Estéticas da co-autoria: Mash-up, sampleamento e remixagem no vídeo brasileiro contemporâneo

September 26, 2017 | Autor: Erly Vieira Jr | Categoria: Videoart, Videoarte
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Estéticas da co-autoria: Mashup, sampleamento e remixagem no vídeo brasileiro contemporâneo
Resumo: Dentro de uma auto-referente "cultura da reciclagem" (BASTOS, 2004) contemporânea, marcada pelas lógicas do sampleamento e remixagem, de que forma os procedimentos de autoria estão reconfigurados, em especial nos meios audiovisuais? Analisaremos aqui a presença desses conceitos na produção de três nomes brasileiros do século XXI: o cearense Salomão Santana, o coletivo paulistano Bijari e a artista capixaba Elisa Queiroz.
Palavras-chave: sampleamento, remixagem, found footage, "cultura da reciclagem".

Uma família de Testemunhas de Jeová, em visita a conhecidos em outro estado, reúne-se para uma leitura bíblica, seguida de uma explanação do pastor. Esse encontro, registrado em vídeo, é uma espécie de videocarta a ser enviada a alguém da família, que não pôde participar desse momento de comunhão religiosa. Os cortes de cabelo volumosos e repicados, as estampas das roupas indicam ser uma imagem gravada em algum momento da segunda metade da década de 80. A baixa resolução da imagem VHS, num precário estado de conservação, repleta de falhas e drop outs, concede a esse vídeo um certo caráter fantasmagórico, como se estivéssemos diante de uma nova versão da "invenção de Morel", já muito deteriorada nesses quase vinte anos que nos separam o momento da gravação original.
Este material compõe o filme Jarro de Peixes (2008), assinado pelo cearense Salomão Santana, nascido em 1985. Como A curva (2007), seu trabalho anterior, trata-se de um material retirado do acervo do videomaker Miguel Pereira, capturado nas décadas de 80 e 90 em Juazeiro do Norte, cidade natal de Salomão – um arquivo composto por fitas VHS, basicamente registros casamentos, festas e videobooks de anônimas aspirantes a modelo, originalmente gravados por encomenda, sem intenções artísticas. Se A curva era um típico trabalho do gênero found footage (vertente do cinema experimental que se apropria de imagens de arquivo, recontextualizando-as e conferindo novos sentidos), Jarro de Peixes se diferencia por evitar ao máximo as intervenções de pós-produção, dando ao espectador a impressão de ser um trecho integral do material bruto que foi dali retirado e transposto para outro contexto, o dos festivais e mostras audiovisuais. Podemos inclusive enxergar esse tipo de procedimento como uma atualização, no campo audiovisual, de uma lógica de apropriação muito comum nas artes visuais, tornada comum a partir dos ready-made duchampianos de cem anos atrás.
Se, nos últimos vinte anos, vimos emergir uma cultura marcada pela auto-referência e revivalismo, em que a noção de autoria é atravessada por inúmeras apropriações e releituras de produtos artísticos e midiáticos (a "cultura da reciclagem" à qual Marcus Bastos se refere), cabe aqui pensar de que formas essas questões reaparecem nos meios audiovisuais. Estamos aqui já distantes da tão proclamada "morte do autor", largamente discutida por teóricos como Barthes e Foucault no final dos anos 60. A própria disponibilidade de acervos culturais (sonoros e imagéticos) nos meios digitais e as possibilidades contemporâneas de compartilhamento e apropriação desses materiais, bem como as práticas colaborativas de criação artística faz com que a questão da autoria seja recolocada em novos patamares – por exemplo, através de trabalhos de autoria coletiva, ainda que realizados transnacionalmente, a partir de práticas de rede, ou mesmo através de propostas que envolvam a interação com o público, tornando-o, por vezes, uma espécie de co-autor.
A popularização da cultura do sampleamento na música popular, a partir do começo da década de 80, que possibilitou a ascensão de gêneros como o hip hop, a música eletrônica e o funk carioca, é sintomática desse processo. Cabe lembrar que, nas canções que sampleiam outras gravações pré-existentes, o crédito de autoria é compartilhado também com os detentores de direito autoral dessas gravações originárias – inclusive no que tange aos ganhos financeiros dentro da indústria fonográfica mundial.
Para investigar esses processos artísticos, autores como Lev Manovich (2004) e Marcus Bastos (2004) têm tomado emprestados termos originários da música eletrônica: seja o sampleamento, em que uma amostra (sample) sonora ou imagética de uma obra pré-existente é "colada" numa nova obra, trazendo consigo seus significados originais e agregando os do novo contexto; o remix, recombinando enunciados e elementos estéticos originais e novos; ou ainda o mashup, cujo caráter demolidor vem justamente da junção de duas ou mais obras, reconciliadas na forma mas divergentes semanticamente – naquilo que talvez mais se aproxime, no século XXI, do ideal duchampiano do ready-made.
Vale lembrar que tais procedimentos, ao se apoderarem de imagens e sons pré-existentes e muitas vezes conhecidos do público, também permitem à nova obra incorporar todo um imaginário (simbólico e afetivo) que está atrelado à obra original – tensionada, obviamente, pelo deslocamento de contexto em que a nova obra "derivada" se insere. E, ao experimentar essa nova obra, o público é convocado a também fazer dialogar seus repertórios e impressões sobre a obra "originária".
No campo do cinema experimental, tais práticas já se fazem presentes há mais de meio século, através do found-footage; contudo, com a larga popularização das tecnologias digitais, a partir do final da década de 90, elas têm se tornado bastante frequentes na videoarte e no VJing, em especial sob uma forte presença micropolítica da ironia - no sentido que Linda Hutcheon (1991) confere ao termo. Pensemos, por exemplo, no sampleamento empregado pela capixaba Elisa Queiroz em seu Free Williams (2004). Trata-se de um trabalho videoartístico, com base numa performance empreendida por Elisa e outros seis coadjuvantes, numa clara parodização da figura da nadadora e atriz hollywoodiana Esther Williams, e das coreografias aquáticas de Busby Berkeley nos musicais das décadas de 30 e 40.
Em suas obras, Elisa sempre fez uso de sua figura obesa para questionar os padrões estéticos dos corpos esguios/atléticos vigentes na sociedade de consumo, resgatando ideais de sensualidade que mais se aproximam das figuras femininas barrocas ou mesmo das imagens de fertilidade de algumas esculturas pré-históricas, em apropriações bastante irônicas. Em Free Williams, o grau de paródia atinge o máximo quando uma imagem de Esther Williams, nadando sorridente com os personagens de desenho animado Tom e Jerry, do filme Dangerous when wet (1953), é apropriada, para em seguida receber uma inserção da própria Elisa, também nadando, também sorridente, a partir de um efeito de chroma key. Essa imagem sintetiza toda uma poética presente nos trabalhos da artista, precocemente falecida em 2011: "Construo peças para discutir minha identidade e meu poder de sedução, usando a ludicidade para reler a percepção do desencaixe que minha corpulência sugere à sociedade contemporânea ocidental, recondicionando o olhar do espectador." (QUEIROZ, 1998).
Já a lógica da remixagem permite descontruir certos elementos simbólicos do texto imagético original, ao reorganizar suas durações, velocidades, ordem narrativa e importância hierárquica dentro do material audiovisual original. Pensemos aqui no trabalho subversivo que o austríaco Martin Arnold faz na cena final de seu Alone: Life wastes Andy Hardy (1998), ao se apropriar de trechos de uma comédia juvenil hollywoodiana da década de 40. Nele, a imagem de um bem-comportado "selinho" entre os adolescentes Judy Garland e Mickey Rooney acaba sendo dotada de um explícito sentido sexual apenas através da manipulação da velocidade dessa imagem (é mantida inclusive a banda sonora original), numa espécie de vai e vem que se amplia, repetindo o beijo e aumentando microscopicamente o suspiro que a atriz emite ao final dele, acelerando a cada repetição até simular um intenso orgasmo, totalmente inexistente na versão original da cena.
Outro exemplo marcante está em 468, trabalho realizado em 2006 pelo coletivo BijaRi. Retratando a ação policial para desocupar um edifício abandonado no centro de São Paulo (Ocupação Prestes Maia), habitado por 468 famílias de sem teto, o vídeo se utiliza basicamente da cobertura telejornalística do evento para desconstruir o discurso hegemônico de gentrificação e privatização das políticas públicas empreendidos pelos órgãos governamentais em São Paulo. Ao manipular digitalmente as imagens e sons, por meio de uma instigante edição, contrapondo falas dos jornalistas e apresentadores de televisão, repetindo-as em off, várias vezes, sob imagens que esvaziam a suposta verdade inerente a seus enunciados, o vídeo do coletivo paulistano faz emergir um poderoso contra-discurso de evidenciação das lacunas e contradições do poder público, altamente irônico e demolidor, e que costuma ser silenciado pelo telejornalismo de massa. Aqui, até a hierarquia dos enunciados é invertida: os depoimentos dos "sem-teto", por exemplo, deixam de ser mero complemento (como nas reportagens originais) e são estrategicamente posicionados em pontos-chave do vídeo, de modo a ecoarem como perguntas que não querem calar, como a mãe que questiona a garantia de vagas nas escolas para seus filhos, em caso de remoção para outro lugar, uma vez que o ano letivo encontra-se já bastante avançado.
A remixagem no campo videográfico, inclusive, pode se apropriar, de forma iconoclasta, de procedimentos banais e cotidianos, advindos da cultura de internet, como por exemplo os gifs animados, em que frames são sequenciados e repetidos em looping permanente. Essa estética inspira (segundo depoimento do próprio artista) os experimentos de montagem presentes em Primas (2012), de Salomão Santana, que desbasta pequenos trechos de imagens de seu usual arquivo (um pequeno barco pesqueiro, duas jovens de biquíni tomando sol à beira de um açude, casais de mãos dada, desfilando na praça de uma cidade de interior), reduzindo a ação a sequências de movimentos corporais, que vão se sucedendo numa espécie de looping, ora repetindo um mesmo take, ora sequenciando imagens parecidas, extraídas de takes diferentes. Ao esvaziar a imagem de arquivo familiar de seu sentido original, submetendo-a à lógica do gif (potencializado por um insólito mashup, pela adição de uma locução de Francisco Cuoco e uma trilha sonora estilo blaxploitation), o curta de Salomão acaba por instaurar uma experiência sensorial de estranhamento e fascínio, numa espécie de objeto "alienígena", tanto no campo do cinema quanto no das artes visuais brasileiras, cujos efeitos ainda estão por ser desvendados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASTOS, Marcus. "A cultura da reciclagem". In: ALZAMORA, Geane et al (org). Cultura em fluxo: Novas mediações em rede. Belo Horizonte : PUC-MG, 2004.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

MANOVICH, Lev. "Quem é o autor. Sampleamento/ mixagem / código aberto". In: ALZAMORA, Geane et al (org).Cultura em Fluxo: Novas mediações em rede. Belo Horizonte: PUC-MG, 2004.

QUEIROZ, Elisa. "Depoimento". In: Objeto obeso. Vitória: GAEU/ Ufes, 1998 (catálogo de exposição).



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