu, 1987: 278)

O tema da “cidade” é recorrente no Modernismo. O interesse dos expressionistas e dos vorticistas pela metrópole industrial é muito evidente. As cityscapes surgem nestes movimentos, quer para perspectivarem uma transformação utópica dos modos de vida, quer para veicularem a morte da civilização. A cidade mecanizada, que o cinema expressionista viria a retratar nos anos vinte, pelo olhar de Fritz Lang em Metropolis, emergia sob diversos pontos de vista – excitante e ameaçadora, libertadora e opressora, sendo que era incontornável o fascínio pela energia urbana, ainda que com uma atitude completamente diferente da dos futuristas italianos. Em The Caliph’s Design (1919) – uma parábola em que o Califa de Bagdad pede aos seus arquitectos uma nova cidade vorticista (cf. Humphreys, 2004: 39) – Lewis diz o seguinte: The Futurists had in their idée fixe a great pull over the sentimental and sluggish eclecticism, deadness and preciosity [sic] of the artists working in Paris. But they accept objective nature wholesale, or the objective world of mechanical industry. Their paen [sic] to machinery is really a worship of a Panhard racing-car, or a workshop where guns or Teddy bears are made, and not a deliberate and reasoned enthusiasm for the possibilities that lie in this new spectacle of machinery of the use it can be put in art. Machinery should be regarded as a new resource, as though it were a new mineral oil, to be used and put to different uses than those for which it was originally intended (Lewis, 1986: 57).

Quando voltou da Primeira Grande Guerra, Wyndham Lewis já tinha escrito The Caliph’s Design, cujo subtítulo é Architects! Where is your Vortex? Inicialmente publicado em The Egoist, em 1919, é um livro de ensaios que redefine a posição de Lewis como líder da vanguarda londrina, após ter regressado da frente de batalha em França. À semelhança de muitos dos manifestos do pós-guerra, The Caliph´s Design reclamava a substituição do velho ambiente urbano por um outro modelado à luz de um novo discurso visual e espiritual, descoberto pelos modernistas antes da Guerra. A vida das pessoas em geral seria, deste modo, enriquecida na acepção inefável do termo: […] simply for human life at all, or what sets out to be human life – to increase gusto and belief in that life – it is of the first importance that the senses should be directed into such channels,

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appealed to in such ways, that [a] state of mind of relish, fullness and exultation should prevail. It is life at which you must aim. Life, full life, is lived through the fancy, the senses, consciousness. These things must be stimulated and not depressed. The streets of a modern city are depressing. They are also aimless and so weak in their lines and masses, that the mind and senses, jog on their way like passengers in a train with blinds down in an overcrowded carriage. (Lewis, 1986: 30)

Não sendo colectivista, Lewis via na arte uma forma de reinventar a vida. A partir da noção poundeana de “Civilização Individual” que o Vorticismo iniciou, Lewis acreditava na impermeabilidade aos fluxos e refluxos da vida, porque achava possível o desenvolvimento de uma percepção artística que fizesse a triagem do que nos é dado ver num determinado momento da existência, tal como revela no seu romance Tarr, cuja acção decorre na Paris do limiar do século XX: “Fashion is the sort of useful substitute for conviction. At present is the substitute for religion” (Lewis, 1990: 91). The Caliph’s Design anuncia um elemento determinante que virá a fazer parte da escrita de Lewis, como factor articulador da imaginação e da banalidade do mundo: a sátira. Curiosamente, o quadro Bagdad (1927), da autoria de Lewis, ilustra a capa da edição de 1982 de The Caliph’s Design, circunstância que, aliada ao título do almanaque, nos remete para o Oriente, como o fez Else Lasker-Schüler, nomeadamente, através dos seus alter-egos Jussuf, príncipe de Tebas e Tino, princesa Tino de Bagdad. Estamos, em ambos os casos, perante um Modernismo internacionalizante. Acreditava-se na fusão das raças e culturas que tornaria possível a configuração de uma civilização onde os homens se aproximassem mais da noção de Übermensch nietzscheana. O elemento chave da vida moderna, a máquina, é o símbolo metafísico do Vorticismo. A estética da máquina reflecte, castiga e subverte a decadência da modernidade e mimetiza as respostas automáticas de uma humanidade que está a perder a capacidade de pensar. Tal ideia é claramente exposta em “Long Live The Vortex”: “WE NEED THE UNCONSCIOUSNESS OF HUMANITY – their stupidity, animalism and dreams” (Blast 1, 1914).

Wyndham Lewis, The Crowd, 1915.

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Lewis estava interessado em focar o comportamento instintivo das multidões – gerado pela tecnologia moderna – e as diatribes em torno da obliteração da individualidade pela massificação urbana,patenteado em muitos momentos da sua obra o primado segundo o qual a mente criativa individual se sobreleva às massas, desprojadas de consciência e vontade próprias. Nos anos 10, o brilho de Berlim era bem singular. Era o brilho de uma metrópole que acolhia jovens artistas e nova arte de todo o mundo. Lasker-Schüler não encontrava ninguém à sua volta que partilhasse dos contornos da sua existência, muito embora a sua escrita denote uma lucidez profunda face às toadas do seu tempo e dos espaços por onde andou. Vejamos como João Barrento avalia esta característica de transmigração exterior e interior em Lasker-Schüler: “[…] A errância foi aliás aquilo que marcou, desde os anos de boémia berlinense, antes da Primeira Guerra, até aos últimos anos de vida na Palestina, a vida desta poète maudite que falava com os anjos em língua. de criança” (Barrento, 2002: 15-16). Numa Berlim caracterizada por um ecletismo e boémia literária, por enquadramentos de inconformismo com as normas sexuais, por divisões bem demarcadas entre as instituições da cultura estabelecida e os escritores e artistas de vanguarda, a escrita de Lasker-Schüler contribuiu para estabelecer novos sentidos de latitude literária, que consubstanciam, ainda que de forma absolutamente singular, as vias programáticas que emergiam no meio artístico. As discussões artísticas e performances espontâneas estavam na ordem do dia no Café des Westens, no Grössenwahn ou no imponente Romanisches Café, este último muito frequentado por expatriados. Nestes locais, desenrolavam-se soirées concebidas em diferentes linguagens e diversas línguas., havia jornais e informação sobre as publicações mais recentes e circulavam poemas, contos, peças, ensaios. Lasker-Schüler descrevia os cafés como “um mercado da bolsa” onde os “negócios se fechavam” (cf. Miller, 1999: 34). Wyndham Lewis dá conta deste ambiente urbano das metrópoles do início do século XX, bem fértil a novas alquimias interrelacionais, na peça The Ideal Giant, que é, pela negativa, uma metáfora do que deve ser o papel do artista. Traduz um paradigma central da mundividência de “The Enemy”, ou seja, o próprio Lewis: os artistas, a partir do momento em que participam na vida social, podem tornar-se destrutivos. É uma peça escrita enquanto Lewis estava na guerra e que vem a público na Little Review em Maio de 1918 e que integra a obra dramática de Lewis5. A peça tem três cenas e a acção desenrola-se em 1914, num restaurante peculiarmente internacional e elitista: [...] in the Restaurant Gambetta in German London, in October, 1914, Belgian ‘refugees’ have found it out in numbers […]. The Restaurant is French […]. An Austrian […] keeps it. […] A Russian wood-painting of a Virgin and Child […] gives the German cultured touch (Lewis, 1978: 120). O melting-pot ambiental do restaurante ultrapassa a lógica circunstancial da guerra que então eclodia e torna-se num local que atrai pseudo-intelectuais, tipos humanos que Else Lasker-Schüler também detectava e aborda nos seus contos e 5. Editada por Alan Munton em 1979, numa antologia com o nome Wyndham Lewis: Collected Poems and Plays.

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cartas com uma perspicácia ironicamente distanciada que em muito se assemelha à de Lewis. Em Der Sturm, Lasker-Schüler publica uma série de cartas ilustradas que encenam uma espécie de paródia, cujos intervenientes são figuras importantes da cena artística europeia. Falamos de [“Briefe nach Norwegen”] (“Cartas para a Noruega”), publicadas entre Setembro de 1911 (nº 77) e Junho de 1912 (nºs 113/114), posteriormente publicadas em livro sob título Mein Herz, e o detonador subtítulo Ein Liebesroman mit Bildern und wirklich lebenden Personen [Um Romance de Amor com quadros e pessoas realmente vivas] 6. Este romance epistolar tem a particularidade de ter um forte pendor lírico, paradigmático de uma escrita feminina que, abertamente, estava a fazer frente a um dado meio artístico-social. São textos que documentam uma individualidade radical, bem como conceitos estéticos autónomos, que de muito servem para o entendimento de Lasker-Schüle, nas suas várias dimensões. As cartas combinam o tom efabulatório com o relato de situações do dia-a-dia artístico berlinense. Curiosamente, o romance Tarr (1918), que Lewis começou a escrever quando era uma estudante de arte em Paris, entre 1907 e 1914, foi de início publicado de forma seriada em The Egoist, a partir de 1 de Abril de 1916, desde as trincheiras da primeira Grande Guerra. Sendo um romance veiculador do pensamento estético vorticista, identifica-se com Mein Herz [O meu coração] – o romance de Else Lasker-Schüler que começou por ser um conjunto de cartas ao editor de Sturm, Herwarth Walden, sobre figuras públicas do milieu berlinense. Tarr ocupa-se fundamentalmente do meio artístico – desta vez parisiense – e da boémia burguesa, ainda que de uma forma ficcionada, pese embora o facto de o protagonista ser porta-voz da postura vorticista de Lewis. Manter a individualidade original é o mote de Tarr e, de acordo com esta reflexão de Lewis que acabamos de citar, a dimensão da interioridade deve manter-se o mais intacta possível. O sentido da consciência individual e histórica é central neste romance e, nessa medida, Tarr é uma resposta de Lewis à modernidade, através do desenrolar do destino do seu protagonista Frederick Tarr, um pintor avant-garde que frequenta o Café Berne no Boulevard du Paradis. Tarr centra-se em dois artistas, Tarr e Otto Kreisler, e a forma como se movimentam no meio boémio burguês da moderna cidade de Paris, onde acorrem estudantes de arte de toda a Europa. É um cenário fértil a casualidades diversas que estão na origem do impedimento da ideal desenvolução de um “Eu” criativo e único, tema que sempre obcecou Lewis e que é igualmente evidenciado no conto de Lasker-Schüler Im Neopathetischen Kabarett[No Cabaret Neopatético]. Este conto começa assim: “Tausend und Einer. Ich habe mich nicht verzählt”7, o que enceta um relato cómico-absurdista de um lugar pululante de figuras públicas do meio artístico expressionista. Decorria um recital de poesia, mas o filtro do olhar da narradora via apenas poses, adereços 6. A primeira de muitas publicações, em livro, destes textos, é da Verlag Heinrich F.S Bachmair (München u. Berlin) e surge em 1912, com 21 desenhos de página inteira. 7. “Mil e Um. Não me contei a mim” (tradução minha).

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e trejeitos indiferentes ao que de poético se poderia estar a passar. Neste conto, como é recorrente na escrita de Else Lasker-Schüler, o que aparece celebra o que não aparece. A narradora nem aparece, nem vê o que os restantes ocupantes do local vêem. O que é relevado neste conto é a fixação do olhar em Zobeide, a sua bailarina, e o alhear de todo o resto. A perspectiva altera-se a partir do interior da narradora e a forma das coisas distorce: ( ) wenn Zobeide, meine Tänzerin, ein Portemonnaie bei sich hätte, würde ich doch zu der Menschhitze kein Glas Limonade trinken. Ich höre, wie ein Vortragender mit triumphierendem Gesicht Stephan Georges Dichtungen als Ruhe punkt bezeichnet. ( ) Gern hätte ich die Rede von Kurt Hiller, dem Präsident des Neopathetischen Kabaretts, gehört. Zobeide, meine Tänzerin, will noch nicht nach Hause kommen. (Lasker-Schüler, 1998b: 192-3)8

Cada alteração da manifestação exterior permite tirar conclusões acerca de uma alteração essencial interior. A prioridade matricial dos olhos é estabelecer a ligação entre interior e exterior. Else Lasker-Schüler reúne um tipo de plateias distinto, porque lhes é solicitado um esforço cognitivo de confrontação do exterior com o interior que induz a outras condições epistémicas. No caso Lewis, é a sofisticação da sátira que o ajuda no processo de ‘selecção natural’ relativamente ao que vê e ao que quer veicular: […] Satire … is one of my trades. […] The subjective eye of a given epoch acts as a magnifying glass, in the way that the atmosphere has erroneously been supposed to do at sunset in the case of the departing sun, to increase the portentous proportions of a number of truly insignificant people. And so we get what is currently estimated as “important” or “great” (Lewis, 1964: 108/112-3).

O horizonte de expectativa lewisiano recupera a objectividade através da capacidade de distanciamento, de que a sátira é um ingrediente imprescindível e tem como aliado o olhar, já que os outros sentidos são demasiado emocionais: “[…] as for pure satire – there the eye is supreme” (Ibid.). No ensaio “Futurism, Magic and Life”, Lewis demonstra como esta abordagem exterior da realidade aponta para o facto de a abstracção vorticista operar a partir de uma realidade filtrada pelo olhar, ou seja, uma abstracção ao serviço de uma representação projectada a partir do interior: It is all a matter of the most delicate adjustment between voracity of Art and digestive quality of life. The finest Art is not pure Abstraction, nor is it un organised life. […] The Artist like Narcisus, gets his nose nearer and nearer the surface of Life. He will get it nipped off if he is not careful, by some Pecksniff-shark sunning it’s lean belly near the surface […]. 8. “Se a Zobeide, a minha bailarina, tivesse com ela um porta-moedas, eu não iria beber sequer um copo de limonada ao empolgamento das pessoas. Apercebo-me de como um diseur de semblante triunfante faz um ponto de ordem com a poesia de Stefan George. (…) Teria tido todo o gosto em ouvir o discurso Kurt Hiller ao Presidente do Cabaret Neopatético. Zobeide, a minha bailarina, ainda não quer vir para casa” (tradução minha). 9 Tradução minha.

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Reality is in the artist, the image only in life, and he should only approach so near as is necessary for a good view (Lewis, 1989: 134-5).

O distanciamento em Lasker-Schüler é muito conseguido através das metáforas, que funcionam como atitudes românticas, espirituais, psicológicas e físicas e sugerem desejo e inconformidade pela perda da identidade, como se pode sentir em “Leise Sagen”[“Em Voz Baixa”]: Leise Sagen

Em Voz Baixa

Du nahmst dir alle Sterne Über meinem Herzen.

Ficaste com todas as estrelas Por cima do meu coração.

Meine Gedanken Kräuseln sich Ich muβ tanzen.

Os pensamentos enrolam-se-me Tenho que dançar.

Immer tust du das, was mich aufschauen lässt, Mein Leben zu müden.

Fazes com que levante os olhos, Cansas-me a vida.

Ich kann den Abend nicht mehr Über die Hecken tragen.

Já não consigo trazer a noite Pelas paredes.

Im Spiegel der Bäche Finde ich mein Bild nicht mehr.

O espelho das correntes Já não me mostra a minha imagem.

Dem Erzengel hast du Die schwebenden Augen gestohlen.

Roubaste ao arcanjo Os olhos flutuantes.

Aber ich nasche vom Seim Ihrer Bläue.

Mas eu debico o mel Dos seus azuis.

Mein Herz geht langsam unter Ich weiβ nicht wo –

O meu coração desce devagar Não sei para onde –

Vielleicht in deiner Hand. Überall greift sie an mein Gewebe.

Talvez para a tua mão. Que toma conta de todo o meu tecido.9

Este cenário de abstracção triste, azul, silencia a vida interior e não deixa que ela se reconheça na projecção da sua imagem. O poema não evidencia qualquer ordem reguladora óbvia, a não ser a que se aufere das respostas da própria poeta que se manifestam como reflexos de um mundo desconcertante. O “Eu” poético já não encontra, como Narciso, o seu reflexo no espelho de água. Vê, expressionisticamente, a essência da sua imagem desvanecer e afundar-se: “Mein Herz geht langsam unter / ich weiβ nicht wo”[“O meu coração desce devagar / não sei para onde”].

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Em Enemy of the Stars (1914) de Wyndham Lewis, a palavra também funciona ao nível do símbolo: dinâmica, visível, teatralizada, a palavra ganha vida própria. O resultado singularíssimo desse desempenho linguístico-plástico é o embrião experimental da vanguarda inglesa na literatura. Na sua primeira autobiografia, Blasting and Bombardiering, Lewis esclarece o que constitui a escrita desta peça: This kind of writing, searching for a universal religious philosophy, stresses the vortex as an image of order made out of chaos, of the mind organising form and of a perpetual pulse within the macro- and micro-cosmos. The artistic/mystic is the central figure like a god generating beauty from within himself and out into the world (Lewis, 1982: 44).

A história desta peça é fácil de reconstruir. Arghol, o protagonista, tinha sido estudante em Berlim. Progressivamente, foi sentindo que as relações sociais e os estudos obscureciam o seu “Eu” verdadeiro e original. Daí resulta a sua excentricidade que o distancia de toda a gente que conhece. Num estado de particular empenhamento consigo próprio, Arghol deixa Berlim e vai para Norte, “somewhere […] on the upper Baltic” (Lewis, 1989: 55).

Enemy of the Stars, “Advertisement” (Blast 1).

A acção desenrola-se num circo bem peculiar: “some bleak circus, uncovered”. Lewis usa a palavra “circus” polissemicamente, transcendendo a própria noção de espaço. A aspiração profunda de invadir o real, fazendo ressaltar todos os diafragmas da arte e da sociedade, induz Lewis a escolher o género mais adequado: o teatro, em que o espectador é chamado a desempenhar, como observador dentro do quadro experimental, um papel de participação activa: “VERY WELL ACTED BY YOU AND ME” (Blast 1). Arghol é posteriormente referido como “a gladiator who has come to fight a ghost, Humanity – the great sport of Future Mankind” (Ibid.: 61). O alerta máximo para a contaminação do interior pelo exterior é dado nesta peça, o que é possível devido à projecção mecânica das palavras para a visibilidade interior do leitor. A posição de Lewis enquanto artista e indivíduo numa civilização leva-o a afirmar, em “The Art of the Race” (Blast 2), que a universalidade de um artista encontra no distanciamento terreno para se singularizar enquanto Ser: “The uni-

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versal artist, in fact, is in the exactest sense national. He gathers into one all the types of humanity at large that his country contains. We cannot have a universal poet when we cannot have a national one […] One man living in a cave can be a universal poet” (Lewis, 1981: 72). Esta é uma postura partilhada por Lasker-Schüler e está patente na sua expressão que serve de mote ao último Fórum Else Lasker-Schüler, que ocorreu em Outubro de 2008: Ich suche aller Landen eine Stadt [Procuro uma Cidade na Terra de Todos]:

Tal focagem é indissociável da dimensão meta-estética em que se locomovem os dois autores que aqui trouxemos, seja na Londres do Vorticismo ou na Berlim do Expressionismo, cuja terra firma é, em última instância, a reconfiguração do exterior num outro espaço a que hoje já se chama glocal e que pode operar na dimensão de uma interioridade transcultural.

PORTUGUÊS FUNCIONAL Monica Rector University of North Carolina, Chapel Hill, E.U.A.

Apresentação Métodos de ensino da língua. portuguesa existem vários, com diversas abordagens. Nos Estados Unidos, o português é constantemente preterido pelo espanhol, devido à realidade imediata do país. No entanto, uma área mostra-se muito produtiva: o ensino de português para alunos de “Business” e para aqueles que estão cursando seu MBA (mestrado em Business). O interesse é intenso, pois muitos deles pretendem trabalhar diretamente no Brasil, ou na América Latina, e precisam ser “funcionais” na língua.. Para atender tal objetivo, após vários anos de experimentação, criamos um método com o título Working Portuguese, que pode ser traduzido como “Português Funcional”. Em apenas dois semestres, integrando língua. e cultura, o aluno aprende a ser funcional, principalmente por meio do uso do computador. O aluno faz todas as tarefas usando o ambiente de aprendizagem virtual Blackboard, por meio de PowerPoints e exercícios. Há apenas duas aulas semanais: uma com um professor e outra de conversação com um instrutor. Para os alunos que residem em outras cidades ou estados, a interação faz-se auditivamente com o software Centra. Ao final dos dois semestres, os alunos vão ao Brasil para uma imersão de duas semanas, período em que só falam a língua. portuguesa e residem em casa de família. A nota final confere-se após a apresentação oral e escrita de um projeto e de outra atividade, que consiste numa gincana. Nosso objetivo é introduzir este método ao leitor. Introdução Ensinar português nos Estados Unidos é um desafio. Primeiramente, enfrenta-se o autocentrismo norte-americano de que o inglês basta-se por si mesmo – saber o idioma vernáculo torna qualquer outra língua. secundária; depois, há o predomínio do espanhol, que já desfruta do status de segunda língua. nos EUA.

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Pergunta-se, então, por que os alunos estudam português. Há muitas respostas: para ganhar crédito, porque gostam de futebol, carnaval, surfe ou mulheres. brasileiras; ou ainda porque têm um/a namorado/a brasileiro/a. No entanto, a motivação, no geral, parece escassa, a não ser que os alunos sejam de MBA e pretendam trabalhar no Brasil. Estes aprendizes apresentam uma atitude de cobrança dobrada em relação ao curso e ao professor. Mesmo com todas as dificuldades, na Universidade da Carolina do Norte temos aproximadamente 400 alunos inscritos nas aulas de língua. e/ou de literatura lusobrasileira por semestre, já que todo aluno de graduação é obrigado a cursar uma língua. estrangeira por três semestres. Os cursos de literatura, que preenchem os créditos culturais, são ensinados com textos portugueses e brasileiros traduzidos para o inglês. Neste trabalho, vamos propor certas estratégias de ensino da língua. portuguesa e da cultura brasileira que utilizamos em nosso livro Working Portuguese, em coautoria com Marcelo Amorim e Regina Santos, com o apoio técnico Lynne Gerber (no prelo, Georgetown University Press, 2009).

Metodologia Qual o melhor método para ensinar o português a estrangeiros? Fizemos várias tentativas com diversos livros. Primeiro usamos o Travessia; depois adotamos o livro Brasil, língua e cultura, e atualmente o Ponto de Encontro. Nos cursos mais avançados, o Para a frente permite desenvolver melhor os conhecimentos linguísticos. Como cada um desses livros apresenta vantagens e desvantagens, resolvemos desenvolver um método – Working Portuguese – que pretende preencher certas lacunas. Obviamente, como os livros anteriores, também será alvo de críticas, porque o livro ideal está na ótica do professor. Além do livro, do manual para o aluno e do manual para o professor, o método vem acompanhado por CDs e PowerPoints para facilitar a aprendizagem. Como complementação, há textos de cultura com perguntas em cada uma das 24 lições, agrupadas em 6 unidades. Este método também pode ser ensinado à distância.

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Doze princípios de aprendizagem1 Jane Vella (1994: 3-4), tomando como base a teoria de Paulo Freire e de Malcolm Knowles, estabelece doze princípios para a aprendizagem efetiva de adultos, que tentamos incorporar ao nosso método. Julgamos que estes princípios são básicos para um ensino moderno, engajado, construtivo. Vejamos: 1. avaliação de necessidades (Needs assessment), 2. segurança, 3. relações sadias, 4. sequência e reforço, 5. práxis (ação com reflexão), 6. respeito pelo aluno, 7. idéias, sentimentos e ações, 8.imediatez: ensinar o que é realmente útil, 9. funções claras (o aluno é sujeito do seu saber), 10. trabalho de equipe (função participativa ativa na aprendizagem, Vella 1994: 20), 11. engajamento (aprendizagem como um processo ativo), e 12. responsabilidade (accountability). O ensino tradicional e moderno Depois de muitos anos no magistério, tentando fazer o melhor, nos afastamos do ensino tradicional. Para o tipo tradicional de aula, a exigência é preparar a aula, ir à sala, dar uma “palestra”, fazer algumas perguntas, e sair da sala de aula julgando que o recado foi dado. Paulo Freire já dizia: “ensinamos como aprendemos a fazê-lo (tradução nossa) 1.Jane Vella (1994: 3-4), tomando como base a teoria de Malcolm Knowles, estabelece doze princípios para a aprendizagem efetiva de adultos, que tentamos incorporar ao nosso método: 1. Avaliação de necessidades (Needs assessment): éo primeiro passo para o diálogo; antes de dar início ao curso, perguntamos aos alunos por que precisam aprender o português e para quê. Com base nas respostas, o curso pode ser adaptado ou reformulado em vários aspectos; 2. Segurança: criar um ambiente sadio para o processo de aprendizagem, o que significa prover um ambiente no qual os alunos não se sintam ameaçados quer pela atitude do professor ou a de colegas que têm maior conhecimento, ou o uso da Internet. Devem sentir que só têm que se preocupar com a auto-aprendizagem sem serem comparados com os outros; 3. Relações sadias: é o poder da amizade e do respeito, que envolve segurança, comunicação aberta, escutar um ao outro e humildade tanto da parte do professor como do aluno; 4. Seqüência e reforço: saber onde e como começar; o professor deve acrescentar mais um aspecto ao que foi ensinado anteriormente e repetir o mesmo para obter a aprendizagem efetiva; 5. Praxis: significa ação com reflexão, usando-se uma alternância entre indução e dedução; 6. Respeito: pelo aluno, fazendo-o sujeito de sua própria aprendizagem e não o tratando como objeto. No ensino tradicional, o professor despeja a matéria no aluno sem se importar se o aluno aprendeu ou não; 7. Idéias, sentimentos e ações: três aspectos da aprendizagem que motivam o processo: as idéias são o aspecto cognitivo; os sentimentos, o aspecto afetivo; e as ações são o aspecto psicomotor; 8. Imediatez: ensinar o que é realmente útil. Os alunos precisam perceber imediatamente para o que serve o novo ensinamento, que capacidade, conhecimento ou atitude nova estão adquirindo; 9. Funções claras: qual a função do professor e do aluno, como proceder com o diálogo, como dar ao aluno uma função ativa em seu desenvolvimento sem que os limites sejam ultrapassados, mas também reconhecer quando o aluno não precisa mais do professor, ou seja, a morte do mestre. Este aspecto pode ser culturalmente delicado. Enquanto o aluno brasileiro automaticamente é extrovertido e toma a iniciativa da palavra, o norte-americano é silencioso e só fala ao ser solicitado; 10. Trabalho de equipe: aprender conjuntamente, formar grupos pequenos para intercambiar experiência e conhecimento e ter uma função participativa ativa na aprendizagem. Vella (1994: 20) mostra que os grupos produzem uma energia competitiva. Mas lembra também o significado do termo com+petição, o que equivale a com+perguntar, ou seja, perguntar conjuntamente, o que torna a competição construtiva; 11. Engajamento: aprendizagem como um processo ativo, levando em conta os princípios acima; o aluno se engaja no compromisso que ele próprio assumiu; e 12. Responsabilidade (Accountability): existe um compromisso do professor em fazer o aluno aprender (Vella propõe 3 horas de preparo para 1 aula a ser dada), mas cabe ao aluno se auto-avaliar: ele sabe quando e quanto sabe.

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(Vella, 2006: xxi)”. Mas estamos no século XXI e, com a moderna tecnologia, os alunos estão acostumados à alta velocidade no click ou zap, então este tipo de ensino não cumpre mais sua função. Para que o aluno se interesse pela aula, ele precisa ser o sujeito de sua aprendizagem e não apenas o objeto. Isto vem a ser dialogue education, cujo método tem quatro partes. Jane Vella usa a letra I para simbolizar estes aspectos: trabalho indutivo (o contexto), input (pesquisa e conteúdo), implementação (fazendo algo significativo com o conteúdo), e integração (onde as partes se juntam, renovando o contexto) (Vella, 2006).

Ensino da Cultura Em todos os livros de língua., ensinam-se aspectos da cultura brasileira e portuguesa e/ou lusófona, o que é imprescindível para contextualizar a língua.. Vamos nos deter neste aspecto do ensino do português funcional. Inicialmente examinaremos como a Cultura é apresentada em dois livros didáticos. Em Brasil! Língua e cultura, os dois autores Tom Lathrop e Eduardo M. Dias introduzem uma parte denominada “Vozes brasileiras”. Há 75 vozes brasileiras lidando com diferentes aspectos da cultura brasileira. São tiradas de entrevistas, e seu aspecto é informal. Introduzem o lugar comum da cultura brasileira e outros aspectos mais inusitados, como “Dia do calote”. Estas vozes vêm acompanhadas de desenhos, que falam por si sós. Os autores também introduzem “Notas culturais”, a maioria escrita em inglês para facilitar o entendimento do aluno, como: universidade brasileira, vestibular, cursinho, cursos, vida universitária, calouros, trote, festas, fazendo compras, a feira, pesos e medidas, a padaria etc. Cada lição vem acompanhada de uma “Leitura” principal e várias “Leiturinhas”. Vejamos a lição 6: Paquerando 1. Em “Vozes brasileiras”, o conceito e a definição de paquerar são introduzidos quando dois jovens vão a um bar para dançar. Tudo se resume-se a chegar, conversar e ficar olhando. Algumas páginas adiante, há um texto sobre o namoro de Álvaro. Este texto é seguido de outro, várias páginas a seguir. “Convidando” vai mostrar o ponto de vista diverso por parte da mulher. Finalmente, há um quarto texto de “Vozes brasileiras” sobre os cumprimentos e a forma de beijar ao cumprimentar. 2. Estes textos são complementados por “Conversinha”, que nesta lição é um diálogo entre dois jovens ao se conhecerem num barzinho. 3. “Notas culturais” trata de atrasos, fazer e recusar convites e os modos de um estrangeiro agir no Brasil. O texto é em inglês com breves diálogos para ilustrar e explicar o que dizer quando o convite não pode ser aceito ou o compromisso é quebrado. 4. Finalmente, “Leitura”é um texto narrativo intitulado: “Ela quer mesmo sair comigo?” Nesta lição não há leiturinhas.

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Portanto, há 7 textos sobre o ato de paquerar. Cremos que o assunto está coberto, mas os textos estão muito espalhados. É certo que o professor pode escolher com quais trabalhar, mas, se for ensinar mais do que um, o aluno vai ter que folhear as páginas, e a idéia de conjunto se perderá. Portanto, a fragmentação traz a falta de unidade, e o assunto se dilui ao longo da lição. Faltam também sugestões de como o aluno pode praticar o que leu e foi explicado pelo professor. O livro didático mais recente, Ponto de encontro, um dos melhores existentes, de Anna M. Klobucka, com mais quatro co-autores, detém-se em comunicação e cultura, levando em consideração os Cinco Cs: 1. comunicação, 2. cultura, 3. conexões, 4. comparações e 5. comunidades. Cada lição subidivide-se em partes. Para o nosso objetivo, vamos abordar o texto “Vamos viajar”, que integra compreensão cultural por meio de textos curtos, relevantes ao tema da lição. O texto está contido em “À primeira vista”, seguido de atividades.

Vejamos a lição 7: O tempo e os passatempos “À primeira vista” trata dos esportes (Brasil) ou dos desportos, como se diria em Portugal. Abrindo um parêntese: minha crítica ao livro é que ambas as variações linguísticas – a portuguesa e a brasileira – são concomitantes, o que dificulta a aprendizagem para quem não conhece a língua. portuguesa, ex. tênis (B) x ténis (P); a quadra (B) x o campo (P). Em “Vamos viajar”, o texto trata dos clubes (d) esportivos tanto no Brasil como em Portugal, seguido de um exercício para o aluno fazer uma pesquisa na internet sobre um clube de futebol. Mais adiante, há outro texto sobre “A história do futebol” (talvez este texto devesse anteceder o anterior). Em “Vamos praticar”, alguns atletas famosos são apresentados: Maria de Lurdes Mutola, Luis Figo e Gustavo Kuerten. Quantos destes atletas continuarão a ser conhecidos? Penso que este tipo de informação torna-se rapidamente ultrapassado. Por exemplo: Kuerten, o Guga, tenista tri-campeão em Roland Garros, se aposentou em 2007, após duas intervenções cirúrgicas. Em um futuro relativamente próximo, quase ninguém se lembrará de quem ele foi. Por fim, há um texto em “Para ler” sobre “Os esportes no Brasil”, que inclui, além do futebol, o vôlei, a asa delta, dentre outros. Vemos de novo um aspecto semelhante ao do livro anterior: muitos textos e fragmentação, além de textos que estarão rapidamente obsoletos. Obviamente, cabe ao professor “desenhar” o curso, aproveitando o que julgar necessário e utilizando os conteúdos de forma mais eficiente.

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Em Working Portuguese2 – que tampouco fugirá das críticas – o ensino de Cultura aparece, como nos outros livros analisados, como um complemento de cada lição, baseado no tema. Esta ferramenta sugerida visa a motivação do ensino e uma aprendizagem mais eficaz. Apresentamos apenas um texto de Cultura em cada lição. Optamos pela cultura brasileira, pois é a variante linguística que mais interessa ao estudante norte-americano e aos nossos alunos universitários, em geral, e aos do MBA do Kenan-Flagler School of Business da University of North Carolina em Chapel Hill e da FUQUA School of Business, Duke University, Durham (curso ensinado em conjunto).

As lições de Cultura do nosso livro abrangem os temas: 1. Onde fica o Brasil?; 2. Regiões; 3. História; 4. A língua. Portuguesa; 5. O que é ser brasileiro?; 6. Laços familiares; 7. Religião; 8. A dura realidade brasileira; 9. Comida; 10. O tempo; 11. Seja brasileiro; 12. Salários; 13. Etiqueta; 14. Saúde; 15. Vida diária; 16. O carro e como guiá-lo; 17. Trabalho (texto de Marcelo Aguiar); 18. O “jeito” brasileiro (texto de Carlos Trigueiro); 19. Literatura (prosa): “A última crônica”de Fernando Sabino; 20. Literatura (poesia): “No meio do caminho” de Carlos Drummond de Andrade; 21. Música brasileira: samba e bossa nova; 22. Choque cultural; 23. Cenários: (1) Negociação, (2) Sensibilidade cultural: questões relacionadas às diferenças de sexo; e 24. Estudo de caso (Case study), contendo (1) Apresentação do caso, e (2) Perguntas para análise e discurso. Vejamos um exemplo, o texto “Seja brasileiro”: O que fazer: 1. Estenda e aperte a mão ao ser apresentado a uma pessoa. 2. Use a forma de tratamento certa: senhor, senhora ou senhorita. 3. Pergunte como vai a família, pois a família é importante para o brasileiro. 4. Vista roupa apropriada para cada ocasião; se tiver dúvidas, pergunte. 5. Aceite um cafezinho ou um copo de água quando lhe for oferecido, ou ofereça o mesmo quando visitarem sua casa. 2. Este método é elaborado para alunos de MBA e administradores de empresa, que necessitam “funcionar” em ambientes nos quais se fala o português, e não têm tempo para ter aulas freqüentes e regulares. O programa usa uma combinação inovadora de tecnologia interativa, aprendizagem à distânica, workshops com professor, hora de conversação e imersão no Brasil para completar a aprendizagem e mostrar aos alunos que podem confortável e efetivamente trabalhar com o português. Portanto, os componentes-chave para o curso, que tem a duração de dois semestres, são: 1. Ensino à distância, usando a Internet, em conjunto com um CD e um livro. Isto requer que o aluno dedique umas 4 horas semanais à aprendizagem em lugar de sua escolha, desde que tenha computador; 2. Para os que residem na cidade onde o curso está sendo oferecido, há uma aula de duas horas e meia a cada duas semanas. Para os que não podem comparecer, é-lhes fornecido um disquete com PowerPoint, que contém o esquema da aula e/ou a mesma poderá ser tomada via Internet com uma ferramenta que a instituição oferece ao aluno matriculado, chamada Centra, que permite uma aula interativa professor/aluno em horário previamente combinado; 3. Aula de conversação semanal com um instrutor nativo do português; 4. Dez dias de imersão no Brasil ao final do curso. O CD permite ao aluno ouvir e repetir exercícios fonético-fonológicos. Em seguida, fazem uma tarefa de gravação, remetendo o áudio via email para o professor. O livro apresenta a gramática, os diálogos e textos dentro do contexto professional no qual vão desempenhar suas atividades e dentro da cultura brasileira. O livro inclui exercícios, mas a maioria é feita online.

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6. Tenha paciência com o horário: a pontualidade brasileira não é exata, mas flexível. 7. Acostume-se a esperar em filas para ser servido. 8. Dê uma gorjeta de, pelo menos, 10% em restaurantes. 9. Dê uma gorjeta ao taxista ou arredonde a conta. 10. Leve flores ou uma caixa de chocolate ou bombons para a dona da casa, quando for convidado. O que não fazer: 1. Não use gestos quando não souber o que significam. O gesto para OK, em inglês, é obsceno no Brasil. 2. Não se assuste quando as pessoas chegarem muito perto ou o abraçarem para cumprimentar. No Brasil, o espaço entre duas pessoas é menor, e gestos de afeto ou apreciação são comuns. 3. Não se afaste quando beijarem sua face ao cumprimentar. 4. Não beba cerveja direto no gargalo da garrafa. 5. Não coma pizza com a mão. 6. Não use “shorts” em todo lugar só porque é verão; apenas na praia. 7. Não use sandálias com meias ou o chamarão de “gringo”, nome comum para estrangeiro. 8. Não ponha “catchup” na sua batata frita. 9. Não deixe a mulher pagar a conta quando jantarem fora pela primeira vez. 10. Não deixe de perguntar, quando tiver uma dúvida. Perguntas: O que você deve fazer para se integrar no Brasil? O que não deve fazer? Como o comportamento é diferente de onde você vive?

Este não é um texto corrido, mas permite explorar as diferenças culturais entre o Brasil e os Estados Unidos. Cada linha permite explorar um tema e gera vários assuntos para conversação. As perguntas podem ser respondidas oralmente, por escrito ou servir para fazer uma redação. Somos da opinião de que “menos é mais” e talvez, com um texto apenas, logramos o que outros fazem com uma série deles. O professor também poderá alternar a ordem destes textos culturais conforme o interesse dele, dos alunos e da temática da aula. Acreditamos que qualquer texto de cultura possa ser eficaz se a aula for bem preparada pelo professor com um planejamento que inclua resposta para as seguintes perguntas: Quem? Por quê? Quando? Onde? O quê? Para quê? E só no fim: Como? (Vella, 2006: 218). Em última instância, o professor tem em suas mãos o ensino; a aprendizagem cabe ao aluno, que é o sujeito do seu saber.

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Diálogos Interculturais: Os Novos Rumos da Viagem

Avaliação Como avaliar uma aprendizagem efetiva? Uma das formas de nosso método é a possibilidade de fazer a avaliação in loco para os alunos de Business. Uma das cidades visitadas durante a imersão no Brasil é Curitiba. Trata-se de cidade menor do que o Rio de Janeiro ou São Paulo, mais fácil de se locomover e onde os alunos residem durante uns quatro dias em casas de famílias. Ao chegarem, recebem a listagem abaixo, juntamente com uma máquina fotográfica descartável e uma quantia em dinheiro (aproximadamente R$100,00) para poderem executar suas incumbências. Vejamos “Idéias para a Gincana”: Você tem até o dia ....... às ...... h para completar a gincana. Os resultados deverão ser entregues para ........ em ....... (local). As descrições pedidas são por escrito e em português. Tire 20 fotos para ilustrar as perguntas. 1. Por que a cor verde predomina em Curitiba? O que significa Curitiba? O que significa Paraná? 2. Durante a semana, selecione três notícias de diferentes jornais sobre negócios do Paraná e faça um resumo de três a cinco linhas de cada. 3. Vá a um cabelereiro (salão de beleza) ou barbeiro. Faça algo que você não faria nos Estados Unidos e traga o recibo. 4. O que é o tubo? Use-o e traga um recibo. 5. O que é o orelhão? Como é usado? Faça uma descrição em até cinco linhas. 6. Compre uma lembrança típica da região de até R$10,00. 7. Vá a uma doceira. Compre e coma um doce brasileiro. Traga o recibo. Traga a receita. 8. Vá até a Praça Tiradentes. Quem foi Tiradentes? O que tem nesta praça? 9. O que é Guaíra? O que tem este nome em Curitiba? 10. O que você faz na rua 24 Horas. Vá até lá, faça algo e traga um comprovante. 11. Vá até o Teatro Paiol. O que é um Paiol? O que Vinicius de Moraes fez para sua inauguração? Quem foi Vinicius? Compre um CD dele. 12. Vá até o bosque do Papa. Por que o Papa foi a Curitiba? Quais são os povos que imigraram para esta região? 13. Onde foi feita a Ópera de Arame? Como é? Descreva em até cinco linhas. Quem foi Paulo Leminski? Traga algo dele. 14. Que aulas são dadas na Universidade Livre do Meio Ambiente? Traga uma lista delas. 15. O que é um farol? O que é o Farol do Saber? Quem foi Machado de Assis? Traga um texto dele. 16. Por que existe o Memorial Chico Mendes? Quem foi ele? 17. Suba na Torre Mercês. Traga um pedaço da vista de lá de cima. 18. O que é a Fonte da Memória? Onde fica? O que acontece lá aos domingos? 19. Faça uma lista das três coisas que mais gostou nesta viagem e diga porquê.

20. Faça uma lista de cinco coisas que o incomodaram nesta viagem, incluindo diferenças culturais.

A Lady’s Visit to Manilla and Japan: Género, Viagem e Representações Interculturais

Esta é uma forma de os alunos conhecerem a cidade, de terem de se comunicar, de aprenderem fatos sobre a cidade, de se ambientarem com costumes brasileiros etc. Os leitores poderão dizer que isto só é possível no exterior, mas este tipo de avaliação pode ser adaptado a qualquer lugar, inclusive fazendo-os ir às salas de instrutores de português ou armando uma mesa no corredor do edifício onde está sendo feita a avaliação. Esta avaliação será efetiva, a aprendizagem lúdica e o aluno sentirá que sabe comunicar-se usando a língua. portuguesa. Estes são apenas alguns aspectos do método que julgamos inovadores, e que ajudarão o professor num ensino mais efetivo e os alunos a aprenderem de forma mais eficaz e participativa. Esperamos, deste modo, contribuir para a melhoria do ensino da língua. portuguesa.

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