Estética e moralidade em Kant: A relação entre o sublime e o sentimento moral na Crítica da faculdade do juízo

May 24, 2017 | Autor: Alexandre Araújo | Categoria: Kant, The Sublime, Morality
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Alexandre Medeiros de Araújo

Estética e moralidade em Kant: A relação entre o sublime e o sentimento moral na Crítica da faculdade do juízo

Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia.

Orientadora: Profa. Vera Cristina de Andrade Bueno

Rio de Janeiro Abril de 2012

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Alexandre Medeiros de Araújo

Estética e moralidade em Kant: A relação entre o sublime e o sentimento moral na Crítica da faculdade do juízo

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Profa. Vera Cristina de Andrade Bueno Orientadora Departamento de Filosofia – PUC-Rio Prof. Edgard José Jorge Filho Departamento de Filosofia – PUC-Rio Profa. Virgínia de Araujo Figueiredo Departamento de Filosofia – UFMG

Profa. Denise Berruezo Portinari Coordenadora Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio Rio de Janeiro, 09 de abril de 2012

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador. Alexandre Medeiros de Araújo Graduou-se em Filosofia com domínio adicional em Cultura Greco-latina pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2009). Foi pesquisador de iniciação científica do CNPq, monitor do curso de Introdução à Filosofia a distância da PUC-Rio e membro do CIM - Conselho de Identidade e Missão da PUC-Rio. É professor de Filosofia no ensino básico da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro e membro da comissão editorial do Alter - Boletim dos alunos da pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio.

Ficha Catalográfica Araújo, Alexandre Medeiros de Estética e moralidade em Kant: a relação entre o sublime e o sentimento moral na Crítica da faculdade do juízo / Alexandre Medeiros de Araújo ; orientadora: Vera Cristina de Andrade Bueno. – 2012. 121 f. ; 30 cm Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia, 2012. Inclui bibliografia 1. Filosofia – Teses. 2. Kant. 3. Estética. 4. Sublime. 5. Suprassensível. 7. Liberdade. 8. Respeito. 9. Moralidade. I. Bueno, Vera Cristina de Andrade. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.

CDD: 100

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Para Vera Cristina Bueno, com gratidão, respeito e admiração.

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Agradecimentos

Em primeiríssimo lugar a Ele e isso já fala por si mesmo. À minha orientadora, Vera Cristina Gonçalves de Andrade Bueno, por sua paciência, generosidade e delicadeza. Nunca poderei retribuir à Vera o que ela fez por mim, não somente enquanto estudante de filosofia, mas, sobretudo, enquanto pessoa. Por sua amizade, confiança e estímulo, Vera me ajudou e me fez acreditar na capacidade de superar passo a passo as dificuldades e a nunca desistir. Ao Edgard José Jorge Filho, por sua simpatia, paciência e atenção generosa, bem como o sábio cuidado na leitura de Kant, que sempre me inspirou. À Virgínia Araújo Figueiredo, pela acolhida, atenção, e sugestões ao meu trabalho. Ao Luiz Camillo Osório, pela simpatia e imediata disponibilidade com que sempre me acolheu. Ao Leonel Ribeiro dos Santos, pelas sugestões, esclarecimentos, diálogo e estímulo. Ao Edgar Lyra Neto, pelo apoio e diálogo. Aos meus familiares e amigos. Aos meus colegas que partilharam comigo suas ideias em estimulantes conversas e com os quais muito aprendi: Angélica Pizarro, Alexandra de Almeida, Douglas Pereira, Maria Priscilla Coelho, Thomás Bittencourt, Ana Luíza Franco e Thiago Cardoso. Ao Departamento de Filosofia da PUC-Rio, especialmente à Edna Sampaio, à Diná dos Santos e ao Leonardo dos Santos, sempre solícitos aos meus pedidos. Aos funcionários da Biblioteca do CTCH e do CTC, de modo especial à Sandra e à Bernadete. Ao CNPq e à PUC-Rio, por possibilitarem, através do apoio financeiro, acadêmico, e institucional, a realização desse trabalho.

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Resumo

Araújo, Alexandre Medeiros; Bueno, Vera Cristina de Andrade (orientadora). Estética e moralidade em Kant: a relação entre o sublime e o sentimento moral na Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro, 2012. 121p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O objetivo da dissertação é relacionar estética e moralidade a partir do ajuizamento estético do sublime, em Kant. Levando-se em conta que na “Analítica do Sublime” da Crítica da faculdade do juízo, Kant inúmeras vezes se refere ao sentimento ou ajuizamento do sublime como tendo uma relação com a moralidade a partir do sentimento moral ou o sentimento de respeito, sem, contudo, explicitar de que modo se daria essa relação, a hipótese que norteia a presente dissertação consiste na afirmação de uma ligação significativa entre sentimento estético e moralidade, argumentando que o ajuizamento do sublime atende a uma necessidade no inteiro sistema da filosofia kantiana, a saber, o estabelecimento da primazia do prático, sem que, contudo, seja ao preço da perda da autonomia do ajuizamento estético.

Palavras–chave Kant; estética; sublime; suprassensível; liberdade; respeito; moralidade.

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Abstract

Araújo, Alexandre Medeiros; Bueno, Vera Cristina de Andrade (advisor). Aesthetics and Morality in Kant: the relationship between the sublime and moral sentiment in the Critique of the Faculty of Judgment. Rio de Janeiro, 2012. 121p. MSc. Dissertation – Departamento de Filosofia, Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The scope of this dissertation is to relate aesthetics and morality based on the aesthetic judgment of the sublime in Kant. Taking into consideration that in the "Analytic of the Sublime" from the Critique of the Power of Judgment, Kant repeatedly refers to the sentiment or judgment of the sublime as being related to morality based on the moral sentiment or feeling of respect, without however explaining how this relationship might work in practice, the hypothesis that underpins this dissertation consists of the affirmation of a significant link between aesthetic sentiment and morality, arguing that the judgment of the sublime fulfills a need in the entire structure of Kantian philosophy, namely establishing the primacy of the practical, however without involving the loss of autonomy of aesthetic judgment.

Keywords Kant; aesthetics; sublime; supersensible; freedom; respect; morality.

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Sumário

1. Apresentação do tema

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2.Introdução

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3. A Crítica e o horizonte da filosofia transcendental

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3.1 O idealismo transcendental: a distinção entre fenômenos e coisa-em-si

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3.2 As ideias da razão e o incondicionado

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3.3 O princípio de finalidade e os princípios regulativos da razão

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4. Moralidade e sublimidade: “O céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim”

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4.1 A ideia de Liberdade

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4.2 Liberdade e moralidade

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4.3 O sentimento de respeito

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5. O sublime

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5.1 A Crítica da faculdade do juízo (Urteilskraft) e seus princípios

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5.1.1 O princípio de finalidade e o sentimento de prazer e desprazer

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5.1.2 O suprassensível

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5.2 A Analítica do Sublime

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5.2.1 Da qualidade dos Juízos estéticos: o desinteresse

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5.2.2 Singularidade e universalidade do Juízo estético........................................ 82 5.2.3 A conformidade a fins no sublime

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5.2.4 A modalidade dos Juízos estéticos

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5.3 O sublime e as ideias da razão

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5.4 O matematicamente-sublime

90

9

5.5 O sublime e o sentimento de respeito

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5.6 O dinamicamente-sublime

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5.7 O sublime e a moralidade

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6. Considerações finais

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7. Referências bibliográficas

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O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo. Um vapor, uma gota d´água, é o bastante para matá-lo. Mas, quando o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que o que mata, porque sabe que morre; e a vantagem que o universo tem sobre ele, o universo a ignora. Blaise Pascal O homem está nas mãos da natureza, mas a vontade do homem está em suas próprias mãos. Friedrich Schiller

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1 Apresentação do tema

Sublime. Dentre as quatro definições dicionarizadas desse termo, talvez uma seja a mais adequada para se referir à acepção comum que temos da palavra “sublime”: “o que há de mais elevado nos sentimentos e nas ações”. 1 Quem nunca se deparou com algo que, por sua magnanimidade, faltara-lhe palavra suficientemente à altura que pudesse expressar o sentimento gerado diante disso que se mostrara como sendo grandioso? Habitualmente designamos alguma ação ou objeto que nos possa ter causado uma admiração incomparável, sem palavras para expressar tal sentimento, tamanha a grandiosidade de tal objeto ou gesto, de sublime. Seja a abóboda do céu estrelado, a vastidão do mar, a vista do alto de uma montanha ou mesmo um gesto de amor e amizade desinteressados; todos nós, de um modo ou de outro, certamente já passamos por experiências semelhantes. Desse modo, relacionamos o sublime sempre a algo que eleva o nosso estado de espírito e enche nosso peito de uma comoção incomparável. Agora, quanto àquelas experiências vertiginosas as quais nos fazem sentir que, por alguns momentos, como se o chão desaparecesse sob nossos pés, nossos sentidos se obnubilassem, no qual nos sentimos aniquilados, como se não houvesse nenhum sentido na vida, levando-nos a questionar sobre o real sentido e o fim da mesma. Como a visão de enchentes devastadoras, a notícia da morte de algum ente querido, a descoberta de uma doença grave. Experiências as quais fogem totalmente de nossa compreensão. Será que poderíamos chamar, ainda assim, essas experiências, também, de sublimes? Para a acepção comum da palavra, certamente não, uma vez que essas significam o oposto das citadas mais acima. Mas se, ao invés disso, pudéssemos, a partir desses eventos de profunda vertigem e sofrimento, pensá-los como que possibilitando uma reflexão a respeito da própria vida, daquilo que poderia ter valor para nós, ou seja, da importância que conferimos a essa a partir 1

Michaellis: Moderno dicionário da língua portuguesa. (São Paulo, Companhia Melhoramentos, 1998), p. 1981.

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das nossas experiências e atitudes, perante nós mesmos e os outros, e não mais considerada apenas do ponto de vista das coisas sensíveis ou materiais, mas sim do que poderia ter um valor absoluto, do ponto de vista da nossa liberdade, no sentido daquilo que podemos valorizar como sendo o mais importante na vida, será que não poderíamos conferir a essa, ainda assim, um valor o qual, por ser incomensurável, pudéssemos chamar, por isso mesmo, de sublime? Em outras palavras, será que ao refletir sobre esses sentimentos paradoxais de dor e prazer, não poderíamos afirmar que a experiência genuinamente estético-filosófica, aqui de modo especial o sublime - que, como veremos mais adiante, comporta ambos sentimentos ao elevar-nos a um domínio que ultrapassa a própria dimensão das coisas sensíveis, faz-nos perceber que o valor que conferimos a essas pouco significa em comparação com o valor supremo que podemos conferir à nossa existência a partir da nossa liberdade e moralidade? Será que o sentimento estético, aqui de modo especial o sentimento do sublime, poderia ter alguma relação com o sentimento moral, sem que, contudo, essa relação fizesse cair por terra os fundamentos próprios da experiência estética enquanto tal e sua especificidade, não obstante apontar e colaborar para um domínio no qual pudéssemos reconhecer nossa dignidade e fins mais elevados enquanto seres livres e morais? Eis a hipótese da presente dissertação. Sem que Kant o afirme ou o negue explicitamente, cremos encontrar em sua análise do ajuizamento estético do sublime, elementos suficientes que nos permitem heuristicamente traçar nosso percurso e alcançar, mesmo que assintoticamente, os fins que nossa investigação com a presente dissertação almeja. No fundo, é a partir dessas questões que fomos levados a estudar o sublime kantiano. A experiência do sublime, não somente como experiência estética, configura um campo extremamente rico para lidarmos com problemas atuais do campo ético, como a relação entre o sentimento e a moralidade. A capacidade de chocar-se diante das ações humanas é a capacidade mesma de sensibilizar-se perante situações que levantam questões acerca daquilo que somos ou deveríamos ser e, portanto, nos levam a uma reflexão acerca dos nossos valores, remetendo-nos diretamente a questões que afetam, sobretudo, o nosso sentimento de humanidade. Segundo um grande intérprete da estética kantiana, Paul Crowter, “Kant deseja apresentar que a raison d´être metafísica da experiência estética é, em última análi-

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se, promover nossa existência como seres morais”, 2 em função do mesmo ter “visualizado (contudo de modo opaco) que a experiência estética - e o sublime em particular - tem a capacidade para humanizar”. 3 É nesse sentido que podemos dizer que a partir da experiência estética do sublime somos levados a uma reflexão profunda sobre o que somos e sobre a partir do quê temos conferido valor à nossa existência. Encontramos no conceito do sublime, apresentado por Kant na terceira Crítica, elementos para lidar com essas questões que estão diretamente ligadas à nossa vida como um todo. A seguinte passagem, sem dúvida a mais impactante da Crítica da faculdade do juízo 4, despertou nosso interesse no tema do sublime em Kant:

Pois, assim como na verdade encontramos a nossa própria limitação na incomensurabilidade da natureza e na insuficiência da nossa faculdade para tomar um padrão de medida proporcionado à avaliação estética da grandeza de seu domínio, e contudo também ao mesmo tempo encontramos em nossa faculdade da razão um outro padrão de medida não sensível, que tem sob si como unidade aquela própria infinitude e em confronto com o qual tudo na natureza é pequeno, por conseguinte, encontramos em nosso ânimo uma superioridade sobre a própria natureza em sua incomensurabilidade; assim também o caráter irresistível de seu poder dá-nos a conhecer, a nós considerados como entes da natureza, a nossa impotência física, mas descobre ao mesmo tempo uma faculdade de ajuizar-nos como independentes dela e uma superioridade sobre a natureza, sobre a qual se funda uma autoconservação de espécie totalmente diversa daquela que pode ser atacada e posta em perigo pela natureza fora de nós, com o que a humanidade em nossa pessoa não fica rebaixada, mesmo que o homem tivesse que sucumbir àquela força. Dessa maneira a natureza não é ajuizada como sublime em nosso juízo estético enquanto provocadora de medo, porque ela convoca a nossa força (que não é natureza) para considerar como pequeno aquilo pelo qual estamos preocupados (bens, saúde e vida) e por isso, contudo, não considera seu poder (ao qual sem dúvida estamos submetidos com respeito a essas coisas) absolutamente como uma tal força para nós e nossa personalidade, e sob a qual tivéssemos que nos curvar, quando se tratasse dos nossos mais altos princípios e da sua afirmação ou seu abandono. Portanto, a natureza aqui chama-se su2

CROWTER, Paul: The Kantian Sublime: From Morality to Art. New York: Oxford University Press, 1989, p. 174. 3 Ibidem. 4 KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rohden e António Marques. 2° ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. As referências às citações de Kant serão dadas a partir da tradução acima citada, por meio de abreviação do título da obra, CFJ neste caso, seguida do número de página da segunda edição (marcada pela inicial B) da Akademie, conforme reproduzidas na lateral das páginas dessa tradução segundo o seguinte exemplo: CFJ, B 104-5. As referências às citações de Kant da Crítica da razão pura seguirão o mesmo modelo, por meio da abreviação do título da obra, CRP, seguida da referência à pagina da primeira e/ou segundo edição, marcadas respectivamente pelas iniciais A ou B da Akademie e reproduzidas na lateral da seguinte tradução adotada aqui: KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 5° Edição. Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

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blime simplesmente porque ela eleva a faculdade da imaginação à apresentação daqueles casos nos quais o ânimo pode tornar capaz de ser sentida a sublimidade própria de sua destinação, mesmo acima da natureza. 5

O conceito do sublime é um daqueles temas que procuramos a vida inteira para nos dedicar a um estudo profundo, pois expressa aquela caracterização da qual nos fogem as palavras, nos emociona e comove o nosso espírito. A presente dissertação não pretende ser um exaustivo e minucioso estudo sobre o tema, dada a complexidade do mesmo e o curto tempo que tivemos para investigá-lo. Ao contrário, pretendemos trilhar um percurso que nos leva ao conceito do sublime como sendo um dos conceitos que, por sua íntima relação com o sentimento moral, possibilita-nos vislumbrar uma consideração sobre os fins supremos da nossa existência, ou melhor, a refletir sobre a seguinte pergunta: o que pode dar sentido à vida de uma pessoa? O valor dessa vida dependerá da resposta que for dada a essa pergunta. Se o sublime puder nos fornecer elementos para pensarmos questões dessa natureza, poderemos, então, considerar que a presente dissertação terá valido a pena.

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CFJ, B 104 -5.

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2 Introdução

A relação entre o sentimento estético do sublime e a moralidade, presente na terceira crítica de Kant, na Crítica da faculdade do juízo, sempre nos pareceu um problema. Primeiramente porque, se estamos justificados a admitir que o ajuizamento estético, tal como estabelecido por Kant nessa crítica, alcança sua autonomia com relação ao juízo teórico, por um lado, e ao juízo moral, por outro, uma vez que ele não se funda sobre um conceito do entendimento, nem no interesse prático da razão, como entender, ainda assim, a autonomia do ajuizamento estético - aqui, de modo especial, o sublime -, como tendo uma relação com a moralidade, sem fazer com que o domínio do estético ultrapasse o seu âmbito próprio (o do sentimento estético) e, desse modo, se enverede nas sendas que dizem respeito à vontade ou à razão prática, perdendo, por conseguinte, sua autonomia própria? Por outro lado, podemos ainda destacar a seguinte questão: como compreender o sentimento do sublime, supervalorizando a sua dimensão puramente estética se não ao preço de um ceticismo moral? 6 Ou, mesmo, como conceder apenas uma analogia entre o sentimento estético do sublime e o sentimento moral e, ainda assim, poder vislumbrar toda a riqueza das relações entre as diferentes faculdades num todo sistemático que tem por fim último a realização do que é prático? 7 6

Posição supostamente mais próxima da estética contemporânea por se apropriar do sublime kantiano em sua dimensão puramente estética, ignorando a sua íntima relação com a moralidade. Questão levantada pelo Prof. Guido de Almeida no seu texto “Sobre a especificidade e autonomia do estético em Kant”. (O Texto citado não possui maiores referências por de ter sido uma palestra dada pelo autor no congresso da ANPOF da qual não temos maiores informações), Pág. 21. 7 Para Henry Allison, o sentimento do sublime é somente estético, sendo meramente análogo ao sentimento moral. (ALLISON, Henry. Kant´s Theory of taste: A reading of the Critique of Aesthetic Judgment. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, pp. 324/341). Contrariamente a essa interpretação, situam-se as de célebres comentadores do sublime kantiano, como Paul Crowter, que afirma que Kant “reduz o sublime a um tipo de experiência moral indireta” (CROWTER, P. The Kantian Sublime: From Morality to Art. New York: Oxford University Press, 2002, p. 166) e Eva Schaper, ao afirmar que “muitos dos argumentos de Kant [argumentos estéticos] deixam-se ler como argumentos morais disfarçados”. (SCHAPER, E. “Gosto, sublimidade e gênio: A estética da natureza e da arte”. In: Kant. Paul Guyer (org). SP: Idéias & Letras, 2009. p. 459). A interpretação seguida no presente trabalho pretende se situar a meio caminho dessas importantes abordagens do sublime, não se confundindo, contudo, com nenhuma das duas, apesar de, ao logo da argumentação, parecer estarmos mais próximos ora de uma, ora de outra. Nossa interpretação se aproxima antes da leitura feita

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Ainda que o ajuizamento do sublime seja colocado ao lado do ajuizamento do belo como um juízo estético, ele teria uma relação com o sentimento moral, o sentimento de respeito. Kant relaciona o ajuizamento do sublime com o sentimento moral e não apenas com o sentimento de desprazer e prazer. 8 Segundo a nossa leitura, e relacionando-a com o modo como Kant apresenta o sentimento moral tanto na Fundamentação da metafísica dos costumes 9 como na Crítica da razão prática10, somos levados a acreditar que haveria uma relação muito maior entre o domínio do estético e o da moralidade do que poderíamos supor. E, até mesmo, se nos restringirmos à “Analítica do sublime”, fica, ainda assim, evidente, que o juízo estético do sublime está intimamente relacionado com a moralidade. No entanto, é importante tornarmos mais claro o conceito do sentimento moral, exatamente para termos elementos suficientes em função dos quais possamos relacioná-lo com o ajuizamento do sublime; pois, na “Analítica do sublime” da terceira Crítica, apesar de citar inúmeras vezes o sentimento moral, Kant não explicita de um modo claro qual seria propriamente o grau de relação entre esse sentimento e o sentimento estético, ficando assim aberta a questão se esse é simplesmente “análogo” ou “idêntico” ao sentimento moral. A partir de uma análise que aproximaria esses dois conceitos, defendemos uma posição intermediária entre aquelas duas posições citadas mais acima. Em virtude de o ajuizamento do sublime ter como pressuposto necessário a predisposição ao sentimento para as ideias da razão, ou o próprio “sentimento moral”, como afirma Kant, não seria inteiramente adequado afirmar ser essa relação entre estética (sublime) e moralidade simplesmente de analogia. Ora, uma analogia diz respeito às relações idênticas entre coisas diferentes, e no ajuizamento do sublime há a predisposição do sentimento com relação às ideias da razão,

pelo professor Leonel Ribeiro dos Santos, que através do conceito de “solidariedade” entre sentimento moral e sentimento estético, nos forneceu ricos elementos na leitura do sublime kantiano. (RIBEIRO DOS SANTOS, L. “La vivencia de lo sublime y la experiência moral em Kant”. In: Anales del seminário de historia de la filosofia, 9, 115-126; editorial complutense, Madrid, 1992. p.: 115.) 8 CFJ, B 112/116/117/120. 9 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Guido Antônio de Almeida. 1° Edição bilíngue. São Paulo: Discurso Editorial, 2009. As referências às citações de Kant serão dadas a partir da tradução acima citada, por meio de abreviação do título da obra, FMC neste caso, seguida do número de página da primeira edição (marcada pelas iniciais Ak) da Akademie, conforme reproduzidas no corpo do texto dessa tradução. Ex. FMC, Ak 401. 10 KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução de Valério Rohden. 1° Edição bilíngüe. São Paulo: Martins Fontes, 2003. As referências às citações de Kant serão dadas a partir da tradução acima citada, por meio de abreviação do título da obra, CRPr neste caso, seguida do número de página da primeira edição original alemã de 1788, edição (marcada pela inicial A), conforme reproduzidas no início de cada página do original alemão. Ex. CRPr, A 4.

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que são práticas. Isso significa que o ajuizamento do sublime depende em certa medida da moralidade, o que não acontece na analogia em que uma é inteiramente independente da outra. A predisposição ao sentimento para as ideias da razão é comum tanto ao juízo estético do sublime quanto àquele juízo da moralidade mediante o sentimento de respeito, de modo a não serem apenas análogos. 11 Por outro lado, também não seria inteiramente adequado afirmar a identidade entre o sentimento do sublime e o sentimento moral, exatamente em virtude de ser aquele um juízo reflexivo-estético, o que significa que não está fundamentado em nenhum conceito prático determinado da razão. Por tudo isso é que temos elementos necessários para afirmar a existência de uma íntima imbricação entre a estética do sublime e a moralidade, sem, contudo, se identificarem. A ideia norteadora dessa dissertação é relacionar a experiência do sublime com o sentimento moral. Nossa interpretação consiste em chamar a atenção para o fato de que Kant, ao relacionar estética e moralidade na Crítica da faculdade do juízo, pôde aproximar o sensível do suprassensível, apontando, mesmo que indiretamente, para o primado do prático, sem que, contudo, isso se desse ao preço de uma perda do caráter da autonomia do juízo estético de reflexão que consiste em sua independência de conceitos determinados. Ao contrário, argumentaremos que, a autonomia do juízo estético, que consiste na liberdade da imaginação e no prazer desinteressado, se completa na medida em que a faculdade sensível, a imaginação, pode colaborar com a razão em virtude de, por meio de seu esforço e fracasso na compreensão da “totalidade absoluta”, fazer com que o ânimo sinta a inteira vocação suprassensível do mesmo, ou seja, a autêntica liberdade humana no seu chamado à moralidade. Nossos objetivos com a presente dissertação são, fundamentalmente, esclarecer a relação entre o ajuizamento estético do sublime e o sentimento moral presentes na Crítica da faculdade do juízo. Em função disso, nosso percurso será o seguinte: (1) Apresentaremos brevemente, no quadro geral da filosofia transcendental da Crítica da razão pura, as distinções estabelecidas pelo “Idealismo transcendental” entre fenômenos e coisa - em -si, enfatizando, sobretudo, o conceito do incondicionado suprassensível, importante para o presente estudo na medida em que será a partir desse conceito que Kant irá estabelecer uma

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Para Kant, uma analogia “significa uma perfeita similaridade entre duas coisas muito dessemelhantes.” Prolegômenos, §58.

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relação, na Crítica da faculdade do juízo, entre os domínios do conceito de natureza e o conceito de liberdade. (2) Mostraremos ainda, no quadro geral da filosofia kantiana, como as ideias da razão pura, liberadas pela crítica da ilusão transcendental, dão origem aos princípios regulativos, que, por sua vez, estarão na base do juízo reflexionante estético do sublime. (3) Faremos, antes de tratarmos do sublime na Crítica da faculdade do juízo, uma breve incursão à Crítica da razão prática e à Fundamentação da metafísica dos costumes, obras nas quais Kant apresenta os conceitos de liberdade, moralidade e sentimento moral. Ao fazer isso, procuraremos estabelecer o vínculo entre sentimento moral e sublimidade já a partir da segunda Crítica. (4) Procuraremos, já na Crítica da faculdade do juízo, apresentar a relação existente no juízo reflexionante estético entre o princípio de finalidade e o sentimento de prazer e desprazer, característicos da experiência estética. (5) Analisaremos, por último, os elementos componentes do ajuizamento estético do sublime em sua dupla manifestação: matemático e dinâmico, explicitando de que modo o sentimento do sublime relaciona-se com o sentimento moral e as ideias da razão. De posse desses elementos, mostraremos em que medida a reflexão estética pode colaborar com os fins da moralidade, ou de que maneira a partir da experiência do sublime somos levados a pensar nas relações entre sensível e não sensível a partir de uma perspectiva de colaboração entre as faculdades, mas com vistas ao fim último supremo (moral) da razão.

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3 A Crítica e o horizonte da filosofia transcendental

Para compreendermos como o todo se relaciona às partes e estas ao todo, é imprescindível que levemos em conta, pelo menos em linhas gerais, os elementos principais que subscrevem tais partes. Assim, poderemos visualizar com mais precisão onde queremos chegar com nossas investigações e, desse modo, teremos como que um “fio de Ariadne” que possa nos orientar para o bom termo de nossas pesquisas. O conceito de crítica na filosofia moderna nos remete diretamente ao nome de Immanuel Kant. Para esse filósofo, o conceito de crítica tem um sentido de demarcação de limites, de reconhecimento do que se pode e do que não se pode conhecer, de discernimento e de reflexão acerca das possibilidades e dos limites não só do conhecimento, mas também da ação. A crítica, tal como empreendida por Kant, se fez necessária em função das dificuldades nas quais a metafísica se encontrava. 12 Mediante a crítica às próprias capacidades ou faculdades, o sujeito estabelece as condições legítimas, bem como os devidos limites do seu conhecimento e ação. A filosofia de Kant leva o nome de “filosofia transcendental”, porque “ela se ocupa menos dos objetos do que de nossa capacidade de conhecê-los a priori”. 13 O poder de conhecer a priori os objetos é resultante do poder que a razão tem de refletir sobre si 12

Kant se deparou com um duplo problema que tentou solucionar com a sua filosofia crítica. De um lado ele se viu na necessidade de salvaguardar a ciência dos ataques céticos dos empiristas, sobretudo da crítica de Hume ao princípio universal de causalidade. Esse filósofo considerava o conhecimento das ciências da natureza apenas provável, sem caráter de necessidade. Para ele, a própria conexão entre eventos fenomênicos não passava de associações baseadas no hábito de observar repetições. De outro lado, Kant se propôs a entender porque a razão se via envolvida em dificuldades, dentre as quais destacavam-se as antinomias. As antinomias significam que duas teses opostas podem ser igualmente defensáveis, levando a razão a uma contradição no seu âmago. Kant pretendeu resolver tanto o problema do ceticismo de Hume, quanto o das antinomias, admitindo de um lado, contra o ceticismo do primeiro, a universalidade e a necessidade do conceito de causalidade, pois Kant prova que o conceito de causalidade é um conceito a priori do entendimento; de outro lado, contra o dogmatismo dos racionalistas, Kant limitou a possibilidade do conhecimento aos fenômenos, liberando assim as exigências da razão das aparentes contradições ou antinomias em que essa se encontrava, quando não estabelecia a distinção entre o que é conhecimento e o que é uma exigência da razão e fazia valer como conhecimento o que é uma exigência da razão. Desse modo, Kant pode salvaguardar a razão de suas dificuldades, ao determinar o que pode e o que não pode ser conhecido. 13 CRP, B 25. E acrescenta: “um sistema de conceitos deste gênero deveria denominar-se filosofia transcendental.”

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mesma e de distinguir as faculdades que possibilitam o conhecimento. Saber das faculdades que possibilitam o conhecimento dos objetos permite que possamos distinguir os objetos que podemos conhecer dos que não podemos. A crítica estabelecida pela filosofia transcendental, desse modo, leva a razão a darse conta de seus limites, que são estabelecidos por ela própria atuando nesse processo ao mesmo tempo como “juíza” e “ré” no tribunal que a mesma instaura para si com total imparcialidade. Nesse sentido, a crítica, que é propriamente o exercício da reflexão filosófica, não se confunde com uma doutrina, mas ela é antes a investigação e o estabelecimento dos limites legítimos das capacidades humanas de conhecer. Poderíamos dizer que a crítica é a “maneira” e também o “método” da filosofia transcendental. É a “maneira” uma vez que, antes de mais, procede de um modo inteiramente reflexivo, isto é, a razão humana livremente debruça-se sobre si mesma para discernir suas diversas faculdades e os princípios e regras que constituem o seu inteiro domínio; é “método” porque deve impor-se a si mesma no seguimento dessas mesmas regras. 14 A reflexão crítica determina que podemos conhecer apenas os fenômenos e não as coisas-em-si, ou seja, só podemos conhecer as coisas tais como elas aparecem para as nossas faculdades e não como são em si mesmas. Como são em si mesmas, elas podem ser apenas pensadas, são noumena. Nesse sentido, o método adotado pela crítica serve como um “fio condutor” que orienta na investigação do sistema da filosofia transcendental, que é o sistema do todo articulado da razão pura.

3.1 O idealismo transcendental: a distinção entre fenômenos e coisa-em-si Na perspectiva da filosofia crítica, o idealismo transcendental é a proposta kantiana para justificar as condições de possibilidade do conhecimento. O conhecimento que podemos ter da natureza depende, em primeiro lugar, das condições do entendimento, uma de nossas faculdades cognitivas. As leis que atribuímos à natureza são decorrentes dos concei14

Na Lógica [Jäche], Kant afirma que: “Todo conhecimento bem como um todo do mesmo têm que ser conformes a uma regra.” E tal regra pode ser de dois modos, seja da maneira que é livre, seja do método que é coerção. (KANT, Immanuel. Lógica [Jäche]; A 215/ Ak 139. Tradução: Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003).

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tos puros do entendimento que atuam como regras para a mesma. São regras formais e não abstraídas da natureza em função de sua matéria, como é o caso dos conceitos empíricos. As formas das coisas são dadas por nossas faculdades cognitivas. A matéria, que essas formas determinam, já está dada: ela é aquilo que é recebido pelas faculdades que, por sua vez, lhe proporcionam uma forma determinada. Isso faz com que, segundo a proposta do idealismo transcendental, a natureza seja vista formalmente como o conjunto de objetos constituídos pelas nossas faculdades. Ela é, quanto à sua forma (do ponto de vista formal), dependente das faculdades cognitivas humanas. Na Crítica da razão pura, Kant faz uma distinção entre as faculdades: a sensibilidade, a imaginação, o entendimento e a razão. A faculdade da sensibilidade 15 é aquela faculdade por meio da qual podemos receber os dados fornecidos pela matéria (se distinguimos no conhecimento a matéria da forma). Se, como dissemos acima, as faculdades são formas que determinam a matéria do conhecimento, há na sensibilidade duas espécies de forma: a do sentido externo, o espaço, que possibilita que representemos e determinemos espacialmente as coisas fora de nós; e a do sentido interno, o tempo, que possibilita que representamos e determinemos segundo a sucessão e/ou simultaneidade as coisas que se passam em nós. São essas as formas puras que caracterizam a faculdade da sensibilidade, cuja função é meramente receptiva. Os dados recebidos pela sensibilidade são conectados por meio da faculdade da imaginação, que na geografia mental situa-se entre a capacidade receptiva (sensibilidade) e a capacidade de concepção ativa (entendimento) fazendo a mediação entre essas duas. As faculdades do entendimento e da sensibilidade possibilitam o conhecimento humano. Esse conhecimento seria o resultado da síntese entre as representações de um poder receptivo (das intuições da sensibilidade) e as representações de um poder ativo (dos con-

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Kant apresenta a faculdade da sensibilidade - Sinnlichkeit - logo na primeira parte da Crítica da razão pura, na “doutrina transcendental dos elementos” sob o título de “Estética transcendental”, antecedendo a “Analítica Transcendental” que trata da dedução (justificativa) dos conceitos puros do entendimento. A “Estética transcendental” é a disciplina responsável pela sensibilidade: “Designo por estética transcendental uma ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori” (CRP, A 21/B35). Kant estabelece uma dedução tanto metafísica quanto transcendental das formas puras da sensibilidade. A exposição metafísica é uma justificação que estabelece a legitimidade a priori de determinadas representações, que, no caso da estética, são o espaço e o tempo como formas puras da sensibilidade. Diferentemente dessa, a dedução transcendental é uma justificação de como certas representações podem reportar-se aos dados na experiência sensível, isto é, como é possível justificar a atribuição de predicados a priori a dados sensíveis. Ela está diretamente relacionada à legitimidade da ligação entre representações puras e os dados que são a posteriori (CRP, B 34; A 85/B 118).

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ceitos do entendimento) que, como uma unidade sintética, por sua vez, dá unidade aos dados recebidos pela sensibilidade e esquematizados pelo poder da imaginação. A faculdade do entendimento, por meio de seus conceitos puros a priori, unifica o material fornecido pela atividade sintética da imaginação, possibilitando, desse modo, que os dados sensíveis, ainda indeterminados conceitualmente, ganhem determinação, tornando os dados em algo, conhecido, unificado. Os conceitos puros ou categorias, extraídos da forma lógica dos juízos, constituem, junto com as intuições sensíveis, os objetos do conhecimento. O entendimento é, pois, o poder de determinar conceitualmente os dados da intuição sensível, uma vez que, segundo Kant, “pensamentos sem conteúdos são vazios; intuições sem conceitos são cegas”. 16 Essas faculdades, e os seus respectivos usos, contribuem para que os dados sem unidade possam constituir-se como objetos da experiência, única forma possível de conhecimento, segundo Kant. Essa conexão entre forma e matéria é feita de tal modo que o objeto que conhecemos não pode mais ser visto como uma coisa-em-si (noumena), mas sim como uma coisa para nós, os sujeitos do conhecimento. Por aquilo que conhecemos ser constituído pelas formas provenientes de nossas faculdades cognitivas, aliadas àquilo que provém de algo fora de nós, esse objeto conhecido será chamado de fenômeno, o que aparece para nós (phaenomena). Essa proposta para a justificação do conhecimento, elaborada por Kant na sua filosofia crítica, possibilitou a comparação com o que fez Copérnico na astronomia. A revolução copernicana operada por Kant na Filosofia consistiu em uma mudança metodológica na forma do pensamento visando o conhecimento: não é mais o sujeito que permanece passivo diante dos objetos, mas são os objetos que devem se adequar ao sujeito, que ativamente os constituirá (os objetos) com seus poderes ou faculdades; do mesmo modo que não são mais os astros e o sol que giram em volta da terra, mas a terra que gira em volta do sol. O sujeito ativo constitui, desse modo, os objetos de seu conhecimento, através das intuições que são formas puras de sua sensibilidade (tempo e espaço) e dos conceitos puros do entendimento. Como isso é, então, possível? Segundo Kant, admitindo que os objetos sejam regulados por nossas faculdades a priori, e que os princípios a priori do conhecimento se limitem aos

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CRP, A 51/B 75.

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fenômenos, isto é, determinem os objetos tal como nos aparecem, e não os objetos tais com são em si mesmos. 17 A faculdade da imaginação é a faculdade da síntese. Ela tem seu território a meio caminho entre o entendimento e a sensibilidade. Na Crítica da razão pura, Kant a apresenta com sendo uma “faculdade cega da alma” 18 que, apesar de sintetizar a multiplicidade das intuições sensíveis, não pode conferir unidade a essa multiplicidade. Apenas o entendimento pode dar unidade a esse múltiplo sensível sintetizado reportando-o ao conceito. Em outras palavras, apesar de a imaginação fornecer a síntese do múltiplo sensível ao entendimento, apenas esse com suas categorias ou conceitos puros a priori pode conferir unidade à representação do múltiplo da intuição sensível. Nesse sentido, o papel da faculdade da imaginação na primeira crítica estaria subordinado ao entendimento enquanto faculdade dos conceitos, uma vez que é o conceito ou a categoria do entendimento que desempenha um papel decisivo na constituição do conhecimento, já que somente “ele nos proporciona pela primeira vez conhecimento no sentido próprio da palavra”. 19 Na Crítica da faculdade do juízo, a faculdade da imaginação tem um papel de fundamental importância no ajuizamento estético tanto do belo quanto do sublime. Essa importância consiste em que ela, não estando mais subordinada às necessidades cognitivas, como os da primeira crítica, contribui de uma maneira decisiva para a emergência de um sentimento de prazer através do “livre jogo”, no qual a mesma relaciona-se com o entendimento (no juízo do belo), não mais como uma mera serva em função dos interesses desse, mas sim como uma companheira que, numa relação harmoniosa, rejubila-se com o mesmo entendimento elevando a inteira força do ânimo, ou seja, fortalecendo o conjunto das faculdades humanas. É essa relação que sentimos no ajuizamento estético da beleza. No sublime, como veremos mais adiante, a relação se dá entre a imaginação e razão. Aqui já não podemos falar imediatamente numa relação harmoniosa e jubilosa entre as faculdades exatamente porque o jogo é substituído por uma “ocupação séria”, na medida em que a imaginação se esforça ao máximo por conferir uma forma que compreenda a totalidade exigida pela razão, que, no entanto, não chegar a realizar-se. O fracasso da imaginação 17

CRP, B XVI. CRP, A 78/B 103: “A síntese em geral é, [...], um simples efeito da imaginação, função cega, embora imprescindível da alma, sem a qual nunca teríamos conhecimento algum, mas da qual muito raramente temos consciência”. 19 CRP, A 78/B 103. 18

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em compreender tal forma total é a ocasião de um desprazer. Não obstante esse fracasso da imaginação, na medida em que o mesmo se faz sentir no ânimo como um pedido para que a razão intervenha com seus princípios ou ideias, é o que possibilita o ensejo de um prazer, o qual consiste no reconhecimento, mediante a reflexão, de um fim superior que é o da “destinação suprassensível” do ânimo. Tal destinação que desponta no sublime, como veremos, é o chamado à moralidade em virtude de nossa dimensão racional.

***

Na primeira edição da Crítica da razão pura (1781), Kant apresenta a dupla função da imaginação, que é a síntese da apreensão e a da reprodução. 20 A síntese da apreensão, primeiro papel desempenhado pela imaginação, é acompanhada pela forma do sentido interno, isto é, do tempo. Com exceção das ideias da razão e os conceitos do entendimento, que são representações puras a priori não sensíveis, segundo Kant, as representações a priori sensíveis puras ou mesmo empíricas “pertencem, contudo, como modificações do espírito, ao sentido interno e, como tais, todos os nossos conhecimentos estão, em última análise, submetidos à condição formal do sentido interno, a saber, ao tempo [...]”. 21 Essa submissão ao sentido interno significa que todas as representações sensíveis são “ordenadas”, “ligadas” e “postas em relação” umas com as outras, e essa é a condição para que possa se representar a diversidade das intuições. 22 A segunda função, que diz respeito à síntese reprodutiva da imaginação, “está inseparavelmente ligada à síntese da apreensão”, 23 uma vez que tem como condição a forma do tempo, e, em função disso, na medida em que avança na apreensão, a imaginação, por as20

CRP, A 99/100. Apesar de no ajuizamento estético não estar em questão a possibilidade do conhecimento tal como é tratado na primeira Crítica, é importante esclarecer o papel da imaginação na Crítica da razão pura em função de no ajuizamento do sublime, em sua dupla configuração (matemática e dinâmica), a mesma faculdade desempenhar um papel essencial na síntese do múltiplo para o qual a mesma não consegue dar uma forma total. Apesar da importância do tema para a estética contemporânea, não será nossa preocupação aqui a discussão levantada pela interpretação heideggeriana acerca das diferenças do papel dessa faculdade nas duas edições da primeira Crítica. 21 CRP, A 99/100. 22 CRP, A 99/100. 23 CRP, A 102.

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sim dizer, não apaga as representações passadas, isto é, essas representações são mantidas e postas em relação às dadas logo em seguida. É a reprodução que garante que haja uma certa conexão, digamos assim, entre aquilo que apreendemos num momento anterior e aquilo que apreendemos num momento posterior. É nesse sentido que Kant afirma: a “lei da reprodução pressupõe, contudo, que os próprios fenômenos estejam realmente submetidos a uma tal regra e que no diverso das suas representações tenha lugar acompanhamento ou sucessão, segundo certas regras;[...].” 24 Para que algo possa ser conhecido, é preciso o trabalho conjunto das faculdades cognitivas, das formas lógicas e sensíveis, e da matéria exterior. Só é possível conhecer algo quando podemos reportá-lo à intuição. Tudo o que dissemos até aqui diz respeito ao conhecimento. Kant, no entanto, distingue o conhecer do pensar. O pensamento não está preso às exigências do conhecimento, mas ele depende das formas lógicas das faculdades discursivas. A coisa-em-si, que não é conhecida nem determinada, pode ser tratada como algo que é o correlato do pensamento. Segundo Kant, a única exigência do pensar é que ele não se contradiga. 25 Com efeito, apesar de a coisa-em-si, o incondicionado ou suprassensível, não poder ser determinada a partir das fontes teóricas do conhecimento, a limitação do conhecimento aos fenômenos sinaliza um vasto horizonte pensável a partir das fontes práticas da razão pura. O próprio Kant, no segundo prefácio à Crítica da razão pura, faz questão de enfatizar essa possibilidade quando afirma:

Para conhecer um objeto é necessário poder provar a sua possibilidade (seja pelo testemunho da experiência a partir da sua realidade, seja a priori pela razão). Mas posso pensar no que quiser, desde que não entre em contradição comigo mesmo, isto é, desde que o meu conceito seja um pensamento possível, embora não possa responder que, no conjunto de todas as possibilidades, a esse conceito corresponda ou não também um objeto. Para atribuir, porém, a um tal conceito validade objetiva (possibilidade real, pois a primeira era simplesmente lógica) é exigido mais. Mas essa qualquer coisa de mais não necessita de ser procurada nas fontes teóricas do conhecimento, pode também encontrar-se nas fontes práticas. 26

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CRP A 100. CRP, B XXVII [nota]. 26 Ibidem.[grifo do autor]. 25

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Essas fontes podem ser pensadas a partir da ideia de liberdade. Na verdade, será a limitação mesma dada ao conhecimento, condicionado ao domínio dos fenômenos, por um lado, e, por outro, à exigência de se pensar um domínio incondicionado da razão, o que possibilitará uma orientação do pensamento em direção a um domínio não sensível (suprassensível), domínio inteligível, onde se inscreve a ideia principal ou a “pedra angular” de todo o sistema da razão pura, tanto prática quanto especulativa: a ideia de liberdade. É nesse registro que se inscreve uma frase emblemática, mas ao mesmo tempo decisiva, presente no prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura, em que Kant afirma: “Tive pois de suprimir o saber para encontrar lugar para a crença”. 27 Com essa frase, Kant quer dizer que fora preciso limitar o conhecimento aos fenômenos para poder pensar sem contradição o domínio do inteligível onde se inscreve a ideia de liberdade. Ora, quando se pensa poder conhecer a realidade em si mesma, como faziam os adeptos do dogmatismo, e não apenas os fenômenos, estendem-se as formas do conhecimento sensível (espaço e tempo) ao domínio do suprassensível de modo a tornar esse último, por sua vez, submetido àquelas formas, o que inviabiliza a possibilidade de se tratar de forma conseqüente a ideia de liberdade.

3.2 As ideias da razão e o incondicionado Por uma exigência da sua própria natureza, a faculdade da razão busca sempre a completude e a incondicionalidade. Exatamente porque a razão não se satisfaz apenas com o conhecimento fenomênico que é condicionado e fragmentado, possibilitado por aquilo que é próprio da sensibilidade e do entendimento, é que ela exige a busca de princípios últimos incondicionados que garantam o termo final para todas as condições dadas. 28 A razão,

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CRP, BXXX. Relativamente a essa necessidade, Vinícius Figueiredo nos diz: “A própria definição da Analítica – a completa decomposição do entendimento em seus elementos – faz apelo à ideia de totalidade, que, posta pela razão, só é discutida criticamente na dialética. Isso não bastasse, acompanhamos Kant no desfecho da lógica da verdade reservando aos conceitos do entendimento uma significação problemática, que remete ao âmbito dos objetos puramente inteligíveis – isto é, que definem um campo diverso daquele assinalado pela experiência possível”. (FIGUEIREDO, Vinícius. Kant & a Crítica da Razão Pura. Coleção Filosofia passo a passo. Rio Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 49). 28

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em seu sentido mais restrito, está relacionada com os princípios, 29 juízos, e especialmente com os raciocínios. Os conceitos da razão, apesar de se relacionarem com o entendimento, não podem ter correlatos na sensibilidade uma vez que as notas características presentes nas representações desses conceitos são incompatíveis com o que pode ser dado à sensibilidade. Os conceitos da razão, desse modo, são diferentes dos conceitos puros do entendimento porque nunca poderão constituir um objeto da experiência, daí serem chamados de ideias. 30 No ajuizamento do sublime, sobre o que falaremos mais adiante, o procedimento da imaginação pode ser considerado como análogo ao procedimento da razão no seu uso teórico. Assim como a razão não pode determinar objetivamente o incondicionado, no sentido de que não pode conhecê-lo, apesar de ser legítima a sua busca, no ajuizamento estético do sublime, a imaginação, ao lançar-ser em busca de uma “compreensão estética” do todo, caminha no sentido de fornecer a “forma” da intuição de um “todo absoluto” o qual a mesma se vê impossibilitada de alcançar, dado que o incondicionado jamais pode ser representado em alguma forma sensível. A imaginação, que lida com o sensível, não poderá realizar tal tarefa em função mesma de sua natureza limitada. Contudo, tal tarefa demonstra que a mesma amplia seu campo de trabalho, ainda que não consiga realizar o que almeja, pois em sua tentativa ela possibilita a realização de um fim: o seu insucesso, ao mesmo tempo em que atesta os limites do sensível, faz vislumbrar um domínio inteiramente diferente ao qual corresponde o fim da razão: o incondicionado suprassensível, representado pelas ideias da razão que, nesse momento, parecem como que tocar o inteiro ânimo humano pelo sentimento de uma destinação suprassensível. As ideias da razão estão intimamente ligadas ao ajuizamento do sublime, daí ser necessária uma compreensão preliminar acerca delas, no contexto geral da Crítica da razão pura. E, dado que as mesmas dão origem aos princípios regulativos, e como esses estão na base do ajuizamento reflexionante, não seria exagero afirmar que, por implicação, as ideias mesmas da razão estão na base da inteira faculdade de julgar reflexionante, e de modo es-

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“[...] distinguimos a razão do entendimento chamando-lhe a faculdade dos princípios.”(CRP, A 299/ B 356). 30 Kant se refere à representação da ideia como sendo “um conceito necessário da razão ao qual não pode ser dado nos sentidos um objeto que lhe corresponda” (CRP, A 327/ B 387).

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pecial, no ajuizamento estético do sublime, onde tais ideias são “avivadas no ânimo” revelando o “destino último” do homem, isto é, seu chamado à moralidade. 31 A Crítica da razão pura, de um modo geral, apresenta um problema que, apesar de ser discutido somente na segunda parte dessa obra (na “Dialética Transcendental” 32) subjaz como uma das preocupações fundamentais de Kant ao escrever a sua primeira crítica. 33 Mas em quê consistiriam exatamente as ideias da razão? A resposta de Kant é que as ideias, ditas transcendentais, são naturais à razão no sentido em que elas representam a busca por um termo final para todas as condições, ou seja, representam a busca pelo incondicionado. 34 A elas corresponderiam as exigências últimas da razão em sua busca por completude, sendo o objeto de tal completude representado como objeto na ideia. Elas se dividem segundo três títulos básicos: “a ideia do eu” ou da “alma” que corresponde ao objeto da psicologia racional; “a ideia de mundo” que corresponde à cosmologia racional; e “a ideia de Deus” que corresponde ao objeto de estudo da teologia racional. 35

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Lembro aqui, antecipando o que vamos falar mais adiante, que esses princípios regulativos não dizem respeito à determinação da ação, tal como os princípios constitutivos da razão prática, que são princípios objetivos determinantes da vontade. Os princípios regulativos, que estão no fundamento do ajuizamento estético, são de natureza subjetiva e possibilitam a reflexão de tal juízo. 32 CRP, A 294/ B 349. 33 Sabemos disso através de uma carta a Christian Garve escrita em 1798, na qual Kant comenta que foi a antinomia da razão pura que “primeiro despertou do meu sono dogmático e dirigiu-me à critica da razão nela mesma para resolver a ostensiva contradição da razão consigo mesma”(KANT Apud ALLISON, H. Kant´s Theory of freedom. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p.12). A questão que diz respeito às antinomias da razão pura significa, em última análise, as contradições que se apresentam à razão quando essa toma as coisas de um único ponto de vista, ou seja, como sendo coisas-em-si mesmas e que estão diretamente ligadas à uma má compreensão por parte da tradição metafísica em seu dogmatismo. Segundo Kant, essa má compreensão consistiu na afirmação do conhecimento objetivo do incondicionado, do suprassensível, tanto nas coisas-em-si mesmas como também nos objetos da metafísica especial: Deus, Alma e a Liberdade. Ao afirmar conhecer tais objetos como sendo reais, a metafísica tradicional conferiu equivocadamente uma validade objetiva às ideias que possuem uma legitimidade e validade apenas no domínio lógico e não no domínio real. A tarefa da crítica consiste exatamente em corrigir esse engano. Segundo Kant, a própria razão se vê encurralada em uma série de paralogismos e antinomias quando não percebe seus limites e acredita, com essa ilusão, conhecer as coisas-em-si, o incondicionado, como é pressuposto pelo realismo transcendental. Para Kant, esse falso argumento, que dá origem às antinomias, apoia-se, em última análise, num engano que consiste em acreditar que, “quando é dado o condicionado, é dada também toda a série de condições do mesmo” (CRP, A 497/ B 525). 34 Assim como os conceitos do entendimento são extraídos da tábua lógica dos juízos, as ideias da razão são extraídas das formas lógicas dos raciocínios, a saber, dos silogismos: disjuntivos, categóricos e hipotéticos. A elas, como já falado, não corresponde nenhum objeto dado à sensibilidade. Por sua vez, pelos conceitos do entendimento é possível encontrar na sensibilidade objetos quando há a reunião sintética do múltiplo nela dado. Não cabe propriamente às ideias unir esse múltiplo e sim às categorias. 35 Na tradição da filosofia dogmática, apesar do rigor de suas demonstrações, as ideias da razão foram usadas na constituição ilegítima dos objetos do conhecimento da experiência, levando, desse modo, segundo Kant, à ilusões e enganos. Além disso, essas filosofias atribuíam a essas ideias um estatuto ontológico a partir de uma sub-repção do pensamento: de uma possibilidade meramente lógica para uma existência real desses objetos.

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Quem não se conforma com o que é proposto na primeira parte da primeira Crítica e mantém o fôlego até a segunda parte da mesma, perceberá que Kant não despreza o impulso da razão pelo incondicionado. No final da “Analítica transcendental” da Crítica da razão pura, Kant já deixa antever que seu projeto crítico, ao mesmo tempo em que circunscreve em limites bem precisos o domínio do conhecimento a semelhança de uma “ilha”, abre as possibilidades de se visualizar ao longe “um vasto oceano cercado de nuvens”, o domínio do suprassensível, que a nosso ver pode ser considerado como a primeira imagem do sublime. Assim Kant se refere a essa metáfora:

Percorremos até agora o país do entendimento puro, examinando cuidadosamente não só as partes de que se compõe, mas também medindo - o e fixando a cada coisa o seu lugar próprio. Mas este país é uma ilha, a que a própria natureza impõe leis imutáveis. É a terra da verdade (um nome aliciante), rodeada de um largo e proceloso oceano, verdadeiro domínio da aparência, onde muitos bancos de neblina e muitos gelos a ponto de derreterem, com falazes esperanças, o navegante que sonha com descobertas, enredando-o em aventuras, de que nunca consegue desistir nem jamais levar a cabo. 36

Pela crítica, Kant se propõe a corrigir a maneira de pensar os objetos da metafísica tradicional sem, contudo, desprezar a tendência natural inscrita na razão humana de ultrapassar seus limites em busca de um incondicionado. Segundo ele, as ideias da razão, apesar de não poderem ser conhecidas, podem, no entanto, ser legitimamente pensadas. Isso só foi possível porque Kant esclareceu que a tendência da razão em dar validade ontológica, isto é, realidade, ao que apenas consistia numa função lógica, não passava de uma pretensão, à qual a razão, em sua ânsia de completude em relação à realidade, estava submetida, e que era preciso a crítica para limitar essa falsa pretensão. Por sua vez, a metafísica, ou o impulso ao incondicionado, é algo que está inscrito na natureza da razão, como uma tarefa a qual a mesma não pode se esquivar. Apesar de ser uma tarefa irrealizável, ela não é, em si mesGrande parte do esforço de Kant na Crítica da razão pura consiste em depurar essas ideias daquelas ilusões e enganos, direcionando-as à sua legítima condição e uso. As ideias da razão pura são a expressão do incondicionado, por isso o impulso em direção a elas é um procedimento legítimo, inscrito na própria natureza da razão. Nem as ideias, que representam o incondicionado, nem o impulso em direção a elas são ilusórios em si mesmos. Ao contrário, ilusório e enganoso é achar que esse impulso conduz a um conhecimento, ou seja, um conhecimento determinado dessas ideias, por conseguinte do incondicionado, levando à falsa crença de que elas seriam necessárias para o conhecimento do real enquanto tal. 36 CRP, A 235/6 B 294/5.

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ma, irracional. Nesse sentido, tal busca pelo incondicionado encontra-se devidamente justificado noutro uso da razão que não o teórico, encontra-se no uso prático-moral da mesma. E, de modo análogo, simbólico e “solidário”, expresso numa “vivência estética” à qual o sublime pode ser o candidato mais apropriado. Como sugere Leonel Ribeiro dos Santos: A vivência do sublime é, na verdade, o substituto de uma vivência metafísica. É a reserva onde subsiste a memória do absoluto e do sagrado para a consciência humana. O sublime é o elemento a partir de onde emerge e onde estão imersas as tarefas que a razão humana olha de frente e das quais não pode nem ficar dispensado nem vangloriar-se de havê-las terminado. 37

Por tudo que vimos até agora, fica evidente que os limites, impostos pela crítica à nossa capacidade de conhecer apenas os fenômenos e nunca as coisas-em-si-mesmas, foram necessários ao conhecimento científico da natureza (dos fenômenos). Mas essa crítica pode garantir a possibilidade de outras perspectivas para o pensamento, diferentes daquelas voltadas para o conhecimento dos objetos. Foi possível, desse modo, pensar a liberdade, legitimada a partir do suprassensível, considerada uma causalidade independente da causalidade do mundo natural, bem como a abertura para uma experiência alargada acerca dos objetos que, não sendo determinados por uma legislação determinante a priori, é ocasião de uma reflexão pura. A experiência estética, desse modo, que é da ordem da reflexão, é uma experiência livre e desinteressada, mas que, não obstante, nos predispõe à moralidade. O sublime partilharia desse desinteresse na medida em que não é determinado por nenhum conceito ou lei a priori. Com efeito, o ajuizamento estético do sublime possui em seu fundamento os princípios regulativos, pelos quais o ajuizamento reflexionante se orienta. Esses princípios se dirigem por sua vez ao fim último, portanto incondicionado da razão, que nunca pode ser conformado inteiramente ao sensível. É até mesmo impressionante o que ocorre nesse ajuizamento estético do sublime, uma vez que é a própria sensibilidade (a faculdade da imaginação), na medida em que, em função de seu esforço e, ao mesmo tempo, de seu fracasso, está a colaborar com o fim prático da razão pura. Em função de que nessa colaboração emerge o sentimento de uma dimensão irredutível ao próprio sensível,

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RIBEIRO DOS SANTOS, Leonel. “La vivencia de lo sublime y La experiencia moral em Kant”. In: Anales del Seminario de Historia de La Filosofia, 9, 115-126, Editorial Complutense, Madrid, 1992, p. 125.

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isto é, o sentimento de que há em nós uma “faculdade suprassensível” que torna-nos independentes das condições sensíveis.

3.3 O princípio de finalidade e os princípios regulativos da razão A filosofia crítica de Kant está voltada para a busca de princípios. Na Lógica Kant define os princípios como “juízos imediatamente certos a priori na medida em que outros juízos possam ser provados a partir deles”. 38 Os princípios que legitimam os seus respectivos campos de atuação são de dois tipos: os constitutivos e os regulativos. Os constitutivos pertencem à razão tanto em seu uso teórico quanto prático. No que concerne ao uso teórico da razão, a faculdade superior do conhecimento, que é o entendimento, legisla a partir dos princípios constitutivos que determinam a priori a natureza. Os princípios determinam os dados da sensibilidade em função dos conceitos puros ou categorias, constituindo os objetos da experiência. No uso prático da razão, os princípios constitutivos estão no fundamento da regra prática, dada a priori pela razão, regra que é a lei moral. Nesse sentido, a razão, em seu uso prático, legisla a vontade segundo a sua lei, a lei moral, fundada na ideia de liberdade prática e determina, de um modo totalmente a priori, a vontade, constituindo assim ações morais cujos efeitos são visíveis na experiência. No que diz respeito aos princípios da razão no sentido estrito, eles se fundam na forma lógica das premissas que compõem os raciocínios, em especial aqueles que constituem sua premissa maior. Nesse sentido, os princípios buscados configuram os juízos mais universais. Esses princípios, por não constituírem objetos do conhecimento, serão caracterizados por Kant com outro uso não menos importante: eles terão o estatuto de princípios regulativos. 39 38

KANT, Immanuel. Lógica [Jache]; A 172/ Ak 110. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. 39 Segundo Guyer, Kant atribui três características fundamentais aos princípios regulativos, das quais pelo menos a terceira pode ser considerada como mais relevante para entendermos a relação entre o ajuizamento estético do sublime e a moralidade. Contudo, dada a importância dos princípios regulativos de um modo geral para a terceira Crítica, achamos por bem resumir a seguir todas essas características apontadas por Guyer: (I) O pressuposto da busca incondicionada do conhecimento: o princípio regulativo exige a busca de certa siste-

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Os princípios regulativos não têm seu fundamento nos conceitos puros do entendimento. Portanto, eles não podem constituir nenhum objeto da experiência. Não obstante, eles têm um papel fundamental no conhecimento, já que sistematizam o que conhecemos da natureza, visando a completude de seus conceitos e de suas leis empíricas. Essa sistematização é feita em função mesmo das exigências lógicas da razão em sua busca por completude. Se a razão tem um pendor natural para ultrapassar os limites da experiência sensível em busca de um incondicionado e, mesmo que seus esforços sejam vãos no que diz respeito à possibilidade do conhecimento de tais princípios últimos, isso, por tudo o que vimos, não significa para a filosofia de Kant que tal proceder tenha de ser desprezado. Segundo Kant, seria absurdo que a nossa mente fizesse isso acreditando que tal procedimento não a levasse senão a sub-repções e enganos. Se a nossa razão se lança nessa busca é porque há de haver algum fim nesse procedimento e que precisa ser devidamente esclarecido pela crítica, e isso é o que Kant propõe-se a fazer no “Apêndice à dialética transcendental” da Crítica da razão pura. Kant apresenta, na primeira parte do “Apêndice à dialética transcendental”, o fim ou a função adequada às ideias da razão pura num uso ao qual ele se refere como sendo “o bom uso” 40 dessas ideias. Esse “bom uso” será, então, regulativo, exatamente porque a ele corresponde uma exigência lógica e transcendental da razão na ampliação e sistematização matização como um objetivo de nossa investigação ou ação de um domínio de elementos já dados, não obstante tal sistematização ser algo a que nunca se realiza completamente, apesar de aproximarmos de um modo ideal ou “assintoticamente”; (II) O pressuposto da racionalidade do princípio: apesar da impossibilidade de alcançar tal sistematização completa, seria irracional perseguir qualquer fim, cognoscitivo ou prático, sem acreditar na possibilidade de alcançá-lo e na existência mesma do fundamento dessa possibilidade. Por isso, a hipótese que acompanha o princípio regulativo é a da possibilidade de alcançar tais fins, e o fundamento dessa possibilidade também seria transcendental e não meramente lógico, na medida em que suas características objetivas podem ser tomadas; (III) O pressuposto heurístico: os princípios regulativos se caracterizam por dar uma heurística para a orientação da nossa atividade cognoscitiva ou prática. Tal heurística consistiria em aplicar uma regra ou várias regras ao tratar de formular juízos sobre objetos ou representações já dadas, ou máximas acerca de desejos ou ações que já nos têm sido dadas ou sugeridas. Esta é uma das razões pelas quais estes princípios são reflexivos: não intervêm em nenhuma constituição subconsciente ou pré-consciente de objetos, senão que se empregam em nossa reflexão sobre nossa experiência de estados internos ou objetos externos, reflexão que se empreende como parte do processo de realização do objetivo da sistematização. (GUYER, Paul. “Los princípios del juicio reflexivo”. In: Diánoia, anuário de filosofia, n° 42. México: Universidade Nacional autônoma de México, 1996, pp. 5-6.) O decisivo aqui, segundo Guyer, é a sugestão dada por Kant de que “os juízos reflexionantes são explicados e dependem dos princípios regulativos e que esses requerem uma caracterização completa cujos aspectos chaves expliquem por que seu uso pode ser somente reflexivo e não determinante” (Ibidem). 40 Kant caracteriza esse “bom uso” das ideias transcendentais como sendo o uso imanente (CRP, A 643/B 671).

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cada vez mais completa do conhecimento, mas apenas do ponto de vista regulativo e não constitutivo. 41 Em outras palavras, Kant depura as ilusões das ideias da razão refletindo acerca do seu fim adequado. Ora, como a razão é a faculdade dos fins, a qual coloca “fins a si mesma”, aquele seu pendor natural em ultrapassar os limites da experiência em busca do incondicionado será devidamente liberado e orientado pela crítica em função de um uso legítimo que é o uso regulativo. Esse uso terá como fim promover tanto a sistematização do conhecimento na razão teórica, quanto na promoção do “sumo bem” na razão prática. 42 É a partir das ideias da razão que brotarão, como uma fonte inesgotável de reflexão, os princípios regulativos. A partir desses, Kant pode reunir tudo o mais que havia ficado de fora das determinações apriorísticas constitutivas da razão tanto no seu uso teórico quando no uso prático. A partir dos princípios regulativos Kant pode tratar, de modo especial, o ajuizamento reflexivo-estético e nesse o sentimento de prazer e desprazer. Segundo Kant, “tudo o que se funda sobre a natureza das nossas faculdades tem de ser adequado a um fim e conforme com o seu uso legítimo.” 43 Nessa medida Kant pôde resgatar o princípio regulativo de finalidade como sendo um princípio próprio da razão. 44 Se a razão busca naturalmente um princípio que satisfaça as suas exigências, Kant, ao tentar dar validade a tal princípio está seguindo a natureza da razão. Agora, o erro, como vimos, consistiria em tomar essa exigência como valendo para o conhecimento de objetos. A validade possível ao princípio de finalidade é somente subjetiva, uma vez que não é possível por meio dele o conhecimento de objetos.

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As ideias da razão não constituem objetos uma vez que não possuem em suas notas características nenhuma compatibilidade com nada que seja sensível, e a constituição dos objetos do conhecimento na experiência pressupõe a reunião do sensível no conceito. 42 No “Cânon da razão pura” da Crítica da razão pura Kant apresenta o “bem supremo” ou “sumo bem” como o fim último da razão. Para a possibilidade de realizar esse fim, Kant apresenta as ideias de Deus e da imortalidade da alma como princípios regulativos e, na Crítica da razão prática como postulados necessários para a realização do sumo bem derivado: felicidade na exata proporção à moralidade. A ideia de Deus, sumo bem originário, é necessária para a possibilidade de reunir virtude e felicidade. Segundo Guyer, o conceito do “sumo bem” é de fato o ponto culminante da teoria kantiana do juízo reflexionante. (GUYER, Paul. “Los princípios del juicio reflexivo”. In: Diánoia, anuário de filosofia, n° 42. México:Universidade Nacional autônoma de México, 1996, p. 11). 43 CRP, A 642/ B670. 44 No Apêndice à dialética transcendental”, da CRP, Kant apresenta esse princípio como sendo um “princípio da unidade sistemática da natureza” (CRP, A 694/B 722). Posteriormente na terceira Crítica, a CFJ, o princípio de “finalidade da natureza” será dito pertencer à faculdade do juízo como um princípio transcendental a priori. Falaremos mais sobre esse princípio no último capítulo quando tratarmos da faculdade do juízo.

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Pelo princípio de finalidade a razão dá uma unidade coletiva ao inteiro conhecimento do entendimento já que esse, por si, confere ao conhecimento apenas uma unidade distributiva. Com efeito, com o princípio regulativo de finalidade nada afirmamos sobre os objetos do conhecimento, mas apenas sobre um modo possível de a faculdade da razão, bem como a faculdade do juízo reflexiva na Crítica da faculdade do juízo, lidar com os objetos de um modo subjetivo. Em suma, foi exatamente porque Kant não desprezou o fim inscrito nas exigências da razão que ele pôde, ao analisar as suas tentativas dialéticas, direcionar esse fim para um uso legitimo, isto é, o uso regulativo 45 das ideias da razão. Ao fazer isso, ele pôde resgatar o princípio de finalidade da natureza, banido há tempos da filosofia moderna pelos sistemas mecanicistas. O princípio de finalidade resgatado a partir da atribuição de uma função legítima às ideias transcendentais, o uso regulativo, é fundamental para se pensar o ajuizamento reflexivo-estético. E será exatamente na Crítica da faculdade do juízo que tal princípio será resgatado em toda a sua riqueza. O princípio de finalidade será considerado como um princípio transcendental a priori da faculdade do juízo reflexionante, tanto para a possibilidade de sistematização do conhecimento, quanto para o avivamento do sentimento de prazer e desprazer, que será apresentado na terceira Crítica nas suas duas formas de juízos estéticos: o do belo e o do sublime.

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A ênfase dada aos princípios regulativos nesse trabalho é devida ao fato de que é neles que se fundamentam os juízos reflexionantes, aqui de modo especial, o juízo reflexionante estético do sublime.

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4 Liberdade, Moralidade e Sublimidade: “o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim”

Liberdade. Esse conceito perpassa toda a filosofia crítica de Kant e do alto sustenta, com uma pedra angular ou o fecho de abóbada, todo o sistema da razão pura. 46 Tratar do conceito de liberdade é, sobretudo, relevante para o nosso tema uma vez que o que está contido na experiência ou sentimento do sublime indica uma relação dessa experiência com tal conceito. 47 Como vimos, a filosofia crítica consiste, por um lado, em analisar e justificar como é possível o estabelecimento da experiência e, por outro, em salvaguardar o domínio da legislação livre do ser racional. Essa dupla tarefa tem a ver com a exigência filosófica de se justificar não só um conhecimento necessário e universal (ciência) dos fenômenos ou da natureza, mas também a possibilidade da liberdade. Consoante a isso, deparamo-nos ao longo das páginas da primeira Crítica com um profundo esforço, por parte de Kant, de tentar conciliar a dupla causalidade ou legislação da razão envolvida em ambas as exigências. 48

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Na Crítica da razão prática, Kant afirma: “Ora, o conceito de liberdade, na medida em que sua realidade é provada por uma lei apodíctica da razão prática, constitui o fecho de abóbada de todo o edifício de um sistema da razão pura, mesmo da razão especulativa”[...](CRPr, A 4). Nesse sentido, não seria exagero fazer coro com importantes comentadores dessa filosofia quando afirmam ser a filosofia crítica de Kant uma “filosofia da liberdade”(ALLISON, Henry. Kant´s theory of freedom. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 1). E “a ideia de liberdade ocupa na filosofia kantiana um lugar privilegiado”(CARNOIS, Bernard. La cohérence de la doctrine kantienne de la liberte. L'ordre philosophique. Paris, Éditions du Seuil, 1976, p. 11). 47 Numa única passagem na introdução publicada à CFJ Kant afirma que: “A receptividade de um prazer a partir da reflexão sobre as formas das coisas (da natureza assim como da arte) não assinala porém apenas uma conformidade a fins dos objetos, na relação com a faculdade de juízo no sujeito, conforme ao conceito de natureza, mas também e inversamente assinala uma conformidade a fins do sujeito em relação aos objetos, segundo a respectiva forma e mesmo segundo o ser caráter informe < ihrer Unform >, de acordo com o conceito de liberdade. Desse modo sucede que o juízo estético está referido, não simplesmente enquanto juízo de gosto, ao belo, mas também, enquanto nasce de um sentimento do espírito, ao sublime” [grifo do autor](CFJ, B XLVIII). Como veremos mais adiante, o sentimento do sublime pode ser considerado como uma apresentação (negativa) da ideia de liberdade. (KANT, I. “Primeira introdução à Crítica do Juízo”. In Duas introduções à Crítica do juízo. Tradutor: Rubens Rodrigues Torres Filho. Org.: Ricardo Terra. Ed. Iluminuras. RJ, 1996, p. 90). 48 “Só é possível conceberem-se duas espécies de causalidade em relação ao que acontece: a causalidade segundo a natureza ou a causalidade pela liberdade” (CRP, A 532/B 560).

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4.1 A ideia de liberdade Kant apresenta a primeira formulação do problema acerca da liberdade, na segunda parte da Crítica da razão pura, intitulada “Dialética transcendental”. 49 Nessa parte, a ideia de liberdade aparece sob a forma de um problema cosmológico, 50 isto é, relacionada à questão da totalidade da série dos fenômenos do mundo sensível como uma causa primeira, espontaneamente livre ou incondicionada. Esse primeiro conceito de liberdade, apresentado por Kant na Crítica da razão pura, é analisado num contexto especulativo e caracterizado com o termo de liberdade transcendental. O problema concernente a esse conceito é expresso como uma questão “cosmológica” na medida em que a razão especulativa, ao perfazer a totalidade da série de seus conhecimentos, encontra-se num conflito interno entre, de um lado, legitimar uma legislação determinada sensivelmente por leis de causa e efeito, pertencente aos fenômenos, e, de outro lado, uma legislação não sensível e livre pertencente à razão. Segundo Kant, trata-se de duas legislações aparentemente opostas contraditoriamente, mas igualmente defensáveis. Como resolver esse conflito surgido no próprio seio da razão? Vimos brevemente no primeiro capítulo que a pressuposição do idealismo transcendental foi imprescindível para resolver os problemas que a metafísica tradicional não conseguira resolver. Com as propostas presentes no idealismo transcendental, Kant esclarece o fundamento da subrepção e consegue resolver os problemas que as antinomias ensejavam no seio da razão quando os fenômenos eram tomados como coisas-em-si. O desfazer desse engano, tornou possível pensar sem contradição numa dupla legislação da razão, contudo em âmbitos de vigência diferentes: a liberdade transcendental no domínio inteligível (noumenico ou suprassensível) e a legislação causal no domínio sensível da natureza (fenômenico).

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A “Dialética transcendental”, que trata das antinomias da razão pura, é a parte da CRP dedicada a expor e solucionar as ilusões da razão quando essa procede sem crítica. As antinomias da razão pura são expressas em afirmações contrárias (tese e antítese), mas que são igualmente defensáveis por ambos os lados da disputa. Essas afirmações ilusórias têm como fundamento o realismo transcendental cujo princípio consiste numa dupla falsa suposição: primeiro em tomar os fenômenos como coisas em si, e segundo, em admitir que dado o condicionado é igualmente dado a soma das condições por conseguinte o incondicionado. A antinomia que trata acerca do problema da causalidade pela liberdade e da causalidade natural é a terceira antinomia. 50 Segundo Bernard Carnois, “é preciso dizer que a ideia de liberdade é um problema cosmológico”. (Cf. CARNOIS, Bernard. La cohérence de la doctrine kantienne de la liberte. L'ordre philosophique. Paris, Éditions du Seuil, 1976, p. 20).

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A ideia de liberdade transcendental é vigente no domínio noumenico e é legitimamente pensada como necessária em virtude da exigência da razão pelo incondicionado. Dado que não temos experiência nem de um começo absoluto de eventos, nem de uma série total dos mesmos, a razão, em função de sua exigência de completude, tem a necessidade de pensar numa causa livre, espontânea, que comece por si mesma uma série de eventos em relação ao mundo sensível, ainda que seja exigida pela razão a série de eventos em função de uma causa livre pertencente ao mundo sensível, e não ao mundo inteligível. 51 O que se passaria nesse domínio, no mundo inteligível, também chamado de noumenico, segundo Kant, teria seu efeito perfeitamente compatibilizado com o domínio da legislação da experiência, isto é, dos fenômenos, na medida em que esses também podem ser vistos como um efeito da causalidade livre. Em outras palavras, a liberdade transcendental, desse modo, é logicamente pensada como uma exigência da própria razão especulativa, e caracterizada como uma causalidade “primeira” livre, absoluta e não condicionada, fora do domínio fenomênico, apesar de seus efeitos poderem ser considerados também na série dos fenômenos sem contradizê-los enquanto tais. Liberdade e natureza, desse modo, são compatíveis, uma vez que suas legislações são vigentes em domínios heterogêneos de objetos, apesar de seus efeitos serem conciliados num mesmo campo que é o da experiência. Não obstante, a ideia de liberdade transcendental é uma exigência da razão em função mesma da completude do domínio das séries fenomênicas, exigência de independência da razão em relação a tudo que seja sensível, para que com isso possa conferir inteligibilidade ao próprio mundo sensível na medida em que esse, por si só, não alcança nada que seja primeiro nem incondicionado na série causal dos eventos fenomênicos. Kant diz o seguinte sobre a ideia de liberdade transcendental:

[...] entendo por liberdade, em sentido cosmológico, a faculdade de iniciar por si um estado, cuja causalidade não esteja, por sua vez, subordinada, segundo a lei natural, a outra causa que a determine quanto ao tempo. A liberdade é, neste sentido, uma ideia transcendental pura que, em primeiro lugar, nada contém extraído da experiência e cujo objeto, em segundo lugar, não pode ser dado de maneira determinada em nenhuma experiência, porque é uma lei geral, até da própria possibilidade de toda a experiência, que tudo o que acontece deva ter uma causa e, por conseguinte, tam51

Onde nada pode ter começo, visto independer das condições do espaço e do tempo.

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bém a causalidade da causa, causalidade que, ela própria, aconteceu ou surgiu, deverá ter, por sua vez, uma causa; assim, todo o campo da experiência, por mais longe que se estenda, converte-se inteiramente num conjunto de simples natureza. Como, porém, desse modo, não se pode obter a totalidade absoluta das condições na relação causal, a razão cria a ideia de uma espontaneidade que poderia começar a agir por si mesma, sem que uma outra causa tivesse devido precedê-la para determinar a agir segundo a lei do encadeamento causal. 52

Com efeito, a liberdade transcendental não pode ser provada pela razão. Essa causa incondicionada, apesar de ter seu efeito atribuído sem contradição à série de causas condicionadas no mundo sensível, ela própria, enquanto fundamento independente de qualquer condição, pensada fora da série causal dos fenômenos, não pode ser provada pela razão especulativa, daí seu estatuto problemático. Kant afirma não ser possível dar uma dedução transcendental para a ideia de liberdade, uma vez que suas notas características são incompatíveis com aquelas próprias de uma experiência possível. Uma “ideia” da razão, como vimos, não tem correlato algum na sensibilidade, o que significa dizer que não é possível nenhum conhecimento teórico de tal “ideia”, dado que para conhecimento de algum objeto é preciso necessariamente o concurso da experiência. Entretanto, apesar de não ser possível dar uma dedução transcendental (mas apenas lógica) da ideia de liberdade transcendental, esta é imprescindível para a possibilidade de se pensar outra espécie de causalidade da razão que é a do livre arbítrio ou da vontade dos seres racionais finitos. Em outras palavras, a necessidade que a razão tem de admitir uma causalidade incondicionada no domínio inteligível (que apesar de problemático, contudo, não é contraditório), ou seja, a necessidade de pensarmos a liberdade transcendental permite que o uso prático da razão seja possível. A razão em seu uso prático pressupõe a necessidade de uma causalidade livre, que, por sua vez, fundamenta a moralidade. 53 O sentido transcendental da liberdade é um problema para a razão uma vez que a totalidade das séries das causas naturais não pode ser conhecida nem em sua incondicionalidade, isto é, em sua espontaneidade ou liberdade, e nem de acordo com a conexão das leis da natureza. É possível e é até necessário para a razão pensá-la, mas não conhecê-la. 52

CRP, A 533/B 561. “É sobretudo notável que sobre esta ideia transcendental da liberdade se fundamente o conceito prático da mesma e que seja esta ideia que constitui, nessa liberdade, o ponto preciso das dificuldades que, desde sempre, rodearam o problema da sua possibilidade” (CRP, A 533/B 561). 53

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É imprescindível para a nossa investigação um conceito fundamental que Kant trata várias vezes na primeira crítica, sobretudo na “Dialética da razão pura”, e que mais tarde irá aparecer na terceira Crítica, a saber, o conceito de síntese dinâmica. Apesar da complexidade de tal conceito, ele tem uma importância significativa para o modo como Kant resolve as antinomias da razão pura no sentido de que é a partir da síntese dinâmica do conceito de causalidade que a razão pode estabelecer conexões causais entre os elementos heterogêneos numa síntese. À semelhança disso, veremos que no ajuizamento do sublime, considerado a partir do ponto de vista dinâmico, há uma relação entre o sensível e o inteligível, ainda que tal relação seja dada a partir de um contraste e inadequação, quando a faculdade sensível (a imaginação) tenta apresentar uma ideia da razão. É aí que a imaginação sente sua inadequação em apresentar sensivelmente uma ideia. Com efeito, apesar de a síntese da “compreensão estética” da ideia de um todo não poder ser realizada, ainda assim, e exatamente em função dessa impossibilidade, o suprassensível pode ser avivado no ânimo; e o que é impressionante nisso é ser o próprio sentimento estético do sublime o que possibilita tal avivamento. Desse modo, o sentimento do sublime faz-nos vislumbrar, ainda que de modo negativo (no sentido de que não pode ser apresentada por meio da sensibilidade), a nossa dimensão suprassensível, que é a nossa liberdade. Vimos que a distinção estabelecida pelo idealismo transcendental entre fenômeno e coisa-em-si fora imprescindível para a possibilidade de se pensar, sem contradição, domínios diferentes de objetos. Agora, feita essa distinção, Kant não deixa as coisas separadas, ele conecta-as em sínteses chamadas matemáticas e dinâmicas. 54 É em função dessas sínte54

A distinção entre uma síntese matemática e uma dinâmica, na primeira Crítica, está relacionada, sobretudo, às categorias, nas quais duas são caracterizadas como categorias matemáticas (concernente à quantidade e à qualidade de uma coisa), reportando-se a objetos da intuição e relacionando-os à unidade sintética da apercepção. As outras duas, consideradas como categorias dinâmicas (concernentes à causalidade e à necessidade de uma coisa) reportam-se à existência dos objetos na intuição e à unidade sintética na representação desses objetos. A relação sintética entre esses dois tipos de categoria é diferente. As primeiras categorias (matemáticas) contêm unicamente uma síntese do homogêneo. Já as dinâmicas possibilitam a conexão entre elementos diferentes, (embora pertencentes) numa mesma síntese, ou seja, uma síntese do heterogêneo (CRP, A 530/B 558). Numa nota à segunda edição dessa obra, Kant expressa isso ao dizer que “Toda a ligação (conjunctio) é uma composição (compositio) ou uma conexão (nexus). A primeira é uma síntese de elementos diversos que não pertencem necessariamente uns aos outros, como por exemplo, os dois triângulos em que se decompõem um quadrado cortado pela diagonal, e que, por si mesmos, não pertencem necessariamente um ao outro; o mesmo acontece com a síntese do homogêneo em tudo o que possa ser examinado matematicamente (síntese que por sua vez, se pode dividir em síntese de agregação e em síntese de coalização, conforme se reporta a grandezas extensivas ou a grandezas intensivas). A segunda ligação

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ses, sobretudo da dinâmica, que Kant pode estabelecer, digamos assim, sem contradição, uma relação entre natureza e liberdade. 55 Como os fenômenos não são coisas em si mesmas, eles não podem constituir o fundamento último da realidade, o que significa dizer que eles mesmos devem ter um fundamento diferente daquilo que eles são enquanto fenômenos. É o objeto transcendental, ou a coisa-em-si (suprassensível), o qual está no fundamento dos fenômenos, que a razão exige como incondicionado para todo o condicionado dado na experiência sensível. 56 Segundo Kant, “podemos dar o nome de objeto transcendental à causa simplesmente inteligível dos fenômenos em geral” e é esse objeto “que serve de fundamento aos fenômenos.” 57 É nesse ponto que a síntese dinâmica se faz imprescindível na medida em que, por meio dela, o inteligível pode relacionar-se ao sensível isto é, ao fenômeno como fundamento desse, e a liberdade, por conseguinte, poder ter seu efeito no mundo sensível. 58 Por fim, a ideia de liberdade, como uma das expressões do incondicionado da razão, à qual nos referimos no primeiro capítulo, tem uma função regulativa com vistas a ampliar sempre mais o uso do entendimento em sua legislação formal da natureza. Como ideia regulativa, a liberdade transcendental desempenha a função de um princípio que está no fundamento da reflexão e que, apesar de não determinar objetos na experiência, tem um importante papel no ajuizamento reflexivo-estético. Uma vez que os princípios regulativos estão

(nexus) é a síntese de elementos diversos que pertencem necessariamente uns aos outros, como por exemplo, o acidente em relação a qualquer substância, ou o efeito em relação à causa e que, por conseguinte, embora heterogêneos, são representados como ligados a priori. Designo esta ligação por ligação dinâmica, pela razão de não ser arbitrária, pois diz respeito à ligação da existência de elementos diversos (pode-se dividir, por sua vez, em ligação física dos fenômenos entre si e em ligação metafísica, na faculdade de conhecer a priori.” (CRP, B 202 [nota]). 55 A relação que procuramos estabelecer entre estética e moralidade já encontraria desse modo o seu esboço fundamental na primeira Crítica, sobretudo no conceito de síntese dinâmica que Kant apresenta na “Dialética da razão pura” ao relacionar natureza e liberdade. O conceito de síntese dinâmica é fundamental para a possibilidade de estabelecermos as relações, sobretudo na “Analítica do sublime” da CFJ, entre estética e moralidade. Não é a toa que uma das divisões dessa “Analítica” chama-se “Do dinâmico sublime da natureza” (CFJ, B 102). 56 “Com efeito, o que nos leva necessariamente a transpor os limites da experiência e de todos os fenômenos é o incondicionado, que a razão exige necessariamente e com plena legitimidade nas coisas em si, para tudo o que é condicionado, a fim de acabar, assim, a série das condições” (CRP, B XX) [grifo do autor]. 57 CRP, A 492/B 522- A 613/B 641. 58 Essa relação a nosso ver exigiria uma análise mais profunda e cuidadosa, que não podemos, no entanto, desenvolver aqui. Por ora, basta sabermos que o problema da antinomia entre natureza e liberdade é resolvido graças aos princípios do idealismo transcendental que são fundamentais para tratarmos de elementos heterogêneos como o sensível e o inteligível, natureza e liberdade, estética e moralidade, temas centrais de toda a CFJ.

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na base desse ajuizamento, possibilitando-o em relação a uma “finalidade subjetiva”, desempenham um importante papel em relação ao sentimento de prazer ou desprazer. 59

4.2 Liberdade e Moralidade A questão da liberdade transcendental, como vimos, está relacionada com uma questão mais ampla na filosofia crítica que diz respeito à totalidade dos fenômenos, considerados a partir de uma dupla legislação, segundo a natureza e segundo a liberdade. Já o conceito de liberdade que está relacionado ao livre arbítrio como uma propriedade da vontade 60 chama-se liberdade prática e, nesse sentido, adquire feições diferentes do conceito de liberdade transcendental. Segundo Kant, a liberdade prática tem seu fundamento na liberdade transcendental, 61 e sem a possibilidade de se pensar esta, a liberdade prática não faria sentido. 62 Com efeito, a liberdade prática difere da liberdade transcendental na medida em que é uma “propriedade da vontade”, de modo que ela não considera a série dos fenômenos em relação à qual pode referir-se como uma causa primeira. A liberdade prática, portanto, diz respeito a um uso especificamente distinto da razão em sua relação com a vontade, pois o conceito de “prático”, segundo Kant, “é tudo aquilo que é possível pela liberdade.” 63

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Trataremos da relação entre finalidade e sentimento de prazer e desprazer quando falarmos do ajuizamento estético reflexionante no próximo capítulo. Por enquanto, basta salientarmos que a ideia de liberdade considerada como um princípio regulativo da razão está igualmente no fundamento do ajuizamento estético do sublime, o que significa que, por implicação, a ideia de liberdade se faz presente mesmo sendo um princípio geral do ajuizamento estético, aqui de modo especial, do sublime. Pelo menos é isso que inferimos quando Kant afirma que “a receptividade de um prazer a partir da reflexão sobre as formas das coisas (da natureza, assim como da arte) não assinala porém apenas uma conformidade a fins dos objetos, na relação com a faculdade de juízo no sujeito, conforme ao conceito de natureza, mas também e inversamente assinala uma conformidade a fins do sujeito em relação aos objetos, segundo a respectiva forma e mesmo segundo o seu carater informe , de acordo com o conceito de liberdade. (CFJ, B XLVIII) [meus grifos]. 60 Kant define a faculdade da vontade em relação com a razão como “uma espécie de causalidade de seres vivos na medida em que são racionais” para poder definir o conceito de liberdade no sentido negativo, a partir da sua relação com a vontade, como uma propriedade da causalidade dessa na medida em que esta pode ser eficiente independentemente da determinação por causas alheias (FMC, Ak 446)[grifo do autor]. 61 “É sobretudo notável que sobre esta ideia transcendental da liberdade se fundamente o conceito prático da mesma”(CRP, A 533/B 561). 62 [...]“a supressão da liberdade transcendental anularia simultaneamente toda a liberdade prática”(CRP, A 534/B 563). 63 CRP, A 800/B 828.

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Na “Dialética da razão pura” da primeira Crítica, Kant definiu o conceito de liberdade prática a partir de uma relação com o livre-arbítrio ou a vontade. Quando o arbítrio é determinado pela razão pura, segundo o conceito de liberdade, ou seja, independente de impulsos sensíveis, chama-se “arbítrio livre”, quando ele só pode ser determinado por impulsos da sensibilidade é, então, chamado de “arbítrio bruto”. Kant, pois, diferencia, a partir de uma causalidade livremente prática da razão, dois tipos de arbítrios, o livre e o bruto, do seguinte modo:

A liberdade no sentido prático é a independência do arbítrio frente à coação dos impulsos da sensibilidade. Na verdade, um arbítrio é sensível, na medida em que é patologicamente afetado (pelos móbiles da sensibilidade); e chama-se animal (arbitrium brutum) quando pode ser patologicamente necessitado. O arbítrio humano é, sem dúvida, um arbitrium sensitivum, mas não arbitrium brutum; é um arbitrium liberum porque a sensibilidade não torna necessária a sua ação e o homem possui a capacidade de determinar-se por si, independentemente da coação dos impulsos sensíveis. 64

Na “Analítica da razão prática pura” da Crítica da razão prática, Kant dá a prova em função da qual a razão pura pode ser considerada como capaz de, por si só, determinar universalmente e de modo incondicionado a vontade. Com isso ele quer dizer que a razão não é usada apenas como meio para melhor realizar uma determinação empírica (imperativos práticos pragmáticos), mas que ela pode determinar a vontade independentemente de móbiles sensíveis, isto é, sem nada de empírico, atestando, desse modo, a existência das leis práticas puras, 65 que são os imperativos práticos-morais. A razão prática é uma faculdade que tem “princípios a priori”. Ela não só é capaz de influenciar a vontade, mas, também pode determinar essa faculdade segundo esses princípios. É a razão prática que se ocupa com os fundamentos determinantes da vontade, sejam esses praticamente puros como os princípios da moralidade, que são fins em si mesmos, ou os empiricamente condicionados como os pragmáticos ou as prescrições da prudência, que visam um efeito sensível.

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CRP, A 534/B 562. [grifos do autor]. CRPr, A 45.

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A faculdade da vontade é uma faculdade que, “por meio de representações conceituais, tem o poder de causar a realidade de seus objetos”. 66 Toda ação de uma vontade visa realizar um fim. Esse pode ser representado como um fim em si ou como efeito de uma ação. O fim como efeito de uma ação ou causa não constitui propriamente valor moral. Já o fim em si seria a própria racionalidade do agente que se dispõe a agir moralmente em função da sua humanidade. Segundo Kant, aquele que age por dever, isto é, segundo as prescrições de sua razão prática pura, tem como fim a sua própria racionalidade que o dispõe a agir com valor moral, uma vez que não age visando nenhum outro fim, seja esse imediato ou mesmo mediato. O fim que a razão prática pura se coloca é, portanto, incondicionado, isto é, não é um meio para nenhum outro fim, por isso é por si só um fim absoluto. 67 A lei da razão prática pura, a lei moral, é o único “fundamento da vontade” que pode determiná-la incondicionalmente sem nenhuma representação material. 68 Nenhum fundamento material pode alcançar o estatuto de uma lei universal, uma vez que ele sempre se refere às condições empíricas e essas são sempre particulares e condicionadas. Ao longo da primeira parte da Crítica da razão prática é visível a ênfase kantiana na liberdade da vontade, na independência da vontade das condições empíricas, na medida em que ela pode ser determinável unicamente pela “lei da razão prática”. Essa lei contém apenas a forma legislativa que abstrai de todo conteúdo empírico. A máxima, como princípio subjetivo do querer, é a regra que confere valor moral à ação. 69 Segundo Kant, nosso conhecimento do incondicionalmente prático começa com a lei moral, da qual “nos tornamos imediatamente conscientes” mediante a projeção de máximas para a nossa vontade. Em outras palavras, é a lei moral que se apresenta primeiramente à nossa consciência quando julgamos as máximas da nossa vontade. E, nessa medi-

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CRPr, A 30. “O fim último da natureza sábia e providente na constituição da nossa razão, consiste somente no que é moral” (CRP, A 801/ B 829). 68 CRPr, A 45. 69 Kant define uma máxima como sendo “o principio subjetivo do querer”, distinguindo-a de um princípio objetivo da vontade, “se a razão tivesse pleno poder sobre essa”, que se chama “lei prática” (FMC, Ak 400 [nota]). Na CRPr, ele afirma que as “proposições fundamentais práticas” da vontade “são subjetivas ou máximas, se a condição for considerada pelo sujeito como válida somente para a vontade dele; mas elas são objetivas ou leis práticas, se a condição for conhecida como objetiva, isto é, como válida para a vontade de todo ente racional” (CRPr, A 35). 67

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da, a razão por meio de sua lei prática, como um fundamento determinante sem nenhuma condição sensível, “conduz diretamente ao conceito de liberdade”. 70 Há uma recíproca referência entre liberdade e lei prática incondicionada ou lei moral. 71 A consciência dessa lei é possível na medida em que nos tornamos “atentos” à necessidade exigida pela razão. Necessidade essa que se funda na razão e é prescrita à nossa vontade por essa mesma razão, ao mesmo tempo em que elimina qualquer resquício de condições que possam ser encontradas na experiência. 72 É pela consciência do dever moral, isto é, da lei moral, que podemos conhecer de um modo prático a liberdade. 73 Essa, por sua vez, é a própria condição da moralidade, é a “razão de ser” (ratio essendi) das ações morais. 74 Sem a possibilidade de se pensar a liberdade, se tornaria impossível a existência mesma da moralidade. A lei fundamental da razão prática pura é a “lei da universalidade”, a qual determina a priori a vontade com respeito à forma de suas máximas. 75 A consciência da lei fundamental da razão prática é chamada de factum da razão pura. Esse factum se impõe por si mesmo como sendo “uma proposição sintética a priori”, mas que, “contudo é o único factum da razão pura, que se auto proclama como sendo legislativa em sua origem”. 76 A lei moral, a lei da autonomia, expressa a autonomia da razão prática pura, o que significa dizer que ela é a expressão máxima e sublime da liberdade. Segundo Kant, julgamos que podemos ou não fazer algo porque temos consciência de dever ou não fazer e, a partir dessa consciência, reconhecemos que somos livres. Igualmente, o dever pressupõe o poder realizar aquilo que deve ser feito; de outro modo, a lei moral seria vista como um ideal inatingível, meramente abstrato e vazio. 77 70

CRPr, A 53. CRPr, A 52. 72 CRPr, A 52. 73 CRPr, A 54. 74 CRPr, A 5. 75 CRPr, A 55. Na FMC, Kant afirma que o valor das ações morais corresponde à máxima que determina a vontade, nesse sentido não depende em nada da realização do objeto do querer, mas simplesmente do princípio que está a determinar a vontade na realização desse objeto (FMC, Ak 399/400). 76 CRPr, A 56. 77 Segundo Guyer, “o princípio fundamental da moralidade é formal, mas de modo algum vazio. Já está bem fundamentado que a concepção kantiana do princípio fundamental da moralidade não ignora as diferenças entre as necessidades dos indivíduos, reduzindo-os a mercadorias (comodities) anônimas (faceless) intercambiáveis, mas trata todos os indivíduos da mesma maneira apenas no sentido segundo o qual as necessidades racionalmente aceitáveis de cada um devem ser igualmente consideradas em todas as ações que os afetam. A exigência de tratar todos os demais como um fim neles mesmos não é a de que sejam tratados da 71

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A lei moral não é nenhuma determinação impossível de ser realizada, pelo contrário, ela é uma exigência da razão na realização de um interesse prático. 78 Esse interesse, ao expressar o “fim último” da razão, tem como fórmula o “imperativo categórico”, que exige que todo ser racional aja “apenas segundo a máxima pela qual possa ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal”. 79 Esse interesse pode ser representado como o estabelecimento de um mundo moral onde cada um dos demais seres racionais, sendo membros legisladores em virtude de sua razão, deve ser considerado em função de sua racionalidade “sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” 80 por todos os demais.

4.3 O sentimento de respeito Como vimos, a lei moral é uma lei a priori da razão prática pura que pode determinar de modo objetivo por si só a vontade de um ser racional finito, ou seja, o ser humano. Com efeito, como ser sensível, cuja vontade é afetada (embora não determinada) pelas “inclinações”, “aversões” e “impurezas”, que influenciam a vontade na escolha de maus princípios ou máximas, o ser humano não segue necessariamente a lei moral. É exatamente por isso que essa lei da razão pura assume um caráter de mandamento ou imperativo para os homens. 81 Em suma, se a vontade humana fosse inteiramente boa, ou seja, se seu querer seguisse de modo necessário a razão pura, a lei moral não seria um dever. Na Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant dá a entender que, ainda que a vontade possa ser unicamente determinada de modo objetivo pela lei moral, e subjetivamente deva ser determinada por tal lei, é preciso que essa lei seja, digamos assim, subjetivamente acolhida nas máximas. É em função dessa questão que Kant resgata o papel de um mesma maneira no que concerne aos tipos particulares de ação[...]. Kant não exige simplesmente a universalização mecânica das ações próprias de cada um, mas aquela [universalização] de sua aceitabilidade racional. (Cf. GUYER, Paul. Kant and Experience of Freedom. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p. 21). 78 Kant define o conceito de interesse como um conceito “que jamais pode ser atribuído senão a um ente dotado de razão e significa um motivo da vontade, na medida em que este é representado pela razão”. (CRPr, A 141)[grifo do autor]. 79 FMC, Ak 421. 80 FMC, Ak 429. 81 FMC, Ak 412-3.

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tipo muito especifico de sentimento que é o sentimento de respeito. 82 Esse sentimento tem um papel especial no modo como a razão pura pode determinar subjetivamente a vontade, na medida em que ele é um produto da razão pura que está a colaborar com a realização do seu supremo fim que é a moralidade. Mas antes de falarmos do sentimento de respeito, é preciso esclarecer as notas que constituem o conceito de sentimento (Gefühl) enquanto tal e em que sentido ele se relaciona aos demais conceitos no quadro da filosofia de Kant. 83 O conceito de sentimento pode ser definido basicamente como um “estado de ânimo” não representacional de objetos, mas apenas em relação ao sujeito, ao seu estado subjetivo. Os elementos que perfazem o conceito de sentimento, não permitem, de modo algum, o conhecimento de objetos, portanto ele não relaciona nenhuma representação a objetos, 84 isso que dizer que o sentimento não apresenta nenhum papel relevante para a razão teórica. Segundo Kant, o sentimento está “totalmente fora da nossa faculdade de conhecimento” 85 na medida em que ele “não é uma faculdade representativa das coisas.” 86 Nesse sentido, o sentimento não se confunde com o conceito, que é uma representação geral do objeto, nem com a intuição pura que é a capacidade formal de ser afetado por objetos. Ele seria antes a expressão de uma “condição subjetiva de um ser finito e sensível”. 87 Ainda que ao sentimento não se ligue nenhuma representação conceitual e nem intuitiva no que diz respeito ao conhecimento de objetos na razão teórica, ele se aproximaria da razão prática na medida em que os princípios dessa “reportam-se”, em última análise, a objetos que se ligam aos sentimentos de prazer e desprazer. 88 Com relação a isso, Kant

82

No terceiro capítulo da CRPr intitulado “Dos motivos da razão prática pura”, Kant dedica uma extensa análise ao sentimento de respeito (CRPr, A 126). 83 Deparamo-nos aqui com uma das nossas maiores dificuldades que é a própria definição do conceito de sentimento por Kant e o seu estatuto na sua filosofia. Segundo Caygill, o “sentimento é um dos mais ambíguos e, portanto, mais fascinantes conceitos de Kant.”(CAYGILL, H. Dicionário Kant. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 288). 84 Não podemos conhecer objetos mediante sentimentos de prazer e desprazer, mas apenas mediante as faculdades da sensibilidade e a do entendimento uma vez que a referência da representação é sempre aos objetos. 85 CRP, A 802/B 830. 86 CRP, A 802/B 830[nota]. 87 CAYGILL, H. Dicionário Kant. Tradução: Álvaro Cabral. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 2000, pág. 288. 88 Com relação à razão prática, apesar da referência objetiva à lei moral na determinação da vontade, os conceitos práticos se reportam ao sentimento de prazer e desprazer. É isso que afirma Kant numa nota no “Cânone da razão pura” da primeira crítica: “Todos os conceitos práticos se reportam a objetos de satisfação

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afirma que “é o primeiro caso, talvez também o único, em que podíamos determinar a partir de conceitos a priori a relação de um conhecimento (neste caso, de uma razão prática pura) com o sentimento de prazer e desprazer”. 89 Com efeito, o sentimento ao qual estamos a nos referir aqui, o sentimento de respeito, apesar de ser um sentimento, não se confunde imediatamente com o prazer ou o desprazer. Na verdade, mediante o respeito experimentamos tanto o desprazer quanto o prazer, na medida em que, como o respeito é respeito pela lei moral, isso significa que ele obstrui, derroga, prejudica, as influências das nossas inclinações sensíveis ao submeter a nossa vontade à lei moral, e isso causa desprazer. 90 Todavia, tal desprazer dá lugar ao prazer que sentimos por ter realizado uma lei da nossa autonomia, uma lei da nossa liberdade. A origem do sentimento de respeito é, antes de tudo, racional, ou seja, ele tem seu fundamento na consciência da lei moral, apesar de sua efetividade ser posta em relação ao sensível. 91 Pelo menos é nesse sentido que entendemos quando Kant se exprime da seguinte maneira: Muito antes, o sentimento sensorial que funda todas as nossas inclinações é, na verdade, a condição daquela sensação que chamamos respeito, mas a causa da determinação desse sentimento encontra-se na razão prática pura e por isso esta sensação não pode, em virtude de sua origem, chamar-se de patologicamente produzida e sim de praticamente produzida;[...] 92

Logo, o respeito pela lei moral é um sentimento produzido por um fundamento intelectual, e esse sentimento é o único que conhecemos de modo inteiramente a priori e de cuja necessidade podemos ter discernimento. 93

ou de aversão, isto é, de prazer ou desprazer, portanto, pelo menos indiretamente, a objetos do nosso sentimento” (CRP, A802/B 830 [nota]). 89 CRPr, A 129. 90 Com isso não quero dizer que o sentimento de respeito seja considerado como uma espécie de “transcendental” para a possibilidade dos sentimentos de prazer e desprazer, mas sim, e seguindo a interpretação de Guido Antônio de Almeida, que sentimentos de “primeira ordem” podem ensejar sentimentos de “segunda ordem” tanto no domínio do prático quanto no estético. (Cf. ALMEIDA, Guido Antônio. “Sobre a especificidade e a autonomia do estético em Kant”. S/R, p. 17). 91 CRPr, A 134. 92 CRPr, A 134[grifo do autor]. 93 CRPr, A 130.

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O sentimento de respeito, segundo Kant, não é uma inclinação. Ao invés disso, o respeito só é possível em função da lei da razão que, como autonomia, é liberdade prática; é o resultado do fato de o próprio sujeito dar a lei a si mesmo. Assim, apesar de ser um efeito da lei moral, o sentimento de respeito está ligado, a priori, a uma atividade racional pura, isto é, à causa livre e não ao efeito dessa causa, porque “o único objeto de respeito é a lei”, na medida em que é a expressão máxima da racionalidade. Kant não desprezou absolutamente o papel do sentimento na promoção da moralidade. Ele apenas inverteu esse papel, mostrando que, apesar de o sentimento não poder de modo algum determinar moralmente a vontade, ele, enquanto sentimento de respeito, 94 pode auxiliar a razão prática atuando, junto à máxima, na promoção da determinação da vontade pela lei da razão. 95 Objetivamente a vontade só pode ser determinada pela lei, mas subjetivamente ela é determinada pelo respeito à lei. 96 Como a vontade dos seres racionais finitos não é perfeitamente racional de modo a necessariamente seguir a lei moral é que, então, essa lei moral objetivamente adquire o caráter de mandamento, de obrigação, de dever, e subjetivamente determina a vontade mediante “a necessidade da ação por respeito à lei”. 97 Portanto, o sentimento de respeito tem um papel fundamental na moralidade das ações na medida em que contribui para que, subjetivamente, a vontade acolha a lei moral e seja determinada de modo a priori pela razão. Nesse sentido, Kant afirma que: “Portanto este sentimento (denomi94

Segundo Caygill, “Kant exclui o sentimento da filosofia prática crítica apenas para que retorne na forma do sentimento de respeito pela lei”. Dicionário Kant. Tradução: Álvaro Cabral. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 2000, pág. 288. 95 A respeito disso somos brindados com a interpretação de Leonel Ribeiro dos Santos: “Portanto, ao contrário do que muitas interpretações da filosofia prática de Kant nos fazem crer, o filósofo está longe de pensar que a vivência moral se reduza no homem a pura representação da lei. Mas além dessa – que constitui o “fundamento objetivo” de determinação da vontade e a “norma” do juízo moral – ele considera ainda como constituinte essencial daquela vivência um “fundamento subjetivo”, “um móbil” (Triebfeder), o único capaz de levar o sujeito a fazer o que a razão o dita. Se o princípio objetivo reside na razão ou no entendimento prático, é no “coração” que enquanto “sentimento moral”, tem seu assento esse motor da vida moral. Kant insiste na necessidade de não intervir nas respectivas funções dos princípios (o qual levaria a perversão da moralidade); mas não insiste menos na necessidade de considerar-las como inseparáveis. Juntos constituem a vivência moral completa do homem como ser que, sendo racional, é por sua vez sensível, um ser no qual, ao não dar-se imediatamente a coincidência entre a máxima subjetiva e a lei moral pura da razão, a moralidade tão somente se pode apresentar como uma tarefa”. (Cf. RIBEIRO DOS SANTOS, Leonel. “La vivencia de lo sublime y La experiencia moral em Kant”. In: Anales del Seminario de Historia de La Filosofia, 9, 115-126, Editorial Complutense, Madrid, 1992, p. 119. 96 “Ora, uma ação por dever deve pôr à parte toda influência da inclinação e com ela todo objeto da vontade, logo nada resta para a vontade que possa determiná-la senão, objetivamente, a lei e, subjetivamente, puro respeito por essa lei prática[...]”(FMC, Ak 400). 97 FMC, Ak 400.

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nado sentimento moral) é produzido unicamente pela razão. Ele não serve para o ajuizamento das ações ou mesmo para a fundação da própria lei moral objetiva, mas simplesmente como motivo para fazer dessa a sua máxima”. 98 Mais do que desempenhar uma colaboração na determinação da razão à vontade, o sentimento de respeito parece significar, na filosofia prática de Kant, e porque não dizer, também, na estética - de modo especial no sublime - um sentimento cuja expressão máxima é dirigida a um profundo reconhecimento do valor absoluto da natureza racional dos seres humanos. Nesse sentido, Kant afirma que o sentimento de respeito é um sentimento que “se dirige a pessoas e nunca à coisas”. 99 E, como bem salientou Allan Wood:

O respeito é um sentimento complexo e mesmo problemático, porque ele está junto a uma perda de inocência e envolve uma mistura ambivalente de atitudes contrastantes, especialmente em relação a si mesmo. Kant nos diz que o respeito derruba nossa presunção, porque ele nos apresenta uma coisa (a dignidade da lei ou o valor da natureza racional como um fim em si mesmo) que exige de modo absoluto nosso reconhecimento, sem se mostrar favorável a nós, por enaltecer nossa preferência pessoal ou apelar para nossas inclinações. Ainda assim, ele faz isso apenas por meio da veneração e da admiração que sentimos pela dignidade de nossa vocação sublime como seres racionais, em relações às quais devemos lutar para viver de acordo com elas. 100

A lei moral, ao determinar a vontade humana, causa dano às inclinações sensíveis e, por conseguinte, gera um sentimento de desprazer. Segundo Kant, diante da lei moral “todas as inclinações ficam mudas”. 101 Com isso Kant está a argumentar que a razão prática, ao produzir o sentimento de respeito pela lei moral, prejudica as influências sensíveis expressas no “amor-de-si” que desemboca no “egoísmo” e na “presunção”. 102 O sentimento de respeito é considerado como um efeito de certo modo negativo sobre a sensibilidade, por 98

CRPr, A 135. Em função do sentimento de respeito dirigir-se à lei moral e ser um produto da razão, ele só pode ser sentido em relação a pessoas, uma vez que são essas que possuem um valor incondicional por sua racionalidade e dignidade e, por conseguinte, são fins em si mesmas. Já com relação aos animais, segundo Kant, sentiríamos amor ou até medo e não propriamente respeito. (Cf. CRPr, A 135). 100 WOOD, Allen. Kant´s Ethical Thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. 101 CRPr, A 154. 102 Para Kant, a lei moral “com certeza abate a presunção, na medida em que todas as exigências de autoestima que precedem a concordância com a lei moral são nulas e totalmente ilegítimas, na medida precisamente em que a certeza de uma disposição que concorda com essa lei é a primeira condição de todo o valor da pessoa”(CRPr, A 129-30). 99

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conseguinte gerando desprazer, na medida em que “prejudica” e derroga os clamores das inclinações sensíveis. Kant considera, todavia, que apesar do sentido negativo que a lei moral apresenta ao prejudicar as nossas inclinações, e, com isso, dobrar todo o orgulho, “egoísmo” e “presunção” do “amor-de-si”, em função da própria lei em si mesma, essa lei infunde no ânimo um sentimento de prazer, por ser a liberdade da causalidade racional, ou seja, é uma lei na qual o sujeito se reconhece como livre, a saber, se autodetermina. Essa determinação positiva da lei moral é a liberdade prática, a qual infunde no ser humano o sentimento de respeito. Segundo Kant:

Aquilo cuja representação, enquanto fundamento determinante de nossa vontade, humilha-nos em nossa autoconsciência, enquanto é positivo e é fundamento determinante desperta por si só respeito. Logo, a lei moral é também subjetivamente um fundamento de respeito. 103

Em virtude de ser produzido pela razão, o respeito é um efeito; ele pressupõe, além da própria razão, a sensibilidade, por meio da qual é possível sentir o efeito de um ato da razão prática. É a sensibilidade que atesta a finitude desse ente. Com efeito, na medida em que o sentimento de respeito tem origem na razão pura e tem relação com a lei moral, ele faz com que desponte, digamos assim, nesse ente, a infinitude suprassensível, cujo valor é colocado acima de toda e qualquer condição sensível: a sua dimensão racional prática. 104

103

CRPr, A 132.[grifo do autor]. Kant esclarece numa longa nota na FMC acerca do papel do sentimento de respeito na moralidade: “[...] ainda que o respeito seja um sentimento, nem por isso ele é um sentimento recebido por influência, mas um sentimento autoproduzido através de um conceito da razão e, por isso, especificamente distinto de todos os sentimentos da primeira espécie, que podem ser reduzidos à inclinação ou ao medo. O que reconheço imediatamente como lei para mim, reconheço-o com respeito, o qual significa meramente a consciência da subordinação de minha vontade a uma lei, sem mediação de outras influências sobre o meu sentido. A determinação imediata da vontade pela lei e a consciência da mesma chama-se respeito, de tal sorte que este é considerado como efeito da lei sobre o sujeito e não como causa da mesma. O respeito é propriamente a representação de um valor que faz derrogação ao meu amor-de-mim-mesmo. Logo, é algo que não é considerado nem como objeto de inclinação, nem do medo, muito embora tenha com ambos algo de análogo. O objeto do respeito é, portanto, unicamente a lei e, na verdade, aquela que impomos a nós mesmos e, no entanto, como necessária em si. Enquanto lei, estamos submetidos a ela sem consultar o amor de si; enquanto imposta a nós por nós mesmos ela é, no entanto, uma conseqüência de nossa vontade e tem, do primeiro ponto de vista, analogia com o medo, do segundo, com a inclinação. Todo respeito por uma pessoa é propriamente apenas respeito pela lei (da probidade etc.), da qual aquela nos dá o exemplo. Porque também consideramos como dever a ampliação de nossos talentos, também nos representamos numa pessoa talentosa como que o exemplo de uma 104

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O sentimento de respeito, como vimos, agrega elementos contrastantes como o desprazer e o prazer. O desprazer porque o respeito pela lei moral limita e obstrui a influência das inclinações. Não obstante esse desprazer, pelo fato de sermos seres sensíveis, ao seguirmos a lei da razão, também é gerado no ânimo o sentimento de autocontentamento que, nesse sentido, pode ser considerado como um prazer, na medida em que ele é o efeito da consciência de uma autolegislação racional. Kant considera que o homem só pode ser considerado em seu valor e dignidade quando se autodetermina racionalmente. Ao determinarse a si mesmo e não ser escravo de suas inclinações, esse ser racional pode considerar que sua vida é um valor que vale mais do que qualquer inclinação. Como bem salientou Guido de Almeida:

O desprazer que experimentamos com a restrição de nossos desejos à condição da lei moral e com a conseqüente “humilhação”, como diz Kant, do nosso egocentrismo natural é superado pelo contentamento que resulta da consciência de que a mesma lei moral confere à nossa vontade (de onde, aliás, ela provém) um valor irrestrito, incomparavelmente maior do que o prazer que pode resultar da satisfação de nossos desejos egoístas. Podemos dizer então que esse contentamento que resulta do reconhecimento da lei só pode nos desagradar na medida mesmo em que eleva (erhebt) e confere sublimidade (Erhabenheit) moral à nossa subjetividade. 105

É o sentimento de respeito que ressurge (não como determinação da vontade pela lei 106, mas ainda assim ligado à razão) como um sentimento gerado no jogo entre as faculdades no ajuizamento estético do sublime, lembrando a vocação sublime dos seres humanos

lei (a de se tornar semelhante a ela nisso) e é isso que constitui o nosso respeito. Todo o chamado interesse moral consiste unicamente no respeito pela lei”. (FMC, Ak 401[nota]).[grifos do autor]. 105 ALMEIDA, Guido Antônio. “Sobre a especificidade e a autonomia do estético em Kant”. S/R, p. 17. 106 Segundo a profunda interpretação de Paul Crowter, nas obras de filosofia prática de Kant “a sublimidade” é tratada primeiramente, não como um sentimento, mas como um predicado atribuído à vontade determinada pela lei moral, que é aquela vontade que transcende a determinação por algum impulso natural (incluído até mesmo a simpatia).(CROWTER, Paul. The Kantian Sublime: From morality to Art. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 20). Para Crowter, Kant atribui a sublimidade, na sua ética, apenas à consciência da lei moral não envolvendo aí nenhuma esfera estética, e somente na CFJ Kant “oferece uma teoria que supera o abismo entre a sublimidade como um conceito moral e como um conceito estético”. (Ibidem, pp. 36-7). Segundo nossa interpretação, que concorda parcialmente com Crowter, apesar de Kant realmente não constituir uma teoria do sublime em suas obras práticas, já encontramos, como afirma Leonel Ribeiro dos Santos, nas passagens em que Kant se refere à contemplação do cosmo e liga essa contemplação à dimensão moral, o esboço e o esforço de uma tentativa de ligar o sentimento estético à sua ética via o sentimento de respeito. (RIBEIRO DOS SANTOS, Leonel. Metáforas da razão ou economia poética do pensar kantiano. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, 1994, pp. 451-2).

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à moralidade. A respeito dessa aproximação entre o sentimento moral de respeito e o sentimento estético do sublime, Leonel Ribeiro dos Santos afirma que:

[...] Ao tentar compreender a natureza desse sentimento “especial” que é o “sentimento moral”, somos levados a reconhecer que, ainda que ele não se identifique pura e simplesmente com sentimento do sublime, revela ao menos uma homologia total e uma rara cumplicidade com este último. A partir da análise dessa cumplicidade vem a sugerir-se que o sentimento do sublime não somente seria a linguagem do sentimento moral - a “exposição sensível” (ainda que negativa) da concepção suprassensível do homem e das ideias morais, testemunho dessas e do absoluto na sensibilidade humana- , senão que, ademais, a vivência moral mesma somente seria compreensível se supusesse, como elemento seu, uma vivência inequívoca do sublime. 107

Segundo Kant, a origem do sentimento de respeito assim como a lei moral encontrase na razão. O valor que os homens podem dar-se a si mesmos não se encontra em nada que seja sensível, mas apenas naquilo que o constitui enquanto ser inteligível, isto é, enquanto ser livre racional, por conseguinte, moral. Em outras palavras, o valor, ou seja, aquilo que “deve ser” e não o que é, está intrinsecamente relacionado ao seu caráter, à sua “personalidade, isto é, à liberdade, e à independência do mecanismo de toda a natureza, considerada ao mesmo tempo como faculdade de um ente submetido a leis peculiares, a saber, leis práticas puras dadas por sua própria razão”. 108 É em função desse valor, que todo ser humano carrega em si por ser racional, que ele deve ser considerado sempre como “um fim em si mesmo”. O homem como único ser livre da natureza é o “sujeito da lei moral” e todas as suas ações só podem ter valor quando as mesmas têm sua origem nessa lei que é a expressão de sua autonomia. Nessa medida é que a ideia de “personalidade” infunde no homem um caráter de respeito em função de ele ser capaz de, por sua própria razão, seguir a lei que a razão ordena, e que, na verdade, é a sua própria legislação ou autonomia enquanto ser suprassensível. É essa ideia de “persona-

107

RIBEIRO DOS SANTOS, Leonel. . “La vivencia de lo sublime y La experiencia moral em Kant”. In: Anales del Seminario de Historia de La Filosofia, 9, 115-126, Editorial Complutense, Madrid, 1992, p. 116. 108 CRPr, A 155.

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lidade”, como afirma Kant, que “desperta respeito” e “nos coloca ante os olhos a sublimidade de nossa natureza (segundo sua destinação)”. 109 É tal ideia que, por outras vias, emerge no “sentimento” ou “experiência” estética do sublime. Esse sentimento estético apesar de não se identificar com o sentimento moral, nem fundar-se sobre um interesse da razão, tem como pressuposto necessário ou “princípio geral” 110 o próprio sentimento moral ou, como afirma Kant, como veremos mais adiante, o “sentimento para as ideias práticas”. Por outro lado, também, em seus traços mais essenciais, o ajuizamento estético do sublime chega, inclusive, a dar origem àquele sentimento e é, nessa medida, que pode reforçar os laços de colaboração entre o estético e o moral. Com relação às propriedades encontradas no sentimento do sublime, Kant já deixa antever seus traços mais gerais na Crítica da razão prática quando relaciona o sentimento de respeito com a dimensão suprassensível dos seres finitos. Kant conclui a Crítica da razão prática, apresentando uma das que podem ser consideradas mais belas dentre as passagens de sua filosofia e que consiste exatamente numa relação entre o “sentimento estético cosmológico” e o “sentimento moral”. A primeira passagem refere-se tanto à imensidão ou sublimidade do universo quanto à finitude e pequenez desse ser que o contempla. A segunda, de certa forma, invertendo a primeira, atesta a “grandiosidade” e “dignidade” mesma do ser humano que, ao contemplar a imensidão do cosmos, sente-se livre em função de sua dimensão suprassensível e, a partir dessa liberdade, carrega em si a consciência da lei moral inscrita na sua razão, lei que o eleva acima de todo o sensível. Nas palavras do filósofo: Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre nova e crescente, quanto mais frequente e persistentemente a reflexão ocupa-se com elas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim. Não me cabe procurar e simplesmente presumir ambas como envoltas em obscuridades, ou no transcendente além de meu horizonte; vejo-as ante mim e conecto-as imediatamente com a consciência de minha existência. A primeira começa no lugar que ocupo no mundo sensorial externo e estende a conexão, em que me encontro, ao imensamente grande com mundos sobre mundos e sistemas de sistemas e, além disso, ainda a tempos ilimitados de seu movimento periódico, seu início e duração. A segunda começa em meu si-mesmo < Selbst > invisível, em minha personalidade, e expõe-me em um 109

CRPr, A 156. Guido de Almeida afirma que “o princípio moral pode ser pensado como um princípio geral dos juízos reflexivos sobre a representação do sublime”. (ALMEIDA, Guido Antônio. “Sobre a especificidade e a autonomia do estético em Kant” S/R, p. 20.) 110

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mundo que tem verdadeira infinitude, mas que é acessível somente ao entendimento e com o qual (mas deste modo também ao mesmo tempo com todos aqueles mundos visíveis) reconheço-me, não como lá, em ligação meramente contingente mas em conexão universal e necessária. O primeiro espetáculo de uma inumerável quantidade de mundos como que aniquila minha importância enquanto criatura animal que tem de devolver novamente ao planeta (um simples ponto no universo) a matéria da qual ela se formara, depois que fora por um curto espaço de tempo (não se sabe como) dotado de força vital. O segundo espetáculo, ao contrário, eleva infinitamente meu valor enquanto inteligência, mediante minha personalidade, na qual a lei moral revela-me uma vida independente da animalidade e mesmo de todo o mundo sensorial, pelo menos o quanto se deixa depreender da determinação conforme a fins de minha existência por essa lei, que não está circunscrita a condições e limites dessa vida mas penetra o infinito. 111

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CRPr, A 290. Leonel Ribeiro dos Santos, expressa de um modo emocionante essa passagem de Kant quando afirma que: “Há na vivência cosmológica algo que os conceitos não captam, que as palavras não exprimem e que só a contemplação silenciosa deixa sentir. Para além do que o entendimento possa compreender a respeito do sistema do mundo, mesmo valendo-se das analogias da imaginação sempre o cosmos subsiste como objeto de admiração pela sua grandeza e incomensurabilidade, proporcionando à imaginação o “esquema” para a ideia do infinito. Mas, por outro lado, perante esta grandeza e incomensurabilidade, sente-se o homem reduzido à sua insignificância e como que aniquilado enquanto ser material e sensível, ao mesmo tempo ganha consciência da sua condição e dignidade moral, que o eleva infinitamente acima de todo o universo e graças à qual somente, o próprio universo recebe um sentido final. Esta antinomia que exibe a essência do sentimento do sublime, está admiravelmente expressa na conhecidíssima passagem da Conclusão da Crítica da razão prática, que consagra a inequívoca e íntima relação que existe entre a experiência cosmológica e a experiência da moralidade, como vivências originárias ou sentimentos – respectivamente, de admiração (bewunderung) e de respeito (Ehrfurcht, Achtung) – imediatamente ligados com a consciência da própria existência”. (Cf. RIBEIRO DOS SANTOS, Leonel. Metáforas da razão ou economia poética do pensar kantiano. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, 1994, pp. 451-2).

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5 O Sublime

O conceito do sublime teve antes de Kant vários sentidos. Depois de Kant ele continuou a despertar interesse em função da riqueza de elementos que o mesmo apresenta possibilitando uma maior articulação com as questões contemporâneas, sobretudo no campo da psicanálise, da arte e da literatura. 112 Antes de tratarmos do conceito do sublime em Kant faremos inicialmente uma pequena genealogia desse conceito. É na primeira metade do século I d. C. que surge, pela primeira vez no mundo ocidental, o termo “Sublime”. 113 Em um pequeno tratado intitulado Do sublime (em latim, Peri Hypsos), do retórico chamado Longino, ou Dionísio, como também era conhecido,114 esse associa o sentimento do sublime aos efeitos da retórica sobre o espírito. Segundo ele, o “sublime é o ponto mais alto e a excelência, por assim dizer, do discurso que eterniza os

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Segundo Zammito, já no séc. XVIII o sublime fora apropriado pela estética tanto inglesa quanto pelo movimento romântico alemão Sturm und Drang que o privilegiavam no seu caráter estético em detrimento do seu significado moral. Para Zammito, Kant havia avançado sua análise do sublime de 1764 sobre o fundamento do valor moral da experiência estética do sublime, de modo que o próprio Kant condenara a primazia da estética por parte daqueles estetas e românticos, esforçando-se, por conseguinte em afirmar a primazia do prático. (ZAMMITO, J. H. The Genesis of Kant´s Critique of Judgment. London: The University of Chicago Press, Ltd., 1992, p. 277). Na contemporaneidade, Paul Crowter, no final da década de 80 do século passado, investigou a origem desse interesse no sublime kantiano e percebeu a necessidade de tratar do tema em sua relação com a moralidade kantiana. Por um lado, ao mesmo tempo em que Crowter salienta o interesse por parte de alguns autores no sublime kantiano, sobretudo da tradição francesa, como Derrida, Paul de Man e Lyotard, dentre outros, que se apropriaram do sublime kantiano para tratar de questões relativas à arte e à literatura, ele também afirma que esses não levaram em conta as articulações feitas por Kant entre o sublime e a moralidade. Para Crowter, “há pouca ou nenhuma tentativa de considerá-lo [o sublime] no contexto de possíveis tensões e distorções sobre ele pela posição filosófica mais ampla que encarna a estética e a ética kantiana.” (CROWTER, Paul. The Kantian Sublime: From Morality to Art. New York: Oxford University Press, 1989, p.3) Com efeito, em sua interpretação do sublime, Crowter afirma que Kant não conseguiu estabelecer a autonomia, ou, como ele afirma, as “credenciais” do estético face ao ético (Ibidem, p. 4), tendo Kant “reduzido o sublime a um tipo de experiência moral indireta” (Ibidem, p. 166). Esse intérprete se propõe, então, a estabelecer tais “credenciais estéticas” do sublime. Como afirmamos na Introdução ao presente trabalho, apesar de o ajuizamento estético do sublime relacionar-se intimamente com a moralidade, possibilitando até mesmo uma passagem de um ao outro, ele não faz isso anulando sua característica de juízo estético, de modo que isso não significa uma perda da sua autonomia enquanto juízo estético. 113 Cf. A poética clássica: Aristóteles, Horácio e Longino. Tradução Jaime Bruna. São Paulo: Cutrix, 2005, p.11. 114 LONGINO. “Do Sublime”. In: A poética clássica: Aristóteles, Horácio e Longino. Tradução Jaime Bruna. São Paulo: Cutrix, 2005, p. 69.

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maiores escritores e poetas”. 115 Para Longino, são esses que, “com lances geniais” de palavras causam o sentimento do sublime que “transcende a alma”. 116 Esse sentimento, portanto, consistiria, sobretudo, no poder “impactante” do orador sobre o ouvinte, lançando sobre esse uma “força irresistível” elevadora da alma a um reino de grandezas espirituais. Com efeito, não seria somente o poder das palavras a causa do sentimento do sublime, mas também o “silêncio”. Para Longino, “o sublime é o resôo da grandeza da alma. Por isso, mesmo sem uma palavra, suscita admiração de per si um mero pensamento, graças à sua grandeza mesma, como o silêncio de Ájax na Evocação dos Mortos, algo grandioso e mais sublime que qualquer palavra”. 117 O silêncio também simboliza a maneira de expressar aquilo que, não podendo ser representável por meio de conceitos ou imagens, causa uma profunda comoção espiritual, ou seja, o sublime. Com relação a essa impossibilidade de representação imagética do absoluto ou sagrado, na “Analítica do sublime” da Crítica da faculdade do juízo, Kant se refere à lei mosaica da “proibição de imagens” como causa de um sentimento de “entusiasmo” sublime sentido pelo povo judeu para com sua religião. Kant compara o modo como esse povo se comportava perante o mandamento divino com a relação de determinação que a lei moral, ou o mandamento da razão, estabelece à vontade. Segundo Kant, a lei moral não pode ser representada sensivelmente, ou seja, não podemos representar a lei moral por meio de imagens e nem nossos gestos podem, a rigor, ser considerados como autênticos atos morais. Com efeito, não é porque a lei moral não possa ser representada sensivelmente e o efeito de seu poder seja somente sentido na medida em que ela silencia as inclinações, prejudicando a influência das mesmas sobre a vontade, que ela, como Kant bem colocou, não possa comportar “comoção” e “força motriz” no ânimo, mas apenas aprovação “fria” e “sem vida”. 118 Após a tradução do tratado de Longino no século XVII por Boileau, 119 o sublime recebeu vários elementos que serão agregados ao seu conceito a partir dos trabalhos de Joseph Addison e de Edmund Burke. 120 Os elementos acrescentados por esses autores ao con115

Ibidem, p. 70. Ibidem, p. 72. 117 Ibidem, p. 78. 118 CFJ, B 125. 119 Por séculos a obra de Longino permaneceu adormecida ressurgindo somente no final do século XVII (1674) com a tradução para o francês feita pelo crítico de arte Nicolas Boileau. 120 CROWTER, Paul. The Kantian Sublime: From Morality to Art. New York: Oxford University Press, 1989, p. 7. 116

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ceito do sublime serão essenciais para o modo como Kant irá desenvolver o seu conceito de sublimidade. 121 Os exemplos dados por Kant na sua “Analítica do sublime”, na terceira Crítica, são sinais da influência que sofreu desses autores. 122 Joseph Addison, em seus ensaios intitulados de Os prazeres da imaginação (1712), 123 transfere o sublime da arte poética, tal como aparece em Longino, para a esfera da natureza. Ao afirmar que a imaginação “ama” o encontro com objetos grandiosos da natureza que ocasiona a ampliação de seus limites e horizontes, proporcionando-lhe uma “imagem da liberdade”, Addison efetua uma transposição do sublime como um sentimento ligado ao poder arrebatador das palavras caracterizando-o como um sentimento prazeroso de liberdade proporcionado pela contemplação de objetos ou fenômenos grandiosos da natureza. Assim afirma Addison: Nossa imaginação ama ser preenchida por um objeto, ou alcançar alguma coisa que seja grande demais para sua capacidade. Somos arremessados a uma surpreendente satisfação em tal visão ilimitada, e sentimos um delicioso [delightful] espanto e quietude na alma na apreensão deles. A mente do homem naturalmente odeia tudo o que parece ter restrição sobre ele, e está apta a imaginá-lo sob uma espécie de confinamento quando a vista é reprimida a um limitado alcance, e próximo a todos os lados pela vizinhança de paredes ou montanhas. Pelo contrário, um espaçoso horizonte é uma imagem da liberdade, onde o olho tem espaço para expandir ao longo da imensidão de suas vistas, e perder-se no meio da variedade de objetos que se oferecem para suas observações. Assim, amplas e indeterminadas perspectivas são tão agradáveis à fantasia [fancy], como a especulação da eternidade ou infinitude são ao entendimento. 124

O sublime em Addison também apresenta uma semelhança com aquele sentimento de “autotranscendência” apresentando por Longino. O sublime em Longino remete o leitor 121

Segundo Crowter, Kant teve uma grande influência de Addison chegando até a citar o título da obra desse O Espectador na sua obra pré-crítica: Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. Ainda, segundo Crowter, a influência de Burke em Kant, pode ter se dado indiretamente a partir de uma revisão realizada por Mendellsohn da obra de Burke: Uma Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo (1° Ed.1757). (Cf. CROWTER, Paul. The Kantian Sublime: From Morality to Art. New York: Oxford University Press, 1989, p. 12). 122 Os exemplos citados por Kant que aparecem na obras daqueles autores e que são fontes do sentimento do sublime são expressos nos seguintes exemplos dados por Kant: “rochedos ameaçadores”, o “ilimitado oceano revolto”, “altas quedas d´água”, etc. (CFJ, B 104). 123 ADDISON, Joseph. “The Pleasures of the Imagination”. In: Selections from The Tatler and The Spectator of Steele and Addison. Ed. Penguim Books, New York, 1982. 124 Ibidem, p. 371.

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ou o ouvinte a partir do contato com as palavras, ou mesmo no “silêncio que representa a solenidade ante o que [o] transcende”, 125 a uma profunda emoção espiritual. Em Addison, o ouvinte é substituído pelo espectador, mas o “sentido de liberdade” experimentado por esse espectador permanece semelhante àquele de “autotranscendência” apresentado por Longino. Sentimento que o espectador vivencia ao ser liberado dos limites da sua percepção a partir do encontro com “objetos grandiosos” na natureza. Se o sublime em Longino e em Addison, de diferentes maneiras, está relacionado à uma espécie de arrebatamento espiritual, ocasião de um prazer superior aos prazeres sensíveis, para o empirista Burke a comoção do sublime liga-se diretamente ao sensível no sujeito, ao seu corpo e instinto de vida. No seu livro Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo (1757, 1° Ed.), Burke evoca as ideias de “terror” ou de “assombro” moderados como as causas do sentimento do sublime. Ele define esse sentimento em seu “mais alto grau” como o “terror” ou o “assombro” ocasionado por objetos que, apesar de representarem perigo, efetivamente não podem ser considerados uma ameaça iminente ao espectador. Segundo Burke, “a paixão a que o grandioso e sublime na natureza dão origem, quando essas causas atuam de maneira mais intensa, é o ‘assombro’, que consiste no estado de alma no qual todos os seus movimentos são sustados por um certo grau de horror”. 126 Tal “horror”, ligado às ideias de “dor” e de “perigo”, acometem o espectador que deve estar seguro e protegido dos perigos, para que esse possa sentir um tipo bastante específico de sentimento, que não se confunde diretamente nem com o prazer positivo e nem com a dor negativa, mas que, paradoxalmente, envolve a ambos prazer e dor, numa espécie de “horror deleitoso”. 127 Na verdade, para Burke, o sentimento do sublime seria o mais possante ou intenso que o espectador pode sentir na medida em que esse sentimento está ligado com um dos mais fortes instintos do ser humano que é o da “autopreservação”. Em outras palavras, o temor que acomete o espectador em face à imensa natureza em seus eventos mais potentes 125

BRUM, J. T. “Visões do sublime: de Kant a Lyotard”. In: KANT: Crítica e Estética na Modernidade. Orgs: Lleana Padilha Cerón e Paulo Reis. São Paulo: Senac, 1999, p. 59. 126 BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Tradução: Enid Abreu Dobránszky. Campinas, SP: Papirus, Editora da Universidade de Campinas, 1993, p. 65. (Tradução baseada na 2° edição de 1759). 127 Ibidem, p.78.

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(terremotos, furacões, o mar revolto) é o temor de perder a sua vida; todavia por manter-se a uma certa distância, seguro e protegido, esse temor, liga-se àquele instinto de “autopreservação” que é sentido como um certo deleite, e é nesse momento que então é sentido o sentimento do sublime. Como expressa Burke: “empregarei a palavra deleite para indicar a sensação que acompanha a eliminação da dor ou do perigo”. 128 Para Burke, esse “horror deleitoso” “é o efeito mais natural e o teste mais infalível do sublime.” 129 Eis algumas passagens desse autor em que o mesmo se refere a essa relação:

Tudo que seja de algum modo capaz de incitar as ideias de dor e de perigo, isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos terríveis ou atua de um modo análogo ao terror constitui uma fonte do sublime, isto é, produz a mais forte emoção de que o espírito é capaz. [digo a mais forte emoção, porque estou convencido de que as ideias de dor são muito mais poderosas do que aquelas que provêm do prazer [...]. 130

As paixões relativas à autopreservação derivam da dor e do perigo; elas são meramente dolorosas quando suas causas afetam-nos de modo imediato; são deliciosas, quando temos uma ideia de dor e de perigo, sem que a elas estejamos expostos; não chamei esse deleite de prazer, porque ele nasce da dor e porque é muito diferente de uma ideia de prazer positivo. Chamo de sublime tudo o que incita esse deleite. As paixões pertencentes à autopreservação são as mais fortes de todas. 131

O sublime em Burke não remete a uma “autotranscendência”, à semelhança do sublime de Longino e de Addison, uma vez que é essencialmente a expressão de uma experiência “fisiológica”, isto é, ligada primordialmente à constituição física do sujeito. A estética de Burke, desse modo, está fundamentada no que é empírico, na subjetividade (psicológica) do espectador em sua relação com os objetos externos. A leitura da “Analítica do sublime” na terceira Crítica lembra-nos vários aspectos já apresentados na análise de Burke. A comoção, ou sentimento de deleite, apresentado por Burke também reunirá em Kant elementos dessemelhantes ou paradoxais como os sentimentos de desprazer e prazer. Os objetos (sem forma) ou as situações apresentadas, por 128

Ibidem, p. 46. Ibidem, p. 78. 130 Ibidem, p. 48. 131 Ibidem, p. 58. 129

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Kant, como ocasiões do ajuizamento do sublime, são semelhantes àqueles que Burke apresenta como dando origem às ideias de “assombro” e de “terror deleitoso”, - fontes do sublime - como a “vastidão”, a “solidão absoluta”, o “oceano revolto”, a “infinitude” etc; e também o estado do espectador diante desses objetos ou eventos que deve encontrar-se em segurança para poder ajuizar esteticamente. Com efeito, Kant marca uma distinção fundamental com relação a todo o empirismo, por conseguinte ao sublime de Burke. Primeiramente, e, de um modo geral, essa diferença consiste, sobretudo, naquilo que podemos caracterizar, em Kant, como sendo o transcendental, e que consiste no “jogo livre” a priori das faculdades. Sabemos que o conceito de transcendental em Kant nos remete diretamente ao a priori, ou seja, à universalidade e necessidade, bem como a condição de possibilidade da própria experiência. Na filosofia transcendental de Kant, a faculdade do juízo, bem como o sentimento de prazer e desprazer, não dizem respeito à condição “fisiológica” e “psicológica” do sujeito, mas antes à uma capacidade a priori desse sujeito (transcendental) de ajuizar esteticamente a forma dos objetos, isto é, com necessidade (ainda que não lógica) e universalidade. E, especificamente, no que diz respeito ao sublime, a grande distinção feita por Kant com relação ao sublime de Burke consiste exatamente em Kant poder pensar o sublime com relação à moralidade, 132 o que não aparece de modo algum no sublime de Burke. Contudo, anterior à estética crítica sob o viés do transcendental, ou seja, anterior ao seu período crítico, o jovem Kant analisou o sublime, como o mesmo afirmou, mais sob o “olhar do observador” do que do filósofo 133. É num opúsculo de 1764, intitulado Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, que Kant apresenta seu primeiro conceito do sublime. Ainda fortemente influenciado pela estética empirista inglesa 134, que atribuía a cultura e formação do gosto à vida em

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O que a Professora Virgínia sugeriu, para o presente trabalho, como sendo a “Virada moral” do sublime kantiano, que é, segundo a mesma, a “possibilidade de a imaginação se encontrar (mesmo que seja para o conflito) com a razão”. 133 KANT, Immanuel. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime; Ensaio sobre as doenças mentais. Trad.: Vinícius de Figueiredo. Campinas, SP: Papirus, 1993, p. 19. 134 Segundo Eva Schaper, quando Kant escreveu as Observações sobre o belo e o sublime “ele não acreditava que questões estéticas poderiam prestar-se a nada mais do que um tratamento empírico”. (Cf. “Gosto, sublimidade e gênio: A estética da natureza e da arte”. In: Kant. Org. Paul Guyer. Trad.: Cassiano Terra. Cambridge University Press, 1992. Ed.: São Paulo: Ideias & Letras, 2009, p. 456). A estética na Alemanha do séc. XVIII era tratada, sobretudo, para se referir àquilo que os empiristas ingleses chamavam de “crítica do gosto”. O gosto, para esses, era algo que estava relacionado com a vida em sociedade, e, portanto, era algo empírico.

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sociedade, Kant, nesse trabalho, caracteriza o belo e o sublime como “sentimentos refinados” relacionando-os aos diferentes aspectos do comportamento humano com um certo grau de “valoração” com relação aos costumes sociais. 135 Todavia, não somente relacionado ao comportamento exterior dos homens e das mulheres na vida em sociedade, Kant também apresenta o belo e o sublime como ligados ao caráter. Segundo Kant, “entre as qualidades morais, apenas a verdadeira virtude é sublime”, 136 e “a verdadeira virtude, portanto, só pode ser engendrada em princípios que, quanto mais universais, a tornam tanto mais sublime e nobre”. 137 Kant afirma ainda que, tais princípios, “são a consciência de um sentimento que vive em cada coração humano”, e caracteriza esse sentimento de sublime como o sentimento de respeito pela dignidade humana. 138 Ao sentimento do sublime relacionamse aquelas qualidades do caráter de uma pessoa que, em função da integridade de seus princípios, são imensamente nobres, como amizade, o respeito e a sinceridade. Como afirma Kant:

A amizade é sublime e, por isso, é própria para seu sentimento [...]. Mesmo a recordação de uma amizade passada lhe é digna de veneração. A conversação é bela, o silêncio é sublime. Sabe muito bem guardar segredos, seus ou alheios. A sinceridade é sublime, e ele odeia mentiras ou fingimento. Possui um elevado sentimento da dignidade da natureza humana. Aprecia a si mesmo, e tem o ser humano como cria-

De 1764, quando Kant escreve as Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, até aproximadamente 1787, ele ainda estaria influenciado pela teoria dos ingleses, sobretudo a de Burke. Nessa obra, Kant concebia o gosto como algo vindo também da sociedade, o gosto seria aprendido em sociedade, e o belo e o sublime, portanto, como sendo sentimentos empíricos. Algum tempo depois, Kant manifesta uma profunda mudança acerca dos fundamentos do gosto quando afirma, numa carta a Reinhold de1787, ter descoberto o princípio a priori do mesmo (Kant, Carta a C. L. Reinhold, 28-31.12.1787, in Imanuel Kant, Briefwechsel, 1986, pp. 333-336, Apud Antônio Marques, “A terceira crítica como culminação da Filosofia Transcendental kantiana”, In: O que nos faz pensar. Revista do departamento de filosofia da PUC-Rio. Edição especial sobre a Crítica do juízo, 1995, p. 7). Segundo Ricardo Terra, entre março de 1788 e maio de 1789, Kant teria mudado os planos de intitular esse trabalho de “Crítica do gosto” passando a chamá-lo de “Crítica do juízo”, uma vez que englobaria além do belo, também o sublime e a teleologia. (TERRA, Ricardo. “Reflexão e sistema: as duas introduções à Crítica do Juízo. In: Duas introduções à Crítica do Juízo. Org.: Ricardo R. Terra. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho e equipe. São Paulo: Iluminuras, 1994, p. 11). 135 A esse respeito, na sua introdução às Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, Vinícius de Figueiredo afirma que “sublime e belo são, antes de qualquer outra coisa, categorias valorativas, das quais derivam modelos de expectativa e, inversamente, critérios de precaução contra condutas que não coadunem com o que é socialmente aceitável segundo índices de aprovação estabelecidos por elas”. (Ibidem, p. 11). 136 KANT, Immanuel. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime; Ensaio sobre as doenças mentais. Trad.: Vinícius de Figueiredo. Campinas, SP: Papirus, 1993, p. 30. 137 Ibidem, p. 32. 138 Ibidem.

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tura que merece respeito. Não tolera nenhuma subserviência abjeta, e seu nobre coração respira a liberdade. 139

5.1 A Crítica da faculdade do juízo (Urteilskraft) e seus princípios Após a publicação de as Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, passados mais de vinte anos, Kant voltará a tratar do tema da estética em 1790, agora em novas bases críticas, sob o ponto de vista transcendental de sua filosofia, quando publica a sua terceira Crítica: a Crítica da faculdade do juízo. É nessa obra que Kant trata do ajuizamento do sublime. Mas antes de chegarmos a esse precisamos explicitar os pressupostos fundamentais que inscrevem o ajuizamento do sublime na categoria de “juízo reflexionante estético”. Passemos ao juízo. A filosofia crítica de Kant é toda ela voltada para a busca de princípios em virtude da natureza da filosofia ser um “conhecimento racional por conceitos”. 140 A tarefa da razão humana, como vimos, é buscar princípios e princípios cada vez mais elevados. Nesse sentido, ela faz uso de conceitos e, no que diz respeito aos princípios mais elevados, de conceitos puros que não têm relação com o sensível. Os conceitos a priori, aos quais nos referimos no primeiro capítulo, e que são reapresentados por Kant nas introduções à Crítica da faculdade do juízo, são, assim, de duas espécies: conceitos que dizem respeito à natureza e conceitos que dizem respeito à liberdade. A filosofia, em função dessa distinção conceitual, é, por sua vez, dividida, respectivamente, segundo aqueles conceitos, em filosofia teórica e filosofia prática. A primeira diz respeito ao conhecimento da natureza fenomênica, a segunda às determinações da vontade a partir de princípios a priori da razão de acordo com a ideia de liberdade. 141 Como vimos no primeiro capítulo, a faculdade do entendimento, que corresponde à faculdade superior da razão teórica, é a “faculdade das regras”, dos “conceitos”, do “conhe139

Ibidem, p. 37. CRP, B 741. No que diz respeito à relação entre princípios e conceitos, Kant afirma que num conhecimento no qual se conhece o particular no universal por meio de conceitos esse recebe o nome de conhecimento por princípios. (CRP, A 300/ B 357). 141 Na CRP, Kant analisou os princípios a priori do conhecimento e procurou determinar em que medida esses princípios poderiam reportar-se a objetos da experiência. Na CRPr, Kant tratou dos conceitos práticos de liberdade e de lei moral. 140

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cimento universal”. É o entendimento que “fornece a priori as leis da natureza” possibilitando, desse modo, um conhecimento da mesma. 142 A faculdade da razão, por sua vez, é a “faculdade dos princípios”, das “ideias” que, em função da ideia de liberdade, confere princípios ou leis práticas (leis morais) à determinação da vontade. Haveria, ainda, uma “faculdade fundamental” sem a qual os princípios citados acima não poderiam se relacionar aos seus respectivos objetos: trata-se da faculdade do juízo (Urteilskraft). O juízo, na sua concepção geral, segundo Kant, é a “faculdade de pensar o particular como contido sob o universal.” 143 É o juízo que faz a mediação entre a representação do particular (intuição) e a representação do universal (conceito) 144, o qual Kant descobre “na família das faculdades”, como sendo um “termo médio” entre o entendimento e a razão. 145 Tanto na Crítica da razão pura como na Crítica da razão prática, a função do juízo será a de ligação, ele conecta representações diversas entre faculdades diferentes. Na primeira, o juízo liga os conceitos do entendimento com a imaginação e a sensibilidade, determinando objetos segundo conceitos a priori; na segunda, ele liga os princípios práticos da razão com a vontade. Dada essas conexões, teríamos segundo Kant, dois domínios diversos na filosofia, respectivamente: o domínio da natureza e o domínio da liberdade. Essa mediação realizada pela faculdade do juízo entre o particular (a representação singular que é a intuição) e o universal (a regra, a lei, o conceito), ocorre de duas maneiras diversas em função dos princípios que subscrevem tais juízos, dividindo-os em duas classes distintas. Trata-se da distinção entre juízos determinantes e reflexionantes. 146 Quando os

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KANT, I. “Primeira introdução à Crítica do juízo”. In: Duas introduções à Crítica do Juízo. Org. Ricardo Terra. SP: Iluminuras, 1994, p. 37. 143 CFJ, B XXVI. Na CRP, Kant define a faculdade do juízo como sendo “a capacidade de subsumir a regras, isto é, de discernir se algo se encontra subordinado a dada regra ou não” (CRP, B 171). 144 “Todos os juízos são funções da unidade entre as nossas representações” (CRP, A 69/B 93). 145 Kant afirma que na “família das faculdades superiores”, o juízo teria seu lugar assegurado como um “termo médio”, entre o entendimento e a razão e que, segundo a analogia entre essas faculdades e seus respectivos objetos, o juízo poderia conter um princípio subjetivo para a procura de leis e, desse modo, portanto, um território próprio (CFJ, B XXI-XXII). 146 “O juízo pode ser considerado, seja como mera faculdade de refletir, segundo um certo princípio, sobre uma representação dada, em função de um conceito tornado possível através disso, ou como uma faculdade de determinar um conceito, que está no fundamento, por uma representação empírica dada. No primeiro caso ele é o Juízo reflexionante, no segundo o determinante.” (KANT, Immanuel. “Primeira introdução à Crítica do Juízo”. In: Duas introduções à Crítica do Juízo. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. Organizador: Ricardo Terra. São Paulo: Iluminuras, 1994, p. 47).

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princípios no fundamento do juízo forem os constitutivos, o juízo será caracterizado como determinante; quando forem princípios regulativos, o juízo será reflexionante. No conhecimento, os juízos determinantes subsumem, por meio dos princípios constitutivos, objetos particulares, isto é, reúnem o particular sob o universal, e, por conseguinte, fornecem unidade às possíveis intuições, como é o caso da legislação formal da natureza pelas categorias ou conceitos puros do entendimento. 147 Esse procedimento determinante do juízo cognitivo é, por sua vez, mecânico, automático, e, por isso, não proporciona nenhum sentimento de prazer. Nesse sentido, Kant afirma que: De fato, não encontramos em nós o mínimo efeito sob o sentimento do prazer, resultante do encontro das percepções com as leis, segundo conceitos da natureza universais (as categorias) e não podemos encontrar, porque o entendimento procede nesse caso sem intenção e necessariamente, em função da natureza. 148

Os juízos da razão prática (moralidade), por sua vez, também operam como juízos determinantes da faculdade de apetição (a vontade), na medida em que esses juízos têm em seu fundamento princípios constitutivos originados na razão, que “dão a lei à liberdade”. Essa lei prática determina a vontade objetivamente. Como a vontade é “uma faculdade de, por meio de representações conceituais, causar a existência de seus objetos”, 149 isso significa que o conceito, a regra ou lei que vai determiná-la na realização de seus objetos (as ações morais), é dado a priori pela razão. Essa lei, como vimos, é a lei moral que determina a vontade em função de uma “propriedade” da própria razão prática que é a liberdade. Kant afirma que “as prescrições moral-práticas se fundam por completo no conceito de liberdade” ou no “princípio suprassensível”, constituindo, assim, uma “espécie particular de prescrições”. 150

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Essas categorias fundadas nos princípios constitutivos são as de “causalidade”, “substância”, “necessidade”, etc. No prólogo à CFJ Kant afirma que “nenhuma outra faculdade do conhecimento além do entendimento pode fornecer a priori princípios de conhecimento constitutivos.” (CFJ, B IV). 148 CFJ, B XXXIX-XL. 149 CFJ, B XXIII [nota]. 150 CFJ, B XV-XVI: “O princípio dessas prescrições não é de modo nenhum retirado do conceito da natureza (o qual é sempre condicionado sensivelmente), por conseguinte repousa no suprassensível, que apenas o conceito de liberdade dá a conhecer mediante leis formais.”

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Com os juízos reflexionantes as coisas se passam de modo diverso. Quando se trata de um juízo reflexionante, 151 o particular é dado e não há nenhum conceito, regra ou lei prévia, que possa “subsumir” esse particular sob uma representação ou regra geral, de modo que o juízo reflete em busca de um conceito sob o qual possa agregar tal representação particular. A reflexão (Ueberlegung) desempenha um papel fundamental na filosofia crítica de Kant, e não seria exagero dizer que a sua filosofia é, enquanto crítica, antes de mais, reflexão. Como afirma Lyotard,

[...] com a reflexão, o pensamento parece bem dispor da arma crítica inteira. Porque a reflexão é o nome que porta, na filosofia crítica, a possibilidade desta filosofia. O poder heurístico de criticar, a Urteilskraft, é o de elaborar as ‘boas’ condições a priori de possibilidade, isto é, a legitimidade, de um juízo sintético a priori. 152

É através da reflexão que nos voltamos, antes de mais, para nós mesmos em vista de ordenar nossas faculdades em seus respectivos princípios na descoberta de conceitos que lhes são próprios. 153Ao refletirmos, organizamos e dirigimos as representações à suas devidas faculdades, uma vez que, segundo Kant, a reflexão “é a consciência da relação das representações dadas às nossas diferentes fontes de conhecimento, unicamente pela qual pode ser determinada corretamente a relação entre elas.” 154 O juízo reflexionante, nesse sentindo, refere-se, antes de mais, às nossas faculdades e não aos objetos de suas representações. 151

CFJ, B IV. Segundo Guyer, Kant apresenta ao todo cinco espécies de juízos reflexionante na CFJ que são: “o uso do juízo reflexivo para buscar um sistema de conceitos e leis científicas, que se descrevem nas duas versões da introdução da obra; o juízo estético, que adota duas formas, a saber, o juízo do belo e o juízo do sublime; e o juízo da organização final, já não meramente mecânica, de organismos particulares na natureza, e o juízo de que a natureza como um todo constitui um sistema único com um fim determinado.” (GUYER, Paul.“Los principios del juicio reflexivo”, In: Dianóia. Anuário de filosofia, n° 42. Universidad nacional autónoma de México. México: Fondo de cultura econômica, 1996, p.3). 152 LYOTARD, Jean- François. Lições sobre a Analítica do Sublime. São Paulo: Papirus, 1991, p. 35. 153 É no “Apêndice da analítica dos princípios” que Kant introduz o conceito de “reflexão” ao afirmar que: “A reflexão (reflexio) não tem que ver com os próprios objetos, para deles receber diretamente conceitos; é o estado de espírito em que, antes de mais, nos dispomos a descobrir as condições subjetivas pelas quais podemos chegar a conceitos.” (CRP, A 260/ B 316). Etimologicamente, o termo “reflexão” vem do latim reflectere, que significa “voltar atrás”, “dobrar-se sobre si mesmo”. A atividade mesma do juízo consiste na reflexão, e refletir (Überlegen), segundo Kant, é “comparar e manter juntas dadas representações, seja com outras, seja com sua faculdade-de-conhecimento, em referência a um conceito tornado possível através disso” (KANT, Immanuel. “Primeira introdução à Crítica do Juízo”. In: Duas introduções à Crítica do Juízo. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. Organizador: Ricardo Terra. São Paulo: Iluminuras, 1994, p. 47). 154 CRP, A 260/B 316.

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O juízo em seu estado mais puro é de natureza eminentemente reflexiva. Nesse sentido, não se refere a nenhum conceito ou regra prévia, ao contrário, busca-o. Com efeito, o juízo reflexionante não seria desprovido de princípios, pois que no seu fundamento encontram-se aqueles princípios regulativos que vimos atrás. São esses princípios que, digamos assim, “regulam” a reflexão do juízo na procura de conceitos em relação àquilo para o que não há previamente nenhuma regra ou categoria dada de antemão. Esses princípios, como vimos, são “subjetivos”, “problemáticos” e “hipotéticos”, no sentido de que eles não determinam os conceitos, ou seja, não constituem objetos, nem do conhecimento, nem da moral. Com efeito, eles orientam o juízo na busca empreendida pelo ser humano para encontrar conceitos mais gerais para as representações particulares, busca que é sempre infinita e assintótica, tanto no que concerne à completude do conhecimento, quanto no que concerne à relação com a vida prática. Eles orientam os seres humanos a agirem em função de princípios que possam conduzir à realização dos fins mais elevados da razão humana. Em outras palavras, nesse último sentido, os princípios regulativos desempenham um papel importante, até mesmo mais importante do que os princípios constitutivos, concernentes ao conhecimento, na medida em que eles podem fornecer uma heurística, ou seja, uma orientação (não determinação) ao querer da vontade na escolha de fins mais elevados. É igualmente em função desses princípios que podemos vislumbrar uma heurística no próprio ajuizamento reflexivo-estético, sobretudo no sublime, 155 na medida em que essa reflexão estética nos possibilita pensar os fins mais condizentes por meio do sentimento de nossa “destinação” ou “vocação” 156 que é, por fim, moral, em relação a qual o mesmo sentimento estético nos faz sentir. No sublime, refletimos sobre a nossa vida naquilo que ela pode ter de mais elevado, em virtude de tal chamado. Nesse sentido, o que pode haver de mais elevado na vida não é o próprio pensamento, mas sim o valor e a dignidade do ser humano, enquanto ser livre, racional e moral. É em função desse valor que o pensamento, não se fechando em si mes155

Guyer nos fornece algumas sugestões que corroboram essa nossa interpretação: “que os princípios regulativos são de interesse prático pode ser um traço comum em todos os argumentos que Kant oferece em torno a tais princípios, ainda que continuamente, e talvez em última instância, o benefício prático que Kant tem em mente o seja no sentindo especial kantiano, a saber, o moral”. (GUYER, Paul.“Los principios del juicio reflexivo”, In: Dianóia. Anuário de filosofia, n° 42. Universidad nacional autónoma de México. México: Fondo de cultura econômica, 1996, p.15) Mais adiante, ao referir-se ao ajuizamento do sublime, Guyer afirma que “a experiência mesma do sublime tem um valor heurístico em relação com a moralidade” (Ibidem, p. 40). 156 Etimologicamente o termo “vocação” vem do latim vocare que significa ‘ser chamado’.

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mo, pode tornar-se, sobretudo na experiência estética, de modo especial, no sublime, um pensamento “consequente” e prospectivo.

5.1.1 O princípio de finalidade e o sentimento de prazer e desprazer Dentre os princípios regulativos que perfazem o juízo reflexionante há um que pertence de modo especial a esse juízo: O princípio de finalidade ou conformidade a fins (Zweckmaessigkeit) da natureza. Que alguma coisa seja um “fim” significa que o conceito dessa coisa foi pensado anteriormente e em função desse conceito foi efetivada a existência dessa coisa. 157 Como vimos, Kant resgata o princípio de finalidade já na Crítica da razão pura a partir de uma dupla exigência da razão, tanto especulativa (conhecimento), quanto prática (moral). Relacionado ao uso especulativo da razão, Kant justifica o princípio de finalidade no “Apêndice à dialética da razão pura” da primeira Crítica a partir do procedimento da razão em querer ultrapassar o domínio da experiência em direção às ideias puras. Como esse fim se relaciona ao incondicionado, representado pelas ideias da razão, e como essas ideias correspondem a uma exigência da mesma, o “princípio de finalidade”, resgatado das incursões da razão ao domínio do inteligível, possibilita pensar um “bom uso” dessas ideias na medida em que, ao direcionar-se ao seu fim legítimo, elas passam de constitutivas (mau uso) para um uso regulativo (bom uso). Quanto à relação do princípio de finalidade com a razão prática, no “Cânone da razão pura” da primeira Crítica, Kant opera um novo resgate de tal princípio; agora a partir 157

Essa definição lógica do conceito de um “fim” vale de um modo especial para os juízos teleológicos (2° parte da CFJ), uma vez que esses juízos tratam de objetos como seres organizados. Devido à complexidade inerente a esses seres, o princípio de uma causalidade mecânica, possível em função do conceito puro do entendimento, ainda que até certo ponto necessário, não é suficiente. Assim, Kant propõe que eles sejam considerados em função do conceito de um fim, a saber, em função de algo pensado previamente por meio de um conceito. Há nessa proposta uma analogia com a maneira humana de realizar as coisas quando sua realização é guiada por um conceito previamente pensado (Cf. CFJ, BXXVIII). O princípio de finalidade também vale para os juízos estéticos, na medida em que a forma do objeto, por meio da reflexão e do sentimento de prazer, é ajuizada como final para o ânimo. Todavia, a “finalidade” do juízo estético é “sem fim” no sentido de que não há, nesse caso, um conceito prévio. A finalidade em virtude da qual eles podem ser pensados não é real, como no caso dos juízos teleológicos, mas formal. A forma dos objetos é considerada como final em relação Às nossas faculdades cognitivas. Como não se trata de uma finalidade pensada previamente, a finalidade dos juízos estéticos é considerada uma finalidade “sem fim”.

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de um ponto de vista prático, a partir do fim último da razão na determinação da vontade pela liberdade. O conceito de fim da razão prática está relacionado ao conceito de “deverser”. Na medida em que os seres racionais se representam o que deve ser no mundo, eles ultrapassam a ordem natural desse mundo e atendem a um “fim mais remoto” da razão pura que é o fim moral, o próprio “dever ser”. O “fim”, aqui, já apresenta uma relação com o sentimento de prazer e desprazer, na medida em que a relação de determinação da vontade pela razão, ou seja, de um “fim” da razão, pode gerar um sentimento de desprazer, quando as inclinações são prejudicadas, mas, por outro lado, gera um sentimento de prazer, o que atesta que o “fim” da razão fora alcançado. É essa relação das faculdades com uma finalidade que Kant, analogamente, transporta para o ajuizamento reflexionante, com a seguinte importante diferença, no entanto: não como determinação de uma faculdade pela outra, visto não haver conceitos, regras ou leis que permitam tal ação, mas apenas na relação livre entre as faculdades no juízo reflexionante, ocasionada mediante a representação do objeto, e com a faculdade do sentimento de prazer e desprazer. 158 Após a liberação das ideias da razão daquele engano (especulativo) que consistia no uso constitutivo das mesmas, Kant pode resgatar o princípio de finalidade. Com efeito, a crítica kantiana não reconduziu o princípio de finalidade à natureza considerada de modo objetivo; ao invés disso, o princípio de finalidade, assim como as ideias da razão, não constitui nenhum objeto do conhecimento, pois, ele é eminentemente subjetivo, apesar de ser um princípio transcendental. As suas representações referem-se antes ao sujeito, seja ao relacionar a forma do objeto com as suas faculdades, seja na consideração sistemática da natureza, ou mesmo na procura por leis empíricas, mas não aos objetos considerados enquanto tais. Como vimos, só os conceitos puros do entendimento podem constituir objetos do conhecimento. O princípio de finalidade, ao contrário, funda-se sobre os princípios regulativos que não podem constituir nenhum objeto da experiência e nem da moralidade. É na Crítica da faculdade do juízo que tal princípio é adotado como sendo próprio da faculdade do juízo. É em função do princípio de finalidade que o juízo pode legislar - de 158

É na CFJ que, desse modo, realiza-se o casamento perfeito entre o princípio de finalidade e sentimento de prazer. É a partir da relação entre aquelas faculdades que Kant vai, analogamente, inferir o princípio a priori do gosto, como relacionado às faculdades no ajuizamento estético (livre jogo), em que uma é final para a outra, gerando um sentimento de prazer. (Para uma maior investigação sobre esse tema vide: ZAMMITO, J. H. The Genesis of Kant´s Critique of Judgment. London: The University of Chicago Press, Ltd., 1992, pp. 89 - 93).

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um modo análogo às legislações das faculdades citadas anteriormente (entendimento e razão) - não sobre um campo de objetos, mas sobre um território próprio, 159 que é o território subjetivo, seja o do sentimento, seja o da busca por leis empíricas mais gerais da natureza, seja em função de uma consideração sistemática da natureza. 160 No final das Introduções à Crítica da faculdade do juízo, Kant apresenta um quadro com as diferentes “potências” ou “faculdades do ânimo”: a faculdade de conhecimento, o sentimento de prazer e desprazer e a faculdade de apetição, às quais, respectivamente, correspondem três faculdades distintas entre si: o entendimento (Verstand), a faculdade do juízo (Urteilskraft) e a faculdade da razão (Vernunft). 161 Sobre os princípios pertencentes a essas faculdades fundamentam-se, então, três tipos de juízos: teóricos, estéticos e práticos, que respectivamente se referem ao conhecer, ao sentir e ao agir. A vida humana de um modo geral não se reduz somente ao conhecimento e à ação; há também uma terceira faculdade do ânimo, aquela que representa o sentimento de prazer e desprazer (Gefuehl der Lust und Unlust). Esse sentimento tem uma relação especial com o juízo por meio do princípio de finalidade, na medida em que o sentimento se refere à representação do objeto ligado ao estado de ânimo do sujeito, na relação final entre as suas faculdades. 162 O sentimento de prazer ou desprazer não se refere ao objeto considerado enquanto tal com o fim de conhecê-lo, mas apenas a uma finalidade subjetiva na forma do mesmo, que se expressa no possível acordo ou desacordo entre essa forma (do objeto) e as faculdades do conhecimento num “livre jogo”. Quando é gerado um prazer, julga-se que a forma do objeto foi final para o sujeito, ou seja, que a sua forma foi adequada às faculdades cogni-

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Na CFJ, Kant afirma que na “família das faculdades superiores”, o juízo teria seu lugar assegurado como um “termo médio”, entre o entendimento e a razão e que, segundo a analogia entre essas faculdades e seus respectivos objetos, o juízo poderia conter um princípio subjetivo para a procura de leis e, desse modo, portanto, um território próprio (CFJ, B XXI-XXII). 160 A CFJ é dividida em duas partes, a primeira trata dos juízos estéticos do belo e do sublime e leva o título de “Crítica da faculdade de juízo estética”; a segunda trata dos juízos teleológicos e leva o título de “Crítica da faculdade de juízo teleológica”. Como nosso tema aqui está relacionado à estética, não nos deteremos sobre o tema da teleologia. 161 KANT, Immanuel. “Primeira introdução à Crítica do Juízo”. In: Duas introduções à Crítica do Juízo. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. Organizador: Ricardo Terra. São Paulo: Iluminuras, 1994, p.84. 162 “O sentimento de prazer e desprazer é sobretudo a receptividade de uma determinação do sujeito”. (KANT, I. “Primeira introdução à Crítica do juízo”. In: Duas introduções à Crítica do Juízo. Org. Ricardo Terra. SP: Iluminuras, 1994, p. 43).

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tivas. É isso que expressa o ajuizamento reflexionante estético. Um juízo é estético na medida em que está referido ao sentimento de prazer e desprazer. 163 A finalidade dos juízos reflexivos-estéticos, todavia, é apenas formal, ou seja, é “como se” realmente a forma do objeto fosse final para as faculdades cognitivas. Não se pode afirmar objetivamente tal finalidade porque tanto o sentimento de prazer ou desprazer quanto o princípio de finalidade são eminentemente subjetivos. Conforme afirma Kant, “aquele elemento subjetivo numa representação que não pode de modo nenhum ser uma parte do conhecimento é o prazer ou desprazer, ligados àquela representação”. 164

Se o prazer estiver ligado à simples apreensão (apprehensio) da forma de um objeto da intuição, sem relação dessa forma com um conceito destinado a um conhecimento determinado, nesse caso a representação não se liga ao objeto, mas sim apenas ao sujeito; e o prazer não pode mais do que exprimir a adequação desse objeto às faculdades de conhecimento que estão em jogo na faculdade do juízo reflexiva e por isso, na medida em que elas aí se encontram, exprime simplesmente uma subjetiva e formal conformidade a fins do objeto. 165

163

Aqui é oportuno fazer uma distinção entre a “estética” apresentada na primeira parte da CRP, que está voltada para as nossas condições de possibilidade de conhecimento, mais especificamente às condições formais puras da sensibilidade que são o tempo e o espaço, e a “estética” apresentada na CFJ que não diz respeito ao conhecimento de objetos, mas apenas ao sentimento de prazer e desprazer. Foi apenas no período moderno que as discussões sobre a estética fizeram com que essa ganhasse relevo e recebesse o estatuto de disciplina com o filósofo racionalista Alexander Baumgarten (1714-1762). Segundo Hamm, na sua Aesthetica, de 1750, Baumgarten foi quem marcou o ponto inicial de uma abordagem “moderna” de questões estéticas. Todavia, ainda segundo Hamm, a Asthetica de Baumgarten “não se deve primordialmente a uma preocupação específica com a arte ou com uma determinada visão da produção ou da recepção de criações artísticas, mas a um motivo genuinamente filosófico, no caso: racionalista, de provar que não só o entendimento, mas também a sensibilidade fazem parte da faculdade de conhecimento,[...]” (Cf. HAMM, C. “Experiência estética em Kant e Schiller”. In: Arte e filosofia no idealismo alemão. Org. Marco Aurélio e Pedro Galé, SP: Barcarolla, 2008, pp. 54-55 [grifos do autor]). A estética, para Baumgarten, era considerada um “conhecimento inferior”. Só a partir de Kant que a estética deixa de estar atrelada ao conhecimento e adquire um estatuto próprio ou autonomia, na medida em que esta diz respeito aos sentimentos de prazer e desprazer. Sabemos que Kant, em seus cursos, era servido de manuais de filosofia e um desses era do filósofo Alexander Baumgarten. Em uma nota à “Estética Transcendental” da CRP, Kant se refere ao tratamento dado por Baumgarten à estética como tendo “por fundamento uma esperança malograda” na tentativa de “submeter a princípios racionais o julgamento crítico do belo, elevando as suas regras à dignidade de uma ciência. Mas esse esforço foi vão. Tais regras ou critérios, com efeito, são apenas empíricos quanto às suas fontes (principais) e nunca podem servir para leis determinadas a priori, pelas quais se devesse guiar o gosto dos juízos; é antes o gosto que constitui a genuína pedra de toque da exatidão das regras.” (CRP; A 21/B35 [nota]). A “estética transcendental” da CRP refere-se à condição de possibilidade da experiência do conhecimento. Esse procedimento, por sua vez, é mecânico, não há prazer algum aí; enquanto que a estética na CFJ “não diz respeito a conhecimento algum”; ela apenas vai se referir ao sentimento de prazer e desprazer; e esse sentimento não está referido a objeto algum, mas somente ao sujeito no “jogo livre” das suas faculdades. 164 CFJ, B XLIII. 165 CFJ, B XLIV.

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A terceira crítica, desse modo, apresenta, em sua primeira parte, uma investigação que concerne a uma terceira classe de juízos que são os juízos estéticos de reflexão. Esses são divididos entre duas modalidades: o juízo de gosto (o belo), e o juízo estético-espiritual (o sublime). Em suma, no que concerne aos juízos reflexivos-estéticos, investigados por Kant na terceira Crítica, é a relação que têm com o sentimento de prazer e desprazer o que os caracteriza enquanto tais e não o conhecimento do objeto. Por meio do princípio de finalidade e em função do sentimento de prazer, a natureza é considerada como “técnica” em seus produtos; é “como se” a natureza tivesse sido pensada na forma de seus objetos para as faculdades humanas, sendo a ocasião de um prazer vivificante do ânimo, da vida. Esse prazer estético é considerado como o sentimento do belo. No entanto, o prazer estético não atesta somente que a forma do objeto foi final com relação às faculdades em jogo na faculdade do juízo reflexionante, como é o prazer estético do belo, mas, de modo contrário, também atesta “uma conformidade a fins do sujeito em relação aos objetos, segundo a respectiva forma e mesmo segundo o seu caráter informe , de acordo com o conceito de liberdade.” 166 Essa “conformidade a fins” ou “finalidade” subjetiva, segundo Kant, expressa o sentimento do sublime. Ao contrário da finalidade no juízo de gosto, ou seja, no belo, que tem uma referência à forma do objeto, a finalidade do sublime é ainda mais “subjetiva” conquanto atesta que o sujeito é “fim” para si mesmo, e não a forma (ou a ausência de forma) do objeto para esse. A finalidade ou “conformidade a fins” no sublime, desse modo, ao expressar uma finalidade na qual o sujeito é o seu próprio fim, tem uma relação com o conceito de liberdade. 167 Todavia, e exatamente por ser em função da relação com o conceito de liberdade,

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CFJ, B XLVIII Essa afirmação, com efeito, levanta uma série de objeções que podemos antecipar aqui, embora não possamos resolvê-las de imediato. A maior delas consiste no seguinte: dado que o ajuizamento estético é um juízo de reflexão e, portanto, ainda que se tenha o princípio de finalidade não carrega em seu fundamento nenhum conceito determinado, nem do entendimento nem da razão; como, então, admitir a vinculação de tal sentimento ou ajuizamento estético com a liberdade que, sendo um conceito da razão prática, é, por conseguinte, determinado? Aparentemente se poderia resolver esse problema apelando para o conceito de liberdade transcendental, que é um conceito indeterminado da razão, mas logo cairíamos no seguinte problema: o conceito de liberdade transcendental significa a total independência do sensível, nesse sentido, como relacioná-lo ainda assim ao sublime que, sendo um sentimento estético, de algum modo está envolvido com uma relação do sensível (a imaginação) no sujeito? Não reduzindo o conceito de liberdade que está relacionado com sublime simplesmente a um conceito psicológico e, portanto, empírico, admitimos, todavia, que o conceito racional de liberdade relaciona-se ao sublime via o princípio regulativo que, como vimos, tem seu fundamento 167

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tal finalidade subjetiva no sublime não pode ser confundida, absolutamente, com uma espécie de egoísmo, do contrário, seria um juízo privado do sujeito. Dizer que tal “finalidade” é subjetiva em sua relação com conceito de liberdade significa dizer que é a própria “subjetividade universal” que é fim, ou seja, a humanidade no sujeito em razão de sua liberdade e racionalidade, e não o sujeito em particular, considerado de um ponto de vista meramente empírico. Vimos no segundo capítulo que a filosofia prática de Kant expressa que o sujeito só é fim em si mesmo em função da sua racionalidade, por conseguinte da sua dignidade enquanto ser livre e moral. Ao final da segunda introdução da Crítica da faculdade do juízo, Kant retoma esse tema afirmando que o efeito segundo o conceito de liberdade é o fim terminal (Endzweck). 168 Nessa medida, não é exagero afirmar que o sentimento do sublime, por assinalar “uma conformidade a fins do sujeito em relação aos objetos de acordo com o conceito de liberdade”, 169 há de ter alguma relação com esse “fim terminal” que é o ser humano considerado como ser livre, em virtude da sua dimensão racional, suprassensível. Como bem expressou Schiller, “sentimo-nos livres frente ao sublime porque os impulsos nas ideias da razão, dentre essas na própria ideia de liberdade, e está, por sua vez, no fundamento do juízo reflexionante. É nesse sentido que podemos entender a referência da finalidade no sublime ao conceito de liberdade. É por meio dessa referência que podemos, assim, justificar a relação entre o sentimento estético do sublime e o sentimento moral. Além disso, o sentimento do sublime é um sentimento análogo à ideia de liberdade na medida em que no sentimento do sublime experimentamos uma total independência do sensível. Nesse ponto, como bem afirmou Paul Guyer, “A experiência do sublime, então, como uma experiência estética de nossa independência da dominação completa das forças da natureza, é um símbolo de nossa liberdade concebida de modo meramente negativo [...].” (GUYER, Paul. “Os símbolos da liberdade na estética kantiana” In: O que nos faz pensar. Revista do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Trad.: Vera Bueno e Tito Palmeiro. N° 09, Outubro de 2005, p.78.) 168 CFJ, B LV. 169 CFJ, B XLVIII. Ainda que sejam poucas as referências ao sublime na primeira Introdução à terceira Crítica, e igualmente na segunda, essas, contudo, apresentam uma indicação da relação entre o sublime e a liberdade em função do conceito do suprassensível. Nesse sentido, Kant afirma que: “[...] pode o objeto para a reflexão, na percepção, não ter em si o mínimo de final para a determinação de sua forma, mas mesmo assim sua representação, aplicada a uma finalidade que está a priori no sujeito, para despertar um sentimento da mesma (digamos, da destinação suprassensível dos poderes-da-mente do sujeito), pode fundar um juízo estético que também se refere a um princípio a priori (embora apenas subjetivo), mas não, como a primeira, a uma finalidade da natureza com respeito ao sujeito, e sim, apenas, a um uso final possível de certas intuições sensíveis segundo sua forma e mediante um Juízo meramente reflexionante” (KANT, Immanuel. “Primeira introdução à Crítica do Juízo”. In: Duas introduções à Crítica do Juízo. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. Organizador: Ricardo Terra. São Paulo: Iluminuras, 1994, pp.89,90). Na primeira Introdução à terceira Crítica há ainda outras duas passagens idênticas nas quais Kant se refere ao sublime: “[...] a crítica do Juízo estético contém, primeiramente a crítica do gosto (faculdade-de-julgamento do belo), em segundo lugar a crítica do sentimento espiritual, pois assim denomino provisoriamente a faculdade de representar em objetos uma sublimidade” (Ibidem, p. 90). “A primeira parte conterá dois livros, dos quais o primeiro será a crítica do gosto ou do julgamento do belo, a segunda a crítica do sentimento espiritual (na mera reflexão sobre um objeto) ou do julgamento do sublime” (Ibidem, p. 91).

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sensíveis não possuem qualquer influência na legislação da razão, porque o espírito age aqui como se não estivesse sob qualquer leis que não as suas próprias.” 170

5.1.2 O suprassensível No final da segunda introdução à Crítica da faculdade do juízo, Kant retoma a questão com a qual iniciou esse trabalho e que, de modo geral, constitui o fim sobre o qual assenta a terceira Crítica: a transposição do “abismo” que separa os domínios de natureza e o de liberdade. Como vimos, Kant estabeleceu os domínios da filosofia, na primeira e segunda Crítica, respectivamente, como o domínio da natureza e o domínio de liberdade. O primeiro domínio sob a legislação do entendimento, o segundo sob a legislação da razão. Com efeito, há uma lacuna que separa esses domínios um do outro. O domínio da causalidade livre ou do suprassensível está separado do domínio dos fenômenos por um “grande abismo”, de modo que não pode haver nenhuma determinação de um sobre o outro. 171 Essa separação entre natureza e liberdade, como podemos ver, perpassa toda a reflexão kantiana e pode ser considerada como a expressão de uma configuração trágica na qual homem se encontra em sua dupla dimensão sensível e inteligível, em relação à qual o sublime é a expressão mais contundente. No sublime, o homem contempla como que de um precipício a sua condição finita sensível; por outro lado, pode antever no horizonte desse mesmo abismo perspectivas que o elevam além do sensível, nas quais se encontra o incondicionado de sua razão prática, ou seja, a sua liberdade. Inicialmente, Kant argumenta que não é possível lançar uma “ponte” sobre o abismo que circunda esses domínios se forem considerados apenas os seus respectivos princípios tomados individualmente. Isso porque, como vimos, os fundamentos da causalidade segundo a liberdade não são visíveis na natureza e nem muito menos interferem na legislação da mesma; por sua vez, a natureza nada determina no que respeita à causalidade livre,

170

SCHILLER, Friedrich. “Sobre o sublime”. In: Do sublime ao trágico. Org. Pedro Süssekind. Tradução: Pedro Süssekind e Vladimir Vieira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 60. 171 CFJ, B LIII.

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ao suprassensível. Como conseguir, ainda assim, uma unidade sistemática, se tal “abismo” se mantém como uma rachadura irredutível em todo o edifício da razão pura? 172 Para Kant, ainda que não seja possível lançar uma “ponte” de um domínio a outro a partir dos respectivos princípios de cada domínio, ao menos seria possível considerar uma possível passagem de um a outro. Tal passagem não é efetuada sob a condição de se tomar os fundamentos de determinação de cada domínio enquanto tal, mas apenas por meio da faculdade do juízo reflexionante, 173 que possibilita considerar, nas formas sensíveis, os efeitos da liberdade, ou seja, na medida em que esses efeitos são sentidos no mundo fenomênico. Isso prova que, ainda que o mundo dos fenômenos não possa determinar o que há de suprassensível no sujeito, ele permite que o juízo reflexionante considere que alguns fenômenos sensíveis possam ser tomados como efeitos de uma determinação suprassensível a qual se realiza além do espaço e do tempo. Nesse sentido, estamos autorizados a pensar numa determinação suprassensível do sujeito, ou seja, numa determinação pela liberdade, na medida em que os efeitos (e não a causa) dessa determinação são visíveis sensivelmente. É assim que entendemos as seguintes palavras de Kant: Mas se bem que os fundamentos de determinação da causalidade segundo o conceito de liberdade (e da regra prática que ele envolve) não se possam testemunhar na natureza e o sensível não possa determinar o suprassensível no sujeito, todavia é possível o inverso (não de fato no que respeita ao conhecimento da natureza, mas sim às conseqüências do primeiro sobre a segunda) e é o que já está contido no conceito de uma causalidade mediante a liberdade, cujo efeito deve acontecer no mundo de acordo com estas suas leis formais, ainda que a palavra causa, usada no sentido do suprassensível, signifique somente o fundamento para determinar a causalidade das coisas da natureza no sentido de um efeito, de acordo com as suas próprias leis 172

Segundo Paul Guyer, o “abismo” ao qual Kant estaria se referindo no final da segunda introdução da terceira Crítica não seria propriamente aquele entre os domínios de natureza e liberdade. Para Guyer, Kant supostamente já teria resolvido esse problema ao apresentar, tanto na terceira antinomia da razão pura da primeira Crítica como na segunda Crítica, a compatibilidade entre a causalidade da natureza e a causalidade segundo a liberdade através da postulação do conceito de idealismo transcendental. A interpretação de Guyer é a de que, com a CFJ, Kant estaria pensando em harmonizar a esfera humana dos sentimentos com a lei moral do dever. Guyer, desse modo, pretende responder à questão acerca de qual abismo, entre o domínio da natureza e o domínio de liberdade, deveria ser superado, afirmando que: “A CFJ contém um maior desenvolvimento na concepção kantiana do papel e importância do sentimento na prática da moralidade, e da sensibilidade em nossa compreensão da moralidade” (Ibidem, p. 30). (GUYER, Paul. Kant and Experience of Freedom. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, pp. 27-28/30). Em outro texto, Guyer afirma que “a experiência estética do sublime poderia ser, no final das contas, nossa primeira compreensão da sublimidade do sentimento de respeito pelo dever”. (Idem. “Os símbolos da liberdade na estética kantiana” In: O que nos faz pensar. Revista do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Trad.: Vera Bueno e Tito Palmeiro. N° 09, Outubro de 2005, p.81). 173 CFJ, B LIV.

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naturais, mas ao mesmo tempo em unanimidade com o principio formal das leis da razão. 174

Esse efeito segundo a liberdade, como vimos, é o fim terminal do homem considerado como ser livre. Esse conceito de “fim” é sentido em seus traços gerais no ajuizamento do sublime, que, por ensejar (ainda que negativamente, isto a partir de uma inadequação de uma totalidade sensível com relação a uma apresentação da totalidade suprassensível) um sentimento de uma faculdade suprassensível, possibilita que o ânimo do sujeito goze de um sentimento que simboliza a sua liberdade (no que diz respeito a sua total independência do sensível) e em função desse sentimento e da faculdade que o possibilita, pode o mesmo reconhecer-se como fim em si mesmo. Sabemos que, de acordo com o idealismo transcendental, o suprassensível é um conceito indeterminado da razão, ou seja, ele não pode fornecer nenhum conhecimento teórico do mesmo. Com efeito, a análise de Kant confere uma possibilidade de relação ao suprassensível na medida em que esse poderá ter seu campo “ocupado” mediante a faculdade do juízo reflexionante “com ideias em favor do uso da razão, tanto teórico como prático.” 175 Não obstante a contribuição dessas ideias valer também para o uso teórico da razão, no sentido de procurar leis empíricas, Kant salienta que a única realidade possível dada às mesmas é a realidade prática. Em função dessa realidade prática que remete às ideias da razão, Kant afirma que, ainda que não possamos conhecer o suprassensível de um ponto de vista teórico, ou seja, segundo a determinação pelos conceitos do entendimento, todavia, o suprassensível, na medida em que é o substrato ou o fundamento que subjaz a natureza, “tem de poder” influenciar o mundo sensível. Nesse sentido, o mundo fenomênico, pelo menos em sua forma, tem de adequar-se aos fins estabelecidos pelas leis da liberdade, cujos efeitos (e não a causa) podem ser visíveis nele.

Ainda que na verdade subsista um abismo intransponível entre o domínio do conceito de natureza, enquanto sensível, e o do conceito de liberdade, como suprassensível, de tal modo que nenhuma passagem é possível do primeiro para o segundo (por isso mediante o uso teórico da razão), como se se tratasse de outros tantos mundos 174

CFJ, B LIV. CFJ, B XIX. Esse uso da razão ao qual se refere Kant seria o uso regulativo das ideias, que como vimos, está presente no fundamento do juízo reflexionante. 175

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diferentes, em que o primeiro não pode ter qualquer influência no segundo, contudo este último deve ter uma influência sobre aquele, isto é, o conceito de liberdade deve tornar efetivo no mundo dos sentidos o fim colocado pelas suas leis e a natureza em consequência tem que ser pensada de tal modo que a conformidade da sua forma concorde pelo menos com a possibilidade dos fins que nela atuam segundo leis da liberdade. Mas por isso tem que existir um fundamento da unidade do suprassensível, que esteja na base da natureza, com aquilo que o conceito de liberdade contém de modo prático e ainda que o conceito desse fundamento não consiga nem de um ponto de vista teórico, nem de um ponto de vista prático, um conhecimento deste e por conseguinte não possua qualquer domínio específico, mesmo assim torna possível a passagem da maneira de pensar segundo os princípios de um para a maneira de pensar segundo os princípios de outro. 176

5.2 A Analítica do Sublime 177 A “Crítica da faculdade do juízo estética”, primeiro livro da Crítica da faculdade do juízo, é dividida, conforme as duas modalidades do ajuizamento estético, entre a “Analítica do belo” e a “Analítica do sublime”. Kant começa a sua análise do sublime (das Erhabene) apresentando as semelhanças e diferenças entre esse ajuizamento e o do belo. É importante começarmos este subcapítulo marcando as semelhanças e diferenças entre o belo e o sublime a partir dos momentos do ajuizamento estético, para que possamos visualizar com maior precisão não só a especificidade dos juízos estéticos com relação aos demais juízos (cognitivos, práticos e agradáveis), mas, sobretudo, porque a comparação entre o belo e o sublime ajuda a nossa compreensão do modo como as faculdades se relacionam dando ocasião ao sentimento do sublime. Para referir-se às semelhanças e diferenças entre esses dois tipos de ajuizamentos estéticos, Kant se vale das mesmas distinções “categoriais”, ou melhor - já que não se trata de regras - dos quatro “momentos” com os quais o mesmo já havia analisado a faculdade do

176

CFJ, B XIX-XX. Com relação às discussões acerca da data precisa em que a “Analítica do sublime” fora escrita, Zammito afirma que o sublime não estava incluído, de modo algum, na “Crítica do Gosto” original. Apenas mais tarde que a mesma será adicionada na composição da Crítica do Juízo como resultado da elaboração da teoria do juízo reflexivo e da “nova virada ética” no pensamento de Kant. Zammito enfatiza que fora precisamente essa “virada ética” o que tornou o “sublime relevante para a inclusão da terceira Crítica”. (Cf. ZAMMITO, J. H. The Genesis of Kant´s Critique of Judgment. London: The University of Chicago Press, Ltd., 1992, p. 276). 177

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gosto 178 na “Analítica do belo”. Esses momentos distintos procedem de acordo com as seguintes rubricas: da qualidade, da quantidade, da relação e da modalidade. Segundo a qualidade, os juízos reflexivos-estéticos são desinteressados; segundo a quantidade são singulares, mas com pretensão à universalidade; segundo a relação são finais (finalidade subjetiva) e, segundo a modalidade, são necessários (de modo exemplar). 179 Passemos agora a uma breve análise do belo e do sublime a partir desses momentos tomados individualmente. Começaremos apresentando os juízos reflexivos-estéticos a partir desses quatro momentos, para, logo em seguida nos focarmos no juízo do sublime.

5.2.1 Da qualidade dos Juízos estéticos: o desinteresse A respeito do primeiro momento, da qualidade, tanto o belo quanto o sublime “aprazem por si próprios” sem interesse. Pelo fato de que a “satisfação” ou a “complacência”, envolvida nesses juízos, está relacionada à “faculdade de apresentação” (imaginação), 180 que, como bem caracterizou o Professor Edgard Jorge, “apreende/produz a pura forma do objeto percebido, dissociada de toda a matéria da sensação”, 181 e apresenta essa forma no livre jogo entre as demais faculdades (com o entendimento no caso do belo e com a razão no caso do sublime) do ajuizamento reflexivo-estético. O sentimento de prazer é gerado, portanto, na (e com) a reflexão, ou seja, sem conceitos determinados e, portanto, de um modo desinteressado, no qual as faculdades se balanceiam e percebem-se afins uma à outra. 178

“A definição do gosto, posta aqui em fundamento, é de que ele é a faculdade de ajuizamento do belo” (CFJ, B 4[nota]). 179 CFJ, B 79. 180 Vimos no primeiro capítulo que o papel da faculdade da imaginação nos juízos determinantes do conhecimento referia-se à produção de sínteses indeterminadas do múltiplo (matéria) da intuição para a posterior subsunção ou determinação dos conceitos puros do entendimento. No juízo reflexivo-estético, o seu papel não será mais o da produção de sínteses para a determinação conceitual do entendimento, uma vez que no juízo de reflexão os conceitos estão ausentes. A imaginação, nesse sentido, é desencarregada daquele papel mecânico e sem prazer, e, portanto, sente-se livre, ainda que sob a legalidade ou acordo do entendimento, no caso do belo, e da razão, no caso do sublime. O seu papel no juízo reflexivo-estético será o de reunir a forma do objeto dada na sensibilidade e apresentá-la em vistas de um acordo no livre jogo, tanto com o entendimento (no belo), quanto com a razão (no sublime). 181 Essa caracterização do papel da imaginação no juízo de gosto é dada pelo Prof. Edgard José Jorge, no seu texto: “Sobre o livre jogo da imaginação com o entendimento no juízo de gosto, em Kant”. In: Síntese. Revista da Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus. Belo Horizonte, MG. Vol. 35, n° 112, 2008, p. 225.

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Tanto o belo quanto o sublime “aprazem por si próprios”, exatamente por serem independentes da matéria dos sentidos, por um lado, e de conceitos, por outro, apesar de referirem-se a conceitos indeterminados, sejam esses do entendimento, como no caso do belo, sejam os da razão, como no caso do sublime. 182 É nesse sentido que tais juízos, quanto ao momento da qualidade, são “desinteressados”. 183 Um juízo é desinteressado quando o prazer ou desprazer que sentimos nele não está ligado à representação da existência do objeto, mas apenas à forma desse objeto (belo) e/ou à ausência de forma do mesmo (sublime), que, por sua vez, é ajuizada na reflexão, como se fosse final ou antifinal às faculdades envolvidas em tal ajuizamento. Como vimos, os juízos de reflexão não possuem conceitos ou regras a priori (necessárias e universais) que determinem o que o objeto é, nem mesmo a sua existência. É, sobretudo, em função da qualidade do “desinteresse” que os juízos reflexivos-estéticos são caracteristicamente diferentes dos demais juízos e, na medida em que possuem um princípio próprio, o princípio regulativo de finalidade da natureza, eles alcançam a sua autonomia relativamente aos juízos determinantes do conhecimento por um lado, e os da moralidade, por outro. Intuitivamente, isso que acabamos de dizer pode ser expresso no seguinte exemplo: ao contemplar a beleza de uma flor, o prazer não consiste em se tomar o objeto em sua particularidade sob num conceito geral previamente dado, aqui no caso o de ‘flor’, o qual supostamente determinaria o que ela é, nem tampouco consiste na complacência na apresentação da sua existência enquanto tal; simplesmente se aprecia a sua forma, na sua presença ou até mesmo na sua ausência. Essa contemplação do belo, segundo Kant, fortifica nosso ânimo e encoraja a nossa vida. Sentimos na contemplação do belo uma perfeita harmonia entre o conjunto das nossas faculdades, o ânimo, e as formas da natureza. Ainda que no belo, em função da harmonia entre as formas da natureza e o nosso ânimo, possamos sentir uma predisposição à moralidade, tal predisposição é ocasionada de modo diferente daquela que ocorre no sublime. Nesse, a predisposição à moralidade ocorre mediante a desarmonia, a discordância ou a inadequação da nossa faculdade sensível em abarcar uma totalidade inteligível. 182

CFJ, B 74. Um ponto importante a considerar a partir da qualidade é que, ainda que sejam juízos estéticos distintos, o belo e o sublime são, em seu fundamento, sentimentos desinteressados. 183

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No sublime contemplamos o incomensurável, pois tal contemplação é referida a objetos “grandiosos” ou “poderosos”, que, ao mesmo tempo em que nos chocam também elevam a força da alma para além da vida sensível. A contemplação das cataratas do Iguaçu é um exemplo daquilo que poderia suscitar o sentimento ou a “comoção” do sublime. Ela pode trazer à mente algo que nos faz dar conta da força da natureza. Ela nos coloca diante do que é imensamente forte e mesmo imensamente grande o que de certa forma eleva a nossa alma. Com isso, o sentimento do sublime comove o mais profundo do espírito, ao lembrar-nos de que nossa vida de certa forma pode ter a ver com uma grandeza que não tem comparação com nada sensível ou material; não se encontra nos papéis que representamos socialmente, nem nos bens que possamos ter em vida, nem no vil metal, mas que pode ser comparado apenas com a nossa dimensão suprassensível: a nossa liberdade e dignidade. Esse sentimento do sublime pode de algum modo ser comparado com aquele presente no de respeito, que nos predispõe à moralidade, em relação à qual aquelas coisas sensíveis e materiais são apenas mesquinharias. Se no belo insurge uma necessidade de comunicar ao outro a satisfação ou o bem que sentimos na contemplação da forma sensível, sendo, portanto, um “sentimento falante”, 184 ao invés disso, no sentimento do sublime, após o agito de nossas forças, somos conduzidos à meditação, a uma profunda reflexão sobre o que somos além do sensível e, a partir daí, a refletir sobre o que elegemos como podendo conferir valor à nossa vida, e que poderia corresponder aos fins da nossa destinação última. Igualmente é no sentimento do sublime que nosso pensamento é elevado, por assim dizer, em direção àqueles que amamos, mas cuja existência não compartilhamos mais na dimensão sensível, pois o sublime, segundo Kant, é o “sentimento do espiritual” (Geistesgefühl). 185 Nos juízos do conhecimento, por serem juízos lógicos, há a necessidade e o interesse em conhecer o objeto, em determiná-lo sob uma regra geral que está dada de antemão. Nesse sentido, é suficiente para ilustrar tal procedimento lembrarmo-nos de uma frase da primeira Crítica em que Kant afirma que “só conhecemos o a priori das coisas o que nós mesmos nelas pomos”. 186 Isso que pomos nas coisas a priori são os conceitos ou regras que

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Expressão correntemente usada pela Professora Virgínia Figueiredo. KANT, I. “Primeira introdução à Crítica do juízo”. In: Duas introduções à Crítica do Juízo. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. Organizador: Ricardo Terra. São Paulo: Iluminuras, 1994, p. 90. 186 CRP, B XVIII. 185

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determinam os objetos para que haja conhecimento. Esse interesse do conhecimento, diferentemente dos outros tipos de interesses, como no agradável e no moral, não enseja nenhuma espécie de prazer, em função de seu caráter mecânico e lógico. 187 Em outras palavras, tanto o juízo do conhecimento, quanto o moral e o do agradável são juízos interessados, com a diferença de que apenas esses dois últimos ensejam sentimentos de prazer, ainda que diversos entre si. Mas afinal, em que consiste ter interesse em alguma coisa? Kant define o conceito de “interesse” do seguinte modo: “chama-se interesse a complacência que ligamos à representação da existência de um objeto”, e acrescenta, “um tal interesse sempre envolve ao mesmo tempo referência à faculdade da apetição, quer como seu fundamento de determinação, quer como vinculando-se necessariamente ao seu fundamento de determinação”. 188 Para estabelecer a diferença entre uma satisfação pura e sem interesse, tal como é a dos juízos reflexivos-estéticos, e a satisfação interessada, Kant esclarece que o sentimento ligado à moralidade é dessa última espécie, na medida em que tal sentimento está envolvido num interesse da razão prática na realização de seu objeto que é o “bem moral”. O sentimento ligado à realização da razão prática leva o nome de “autocontentamento”. Ele é o indício de que a vontade causou a realidade do seu objeto por meio de um conceito a priori da razão pura prática, ou seja, de que a vontade fora determinada mediante a lei prática pura, ou a lei moral. Kant afirma que tal satisfação está ligada ao bom 189 como aquilo que é “estimado” e “aprovado”. 190 Há, ainda, outra espécie de satisfação diferente daquela da moralidade e que se liga imediatamente a um interesse material: é a satisfação do agradável. Essa é inteiramente privada ao sujeito na medida em que o interesse aí está voltado para a matéria do objeto que apetece aos sentidos gerando as inclinações. Essa satisfação é privada ao sujeito. É o agradável que, sendo privado a esse sujeito, não é discutível, ou seja, não é passível de ser universalizado. Como o sentimento do agradável apresenta o interesse na posse material do 187

Com relação a isso Kant afirma na segunda introdução à CFJ que: “De fato, não encontramos em nós o mínimo efeito sobre o sentimento do prazer, resultante do encontro das percepções com as leis, segundo conceitos da natureza universais (as categorias) e não podemos encontrar, porque o entendimento procede nesse caso sem intenção e necessariamente, em função da sua natureza” (CFJ, B XL). 188 CFJ, B 5. 189 “Bom é o que apraz mediante a razão pelo simples conceito” (CFJ, B 10). “Pois o bom é o objeto da vontade (isto é, de uma faculdade de apetição determinada pela razão)”(CFJ, B 14). 190 CFJ, B 15.

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objeto, isso significa que o sujeito não é livre; pois, ao desejar a posse material do objeto, o sujeito estaria seguindo os seus desejos mais imediatos, sensíveis, que, por sua vez, fundam as suas inclinações. O objeto do agradável, desse modo, é aprisionado e usado apenas como meio para a realização dos fins privados do sujeito. Tal interesse no agradável, diferentemente do interesse da moralidade ou da vontade (faculdade de apetição superior), diz respeito à faculdade de apetição inferior que tem sua expressão mais adequada nas necessidades habituais tais como comer, beber ou mesmo na necessidade sexual. Em suma, diferentemente da moralidade, cujo interesse pelo bem configura um “fim em si” (da vontade racionalmente livre), e, mesmo tendo um interesse, ainda assim não leva em conta nada que seja empírico, mas simplesmente a realização do bem moral enquanto tal, os juízos sobre o que é agradável, ao contrário, ligam-se aos interesses sensíveis, privados ao sujeito, gerando, desse modo, as inclinações. Apesar de os juízos reflexivos-estéticos do belo e do sublime serem juízos livres no sentido de não estarem fundados em nenhum interesse cognitivo nem moral, eles ainda assim, nos tornam suscetíveis às exigências da razão prática, da moralidade. 191 É esse sentido da colaboração que, como veremos mais adiante, propomos entre o sentimento estético e o sentimento moral. Essa colaboração não faz cair por terra os fundamentos do ajuizamento estético enquanto tal e, todavia, não distancia esse ajuizamento dos fins da razão prática. Nesse sentido, não se pode isolar completamente o domínio do estético chegando mesmo a privilegiá-lo em detrimento de outros domínios, aqui no caso em detrimento da moralidade, como muitas vezes se faz, sem, ao mesmo tempo, transgredir o pensamento de Kant. Não é isso que podemos inferir, como bem notou Paul Guyer, no pensamento de um autor como Kant, “cuja convicção mais profunda é a primazia da razão prática”:

A concepção da autonomia do estético não sugere de modo algum que no domínio do gosto – diferentemente do que ocorre em outros domínios - possamos gozar de total liberdade em relação às coerções da moralidade. Ainda que talvez mais tarde os estetas contemporâneos possam ter tido tais ideias, essa não é uma visão que po-

191

Ainda que em seus fundamentos esses juízos sejam desinteressados, tais juízos produziriam um interesse que, segundo o Leonel Ribeiro dos Santos, “se não é o próprio sentimento moral, revela pelo menos grande parentesco com ele”. (RIBEIRO DOS SANTOS, Leonel. Metáforas da Razão ou economia poética do pensar kantiano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. p. 452).

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deríamos, com alguma plausibilidade, esperar encontrar em um filósofo cuja convicção mais profunda é a primazia da razão prática. 192

5.2.2 Singularidade e universalidade do Juízo estético Quanto ao momento da quantidade, os juízos reflexivos-estéticos do belo e do sublime são singulares, mas erguem uma pretensão à “universalidade”. Esses juízos são singulares porque versam sobre a forma ou a ausência de forma de um objeto dado. E, uma vez que são juízos reflexivos, eles buscam um universal para esse particular dado, em relação ao qual seja possível erguer um juízo com validade universal, ainda que tal validade seja exemplar. 193 Em outras palavras, ainda que os juízos reflexivos-estéticos se refiram a um objeto em particular, é exatamente em função de eles serem possíveis pelas faculdades ou “potências do ânimo”, faculdades comuns a todos os demais (no conceito de um sujeito transcendental 194), que todos são capazes de ajuizar semelhantemente tais objetos, independente de condições empíricas (psicológicas, sociológicas, históricas, etc.) em que se encontrem. Os juízos estéticos do belo e do sublime, desse modo, partilhariam da propriedade segundo a qual é legítima a pretensão à universalidade, isto é, pretensão segundo a qual todos os outros estão em condições de concordar com o juízo dos demais. Essa concordância no caso dos juízos estéticos se funda no fato dos seres humanos serem dotados das mesmas faculdades cognitivas. É a harmonia entre as faculdades cognitivas o que possibilita o sentimento de prazer, ou a desarmonia entre elas o que possibilita o desprazer. O juízo do belo, ape192

GUYER, P. “Os símbolos da Liberdade na estética kantiana”; In: O que nos faz pensar. Revista do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Trad.: Vera Bueno e Tito Palmeira. N° 9, Outubro de 2005, p. 75. 193 Essa validade universal não é aquela dos juízos determinantes teóricos que, em função da regra dada pelos conceitos a priori, são necessários e universais, mas aquela dos juízos que se fundam no “acordo” entre as faculdades cognitivas humanas, acordo esse que acontece como se fosse um “livre jogo” entre a “faculdade da apresentação” (a imaginação), tanto com a legalidade do entendimento (num conhecimento em geral), no caso do belo, quanto com a faculdade da razão, no caso do sublime. 194 Quando me refiro, aqui, ao sujeito transcendental, em oposição ao sujeito empírico, quero designar as condições a priori de tal julgamento. É a isso que o conceito de “crítica” se remete: investigar as condições a priori da possibilidade seja do conhecimento, seja da determinação da vontade, e, de modo especial aqui, do sentir prazer ou desprazer. Uma condição a priori significa basicamente três coisas: independência da experiência, universalidade e necessidade. Nada que seja empírico apresenta tais características. As condições de possibilidade do ajuizamento estético serão, nesse sentindo, universalmente as mesmas para todos, independentes de condições empíricas (sociológicas, históricas, etc.), considerando as faculdades a partir do ponto de vista transcendental, isto é, a priori como condição de possibilidade do ajuizamento estético.

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sar de único, singular e incomparável, pode ser compartilhado ou comunicado 195 e, no sublime, mesmo sendo considerado como “negativo” também pode ser compartilhado. Conforme afirma Kant, “[...] ambas as espécies de juízos são singulares e contudo juízos que se anunciam como universalmente válidos com respeito a cada sujeito, se bem que na verdade reivindiquem simplesmente o sentimento de prazer e não o conhecimento do objeto.” 196

5.2.3 A conformidade a fins no sublime Do ponto de vista do momento da relação entre juízos do belo e do sublime, podemos dizer que ambos, de um modo geral, são conformes a fins (subjetivos), ou seja, uma finalidade que se relaciona ao sujeito. Todavia, essa finalidade subjetiva é diversa no belo e no sublime. No primeiro, essa finalidade (sem fim), apesar de referir-se ao sujeito, tem uma relação com a “forma” do objeto; no segundo, na medida em que o objeto também pode aparecer como “sem forma”, a finalidade é remetida exclusivamente ao sujeito, despertando-lhe uma satisfação de espécie diferente daquela do sentimento do belo. Para tratar da relação de finalidade que envolve os juízos reflexivos estéticos, Kant dá um passo atrás e retoma a distinção entre os dois primeiros momentos, o da qualidade e o da quantidade nesses juízos. Com relação a esses momentos, Kant afirma que a satisfação do belo liga-se, antes de mais, à representação da qualidade na forma do objeto 197, enquanto a do sublime liga-se à quantidade. 198 O que isso quer dizer? Para explicar isso basta voltarmos um pouco atrás e prestarmos atenção ao modo como Kant, nas Introduções à

195

No ajuizamento estético sentimos um prazer que é ele mesmo desinteressado, isto é, deixamos de lado o objeto e nos voltamos para o prazer que apesar de ser subjetivo não é privado e nem egoísta, pois pode ser comunicado e partilhado com o outro. 196 CFJ, B 74. 197 Na primeira Introdução à terceira Crítica, Kant refere-se à “conformidade à fins” no belo como uma finalidade subjetiva “interna” ligada à forma do objeto, portanto à uma finalidade formal, ainda que sem fim, da natureza. Tal “finalidade sem fim” é melhor compreendida quando nos referimos à forma do objeto “como se” a natureza procedesse segundo uma “técnica” segundo a qual permite que seus objetos sejam ajuizados como finais às faculdades no livre jogo concordante entre as mesmas. “Em conformidade com isso, a forma de um objeto pode, primeiramente, já por si, isto é, na mera intuição sem conceito, para o juízo reflexionante, ser percebida como final, e, nesse caso, a finalidade subjetiva é atribuída à coisa e à própria natureza”. (KANT, I. “Primeira introdução à Crítica do Juízo” In: Duas introduções à Crítica do Juízo. p. 89). 198 CFJ, B 75.

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terceira Crítica, introduziu uma diferença na “conformidade a fins” entre os juízos do belo e do sublime. Do ponto de vista da relação entre as faculdades no juízo do belo (imaginação e entendimento), o objeto encerra uma limitação em sua forma de modo que esse limite é sentido com sendo final tanto em relação à faculdade da apresentação (a imaginação) quanto à faculdade de concepção (o entendimento), como se concordasse com a receptividade da primeira faculdade e a legalidade da segunda. Todavia, estar de acordo com a legalidade do entendimento não significa que a forma do objeto seja determinada por uma categoria a priori, pois, como vimos, no que concerne ao ajuizamento reflexionante, de modo especial o estético, não há conceito que subsuma o particular sob uma regra geral, mas apenas um conceito indeterminado, em relação ao qual Kant afirma que “o belo parece ser considerado como apresentação de um conceito indeterminado do entendimento”. 199 Nesse sentido, segundo Kant, o ajuizamento do belo, em função da “conformidade a fins sem fim” da forma do objeto para as faculdades em seu livre jogo, “comporta diretamente um sentimento de promoção da vida, e por isso é vinculável a atrativos e a uma faculdade de imaginação lúdica [...]”. 200 Em tal ajuizamento, “é como se” o sujeito experimentasse no seu íntimo uma “harmonia” ou “acordo”, uma “unidade” ou “homologia”, entre as formas da natureza e as suas faculdades, de modo que tal relação enseja um sentimento de satisfação que é um “prazer positivo”. No sentimento do belo, o homem experimenta em seu ânimo, isto é, na sua vida, que o mundo tem sentido e é fim para ele, na medida em que ele partilha com as formas da natureza uma harmonia sentida em suas faculdades cognitivas. Essa seria, segundo o momento da relação, a finalidade no juízo reflexivo estético do belo, aliada, por sua vez, ao momento da qualidade, que diz respeito à satisfação de um prazer desinteressado, ligado à forma do objeto no juízo estético de reflexão. A conformidade a fins no sublime, como vimos, é eminentemente subjetiva em virtude da ausência de forma no objeto, o que enseja o sentimento de desprazer. Desse modo, o ajuizamento do sublime é diferente da relação harmoniosa vivificante da vida presente no belo em que a forma do objeto é “final” para as faculdades cognitivas. No ajuizamento do sublime, as faculdades envolvidas são a imaginação e a razão. Nesse ajuizamento, diferen-

199 200

CFJ, B 75. CFJ, B 75.

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temente do que ocorre no belo, o entendimento dá lugar à razão (faculdade das ideias) e, em vez do jogo lúdico e prazeroso do belo, instaura-se uma profunda “seriedade” que antecede, por assim dizer, a “manifestação” solene da razão. No sublime, aquela unidade imediata sentida no juízo do belo entre natureza e subjetividade é, então, perdida. Não havendo mais harmonia e nem acordo imediato entre a forma do objeto e as faculdades só restaria, à primeira vista, o sofrimento, a dor, o desprazer. É por isso que Kant começa a sua “Analítica do Sublime” não mediante o momento da qualidade, como no juízo do belo, que diz respeito ao sentimento de prazer ensejado na harmonia entre a forma do objeto e as faculdades, mas sim a partir do momento da quantidade, uma vez que, no sublime, o objeto, em virtude de sua grandeza e/ou potência, pode aparecer também “sem forma”, comportando apenas a natureza em seu estado bruto. Em relação a isso, Kant afirma que a “diferença interna mais importante entre o belo e o sublime” consiste em que o primeiro é a manifestação, mediante o sentimento de prazer, de uma relação final entre a natureza e as faculdades no ajuizamento estético, já no sentimento do sublime essa relação é invertida uma vez que “quanto à forma”, o objeto pode “aparecer como contrário a fins para nossa faculdade de juízo, inconveniente à nossa faculdade de apresentação e, por assim dizer, violento para a faculdade da imaginação, mas apesar disso, e só por isso, é julgado ser tanto mais sublime.” 201 O “objeto” do ajuizamento no sublime extrapola toda e qualquer medida sensível, ele se mostra “grandioso” e/ou “potente”, sendo, por isso, representado “como se” fosse uma apresentação, não mais de um conceito indeterminado do entendimento, como é a forma bela, mas de um “conceito indeterminado da razão”. É a partir dessa consideração que a satisfação ou a complacência do sublime, relacionando-se ao momento da quantidade, comporta um “prazer negativo”, que, diferentemente do belo, não se relaciona à promoção da vida considerada a partir de seu ponto de vista sensível, mas antes é “muito mais admiração ou respeito” pela dimensão suprassensível no sujeito. Como afirma Kant:

[...] o sentimento do sublime é um prazer que surge só indiretamente, ou seja, ele é produzido pelo sentimento de uma momentânea inibição das forças vitais e pela efusão imediatamente consecutiva e tanto mais forte das mesmas, por conseguinte enquanto comoção não parece ser nenhum jogo, mas seriedade na ocupação da faculdade da imaginação. Por isso, também é incompatível com atrativos, e enquanto o ânimo não é simplesmente atraído pelo objeto, mas alternadamente também sem201

CFJ, B 76.

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pre de novo repelido por ele, a complacência no sublime contém não tanto prazer positivo, quanto muito mais admiração ou respeito, isto é, merece ser chamada de prazer negativo. 202 [...] pode o objeto, para a reflexão, na percepção, não ter em si o mínimo de final para determinação de sua forma, mas mesmo assim sua representação, aplicada a uma finalidade que está a priori no sujeito, para despertar um sentimento da mesma (digamos, da destinação suprassensível dos poderes-da-mente do sujeito), pode fundar um juízo estético que também se refere a um princípio a priori (embora apenas subjetivamente), mas não como a primeira, a uma finalidade da natureza com respeito ao sujeito, e sim, apenas a um uso final possível de certas intuições sensíveis segundo sua forma mediante um juízo meramente reflexionante. Se, portanto, o primeiro atribui beleza aos objetos da natureza, mas o segundo sublimidade e, aliás, ambos meramente por juízos estéticos (reflexionantes), sem conceitos do objeto, meramente quanto à finalidade subjetiva, no entanto, para o último não seria de pressupor nenhuma técnica particular da natureza, porque nele importa meramente um uso contingente da representação, não em função do conhecimento do objeto, mas de um outro sentimento, a saber, o da finalidade interna na disposição das faculdades da mente. 203

5.2.4 A modalidade dos juízos estéticos Quanto ao quarto e último momento dos juízos estéticos, que versa sobre a modalidade, Kant afirma que os juízos do belo e do sublime são necessários. Todavia, a necessidade desses juízos é justificada por vias distintas. Ao fundamento do juízo do belo da natureza, Kant afirma que “temos que procurar um fundamento fora de nós; do sublime, porém, simplesmente em nós e na maneira de pensar que introduz à representação da primeira sublimidade;[...].” 204 Apesar de Kant dedicar um parágrafo inteiro à modalidade no §29, ele afirma mais adiante, no §30 que a dedução (justificativa) dos juízos estéticos sobre os objetos na natureza refere-se apenas ao belo e não ao sublime, e que a exposição desse último juízo foi ao mesmo tempo a sua dedução. 205 Essa exposição do conceito do sublime seria a explicação aproximada de uma definição do conceito do sublime, visto que em filosofia não

202

CFJ, B 75-76. KANT, Immanuel. “Primeira introdução à crítica do Juízo” In: Duas introduções à Crítica do Juízo. pp. 89-90. 204 CFJ, B 78. 205 CFJ, B 131-133. 203

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podemos propriamente definir conceitos, mas sim expô-los, analisá-los, torná-los mais claros. Mas o ponto preciso acerca da modalidade do juízo do sublime consiste em Kant atribuí-lo como tendo sua necessidade na própria natureza humana, como veremos mais adiante, na disposição de ânimo que é receptiva às ideias (práticas) da razão ou ao sentimento moral.

5.3 O sublime e as ideias da razão No ajuizamento do sublime, segundo Kant, o “objeto grandioso” ou mesmo “potente” não é, enquanto tal, sublime. Mas, ao invés disso, o que é propriamente sublime é o sentimento que tal objeto invoca no ajuizamento reflexionante estético a partir da sua “grandiosidade” e/ou “potência” que está relacionado com as ideias da razão. Tais ideias, como vimos, são regulativas e, portanto, não determinam objetos da experiência. Do ponto de vista cognitivo podemos pensá-las como sendo representadas pelas ideias de infinito, totalidade e incondicionalidade; do ponto de vista prático podemos pensá-las a partir das ideias de liberdade, Deus e imortalidade da alma. É por meio da representação da grandeza ou da potência do objeto que o ajuizamento do sublime enseja um sentimento de “grandiosidade” e “força” no ânimo. Tal sentimento, por sua vez, concerne a uma representação vinculada às ideias da razão, que, por representarem o “incondicionado”, a “totalidade”, o “absoluto”, elevam a força da alma para além do sensível. Na análise de Kant, chamar de sublime um objeto em função de sua aparente grandeza é incorrer num julgamento “sub-reptício”, por meio do qual atribuímos uma propriedade, a sublimidade, a um objeto sensível que não poderia de modo algum ter essa propriedade. Um procedimento “sub-reptício” consiste em conceder um favor ou benefício a alguma coisa ou a alguém escondendo o fato de tal coisa ou pessoa ser indigna de tal favor. 206

206

Segundo Lyotard, “Subreptio designa, no direito canônico, o ato de obter um privilégio ou uma graça dissimulando uma circunstância que se opõe a sua obtenção”. Lições sobre a Analítica do sublime. São Paulo: Papirus, 1991, p. 70.

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[...] se vê imediatamente que em geral nos expressamos incorretamente quando denominamos sublime qualquer objeto da natureza, embora na verdade possamos de modo inteiramente correto denominar belos numerosos objetos da natureza; pois, como pode ser caracterizado com uma expressão de aprovação o que em si é apreendido como contrário a fins? Não podemos dizer mais senão que o objeto é apto à apresentação de uma sublimidade que pode ser encontrada no ânimo; pois o verdadeiro sublime não pode estar contido em nenhuma forma sensível, mas concerne somente a ideias da razão, que, embora não possibilitem nenhuma representação adequada a elas, são avivadas e evocadas ao ânimo precisamente por essa inadequação, que se deixa apresentar sensivelmente. 207

A partir dessa passagem vê-se que Kant relaciona o sentimento do sublime às ideias da razão, que, nesse ajuizamento estético, são “avivadas” e “evocadas no ânimo” em função de sua “inadequação” em relação à faculdade sensível. Mas em que consiste propriamente essa “inadequação”? Para entendermos esse ponto, é preciso, antes de mais, ter clareza quanto à natureza das faculdades que estão envolvidas no ajuizamento estético do sublime, bem como às suas respectivas representações. Como já apresentado, as faculdades envolvidas no ajuizamento do sublime são a imaginação e a razão. Na primeira Crítica, a função da imaginação consiste em operar o múltiplo sensível por meio das sínteses de “apreensão” e “reprodução”. Na “Analítica do sublime”, essa última função sintética da imaginação será substituída pela síntese da “compreensão”, a qual Kant designa como comprehensio aesthetica. 208 A razão, como vimos, é a faculdade das “ideias”, do “incondicionado”, do “absoluto”, dos “princípios”. No ajuizamento do sublime, a imaginação esforça-se ao máximo por fornecer, mediante suas sínteses de “apreensão” e “compreensão”, uma forma para uma intuição sensível que se apresenta, por assim dizer, “grandiosa”, “magnânima” e/ou “potente”, que, por sua vez, não favorece em nada a tarefa da imaginação. É nesse momento que essa faculdade se vê impossibilitada de realizar tal tarefa; ela não consegue, por ser uma faculdade sensível, produzir uma forma que possa compreender a suposta “grandiosidade” e “potência” do objeto, daí o sofrimento, a dor, o desamparo sentido pela imaginação. Desse modo, então, a imaginação reconhece seu fracasso. Ela “cai em si”. Entra em estado de choque e silencia. Kant afirma que tal

207 208

CFJ, B 76-77 [grifo do autor]. CFJ, B 87.

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estado é semelhante a um “abalo” a uma “momentânea inibição das forças vitais”. 209 É instaurado o silêncio, a “seriedade”, momento que antecede a entrada solene da razão, que por meio de suas ideias do “incondicionado suprassensível”, do “absoluto”, da “totalidade”, vem em socorro da imaginação e dá conta da aparente “grandiosidade” do objeto que está a humilhar essa faculdade. É aí que as ideias da razão, em função daquela inadequação da imaginação, são “avivadas” e “evocadas” no ânimo, provocando um sentimento de “prazer negativo” que é a admiração e o respeito. Com efeito, o “avivamento” e “evocação” das ideias da razão não consiste numa apresentação positiva das mesmas, isto é, não se trata de uma manifestação das ideias da razão na sensibilidade, numa suposta aplicação dessas ideias à “grandeza sensível”. Mas, antes, consiste em, por meio da “inadequação” dessas ideias com relação a uma apresentação na imaginação, que as mesmas são, por assim dizer, como num contraste, “sentidas” no ânimo como se tocassem o mais profundo da alma, e ensejam, desse modo, um sentimento de prazer superior ao prazer sensível, um sentimento de satisfação espiritual, da posse de uma faculdade suprassensível, que é a razão, lembrando-nos de que nada que seja sensível pode alcançar o suprassensível em nós. Em outras palavras, as ideias da razão jamais podem ser apresentadas sensivelmente, pois, como vimos, suas notas características são incompatíveis com as formas da sensibilidade. O que é apresentando no sublime é, antes, a “inadequação” da apresentação positiva dessas ideias em relação a tudo que seja sensível. É por isso que, como falaremos a seguir, o sentimento do sublime comporta ambos os sentimentos de desprazer e de prazer. Em suma, o sentimento de desprazer ou de dor é ensejado no ajuizamento do sublime exatamente em função de a imaginação ver-se fracassada em sua tarefa, ou seja, em não conseguir compreender numa forma a totalidade da imensidão sensível. Com efeito, quando a imaginação se sente fracassada, frustrada na sua tarefa, pode-se perceber todo o potencial de sua força, na medida em que, através de seu fracasso, ela conduz o ânimo a “ocupar-se com ideias que possuem uma conformidade a fins superior”. 210 É a partir da exigência da razão, bem como do reconhecimento dos limites experimentados pela imaginação, que é possível o ensejo de um sentimento de prazer que, apesar de “negativo”, con-

209 210

CFJ, B 75. CFJ, B 77.

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siste no reconhecimento de que nada sensível pode se comparado com aquilo que há de suprassensível no sujeito. É nesse sentido que Kant afirma em uma das suas definições que o “sublime é aquilo em comparação com o qual tudo o mais é pequeno”. 211 O que é sublime, nesse sentido, são as próprias ideias da razão.

5.4 O matematicamente-sublime Apesar de Kant ter afirmado, no §24 da “Analítica do sublime”, seguir o mesmo método de análise presente na “Analítica do belo”, que consiste naqueles quatros momentos a que nos referimos anteriormente, qualidade, quantidade, relação e modalidade, não encontramos um rigor quanto a esse procedimento. No tratamento do ajuizamento do sublime vimos que a primeira dessas mudanças de método consistiu na análise desse ajuizamento estético começar com o momento da quantidade em função de o objeto também poder apresentar-se sem forma. Além dessas diferenças entre os juízos do belo e do sublime, Kant introduz, ainda, outra diferença no seio da própria “Analítica do sublime” que diz respeito a um duplo “movimento” do ânimo, provocado pelo ajuizamento do objeto. O primeiro movimento conduz o ânimo a sentir a extensão e grandiosidade do objeto, desse modo caracterizando o ajuizamento estético como matematicamente-sublime. O segundo movimento do ânimo é referido no ajuizamento estético ao poder da natureza, sendo tal ajuizamento caracterizado como dinamicamente-sublime. Tal diferença não é encontrada na “Analítica do belo”, uma vez que o ajuizamento do belo mantém o ânimo em um único estado duradouro de calma e serenidade. Já o duplo movimento provocado no ânimo no ajuizamento do sublime, consiste no modo com que o objeto é referido na imaginação às duas “faculdades gerais do ânimo”: a “faculdade do conhecimento”, que é a razão em seu uso teórico-especulativo (no matematicamente-sublime) ou à “faculdade da apetição”, que é a razão no seu uso prático (no dinamicamente-sublime). Todavia, não podemos esquecer de que no ajuizamento estético do sublime, por se tratar de um juízo reflexivo-estético, isto é, sem conceitos e referido ao sentimento de prazer e des211

CFJ, B 84. [grifo do autor].

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prazer, tanto o uso teórico da razão no matematicamente-sublime, quanto o uso prático da mesma, no dinamicamente-sublime, referem-se a usos indeterminados da razão em suas ideias, e não no sentido estrito do conhecimento teórico (na ligação dos conceitos puros com intuições) e da realização prática (na determinação da vontade pela lei moral), os quais dependem de conceitos determinados. Nesse ponto, Kant enfatiza ainda que “em ambos os casos [no matematicamente e no dinamicamente sublime] a conformidade a fins da representação dada é ajuizada somente com vistas a estas faculdades [do conhecimento ou à da apetição] (sem fim ou interesse)”, 212 portanto, relacionando-se a uma satisfação desinteressada. Kant define nominalmente o sublime do ponto de vista de sua disposição matemática no §25 como “o que é absolutamente grande”. 213 Que alguma coisa seja “absoluta” significa que não é relativa a nenhuma outra coisa. O sentimento do sublime, nesse caso, ao ser definido como absolutamente grande significa que ele não pode ser comparado com nenhuma outra coisa, que ele basta-se a si mesmo. É nesse sentido que, segundo Kant, o sentimento do sublime é considerado como “grande acima de toda a comparação”. 214 Quando nos referimos a alguma coisa como sendo absolutamente grande, queremos dizer que não temos de antemão nenhum conceito determinado nem do entendimento e nem da razão, e que é apenas por meio do juízo reflexionante que chegamos a tal conceito indeterminado mediante um fundamento subjetivo. Segundo Kant, o absolutamente grande é “uma conformidade subjetiva da representação em referência à faculdade do juízo”. 215 Para avaliarmos a grandeza de alguma coisa, precisamos de uma medida que seja fundamentalmente diferente da coisa que está sendo avaliada. Ora, tal medida “fundamental” ou “absoluta” não poderia, como tal, encontrar-se no mundo sensível, uma vez que nesse mundo toda medida é relativa à outra, de modo que, segundo Kant, “toda determinação de grandeza dos fenômenos simplesmente não pode fornecer nenhum conceito absoluto de uma grandeza, mas sempre somente um conceito de comparação”. 216 Kant, na primeira Crítica, ao referir-se à “totalidade absoluta” ou “incondicionada” da série das condições, reiterou que “[...] como o mundo sensível nada contém de semelhante, nunca se pode falar de grandeza 212

CFJ, B 80. CFJ, B 80. 214 CFJ, B 80. 215 CFJ, B 81. 216 CFJ, B 81. 213

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absoluta das séries no mundo sensível[...]”. 217 Na terceira Crítica, Kant afirma que o sublime como o absolutamente grande, não pode ser jamais encontrado no mundo sensível.

Se, porém, denominamos algo não somente grande, mas simplesmente, absolutamente e em todos os sentidos (acima de toda a comparação) grande, isto é, sublime, então se tem a imediata perspiciência de que não permitimos procurar para o mesmo nenhum padrão de medida adequado a ele fora dele, mas simplesmente nele. Tratase de uma grandeza que é igual simplesmente a si mesma. Disso segue-se, portanto, que o sublime não deve ser procurado nas coisas da natureza, mas unicamente em nossas ideias;[...]”218

Na sua análise do matematicamente-sublime, Kant apresenta dois modos possíveis de avaliarmos as grandezas da natureza: matemática e estética. A primeira avaliação, a matemática, se dá por conceitos numéricos e é lógica; a segunda, a estética, se dá mediante a intuição, sendo, portanto, imediata. Pela avaliação matemática, podemos determinar logicamente o conceito aproximado de quão grande seja um objeto mediante a progressão ao infinito na série numérica. Mas esse conceito é apenas aproximado, dado que a progressão é, ela mesma, infinita. A medida de avaliação dessa grandeza consistiria em ser ela própria a unidade dessa série. Com efeito, tal unidade pressuporia outra unidade mais fundamental como sendo conhecida e essa, por sua vez, outra medida, e assim ao infinito, de modo que não é possível, na avaliação matemática, encontrar uma medida que seja ela própria primeira e fundamental. Resta apenas que tal medida fundamental tem que ser ajuizada subjetivamente no juízo reflexionante, sendo, portanto, uma medida estética. Tal medida fundamental estética da grandeza é apreendida imediatamente pelo ânimo num relance e, como medida máxima, “comporta a ideia do sublime e produz aquela comoção que nenhuma avaliação matemática das grandezas pode efetuar através de números”.

219

No matematicamente-sublime, o ajuizamento estético-reflexivo está relacionado à grandeza de um objeto. Exatamente porque não há nenhum padrão de medida dos sentidos, isto é, nem empírico e nem matemático, de modo a poder avaliar a grandeza de um objeto, é que tal medida concerne ao juízo na reflexão estética, que, segundo Kant, não apresenta nenhum conceito de fim relativo ao objeto natural (como animais de determinada espécie) e 217

CRP, A 516/B 544. CFJ, B 84. 219 CFJ, B 87. 218

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nem de objetos artísticos, mas uma “conformidade a fins subjetiva” que apenas é ajuizado de modo reflexivo mediante a “natureza bruta (e nesta inclusive somente enquanto ela não comporta nenhum atrativo ou comoção por perigo efetivo), simplesmente enquanto ela contém grandeza.” 220 Apesar de a imaginação ser a faculdade da apresentação de formas puras sensíveis, ela “aspira ao infinito” (que é a representação do incondicionado) nas séries de suas sínteses condicionadas. Para alcançar a forma de uma medida absoluta que sirva para a apreciação da grandeza de um objeto, a imaginação, a partir da intuição de um quantum, avança na síntese de sua forma mediante aquelas duas funções: a apreensão e a compreensão. 221 A apreensão pode ser estética, e, nesse sentido, não estar relacionada com números, de modo a poder prosseguir sem empecilhos ao infinito. O mesmo não acontece quando se trata da síntese da compreensão. Nessa função, na medida em que a imaginação avança na apreensão de seu máximo orientada por conceitos numéricos, é exigido da mesma um esforço descomunal na sua síntese de compreensão, o que, segundo Kant, faz “com que ela perca de um lado e ganhe de outro e na compreensão há um máximo que ela não pode exceder”. 222 A razão, por outro lado, é a faculdade suprassensível que possibilita pensar (não conhecer) a “totalidade absoluta” por meio de suas ideias. É pela insuficiência da imaginação na avaliação de uma “grandeza absoluta” que ela (a imaginação) remete à razão aquilo que não consegue sintetizar numa forma sensível: a ideia de um “todo absoluto”. Assim, em seu fracasso, a imaginação desperta no ânimo o sentimento de uma “faculdade suprassensível”, a qual possibilita pensar, sem contradição, a grandiosidade absoluta, a ideia de infinito, ensejando no ânimo o sentimento de uma grandiosidade incomensurável ou, numa palavra, o sentimento do sublime. O que é sublime é a nossa dimensão suprassensível, que, mediante a inadequação da imaginação, é despertada em nós revelando-nos de certo modo que, o que há de superior e grandioso em nós é o sentimento de uma “disposição de espírito” ou abertura para as ideias da razão. Essa disposição do espírito é, em última análise, a nossa 220

CFJ, B 89. Como vimos, na primeira edição da CRP, Kant caracteriza o procedimento da imaginação a partir das suas formas puras do tempo e do espaço em síntese da apreensão e síntese da reprodução. (CRP A, 99-102). Ao contrário da função sintética que a imaginação desempenha na primeira Crítica, a qual desemboca na síntese da “recognição no conceito” (CRP, A 103), nas sínteses que a imaginação realiza na terceira Crítica essa “recognição no conceito” é substituída pela apresentação de um conceito indeterminado do entendimento (no caso do belo) e pela apresentação de um conceito indeterminado da razão (no caso do sublime) mediante o sentimento da “inadequação” da imaginação em apresentar, numa forma, a ideia de uma “totalidade absoluta”. 222 CFJ, B 87. (A citação não é exatamente nessa forma). 221

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“vocação” ao bem, que o sublime enseja em nosso ânimo e que, por meio da reflexão, nos predispõe a gestos, pensamentos e atitudes grandiosos, numa palavra, sublimes.

Mas precisamente pelo fato de que em nossa faculdade da imaginação encontra-se uma aspiração ao progresso até o infinito, em nossa razão, porém, uma pretensão à totalidade absoluta como a uma ideia real, mesmo aquela inadequação a esta ideia de nossa faculdade de avaliação da grandeza das coisas do mundo dos sentidos desperta o sentimento de uma faculdade suprassensível em nós; e o que é absolutamente grande não é, porém, o objeto dos sentidos, e sim o uso que a faculdade do juízo naturalmente faz de certos objetos para o fim daquele (sentimento), com respeito ao qual, todavia, todo outro uso é pequeno. Por conseguinte, o que deve denominar-se sublime não é o objeto dos sentidos e sim a disposição de espírito através de uma certa representação que ocupa a faculdade de juízo reflexiva. 223

Segundo Kant, exatamente porque há em nós uma dimensão pura suprassensível, ou seja, a razão, é que podemos pensar sem contradição o infinito. A natureza, nesse sentido, por meio da manifestação de seus objetos grandiosos, é a expressão sensível de uma infinitude que é sentida no ânimo mediante o “esforço” e “fracasso” da imaginação quando essa tenta produzir, numa forma, a “totalidade absoluta”, que serviria como medida da avaliação da grandeza desses objetos. Tal infinitude, desse modo, não pode pertencer aos fenômenos, daí o fracasso da imaginação em produzir uma “forma total” em relação à grandeza sensível, pela qual pudesse compreendê-la. Assim, a impossibilidade ou incapacidade de a imaginação compreender, numa forma, a grandeza manifestada mediante um objeto sensível, remete “o conceito da natureza a um substrato suprassensível (que se encontra à base dela e, ao mesmo tempo, de nossa faculdade de pensar), o qual é grande acima de todo padrão de medida dos sentidos e por isso permite ajuizar como sublime não tanto o objeto quanto, antes, a disposição de ânimo na avaliação do mesmo”. 224 Com justeza, Paul Guyer chegou a afirmar que “na teoria do sublime, a busca do infinito, que fracassa como metafísica especulativa constitutiva, se transforma em uma experiência estética exitosa”. 225 No matematicamente-sublime experimentamos, por meio da aparente grandiosidade de alguns fenômenos, o reflexo da ideia de infinito de modo a poder ampliar a nossa razão 223

CFJ, B 85.[meu grifo] CFJ, B 94. 225 GUYER, Paul. “Los princípios del juicio reflexivo”. In: Diánoia, anuário de filosofia, n° 42, Universidade Nacional autônoma de México. México, 1996, p. 43. 224

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teórica. Tal infinito que experimentamos (ainda que negativamente) no sentimento do sublime, também não há de significar outra coisa que não a infinitude ou a grandiosidade mesma daquilo que é suprassensível na base da natureza, e igualmente em nós, que, por meio da faculdade que excede todo e qualquer limite sensível, isto é, a razão, possibilita pensar nosso destino para além de tudo o que é sensível, possibilita pensar uma destinação infinita, suprassensível. O objeto da natureza ajuizado como sendo “grandioso” não seria, ele mesmo, sublime, mas apenas o sentimento que é ensejado no ânimo por ocasião do ajuizamento da grandeza de tal objeto. 226 Segundo Kant, ninguém iria atribuir sublimidade a objetos que são antes ocasião de horror do que propriamente de elevação tais como os seguintes exemplos dados pelo próprio Kant: “massas informes de cordilheiras amontoadas umas sobre outras”, “o sombrio mar furioso”, “rochedos audazes”, “nuvens carregadas acumulando-se no céu”, “vulcões em sua inteira força destruidora”, etc. 227 A sublimidade é o próprio sentimento que, segundo Kant, é ensejado no ânimo em função do envolvimento das faculdades no ajuizamento estético, no caso do sublime, a imaginação e a razão. A tentativa da faculdade da imaginação de apresentar a forma de um “todo absoluto” não constitui por si só uma tarefa que de antemão é representada pela mesma como inalcançável. Seria irracional a imaginação perseguir um fim o qual a mesma não acreditasse poder alcançar. Ora, dado que essa faculdade, em sua atividade, está a participar do ajuizamento reflexivo-estético, e dado também que esse ajuizamento tem sua validade justificada pelos princípios regulativos, os quais, como vimos, têm como um dos seus pressupostos 228 a persecução de fins os quais acredita ser possível o seu alcance (ainda que nunca os alcancem), segue-se daí que a imaginação não está a desempenhar o seu papel em vão. Mesmo que a imaginação não alcance o fim almejado, ela, ainda assim, faz com que outro “fim” mais elevado seja posto em relevo, dignificando, assim, a sua tarefa. Nesse sentido, Kant afirma que:

Nossa faculdade da imaginação, porém, prova, mesmo no seu máximo esforço com respeito à por ela reclamada compreensão de um objeto dado em um todo da intui226

Vimos que atribuir sublimidade a um objeto consiste numa sub-repção, ou seja, na concessão indevida de uma graça ou atributo a algo ou alguém, aqui nesse caso, a sublimidade atribuída ao objeto. 227 CFJ, B 104 – 102. 228 Vide nota 39.

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ção (por conseguinte, para a apresentação da ideia da razão), suas barreiras e inadequação, contudo ao mesmo tempo sua determinação para a efetuação da adequação à mesma como uma lei. 229 A imaginação, sem dúvida, contribui, por meio do seu “esforço” e “inadequação” em apresentar uma ideia da razão (a ideia de totalidade absoluta), para que o ânimo reconheça no sentimento do sublime a destinação mais dignificante que o ser humano pode sentir. Foi Schiller, que, como ninguém, captou com profundidade todo o sentido do sublime kantiano, ao expressar que,

Assim, experimentamos por meio do sentimento do sublime o fato de que o estado de nosso espírito não se orienta necessariamente pelo estado dos sentidos, que as leis da natureza não são necessariamente também as nossas, e que possuímos em nós um princípio autônomo, independente de quaisquer comoções sensíveis. 230

No sentimento do sublime, sentimos com profunda comoção que os maiores fins da nossa existência se elevam além de toda a natureza sensível. Se o sentimento do sublime, por um lado, é a expressão da finitude humana, tal finitude consiste na dimensão sensível que partilhamos com a natureza e, por conseguinte na nossa incapacidade, enquanto seres sensíveis, em alcançar o absoluto suprassensível. Por outro lado, é exatamente por meio dessa finitude sensível sentida no sublime que podemos, por assim dizer, sentir como que refletido num espelho, o reflexo de nossa infinitude inteligível. Como bem expressou Schiller, “a grandeza relativa fora dele [do homem] é o espelho em que ele avista o absolutamente grande dentro de si.” 231 A imaginação não compara o seu poder de imediato com o poder da razão, o que a levaria a resignar-se na medida em que, de antemão, se acharia incapaz de realizar algo para o qual que sequer tentara. 232 É desse modo que atrofiamos as nossas faculdades, quando ao compararmo-nos com os outros não tomamos verdadeiramente consciência de tudo o 229

CFJ, B 97. SCHILLER, Friedrich. “Sobre o sublime”. In: Do sublime ao trágico. Org. Pedro Süssekind. Tradução: Pedro Süssekind e Vladimir Vieira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 60. 231 Ibidem, p. 65. 232 Kant, já no início da terceira Crítica, se refere a isso quando afirma que “se nós não determinássemos a aplicar as nossas faculdades antes de nos termos certificado da suficiência da nossa capacidade para a produção de um objeto, essa aplicação permaneceria em grande parte sem utilização. É que geralmente só ficamos conhecendo as nossas faculdades pelo fato de as experimentarmos”(CFJ, B XXIII[nota]). 230

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que somos capazes de realizar por meio do uso de nossas faculdades que clamam por sua realização. A imaginação simplesmente esforça-se ao máximo por desempenhar uma tarefa que, a princípio, acredita poder realizar em função de ser uma lei para ela (dada pela razão). Kant nunca se cansou de enfatizar que as nossas faculdades, nossos poderes mentais, deveriam ser desenvolvidas ao máximo, pois se trata de uma “obrigação nossa” desenvolvêlas. 233 Poderíamos afirmar que, se há outra característica contundente no sentimento do sublime, tal característica se chama superação. A imaginação em seu esforço por alcançar a compreensão da “totalidade”, nos dá uma verdadeira lição de superação. Segundo Deleuze, essa superação culmina no “acordo discordante” entre a razão e a imaginação indicando que essa também teria uma “destinação suprassensível”: Quando a imaginação é posta na presença do seu limite por alguma coisa que a supera por todos os lados, ela mesma supera o seu próprio limite, é verdade que de maneira negativa, representando-se a inacessibilidade da ideia racional e fazendo desta própria inacessibilidade algo de presente na natureza sensível. [...] Tal é o acordo - discordante - da imaginação e da razão: não é apenas a razão que tem uma “destinação suprassensível” mas também a imaginação. Neste acordo, a alma é sentida como a unidade suprassensível indeterminada de todas as faculdades; somos nós próprios referidos a um foco, como a um “ponto de concentração” no suprassensível. 234

Tal superação pode ser considerada como o esforço em ultrapassar tudo aquilo que, à primeira vista, se coloca como obstáculo para a realização plena das nossas faculdades, ou seja, de tudo o que somos capazes de realizar. No sublime, como bem salientou Paul Crowter, “nos tornamos conscientes de que somos seres com capacidades que transcendem as limitações de nossa finita existência fenomênica” 235 Num segundo momento, essa superação é sentida de outro modo quando, por ocasião do fracasso da imaginação, é despertado em nosso ânimo um sentimento de uma facul-

233

“Pois a complacência concerne aqui somente à destinação de nossa faculdade que se descobre em tal caso, do modo como a disposição a esta encontra-se em nossa natureza, enquanto o desenvolvimento e o exercício dessa faculdade são confiados a nós e permanecem obrigação nossa” (CFJ, B 106). 234 DELEUZE, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Trad. Germiniano Franco. Lisboa- Portugal: Edições 70, 2009, p. 58. [grifo do autor]. 235 CROWTER, Paul. The Kantian Sublime: From Morality to Art. New York: Oxford University Press, 1989, pp. 99-100.

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dade suprassensível, a razão, por meio da qual podemos superar a dor, o sofrimento, o desprazer, dando outro sentido para esses. No sentimento do sublime, somos capazes de uma “autotranscendência”. Nesse ponto, como bem observou Paul Crowter, “o que nos define enquanto seres humanos é a nossa vocação racional que é a expressão da capacidade de pensar ou agir independentemente da causalidade natural.” 236 No sentimento do sublime, ao vislumbrar a infinitude própria do nosso espírito, podemos ultrapassar o sofrimento sensível, numa palavra, superá-lo, ainda que não possamos extirpá-lo.

5.5 O sublime e o sentimento de respeito Ao momento da quantidade no matematicamente-sublime, segue-se o §27 da “Analítica do sublime”, onde Kant trata da qualidade da satisfação que caracteriza o sentimento do sublime. Como vimos, o ajuizamento do sublime comporta ambos sentimentos: prazer e desprazer. Inicialmente ele enseja o sofrimento, a dor, o desprazer, isso em função daquela frustração da imaginação em alcançar a compreensão sensível da medida de um “todo absoluto”. No entanto, a “complacência” sentida no ajuizamento do sublime não se resume apenas ao desprazer, ele também envolve um “prazer negativo” de uma ordem, por assim dizer, superior, 237 que é o sentimento de respeito por nossa própria humanidade. Ao comparar a complacência sentida nos juízos do belo e do sublime Kant marca a seguinte diferença: “a complacência no sublime contém não tanto prazer positivo, quanto muito

236

Ibidem. Novamente aqui recorremos à interpretação de Guido Antônio de Almeida que afirma a possibilidade de, mediante a reflexão acerca dos sentimentos de prazer e desprazer, distinguir sentimentos de “primeira ordem” e de “segunda ordem”, tanto no domínio moral quanto no estético. No sublime, o sentimento de “segunda ordem” seria o prazer de reconhecer-se como ser livre e vocacionado à moralidade, como salienta esse autor: “a ideia do sublime é pois um conceito indeterminado da razão, para o qual é impossível por princípio encontrar qualquer coisa de congruente na intuição sensível. Eis porque toda tentativa da imaginação de oferecer uma representação intuitiva do sublime necessariamente fracassa e é acompanhada de um sentimento de desprazer. Mas esse sentimento de desprazer só pode se produzir, se a imaginação é solicitada pela razão a representar sensivelmente o sublime. Ora, a posse da razão confere-nos um valor que supera toda grandeza sensível, na medida em que podemos não só pensar teoricamente o absolutamente grande, mas realizá-lo praticamente em nossa vontade como ‘absolutamente bom’(que é a vontade moral). Por isso, o sentimento de desprazer que tem origem quando refletimos sobre a incapacidade da imaginação de oferecer uma imagem do absolutamente grande é necessariamente acompanhado de um sentimento de prazer com a consciência da ‘vocação’, como diz Kant, de nossa razão a pensar o absolutamente grande, e da ‘disposição’, ou ‘receptividade’, às ideias morais.” (ALMEIDA, Guido Antônio. “Sobre a especificidade e a autonomia do estético em Kant”. S/R, pp. 17-18). 237

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mais admiração ou respeito, isto é, merece ser chamado de prazer negativo”. 238 Mais adiante ele volta a enfatizar que “o sentimento da inadequação de nossa faculdade para alcançar uma ideia, que é lei para nós, é respeito”. 239 Vimos, no segundo capítulo, que o sentimento de respeito, por ter sua origem na razão, é um sentimento moral-prático. O respeito ensejado no sublime apresenta elementos que não o levam a identificar-se imediatamente com aquele sentimento de respeito, tal como apresentado por Kant nas suas obras práticas, uma vez que, nessas obras, o respeito está diretamente ligado à faculdade da vontade, tendo, sua origem, desse modo, na razão. Já o sentimento de respeito concernente ao sublime é estético-reflexivo, isto é, está diretamente ligado ao sentimento de prazer e desprazer, no juízo de reflexão (ainda que nesse juízo esteja envolvida a razão), o que já demonstra, por si só, a sua diferença com relação ao sentimento de respeito ligado à moralidade. O sentimento de respeito ligado à moralidade serve de motivo para a determinação subjetiva da vontade pela lei moral. No juízo estético de reflexão, como vimos, não há a determinação da vontade. Primeiro, porque a vontade não está diretamente envolvida no ajuizamento estético; segundo, porque, nesse ajuizamento, falta a lei, a regra ou conceito que possa determinar a ação. O sentimento de respeito ensejado no sublime liga-se, antes, à relação indeterminada entre as faculdades da imaginação e da razão. É nesse sentido que no sentimento estético do sublime parece haver uma colaboração com a moralidade sem que o estético perca sua autonomia e especificidade próprias. Pois, além de o sentimento do sublime ser “análogo” ao sentimento moral de respeito, na medida em que ambos envolvem sentimentos contrastantes de prazer e desprazer, poderíamos dizer que também há, entre sentimento estético e sentimento moral, uma relação íntima de colaboração na medida em que o sentimento do sublime nos predispõe à moralidade. Como bem salientou Leonel Ribeiro, há entre o sentimento estético e o sentimento moral uma relação de “solidariedade”, de “parentesco”. 240 Em outras palavras, o sentimento do sublime e o sentimento moral de respeito não seriam somente sentimentos “análogos”, ou seja, não apenas partilhariam de uma relação

238

CFJ, B 76. CFJ, B 96. [grifo do autor]. 240 RIBEIRO DOS SANTOS, Leonel. Metáforas da Razão ou economia poética do pensar kantiano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, p. 452. 239

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idêntica entre coisas absolutamente diversas, mas antes, haveria uma íntima colaboração entre esses sentimentos. Poderíamos dizer que a colaboração do sublime com o moral é dada mediante o “acordo discordante” 241 entre imaginação e razão, que, segundo Kant, é representado pela “desconformidade a fins da faculdade da imaginação a ideias da razão”, que, por um lado, atesta a incapacidade da imaginação em apresentar sensivelmente as ideias da razão, mas, por outro, “é efetivamente representada como conforme a fins” 242 para a razão. De modo que, segundo Kant, [...] justamente por isso o próprio juízo estético torna-se subjetivamente conforme a fins para a razão como fonte das ideias, isto é, de uma tal compreensão intelectual, para a qual toda compreensão estética é pequena; e o objeto é admitido como sublime com um prazer que só é possível mediante um desprazer. 243 Pois bem, é nessa medida que podemos compreender uma colaboração entre o estético e o moral, uma vez que o ajuizamento estético do sublime, ao avivar no nosso ânimo a consciência de uma faculdade suprassensível, isto é, da posse da razão com suas ideias, torna-nos receptivos à própria moralidade. Mas tal colaboração não consiste só de um lado da moeda em relação ao outro, ou seja, do sensível ao moral; ela ocorre, digamos assim, numa via de mão dupla, sendo, desse modo, recíproca (ainda que tal via tenha por termo final a disposição ao moral-prático). Uma vez que, como afirmou Kant, para poder ajuizar esteticamente o sublime é imprescindível o sentimento moral, ou o cultivo da moralidade. 244 Resumindo o que dissemos até o presente momento, a imaginação, em seu estado livre, assume uma tarefa que lhe é dada mediante um princípio regulativo da razão. Tal princípio reza que, para o condicionado de uma intuição dada, deve-se buscar o incondicionado ou a compreensão do “todo absoluto”. Como vimos, a imaginação fracassa na com241

Essa expressão é citada por Deleuze em: A filosofia Crítica de Kant. Trad. Germiniano Franco. LisboaPortugal: Edições 70, 2009, p. 58. 242 CFJ, B 101. 243 CFJ, B 101-102. 244 Kant afirma que “Na verdade aquilo que nós, preparados pela cultura, chamamos sublime, sem o desenvolvimento de ideias morais apresentar-se-á ao homem inculto simplesmente como terrificante” (CFJ, B 111). Mais adiante ele continua a dizer que “o juízo sobre o sublime da natureza [...] tem seu fundamento na natureza humana e, na verdade, naquela que com o são entendimento se pode ao mesmo tempo imputar a qualquer um e exigir-lhe, a saber, na disposição ao sentimento para ideias (práticas), isto é, ao sentimento moral” (CFJ, B 111-112). Explicaremos melhor essa relação mais adiante quando tratarmos sobre a modalidade do juízo do sublime.

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preensão desse “todo absoluto”, e, segundo Kant, o sentimento de sua “inadequação para alcançar uma ideia, que é lei para nós, é respeito.” 245 Essa “ideia” é a da compreensão daquele “todo absoluto” ou incondicionado, o qual a imaginação, ao não conseguir fornecer numa forma sensível, fracassa, e, com isso, demonstra o limite do sensível, ao mesmo tempo em que, concordando com a lei da razão, faz com que o ânimo se predisponha às ideias da razão. É a partir deste duplo movimento de “destinação” e “fracasso” que atesta, por um lado, a inadequação da imaginação em avaliar a grandeza absoluta, gerando, por conseguinte, um sentimento de desprazer, mas, por outro lado e “ao mesmo tempo”, é um prazer na medida em que essa “inadequação” da imaginação “concorda” com as ideias da razão, e, mediante esse “acordo discordante” é sentido no ânimo o sentimento de uma destinação suprassensível, ou como afirma o próprio Kant, “aquela inadequação a esta ideia de nossa faculdade de avaliação da grandeza das coisas do mundo dos sentidos desperta o sentimento de uma faculdade suprassensível em nós”[...]. 246 E, com justeza, Schiller enfatizou que “essa ligação de duas sensações contraditórias num único sentimento comprova nossa autonomia moral de maneira irrefutável”. 247 Nas palavras de Kant:

O sentimento do sublime é, portanto, um sentimento do desprazer a partir da inadequação da faculdade da imaginação, na avaliação estética da grandeza, à avaliação pela razão e, neste caso, ao mesmo tempo um prazer despertado a partir da concordância, precisamente deste juízo da inadequação da máxima faculdade sensível, com ideias racionais, na medida em que o esforço em direção às mesmas é lei para nós. Ou seja, é para nós lei (da razão) e pertence à nossa determinação avaliar como pequeno em comparação com ideias da razão tudo o que a natureza como objeto dos sentidos contém de grande para nós; e o que ativa em nós o sentimento desta destinação suprassensível concorda com aquela lei. Ora, o esforço máximo da faculdade da imaginação na exposição da unidade para a avaliação da grandeza é uma referência a algo absolutamente grande, consequentemente é também uma referência à lei da razão admitir unicamente esta lei como medida suprema das grandezas. Portanto, a percepção interna da inadequação de todo padrão de medida sensível para a avaliação de grandeza da razão é uma concordância com leis da mesma e um desprazer que ativa em nós o sentimento de nossa destinação suprassensível, segundo a qual é conforme a fins por conseguinte é prazer, considerar todo o padrão de medida da sensibilidade inadequado às ideias da razão. 248 245

CFJ, B 96. CFJ, B 85. [meus grifos]. 247 SCHILLER, Friedrich. “Sobre o sublime”. In: Do sublime ao trágico. Org. Pedro Süssekind. Tradução: Pedro Süssekind e Vladimir Vieira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 60.[meu grifo] 248 CFJ, B 97-98. [grifo do autor]. 246

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O sentimento de respeito no sublime, portanto, estaria relacionado com o fato de que, ainda que sejamos seres sensíveis (daí a condição do sentimento enquanto tal), somos, em função da nossa racionalidade, seres independentes da natureza sensível. Isso quer dizer que nossa existência não se resume apenas ao mundo fenomênico, que podemos escolher outros fins que sejam mais elevados com relação aos fins da nossa inclinação imediata. O sentimento de respeito é sentido, por conseguinte, no ajuizamento do sublime, como respeito por aquilo ao qual estamos “destinados”, e que tem uma expressão no desenvolvimento pleno de nossas faculdades, isto é, de nossas capacidades tanto teóricas quanto práticas.249 É nesse sentido que Kant entende que o esforço em direção às ideias é uma lei para nós, 250 e em comparação com as mesmas tudo o que é sensível e o “todo” do mesmo é pequeno. E, desse modo, é respeito por nossa humanidade, em função da nossa racionalidade.

Portanto, o sentimento do sublime na natureza é respeito por nossa própria destinação, que testemunhamos a um objeto da natureza por uma certa sub-repção (confusão de um respeito pelo objeto como respeito pela ideia da humanidade em nosso sujeito), o que por assim dizer torna-nos intuível a superioridade da determinação racional de nossas faculdades de conhecimento sobre a faculdade máxima da sensibilidade. 251

Assim no ajuizamento de uma coisa como sublime ela [a faculdade de juízo estética] refere a mesma faculdade [a imaginação] à razão para concordar subjetivamente com suas ideias (sem determinar quais), isto é, para produzir uma disposição de ânimo que é conforme e compatível com aquela que a influência de determinadas ideias (práticas) efetuaria sobre o sentimento. 252 5.6 O dinamicamente-sublime

249

No sublime matemático, apesar da referência ser ao uso teórico, ainda que não determinado, da razão, em função da ideia de uma “totalidade absoluta”, Kant, em alguns momentos, refere-se à razão em seu uso prático. Além disso, penso que possa haver no sublime matemático uma relação entre os dois usos (indeterminados) da razão, tanto do ponto de vista teórico-especulativo quanto do prático, e que tal relação seja mediada pela ideia de liberdade que ocupa, no sistema da razão, o “fecho de abóbada”, tanto da razão prática quanto da especulativa (CRPr, A 4), pois o sublime matemático apesar de relacionar-se com a razão teórica, ainda assim, enseja o sentimento de respeito que, por sua vez, pertence à razão prática. 250 CFJ, B 97. 251 CFJ, B 97. 252 CFJ, B 94-95.

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Kant dedica o §28 da “Analítica do sublime” à análise do sublime em sua manifestação dinâmica. Que alguma coisa seja considerada como “dinâmica” consiste na sua potência, força, movimento, tal é a etimologia da palavra grega dynamis. É assim que o ânimo é sentido no sublime dinâmico, movimentado, potencializado, balançado, desafiado, contudo jamais ultrapassado ou vencido pelas potências naturais. Segundo Kant, o que caracteriza o sublime do ponto de vista dinâmico é a manifestação da natureza ligada ao “poder” (Macht), na medida em que tal “poder” provoca o movimento do ânimo no ajuizamento estético do sublime. “Poder é uma faculdade que se sobrepõe a grandes obstáculos”, 253 afirma Kant ao abrir o parágrafo que trata do “dinamicamente sublime”. Chamar-se-á de “força” (Gewalt) o poder que sobrepuja à resistência do que se apresenta externamente na natureza como poder. Segundo Kant, a natureza, quando ajuizada esteticamente em suas poderosas manifestações, não representa nenhuma “força” efetiva sobre o sujeito, uma vez que há nele uma faculdade suprassensível que pode superar infinitamente aquele poder natural. Em outras palavras, essa “faculdade” é o nosso poder racional que, na verdade, chama-se “força”, na medida em que essa atua em nós de modo a fazer com que resistamos às ameaças daquela horripilante natureza. A natureza, no ajuizamento do sublime, revela um poder não sensível em nós como uma força com a qual podemos resistir ao próprio poder natural. Essa força de resistência possibilita que consideremos com ânimo resoluto, isto é, que enfrentemos sem medo a própria natureza em suas potências devastadoras, como não representando nenhuma ameaça sobre nós. É somente nessa medida que a natureza pode ser caracterizada como dinamicamente-sublime: na medida em que seu poder desperta em nós o nosso poder que, como “força”, revela no nosso ânimo uma potência de uma “ordem superior” àquele poder sensível da natureza. Kant afirma que, para que a natureza seja ajuizada como dinamicamente sublime, ela tem de poder, nas suas manifestações devastadoras, ser “representada como suscitando medo”. Contudo, esse “medo”, ao qual Kant está a se referir aqui, serve para despertar a nossa força de resistência face ao próprio poder da natureza que suscita tal temor. Kant a-

253

CFJ, B 102.

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firma que é possível “considerar um objeto como temível sem se temer diante dele”, 254 pois, “quem teme a si não pode absolutamente julgar sobre o sublime da natureza”. 255 Kant ainda ressalta que nem todo o objeto que suscita medo pode ser considerado como sublime, 256 uma vez que a sublimidade, que sub-repticiamente atribuímos à natureza, concerne, antes, à “grandeza de nossa resistência” enquanto seres não apenas sensíveis, face ao poder da natureza cujos objetos se apresentem como temíveis. Agora, que espécie de “grandeza de resistência” é essa que, sendo despertada pelas potências naturais, encontra-se no sujeito e o eleva acima do poder natural? Kant dá a entender que a “grandeza de resistência” experimentada no sublime é, em última análise, de ordem moral. Essa resistência, portanto, é bem diferente daquela que a nossa natureza sensível (física) pode apresentar. Ela nos revela a força do nosso caráter moral face ao poder da natureza. Em outras palavras, a sublimidade da nossa destinação consiste, desse modo, na resistência moral do nosso caráter, na medida em que no sentimento do sublime estão envolvidos, como afirmou Kant, os nossos “mais altos princípios” e, portanto, a nossa “personalidade”, a qual não é abalada mesmo em face do poder devastador da natureza, mesmo que fôssemos destruídos em nosso ser sensível. Nas palavras de nosso sublime filósofo: [...] assim como na verdade encontramos a nossa própria limitação na incomensurabilidade da natureza e na insuficiência da nossa faculdade para tomar um padrão de medida proporcionado à avaliação estética da grandeza de seu domínio, e contudo também ao mesmo tempo encontramos em nossa faculdade da razão um outro padrão de medida não sensível, que tem sob si como unidade aquela própria infinitude e em confronto com o qual tudo na natureza é pequeno, por conseguinte encontramos em nosso ânimo uma superioridade sobre a própria natureza em sua incomensurabilidade; assim também o caráter irresistível de seu poder dá-nos a conhecer, a nós considerados como entes da natureza, a nossa impotência física, mas descobre ao mesmo tempo uma faculdade de ajuizar-nos como independentes dela e uma superioridade sobre a natureza, sobre a qual se funda uma autoconservação de espécie totalmente diversa daquela que pode ser atacada e posta em perigo pela natureza fora de nós, com o que a humanidade em nossa pessoa não fica de fora, mesmo que o homem tivesse que sucumbir àquela força. Dessa maneira a natureza não é ajuizada como sublime em nosso juízo estético enquanto provocadora de medo, porque ela convoca a nossa força (que não é natureza) para considerar como pequeno aquilo pelo qual estamos preocupados (bens, saúde e vida) e por isso, contudo, não considerar seu poder (ao qual sem dúvida estamos submetidos com respeito a essas coi254

CFJ, B 103. CFJ, B 103. 256 CFJ, B 102. 255

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sas) absolutamente como uma força sobre nós e nossa personalidade, e sob a qual tivéssemos que nos curvar, quando se tratasse dos nossos mais altos princípios e da sua afirmação ou seu abandono. Portanto, a natureza aqui chama-se sublime simplesmente porque ela eleva a faculdade da imaginação à apresentação daqueles casos nos quais o ânimo pode tornar capaz de ser sentida a sublimidade própria de sua destinação, mesmo acima da natureza. 257

Schiller caracterizou essa resistência moral do seguinte modo: Será que gostaríamos de ser lembrados da onipotência das forças da natureza caso não tivéssemos uma reserva de algo além daquilo que elas nos podem roubar? Nós nos regozijamos com o sensível-infinito, pois podemos pensar o que os sentidos não apreendem e o que o entendimento não concebe. Ficamos entusiasmados com o que é temível, porque podemos querer o que os impulsos repudiam e rejeitar o que a eles apetece. De bom grado deixamos a imaginação ser conduzida no reino dos fenômenos, afinal, trata-se apenas de uma força sensível que triunfa sobre outra sensível, mas o que há de absolutamente grande em nós, a natureza, em toda a sua falta de limites, não pode alcançar. De bom grado submetemos o nosso bem-estar e a nossa existência à necessidade física, pois isso nos recorda justamente que ela não pode dispor de nossos princípios. O ser humano está nas mãos dela, mas a vontade humana está em suas próprias mãos. 258

Se no matemático-sublime somos confrontados com a grandeza do objeto que desafia a nossa imaginação, atestando o nosso “limite” e “finitude” enquanto seres sensíveis, mas, ao mesmo tempo, a nossa capacidade de superação por meio do despertar de uma faculdade suprassensível – que é capaz de pensar o infinito e abarcar a totalidade sensível mediante a ideia de uma totalidade absoluta inteligível -, no dinamicamente-sublime, mediante o poder devastador da natureza, é despertado em nós a “força” e resistência do ânimo em função da nossa razão prática, que resiste ao poder da natureza, e atesta desse modo um caráter resolutamente moral, daí o sujeito não temer a si em face de tais objetos, diferentemente do temeroso de si, cujo medo e covardia o impedem de sentir a sublimidade da sua “destinação” (moral) para além do sensível. É nesse sentido que Kant apresenta uma diferença entre o objeto na natureza poder ser visto como ensejando o medo, e o sujeito, em face desse objeto, temer-se a si próprio. O sujeito que teme a si diante da natureza que des257

CFJ, B 104 -105. [meus grifos]. SCHILLER, Friedrich. “Sobre o sublime”. In: Do sublime ao trágico. Org. Pedro Süssekind. Tradução: Pedro Süssekind e Vladimir Vieira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 61. [meus grifos]. 258

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perta medo, em vez de sentir sua “força” e “resistência”, expressões de um caráter resoluto, antes fugirá daquilo mesmo que lhe enseja medo, atestando desse modo, um caráter covarde. O temer a si próprio seria o temer a própria reação sentida face às circunstâncias que ensejam o medo. Com efeito, para que o sujeito possa ajuizar esteticamente tal poder da natureza temível sem sentir medo diante da mesma, é preciso que ele esteja devidamente protegido. Aqui vemos claramente a influência de Burke sobre Kant. Como vimos, o sublime em Burke enseja o “deleite” na medida em que o objeto não represente nenhuma ameaça efetiva sobre o espectador, de modo que esse, no seu estado de segurança, contempla o “terror” com “deliciosa” comoção. Kant, de algum modo, segue Burke nesse ponto ao afirmar que, [...] o seu espetáculo [da natureza] só se torna mais atraente quanto mais terrível ele é, contanto que, somente, nos encontremos em segurança; e de bom grado denominamos estes objetos sublimes, porque eles elevam a fortaleza da alma acima de seu nível médio e permitem descobrir em nós uma faculdade de resistência de espécie totalmente diversa, a qual nos encoraja a medir-nos com a aparente onipotência da natureza. 259

Apesar da semelhança com Burke, o sentimento do sublime em Kant difere do de Burke na medida em que o sublime kantiano enseja no ânimo uma faculdade de resistência de espécie totalmente diversa da natureza sensível. Enquanto em Burke nós tínhamos a vivificação de um sujeito empírico no “deleite” (delight) do “horror”, do “terrível”, o sublime em Kant revelará que, não obstante o sofrimento que acomete o sujeito em função da não compreensão desse poder devastador por meio de sua faculdade sensível (a imaginação), há uma outra dimensão alhures que o dignifica dando-lhe um prazer infinitamente superior ao sensível. Kant vai além de Burke ao afirmar que a “autoconservação” revelada no sublime é de uma origem diferente daquela sensível, pois assenta na faculdade suprassensível, de modo que essa “autoconservação” não é abalada ainda que tivéssemos que sucumbir ao poder da natureza. Portanto, a segurança na qual o espectador deve encontrar-se para ajuizar esteticamente o objeto e sentir o sublime, exatamente por não se referir apenas à uma segurança

259

CFJ, B 104.

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sensível, não pode ser considerada como o único fator determinante para poder sentir a comoção do sublime, pelo menos não é isso que podemos inferir da análise de Kant. Todavia, isso não significa, por exemplo, que o sujeito em meio a uma enchente devastadora, ou levado por um tsunami, venha, ainda assim, sentir a comoção do sublime, absolutamente. O que Kant quer dizer, quando afirma que sobre a independência da natureza se funda uma “autoconservação” de uma espécie diversa da sensível, é que a nossa humanidade não é perdida ainda que sejamos destruídos pela natureza. Um exemplo disso é que podemos ser atacados por males e doenças incuráveis que, no primeiro momento nos chocam, nos destroem, como se perdêssemos o chão sob os nossos pés e, ainda assim, não sermos afetados em nossa humanidade, na nossa liberdade, por conseguinte, nos mantermos fiéis aos nossos princípios, em função dos quais podemos retirar nossas forças, resistindo e superando o mal que nos acomete sensivelmente. É nesse ponto que consiste a própria sublimidade do caráter. A experiência estética do sublime no seu caráter dinâmico, ao ajuizar o terrível poder que a natureza sensível pode expressar, 260 convoca todas as nossas forças de resistência em relação a esse poder sensível o qual só pode ser chamado, mesmo que impropriamente, isto é “sub-repticiamente”, de sublime, na medida em que ativa no espírito humano o sentimento de uma faculdade suprassensível. Como se pudéssemos sentir que o sujeito, na sua limitação e fraqueza sensíveis, encontra a sua fortaleza não sensível. Porque, e parafraseando Pascal, apesar do homem enquanto ser sensível não passar de um “caniço”, talvez o mais fraco da natureza, ele, ainda assim é um “caniço” pensante; e, na medida em a natureza sensível o humilha através de seu poder devastador, ela, ainda assim, está a convocar nele o sentimento de sua sublime dignidade que é a expressão de seu pensamento enquanto ser livre e moral, como tendo uma natureza que é superior à sensível, sua natureza racional. Segundo Kant,

Precisamente deste modo somos também lembrados de que somente temos a ver com uma natureza enquanto fenômeno, e que esta mesma ainda tem que ser considerada como simples apresentação de uma natureza em si (que a razão tem na idei260

Kant dá os seguintes exemplos da manifestação do poder da natureza: “Rochedos audazes sobressaindo-se por assim dizer ameaçadores, nuvens carregadas acumulando-se no céu, avançando com relâmpagos e estampidos, vulcões em sua inteira força destruidora, furacões com a devastação deixada para trás, o ilimitado oceano revolto, [...]”( CFJ, B 104).

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a). Mas esta ideia do suprassensível que na verdade não determinamos ulteriormente - por conseguinte não conhecemos mas só podemos pensar a natureza como apresentação da mesma – é despertada em nós por um objeto, cujo ajuizamento estético aplica até seus limites a faculdade da imaginação, seja à ampliação (matematicamente) ou ao seu poder sobre o ânimo (dinamicamente), enquanto ele se funda sobre o sentimento de uma destinação do mesmo, a qual ultrapassa totalmente o domínio da faculdade da imaginação (quanto ao sentimento moral), com respeito ao qual a representação do objeto é ajuizada como subjetivamente conforme a fins. 261

5.9 O sublime e a moralidade Ainda que Kant afirme no §30 262 que a dedução do juízo estético do sublime fora a sua própria exposição na “Analítica do sublime”, ele já havia dedicado alguns parágrafos à dedução desse ajuizamento no §29 dessa mesma “Analítica”, intitulando tal parágrafo de “modalidade do juízo sobre o sublime da natureza”. Nesse parágrafo, Kant argumenta que a justificativa da necessidade do ajuizamento do sublime pressupõe duas afirmações necessárias no sujeito, a saber: o cultivo (cultura) das faculdades envolvidas no juízo estético, bem como a predisposição ao sentimento moral. Para que possamos ajuizar esteticamente o sublime, e, por conseguinte, apreciar o sentimento do sublime, é preciso uma abertura de ânimo às ideias da razão. E como o nosso ânimo pode estar aberto a essas ideias? No cultivo e exercício das nossas faculdades, que consiste no pleno uso e desenvolvimento dessas. Essa é a primeira pressuposição para a possibilidade dos juízos sobre o sublime que é a “cultura”, a qual está relacionada intimamente com a segunda pressuposição, que é a do sentimento moral. O desenvolvimento pleno da nossa faculdade da imaginação (no seu esforço e fracasso em compreender aquela ideia do “todo”), por sua vez, ao tornar o ânimo receptivo às ideias da razão, contribui para a formação da nossa própria humanidade, ou de nosso caráter, na medida em que seu desenvolvimento nos conduz a uma abertura de ânimo às ideias da razão, por conseguinte ao sentimento moral, que nos convida à adoção de máximas morais. A própria etimologia da palavra “imaginação”, em alemão Einbildungskraft, tem o 261

CFJ, B 116. A seção que começa com o parágrafo 30 leva o título de “Dedução dos juízos estéticos puros” e parece não fazer mais parte da “Analítica do sublime” enquanto tal, mas sim da primeira seção em geral que é a “Analítica da faculdade de juízo estética” a qual engloba tanto a “Analítica do belo” quanto a “Analítica do sublime”.

262

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sentido de formação, ou seja, o cultivo ou a cultura das faculdades da alma, do ânimo. É essa relação que torna a cultura moral relevante para a experiência estética do sublime e, também, por outro lado, a experiência estética do sublime, ao fazer- nos sentir o respeito por nossa humanidade, torna-se profundamente importante para a moralidade. Com justeza, Paul Crowter afirmou que Kant “deseja mostrar que a razão de ser metafísica da experiência estética é, em ultima análise, promover nossa existência como seres morais” 263 A cultura à qual Kant se refere como necessária para poder apreciar o sublime é aquela que consiste exatamente na nossa natureza humana, a saber, no uso de nossas faculdades. Desse modo, Kant afirma que tal exigência não significa que o juízo do sublime fora produzido pela cultura, entendida no sentido externo como algo empírico, portanto contingente, e transportado pela mesma para a sociedade por meio de uma convenção. Ao contrário, o juízo sobre o sublime da natureza, segundo Kant, “tem seu fundamento na natureza humana e, na verdade, naquela que com o são entendimento se pode ao mesmo tempo imputar a qualquer um e exigir-lhe, a saber, na disposição ao sentimento para ideias (práticas), isto é, ao sentimento moral.” 264 Se a necessidade do juízo do belo assenta naquelas condições subjetivas comuns a todos, que é a reflexão entre as faculdades envolvidas no jogo livre, a necessidade do juízo do sublime consiste exatamente na predisposição ao sentimento moral, pois pressupomos no uso de nossas faculdades aquela predisposição em função da nossa racionalidade. É o que Kant dá a entender quando afirma que: A disposição de ânimo para o sentimento do sublime exige uma receptividade do mesmo para ideias; pois precisamente na inadequação da natureza às ultimas, por conseguinte só sob a pressuposição das mesmas e do esforço da faculdade da imaginação em tratar a natureza como um esquema para as ideias, consiste o terrificante para a sensibilidade, o qual, contudo, é ao mesmo tempo atraente; porque ele é uma violência que a razão exerce sobre a faculdade da imaginação somente para ampliála convenientemente para o seu domínio próprio (o prático) e propiciar-lhe uma perspectiva para o infinito, que para ela é um abismo. Na verdade aquilo que nós, preparados pela cultura, chamamos sublime, sem desenvolvimento de ideias morais apresentar-se-á ao homem inculto simplesmente de um modo terrificante. 265

263

CROWTER, Paul. The Kantian Sublime: From Morality to Art. New York: Oxford University Press, 1989, p. 174. 264 CFJ, B 112. 265 CFJ, B 110-111.

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A expressão mais contundente da cultura como cultivo das faculdades para o ajuizamento do sublime consiste, sobretudo, na relação entre essas mesmas faculdades na qual a razão exige que a imaginação realize uma tarefa: esforçar-se ao máximo em apresentar sensivelmente a ideia de uma “totalidade absoluta”. Essa ideia, por sua vez, pertence unicamente à razão. Como vimos, as ideias da razão não podem ser apresentadas na sensibilidade devido ao fato de que o que elas contêm em seus conceitos, não é compatível com o que constitui o sensível. Por que, então, a razão forçaria a imaginação a apresentar uma ideia na sensibilidade se tal coisa é impossível? Melhor dizendo, qual o sentido de a razão forçar a imaginação apresentar uma ideia da totalidade que essa última não pode alcançar? A nosso ver, a resposta para tal questão consiste no seguinte: ainda que a imaginação não alcance o fim dado pela razão, que é a compreensão da ideia de um “todo absoluto”, o propósito da razão é fazer com que a imaginação, no uso de todo o seu potencial, possa reconhecer sua “destinação suprassensível” 266 e, com isso, tornar o ânimo receptivo a um fim mais elevado, o fim prático-moral. Além da necessidade da cultura para se ajuizar esteticamente o sublime na natureza, Kant afirma ainda que “não se pode muito bem pensar um sentimento para com o sublime da natureza sem ligar a isso uma disposição de ânimo que é semelhante à disposição para o sentimento moral”. 267 A disposição do ânimo para o sentimento moral consiste, como vimos, no respeito pela lei moral, o qual serve como motivo subjetivo para a determinação da vontade. Ora, como no ajuizamento estético não há nenhum conceito determinado, nem a faculdade da vontade que, por ventura, possa se conformar a tal conceito, não podemos afirmar que a disposição de ânimo pressuposto para o ajuizamento do sublime, que é semelhante àquela disposição para o sentimento moral, possa, como esse, determinar a ação, ainda que subjetivamente. Do contrário, o ajuizamento estético do sublime seria confundido com o ajuizamento prático, o que não é de modo algum o caso. Com efeito, dado que a razão prática, como faculdade das ideias, está envolvida no ajuizamento do sublime; e dado também que a imaginação assume a tarefa que lhe é dada pela razão com vistas a dar conta de um “todo absoluto”, há, por conseguinte, uma abertura da imaginação para as ideias da

266

Lembrando a citação de Deleuze reproduzida mais atrás, “não é apenas a razão que tem uma ‘destinação suprassensível’ mas também a imaginação”. DELEUZE, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Trad. Germiniano Franco. Lisboa-Portugal: Edições 70, 2009, p. 58. [grifo do autor]. 267 CFJ, B 116.

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razão, na qual a própria imaginação aceita de bom grado a missão dada pela razão, e, nesse sentido, se predispõe a realizar uma tarefa a qual considera como sendo uma “ocupação legal”. Somente nessa medida é possível que o desprazer dê lugar a um prazer proveniente de uma adequação a “fins superiores”, a conformidade às ideias da razão. É nesse sentido que a disposição de ânimo no sublime é semelhante à disposição de ânimo no sentimento moral. Na medida em que a imaginação exerce uma livre coerção sobre si mesma, predispõe o ânimo ao acolhimento das ideias da razão, que são por fim, morais. Kant chega a afirmar que a “ocupação legal”, que na determinação moral é representada mediante a “violência” que a razão exerce sobre a sensibilidade, “no juízo estético sobre o sublime esta violência é representada como exercida pela própria faculdade da imaginação, ao invés de por um instrumento da razão”. 268 Em outras palavras, apesar de a satisfação do sublime ser “negativa”, isso não significa que essa satisfação acarrete apenas o desprazer. Ao contrário, é exatamente em função desse desprazer que a satisfação pode ser sentida, também, como um prazer, na medida em que a própria imaginação “é determinada conformemente a fins segundo uma lei diversa da do uso empírico. Desse modo, a faculdade da imaginação obtém uma ampliação e um poder maior do que aquele que ela sacrifica e cujo fundamento, porém, está oculto a ela própria[...].” 269 Essa ampliação e poder experimentadas pela imaginação são sentidos no ânimo como “estupefação” da mesma faculdade ao sentir- se ampliada em direção às ideias da razão. Kant salienta ainda que a imaginação, [...] quando opera segundo princípios do esquematismo da faculdade do juízo (consequentemente enquanto subordinada à liberdade), é instrumento da razão e de suas ideias, como tal, porém é um poder de afirmar nossa independência contra as influências da natureza, de rebaixar como pequeno o que de acordo com a primeira é grande e, deste modo, pôr o absolutamente grande somente em sua própria destinação (isto é, do sujeito). Esta reflexão da faculdade de juízo estética para elevar-se à adequação à razão (embora sem um conceito determinado da mesma) representa contudo o objeto como subjetivamente conforme a fins, mesmo através da inadequação objetiva da faculdade da imaginação em sua máxima ampliação em relação à razão (enquanto faculdade das ideias). 270

268

CFJ, B 117. CFJ, B 117. 270 CFJ, B 118. 269

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Mediante a reflexão, o sublime nos apresenta um convite de ordem moral, o qual se expressa no reconhecimento - a partir do sentimento de respeito por nossa humanidade que o sentimento do sublime enseja - de nossa dignidade e fins últimos enquanto seres livres e morais. Esse convite é, por assim dizer, a convocação de que devemos tornar o mundo adequado às ideias da razão, ou seja, o sublime nos apresenta uma tarefa a ser realizada. Como bem salientou Leonel Robeiro dos Santos: “o sublime é o elemento a partir de onde emerge e onde estão submersas as tarefas que a razão humana encara e das quais não pode ficar dispensada nem vangloriar-se de havê-las terminado” 271 Tal ajuizamento estético do sublime e o sentimento que o acompanha, no entanto, dessa maneira, não se confunde, nem pode ser, enquanto tal, visto como um ajuizamento prático no sentido de haver uma lei determinante a priori a obrigar uma ação. Não obstante, é mediante o sentimento do sublime que antevemos o fim mais condizente com a nossa natureza de seres racionais, nesse sentido o ajuizamento do sublime também pode ser considerado como um convite que consiste na busca da realização das exigências da nossa razão, que nunca se esgotam. É talvez, nesse ponto, que Kant dar a entender que a nossa sensibilidade sente-se ferida e a nossa imaginação humilhada, conquanto a mesma possa sentir-se, no seu esforço e fracasso, igualmente ampliada. Kant afirma que “o sublime sempre tem que se referir à maneira de pensar, isto é, a máximas para conseguir o domínio do intelectual e das ideias da razão sobre a sensibilidade”. 272 Em outras palavras, mediante o sentimento do sublime, experimentamos por meio da reflexão, o chamado, à nossa “destinação”, a tornar o mundo sensível cada vez mais próximo da ideia racional de um mundo moralmente bom, ainda que nunca possamos realizar tal ideia no mundo sensível. Por outro lado, em virtude da inadequação da ideia suprassensível ao mundo sensível, o sentimento do sublime nos oferece uma contraparte a partir do fracasso da imaginação, que é um sentimento prazeroso, não de vivificação da vida sensível como no belo, mas sim da vida espiritual, que consiste naquilo que é elevado em nós: a nossa liberdade e independência do sensível, ainda que tal sentimento, por ser estético, seja, por conseguinte, reflexivo-sensível. Em suma, no sentimento do sublime sentimos uma imbricação entre o sensível e o espiritual, ainda que só sintamos isso mediante um 271

RIBEIRO DOS SANTOS, Leonel. “La vivencia de lo sublime y la experiência moral em Kant”. In: Anales del seminário de historia de la filosofia, 9, 115-126; editorial complutense, Madrid, 1999, p. 125. 272 CFJ, B 124.

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contraste e inadequação da faculdade sensível em apresentar as ideias suprassensíveis da razão. É esse o sentido da colaboração entre o sentimento moral e o sentimento do sublime. Ainda que não se possa falar, no que concerne ao sentimento estético, de sua determinação pela lei moral, o que pressuporia um conceito da razão, e logo a perda da pureza enquanto juízo estético, não podemos deixar de afirmar que há nele uma predisposição em relação ao sentimento moral. O sentimento moral, por sua vez, só é possível mediante a lei moral a qual é um factum da razão, e que, como tal, está inscrito no mais íntimo da consciência humana. Portanto, a atribuição da satisfação no sublime em todos os sujeitos, ou seja, a justificativa da necessidade e universalidade dessa satisfação estética, é dada mediante o fato de que devemos atribuir a todos os demais sujeitos, em função mesma da lei moral que há em nós, semelhantes disposições morais. Assim entendemos quando Kant afirma que:

O prazer no sublime na natureza, enquanto prazer da contemplação raciocinante, na verdade, reivindica também participação universal, mas já pressupõe um outro sentimento, a saber, o de sua destinação suprassensível, o qual, por mais obscuro que possa ser, tem uma base moral. Não estou absolutamente autorizado a pressupor que outros homens tomem esse sentimento em consideração e encontrem na contemplação da grandeza selvagem da natureza uma complacência (que verdadeiramente não pode ser atribuída a seu aspecto e que é antes aterrorizante). Todavia, considerando que em cada ocasião propícia se devesse ter em vista aquelas disposições morais, posso também imputar a qualquer um aquela complacência, mas somente através da lei moral, que é por sua vez fundada sobre conceitos da razão. 273

273

CFJ, B 154.

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6 Considerações finais

Por tudo o que vimos, creio que temos elementos suficientes para dizer que o sentimento estético do sublime, apesar de sua “especificidade”, “autonomia” e “diferença” com relação ao ajuizamento moral, desempenha, ainda assim, um papel que atende a um fim prático-moral, sendo não apenas “análogo” ao sentimento moral, pois contribui para a moralidade por meio da predisposição do ânimo (ainda que não o determine) à receptividade às ideias da razão, e, por conseguinte, à realização dos fins da mesma. Esses fins consistem naquilo que é mais elevado em nossa natureza de seres racionais: a moralização de nossos sentimentos e atos, nossa “vocação” à liberdade e à moralidade. 274 Como observou Deleuze, “no sublime dinâmico, a destinação suprassensível das nossas faculdades aparece como o pré-destino de um ser moral. O sentido do sublime é engendrado em nós de tal maneira que ele prepara uma mais alta finalidade e nos prepara para o advento da lei moral”. 275 O sublime nos leva a uma profunda reflexão sobre o que seja “absolutamente grande” em nossas vidas. Como bem salientou Zammito, “o sublime é uma experiência que provoca a autoconsciência por meio da reflexão estética”. 276 Kant nos indica que o o “absolutamente grande”, numa palavra, o sublime, é avivado em nós possibilitando uma reflexão acerca daquilo que somos, dos valores que elegemos na nossa vida e de nossa capacidade de resistir ao sofrimento, ainda que nos falte o amparo necessário. Nesse sentido, a reflexão que acompanha o sentimento do sublime, apesar de ser desinteressada, tem o seu fim. E é porque o sublime pode nos comover no mais profundo do nosso espírito, que essa reflexão nos faz sentir nosso fim mais excelso. 274

Sobre o interesse moral das ideias, vide §42 da CFJ. DELEUZE, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Trad. Germiniano Franco. Lisboa- Portugal: Edições 70, 2009, p. 59. 276 ZAMMITO. Para esse autor, “uma avaliação correta do papel da “Analítica do sublime” na terceira Crítica precisa encontrar a sua função não simplesmente ao concluir a articulação arquitetônica de juízos estéticos, mas muito mais ao demonstrar a relação entre a experiência estética, em geral, e a natureza última do eu”. ZAMMITO, J.H. The Genesis of Kant´s Critique of Judgment. London: The University of Chicago Press, Ltd., 1992, p. 278. 275

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A experiência do sublime é da ordem de uma experiência espiritual que nos arremessa do sensível para o suprassensível. É o momento em que a imaginação, ao sentir que o seu limite, toca “o limite” entre o sensível e o suprassensível e é tocada pelas ideias da razão. A ideia do sublime que nos toca no momento de uma manifestação grandiosa da natureza é a expressão negativa daquelas ideias incondicionadas da razão que são avivadas no ânimo em virtude da impossibilidade do sensível em comportar uma ideia suprassensível. É uma lei para imaginação a busca por uma compreensão do “todo” na aparente grandiosidade que se manifesta sensivelmente. Seu fracasso convoca a razão que vem em seu socorro e que, nesse momento, está a se debater com um adversário aparentemente invencível (a manifestação grandiosa ou potente da natureza). É nesse sentido que podemos dizer haver uma “íntima solidariedade” entre essas faculdades de modo que a imaginação, ao estender seus braços à razão, dá-se conta de que a sua liberdade não pode ultrapassar seus limites, mas apenas se completa na medida em que ela se entrega de bom grado às exigências daquela faculdade incondicionada na qual a autêntica liberdade se origina e tem sua morada: a razão. A experiência do sublime, portanto, tem a ver com a busca pelo incondicionado, pela liberdade, que não pode ser encontrado de modo algum no âmbito da sensibilidade. O valor intrínseco da experiência estética, desse modo, é alcançado na medida em que essa experiência se direciona àquele fim último o qual a humanidade mesma é vocacionada: é chamada à moralidade. O que dá indícios de que a própria dimensão sensível (a imaginação), no seu “acordo discordante” com a razão, possibilita, por um lado, a partir do contraste e inadequação em apresentar as ideias da razão, a emergência de um prazer superior, provando, desse modo, que ela não está totalmente em contradição com aquelas exigências mesmas que ultrapassam o seu próprio domínio, enquanto sensível. Por outro lado, ao colaborar (ainda que no seu desacordo com a razão) com que o ânimo seja receptivo às ideias morais, o sublime não perde seu caráter de sentimento estético, bem como sua autonomia e especificidade, enquanto tais. Como afirmou Cassirer, [...] nossas intuições somente são estéticas quando enfocam a autodeterminação de nossa capacidade espiritual, não por si mesmas, mas, por assim dizê-lo, através da intuição da natureza, quando refletem o ‘interior’ no ‘exterior’ e este naquele. Nesse mútuo reflexo do eu e do universo, do sentimento do eu e do sentimento da nature-

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za, reside para nós a essência da consideração estética em geral e, com ela, a essência daquela consideração que encontra sua expressão no conceito do sublime. 277

É exatamente na aparente manifestação grandiosa e potente da natureza, que parece querer nos levar para além da própria natureza, que podemos situar a expressiva colaboração do sensível ao suprassensível. E, na interface dessas duas dimensões podemos vislumbrar uma consideração sentida além de toda a compreensão conceitual que, no entanto, move o espírito a sentir-se infinitamente superior àquilo que o ameaça, não a ele próprio considerado em si mesmo, mas antes àquela manifestação sensível fenomênica que partilhamos com a própria natureza sensível. Podemos considerar que o sublime, na medida em que manifesta a relação entre o que se mostra como inapreensível, incompreensível, sem-forma, e o que podemos pensar (as ideias da razão), pode nos remeter a uma dimensão na qual reconhecemos a nossa destinação última suprassensível, àquilo que pode nos conferir um valor absoluto que é a nossa racionalidade, liberdade e moralidade. O sublime, portanto, a partir do sentimento de desprazer e prazer pode ser considerado igualmente como o sentimento de respeito por nossa própria humanidade. Kant dá a entender que existe uma íntima solidariedade entre o sentimento estético e a moralidade no ajuizamento do sublime, pois o ajuizamento estético, por levar a reflexão a partir do sensível ao suprassensível, desperta um sentimento de prazer, que pode ser considerado como um sentimento superior em função do qual aquilo que ele traz consigo ser o que nos liga ao suprassensível e esse, como é sabido, é o domínio da liberdade. Por isso, mesmo não sendo possível afirmar que o ajuizamento estético esteja fundado num interesse da razão, o que levaria a perda da sua autonomia, é possível afirmar que o ajuizamento estético, além de estar em perfeita sintonia e “solidariedade” com o sentimento moral, funda um interesse prático. Infelizmente, em nossas vidas, nos deparamos com situações-limite que desafiam a nossa resistência e superação, tais como alguns tipos de doenças e até mesmo a morte. É nesse momento que paramos e refletimos acerca daquilo que pode conferir valor e

277

CASSIRER, Ernst. Kant, vida y doctrina. Trad. Wenceslao Roges. México: Fondo de Cultura Economica, 1948, p. 386.

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dignidade à nossa existência, então nos perguntamos: “o que pode dar sentido à vida de uma pessoa?” Para Kant, jamais seria a soma do prazer das inclinações, reunidas sob o nome de felicidade, pois que, “o valor da vida, medido pela soma deste [prazer], é inferior a zero”. 278 Essa é a questão de fundo que conduziu a nossa reflexão sobre o sentimento do sublime. Antes de terminar, gostaria de lembrar que talvez possamos perceber um pouquinho de tudo isso, mas apresentado de um modo simples no filme intitulado The Bucket List, traduzido para o português como “Antes de partir”. Esse filme trata de uma experiência vivida no final da vida de dois homens, portadores de um câncer terminal, a qual muda completamente poucos meses antes de suas mortes. No leito do hospital, um deles lembra que, em seu primeiro ano de faculdade, seu professor de filosofia havia sugerido que os alunos fizessem um exercício de “pensamento prospectivo” o qual consistia em escrever uma lista de dez coisas que eles gostariam de fazer antes de morrer, dando a mesma o nome de “lista da bota”. Esse mesmo paciente resolve agora no leito do hospital reescrever a lista. Ele lembra um dos itens que escrevera naquela ocasião: “testemunhar algo verdadeiramente grandioso na natureza”; o que poderíamos pensar que, em termos kantianos, seria “o sublime”. Seu companheiro de quarto, um homem arrogante e insensível, ao ver a lista no chão enquanto o outro dormia, se propõe a reescrevê-la com alguns itens diversos e convida o seu colega a sair pelo mundo realizando-os. O primeiro dos itens, o mais importante da lista, referente ao “testemunho de algo grandioso” que o primeiro escrevera no seu leito e tanto quisera realizar com a escalada do Himalaia, infelizmente, devido ao mau tempo, não pode ser realizado. No entanto, se eles não conseguiram realizar o desejo de testemunhar algo realmente grandioso na natureza em vida, depois de mortos e cremados suas cinzas foram levadas ao monte mais alto do Himalaia, o Everest; por outro lado, eles puderam testemunhar, mesmo que no fim de suas vidas, algo que as mudou irreversivelmente: o respeito e a amizade que passaram a sentir um pelo outro. A essa experiência, devido àquilo que ela infundiu de grande nesses homens, pode-se chamar, verdadeiramente de sublime.

278

KANT apud Cassirer. Kant, vida y doctrina. Trad. Wenceslao Roges. México: Fondo de Cultura Economica, 1948. p. 27.

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