Estetização da existência e criação de subjetividade: Nietzsche e Foucault

June 19, 2017 | Autor: Alexandre Alves | Categoria: Friedrich Nietzsche, Michel Foucault, Aesthetics and Ethics
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Seminário Internacional Michel Foucault: Perspectivas – 21 a 24 de setembro de 2004 Simpósio Temático n o 7: Foucault, a História e a Atualidade

Estetização da Existência e Criação de Subjetividade: Nietzsche e Foucault Alexandre Alves /USP

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Palavras-chave: moral – genealogia – subjetividade - corpo Foucault repensa o projeto de uma espiritualidade materialista, presente já no “misticismo em Deus” de Bataille. Ele realiza o enésimo “retorno ao paganismo” na cultura européia: é a idéia da filosofia como “modo de vida”, como “ascese”, “exercício espiritual” das filosofias helenísticas (em particular, Foucault reabilita a espiritualidade estóica, fora da pecha de moralismo e fatalismo que lhe fora impingida pela tradição). Ele procura na antiguidade grega e romana a identidade e a diferença que a modernidade mantém com sua origem: “(...) interrogar, ao mesmo tempo, a diferença que nos mantém à distância de um pensamento em que reconhecemos a origem do nosso, e a proximidade que permanece a despeito desse distanciamento que nós aprofundamos sem cessar”.1 Trata-se de uma espécie de anamnese da cultura, em que está em jogo a interpretação dos valores antigos, o esquecimento, o ocultamento do cuidado de si na antiguidade e o restabelecimento de uma relação da modernidade com esses valores originários, que lhe permita superar a si mesma: “o trabalho de pensar a sua própria história pode liberar o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente, e permitir-lhe pensar diferentemente”.2 A modernidade herdou do cristianismo a idéia de uma moral universal e de uma estrutura invariante da subjetividade, idéia que está na base da experiência de normalização e domesticação dos indivíduos pelo poder. Para Foucault, trata-se de restituir justamente a perspectiva, a interpretação, o discurso que o cristianismo recalcou para colocar seu modo de vida no lugar: o discurso do cuidado de si e da estetização da existência na antiguidade, discurso que chegou a emergir de novo no Renascimento e no século XIX, mas sem força suficiente para demolir a estrutura de uma subjetividade dominadora que se apresenta como natural e universal, mas que é apenas uma de suas formas possíveis. A ênfase no materialismo estóico na análise do cuidado de si não é casual: na relação do estóico com a figura trágica, amoral e inelutável do Destino, Foucault talvez veja a relação do indivíduo com uma História que não lhe pertence, que não tem sentido ou finalidade imanente, mas que deve ainda assim ser integralmente aceita e incorporada como sua própria história. A esta análise da ética antiga corresponde, portanto, uma crítica da moralidade cristã. A concepção cristã de subjetividade é uma reação contra a afirmação de si nas estéticas da existência antigas: a humilhação de si, a regra da humildade e da obediência, a submissão a uma lei moral universal se opõe à ética aristocrática das escolas helenísticas e inicia o processo de constituição da subjetividade moderna, herdeira da subjetividade cristã. No curso “Du gouvernement des vivants”, dado no Collège de France entre 1979 e 1980, Foucault analisa a constituição da subjetividade cristã através da análise das práticas penitenciais do cristianismo primitivo, estas técnicas ao mesmo tempo se apropriam e destroem todo o domínio do cuidado de si antigo, no caso cristão, o custo de “dizer a verdade sobre si mesmo” é o sacrifício do sujeito na experiência da renúncia: “(...) é preciso acentuar que esta manifestação não tem por fim estabelecer o domínio soberano de si sobre si mesmo; o que se espera, ao contrário, é a humildade e a 1 2

UP, b12, nota. Id., b14.

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Seminário Internacional Michel Foucault: Perspectivas – 21 a 24 de setembro de 2004 Simpósio Temático n o 7: Foucault, a História e a Atualidade

mortificação, o desprendimento em relação a si mesmo e a constituição de uma relação consigo que tende à destruição da forma do si”.3 Vemos que é da crítica nietzscheana da lei moral, do ressentimento, da “moral do escravo” e do cristianismo que deriva este tema. Atrás da restituição do discurso do cuidado de si aloja-se, na verdade, uma proposta ética para o presente: o fim da idéia de um sentido da história, o esfacelamento da idéia de utopia, realização do “reino de Deus” na terra, o esgotamento daquilo que é a essência mesma do projeto moderno, conduz à redefinição de valores. O sujeito deixa de ser substantia, de ter uma identidade fixa e rígida e passa a ser concebido como autopoético, como agente ativo de sua própria transformação, como inventor de si mesmo, como autolegislador, criador de sua própria lei. Ele se torna criador de valores, pois nenhum valor é natural, nem universal, todo valor é construído (a consciência desse fato é o niilismo, a transvaloração é a superação do niilismo). Isso pode ser aproximado da crítica nietzscheana de uma moral universal e de suas diferentes figuras: o igualitarismo, a compaixão, a democracia (como ditadura da média), a religião protestante, o estado, o partido, a ideologia. Mas, não há só crítica, há também uma proposta positiva, Nietzsche é considerado por Foucault um dos que propôs a reconstituição da estética da existência na modernidade (ao lado de Schopenhauer, Stirner, Baudelaire e o pensamento anarquista): “Pode-se reler toda uma face do pensamento do século XIX como a tentativa difícil, uma série de tentativas difíceis para reconstituir uma ética e uma estética de si. Que vocês tomem, por exemplo, Stirner, Schopenhauer, Nietzsche, o dandismo, Baudelaire, o pensamento anarquista etc, vocês tem aí toda uma série de tentativas diferentes umas das outras, certamente, mas que, creio eu, são todas mais ou menos polarizadas pela questão: é possível constituir, reconstituir uma estética e uma ética de si? A qual preço, em quais condições? Ou a ética e a estética de si não devem, finalmente, se inverter na recusa sistemática de si (como em Schopenhauer)?”4 Nietzsche pensou numa comunidade aristocrática, transversal à sociedade instituída, cujos membros se uniriam por afinidades eletivas e não pelo sentimento de uma obrigação social universal. O modelo desta comunidade, ele o encontra nos judeus da diáspora: para Nietzsche, o povo judeu seria o mais nobre da Europa moderna, eles seriam o modelo de uma comunidade do futuro, de homens fortes, nômades, espirituais e senhores de si. Esse modelo de comunidade aristocrática pode ser aproximado do “união dos egoístas” de Stirner e da experiência das comunidades anarquistas (o anarquismo criticado por Nietzsche é o dos niilistas russos, não o de Stirner, que tinha a sua admiração), onde novas formas, experimentais de convivência comunitária são testadas. A estética da existência é, necessariamente, uma moral de elite, para poucos, por ser transversal à sociedade não pode ser universalizada. O processo de destruição ou de consumação da história universal resulta, para Nietzsche, na total autonomização do indivíduo, como ele afirma na Genealogia da Moral, a conseqüência do milenar “trabalho sobre si” da humanidade que consiste na violência e coação moral resulta, paradoxalmente, na auto-abolição da própria moral e no advento do “indivíduo soberano”, “homem do futuro”, ele é “o fruto mais maduro da árvore”, um “indivíduo autônomo supramoral”.5 Desaparece a figura do “homem que pode prometer”, do sujeito com uma identidade fixa. Ele dá lugar a um sujeito experimental, que interiorizou como sua própria história toda a história universal, com todo o terror e a miséria que 3

DE, IV, 129. HS, 241. 5 “o indivíduo igual apenas a si mesmo, novamente liberado da moralidade do costume, indivíduo autônomo supramoral (pois “autônomo” e “moral” se excluem), em suma, o homem do querer independente, pessoal e perseverante, que ousa prometer, nele encontramos uma consciência que palpita em todas suas fibras, orgulhosa de tudo o que foi finalmente alcançado e que está nele encarnado, uma verdadeira consciência da liberdade e da potência, um sentimento de realização do homem” (GM, II, 2, sobre o “homem do futuro”, cf. GM, II, 24). 4

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ela contém, esse novo sujeito pode adotar todas as identidades, pois deixou de obedecer a uma lei ou ordem universal. A estética substitui a religião na prática da moral. O paradigma do Eu moral do cuidado de si é o Eu poético das teorias poéticas do romantismo alemão (Schlegel, Schleiermacher, Novalis), não o Eu da razão prática de Kant e de Fichte, mas o eu artista que dispõe soberanamente das coisas e dos homens, que escapa a toda regra e a todo controle, porque cria a sua própria lei. É a imagem do filósofo-artista-criador da terceira das “três transformações” – a criança – que numa segunda inocência, recria o mundo desertificado pelo niilismo e pelo ressentimento, um mundo novo e redimido saído da conflagração de todos os valores6. Para Foucault, uma grande parte da filosofia do século XIX concebeu o projeto de reintroduzir a espiritualidade no pensamento, rompendo com o pensamento clássico, com a filosofia da representação. Tratava-se de restituir a filosofia prática como modo de vida, de recolocar o problema da subjetividade para o pensamento, rompendo com o sujeito de tipo cartesiano: Retomem toda a filosofia do século XIX – enfim, quase toda: Hegel em todo caso, Schelling, Schopenhauer, Nietzsche, o Husserl da Krisis, Heidegger também – e vocês verão como precisamente aí também, que ele seja desqualificado, desvalorizado, abordado criticamente ou ao contrário exaltado como em Hegel, de todo modo o conhecimento – o ato de conhecimento – permanece ligado às exigências da espiritualidade. Em todas essas filosofias, uma certa estrutura de espiritualidade tenta ligar o conhecimento, o ato de conhecimento, as condições deste ato de conhecimento e seus efeitos, a uma transformação no ser mesmo do sujeito. A Fenomenologia do Espírito, depois de tudo, não tem outro sentido a não ser esse. E pode-se pensar, creio eu, toda a história da filosofia do século XIX como uma espécie de pressão pela qual tentou-se repensar as estruturas da espiritualidade no interior de uma filosofia que, depois do cartesianismo, em todo caso a filosofia do século XVII, tentava se desvincular dessas mesmas estruturas. De onde a hostilidade, profunda, aliás, de todos os filósofos de tipo “clássico” – Descartes, Leibniz etc, todos aqueles que se reclamam desta tradição – em relação a esta filosofia do século XIX, que é, com efeito, uma filosofia que põe, implicitamente ao menos, a velhíssima questão da espiritualidade, e que reencontra sem dize-lo a preocupação com o cuidado de si.7 Numa conferência proferida em 1981 nos EUA, época em que Foucault trabalhava no problema da ética antiga, ele tenta definir sua opção filosófica de fazer uma “genealogia da subjetividade” como uma de três maneiras de sair das aporias da filosofia da consciência: “Há três caminhos para encontrar uma saída [da filosofia do sujeito]: - ou uma teoria do conhecimento objetivo; e é sem dúvida do lado da filosofia analítica e do positivismo que seria preciso procura-la; - ou uma nova análise dos sistemas significantes; e é aí que a lingüística, a sociologia, a psicanálise etc, deram lugar ao que se chama de estruturalismo; - ou tentar recolocar o sujeito no domínio histórico das práticas e dos processos nos quais ele não cessou de se transformar. É nesse último caminho que eu me engajei. Digo, portanto, com a clareza necessária, que eu não sou nem estruturalista e, com a vergonha que convém, que eu não sou um filósofo analítico. “Nobody is perfect.” Tentei, portanto, explorar o que poderia ser uma genealogia do sujeito, sabendo bem que os historiadores preferem a história dos objetos e que os filósofos preferem o sujeito que não tem história. O que não me impede de sentir um parentesco empírico com o que chamamos os historiadores das 6 7

Cf. ZA, I, “Das três transformações”. HS, 30.

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“mentalidades” e uma dívida teórica em relação a um filósofo como Nietzsche que colocou a questão da historicidade do sujeito”.8 Foucault coloca a Genealogia ao lado da filosofia analítica e da semiótica como as três principais correntes do pensamento contemporâneo, que procura abandonar o “sono dogmático” da antropologia, a filosofia do sujeito. A arqueologia como teoria do discurso está sem dúvida próxima das duas outras correntes, como análises formais da linguagem, mas faltava-lhe uma finalidade, uma justificativa, que foi dada pela genealogia como crítica dos valores. Tal como Foucault vê a história da filosofia, a filosofia do sujeito saída do cartesianismo foi incapaz de entender seja a ciência, ou seja, a constituição do objeto, seja a constituição do sujeito, pois ao atribuir a gênese do sentido a um sujeito fundador, transcendental, ela se impediu de compreender os “mecanismos formadores da significação”.9 Era necessária para isso uma semiologia (como teoria do sentido), que seguiu dois caminhos: de um lado, o positivismo lógico e a filosofia analítica, na caso dos países anglo-saxônicos, de outro lado, o estruturalismo na França. O caminho escolhido por Foucault para sair da filosofia do sujeito foi uma “genealogia do sujeito moderno”, como “realidade histórica e cultural”, sempre variável e em constante transformação.10 Na obra de Foucault, essa genealogia seguiu três caminhos: a análise das construções teóricas sobre o sujeito (como ser que vive, fala e trabalha), entre os séculos XVII e XIX (nas Palavras e as Coisas); análise do sujeito a partir das práticas de dominação em instituições fechadas: prisões, asilos etc (na História da Loucura, no Nascimento da Clínica e em Vigiar e Punir) e a análise do sujeito a partir das “técnicas de si” que levam a uma transformação dos indivíduos através da intervenção sobre seu corpo e seu comportamento e da obrigação de dizer a verdade a si mesmo. Exercer poder sobre si mesmo, a obrigação de dizer a verdade sobre si mesmo são indispensáveis para a autotransformação. Assim como Nietzsche, Foucault caracteriza uma oposição entre uma ética (entendida como modo de existência, como tipologia de uma vida que declina ou que ascende, e não como conjunto de preceitos de conduta) voltada para o cuidado de si e uma ética voltada para a renúncia de si: as mesmas técnicas ascéticas de exercícios espirituais e austeridade moral são utilizadas para finalidades opostas: para os gregos e os romanos, a ascese cria um sujeito autônomo, apto a governar a si mesmo e aos outros, para os cristãos, ela cria um sujeito obediente, humilde e submisso. Essa é a interpretação que Foucault dá da célebre oposição genealógica entre a moral do senhor e a moral do escravo, feita por Nietzsche em Além do Bem e do Mal. Foucault converte essa oposição na oposição entre autonomia moral (estetização de si mesmo no exterior da esfera da lei moral, criação de valor) e heteronomia moral (auto-repressão com o objetivo de se adequar a uma lei moral universal e transcendente) – com isso, ele liga mais uma vez o projeto genealógico à crítica kantiana, mas invertendo o seu sentido, pondo Kant de cabeça para baixo. Quanto à forma, a moral antiga e a moral cristã são semelhantes, pois são morais restritivas da austeridade sexual e do controle dos impulsos, porém quanto à finalidade, elas são absolutamente opostas: num caso, a afirmação de si, no outro, a negação de si. Os procedimentos morais, inventados pelos antigos (o exame de consciência, a obrigação de dizer a verdade sobre si, os exercícios ascéticos etc) foram apropriados por uma outra força, que lhes deu outro sentido, ocultando na memória o sentido anterior. A operação arqueológico-genealógica, nesse caso, constitui em restituir em sua integridade o sentido recalcado e torná-lo novamente uma força atuante, precisamente contra a interpretação cristã do mundo. A estética da existência dos estóicos é, portanto, apresentada como a proposta de uma moral pós-cristã e pós-convencional para o presente:

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Trecho retirado da primeira versão inédita de uma conferência pronunciada por Foucault, em 1981, nos EUA. Apud HS, 506. 9 DE, IV, 170. 10 Id.

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Da Antiguidade ao cristianismo, passamos de uma moral que era essencialmente procura de uma ética pessoal a uma moral como obediência a um sistema de regras. E se eu me interessei pela Antiguidade é que, por toda uma série de razões, a idéia de uma moral como obediência a um código está prestes, agora, a desaparecer, já desapareceu. E a esta ausência de moral, responde, deve responder uma busca que é a de uma estética da existência11.

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DE, IV, 732.

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