Estratégias de negação sentencial no português afro-brasileiro rural: Cinzento (BA).

July 31, 2017 | Autor: R. Cavalcante de ... | Categoria: Sociolinguistics, Syntax, Negation
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Estratégias de negação sentencial no português afro-brasileiro rural: Cinzento (BA)

Rerisson Cavalcante de Araújo PPGLL – UFBA / CNPq

1. Introdução

O português brasileiro contemporâneo (PB) apresenta variação com relação à construção de sentenças negativas, com a co-existência de três variantes que se diferenciam quanto à posição do marcador negativo em relação ao predicado verbal, variação que pode levar à indagação se nossa língua estaria passando por um processo de mudança em que o padrão de negação pré-verbal (Neg V) estaria sendo substituído por um pós-verbal (V neg), passando por um estágio com dupla marcação (Neg V neg), exemplificados em (1): (1)

(a)

Não sei.

(NEG1)1

(b)

Não sei não.

(NEG2)

(c)

Sei não.

(NEG3)

A investigação do fenômeno se insere na discussão sobre a origem das características estruturais do PB. Estão em debate atualmente duas hipóteses sobre as causas das mudanças ocorridas no desenvolvimento da língua portuguesa no Brasil. De um lado, há os que defendem que tais mudanças decorrem de uma evolução natural da língua, numa deriva secular já prevista no sistema lingüístico (SCHERRE e NARO, 1993). De outro lado, há os que atribuem as mudanças à interferência do intenso contato entre línguas ocorrido na nossa história e à aquisição defectiva do português como L2 por milhões de falantes das mais diversas línguas indígenas e, principalmente, africanas 2 (LUCCHESI, 2003). A partir dessa discussão, é possível perguntar se as variantes inovadoras NEG2 e NEG3 têm origem nessa situação de contato, sejam resultantes da transferência de estratégias lingüísticas de línguas africanas, sejam conseqüentes de reanálise estrutural, ou se teriam como causa outros fatores de natureza interna. A princípio, a deriva secular parece ser descartada

como

explicação

para

o

fenômeno,

uma

vez

que

abrange

apenas

o

enfraquecimento ou a perda da morfologia flexional.

1 2

A nomenclatura NEG1, NEG2 e NEG3, adotada nesse trabalho, é dada por Schewegler (1983).

O cerne da discussão está no fato de a principal característica do PB, o profundo enfraquecimento da sua morfologia flexional, poder ser atribuído tanto a um processo natural de erosão das terminações das palavras, quanto ao resultado de uma simplificação gramatical ocorrida em situações típicas de contato lingüístico.

2. Metodologia

O presente trabalho analisa a variação das estratégias de negação sentencial na modalidade oral do português popular brasileiro, a partir de dados colhidos na localidade rural de Cinzento, remanescente de um quilombo do século XIX e cuja população apresenta, em sua maioria, ascendência negra, levando, assim, em consideração a importância da investigação de dialetos rurais e, principalmente, os de comunidades negras, para a melhor compreensão do desenvolvimento das características lingüísticas que marcam o PB. A pesquisa é parte da minha Dissertação de Mestrado sobre a negação sentencial no português afro-brasileiro rural e foi realizada de acordo com os procedimentos metodológicos da Teoria da Variação, conforme formulada por Willian Labov (1983), com os dados de seis informantes naturais da localidade, divididos em ambos os sexos e pertencentes a três faixas etárias (20 a 30 anos; 40 a 60; e mais de 60), cujas entrevistas fazem parte do corpus do Projeto Vertentes do Português Rural da Região da Bahia 3. Os dados foram levantados após a audição das entrevistas e foram submetidos ao programa Varbrul para a delimitação de fatores condicionadores da variação. A chave de codificação utilizada contou com cinco variáveis lingüísticas e quatro variáveis sociais.

3. Resultados

Foram levantadas 871 sentenças negativas no corpus. O levantamento mostra um esperado predomínio da estratégia canônica, NEG1, que ocorre em 71% das sentenças, como mostra a tabela 1, abaixo. As variantes inovadoras, NEG2 e NEG3, apresentam freqüências de 23% e 6%, respectivamente.

Tabela 1: distribuição das variantes no corpus NEG1

NEG2

NEG3

TOTAL

Freqüência

618

202

53

871

Porcentagem

71%

23%

6%

100%

A distribuição das variantes reflete os resultados de estudos realizados em outras áreas do território nacional, como se pode notar pela freqüência de NEG3, que nunca ultrapassa a taxa de 6% em nenhum dos estudos. A freqüência de NEG1, porém, apresenta uma oscilação 3

Informações sobre o Projeto http://www.vertentes.ufba.br/

Vertentes

podem

ser

encontradas

no

seguinte

site:

tanto em relação aos números de localidades não marcadas etnicamente, urbanas ou rurais, quanto em relação a outras comunidades de origem afro. A média de realização da estrutura fica em torno de 77% em localidades não-marcadas etnicamente, como Fortaleza (RONCARATI, 1996) e Mariana-MG (ALKMIN, 1999), e se mantém em 65% em comunidades negras isoladas de outras regiões, como Helvécia-BA (SOUSA, 2004) e Pombal-MG (ALKMIN, 1999), como mostra a tabela 2.

Tabela 2: freqüência de NEG1 e perfil étnico das localidades Perfil das localidades

Localidades

NEG1

Comunidades não

Fortaleza

marcadas etnicamente

Mariana

77,1%

Cinzento

71%

Outras comunidades

Helvécia4

66,9%

de origem afro

Pombal

64,2%

Comunidade afro Estudada

Média

77% 77%

---

65,5%

Dados extraídos de Roncarati (1996), Alkmin (1999) e Sousa (2004).

Embora os dados não sejam conclusivos, é necessário salientar a importância da identificação de uma diferença de cerca de 12% na ocorrência de NEG1 entre comunidades marcadas e não marcadas etnicamente, que, confirmada, reforçaria a hipótese de que as variantes inovadoras NEG2 e NEG3 surgiram ou tiveram como campo de implementação dialetos fortemente influenciados pelo contato entre línguas 5, fato que explicaria o percentual mais reduzido de NEG1 em tais comunidades 6. A seguir, apresento os resultados colhidos através do levantamento do peso relativo pelo programa Varbrul.

4

Levantamento juntou NEG2 e NEG3 sob o mesmo rótulo.

5

É preciso ter em vista, porém, que a história de cada localidade deve ser vista separadamente, nada garantindo que qualquer comunidade negra terá os mesmos índices de realização de um mesmo fenômeno. 6

Por outro lado, os 71% de NEG1 encontrados em Cinzento, uma localidade afro, colocam a comunidade exatamente “no meio do caminho” entre as comunidades marcadas e as não marcadas etnicamente.

3.1. Variáveis lingüísticas 3.1.1. Tipo de frase

Esse fator foi selecionado como o mais importante para a realização de NEG1 e de NEG3, mas foi descartado para NEG2. Os dados da tabela 3 mostram que os contextos de nãoresposta são os que mais favorecem a realização de NEG1, com peso relativo 7 de .613, enquanto os contextos de respostas e de perguntas desfavorecem bastante a realização da variante, com pesos de .149 e .227, respectivamente. Já NEG3 apresenta um comportamento (quase) oposto, pois o contexto que mais favorece a variante é o de perguntas, com peso de .562. Resposta a yes / no question é o segundo fator a favorecer NEG3, com peso de .545, enquanto o contexto de não-resposta desfavorece fortemente a variante, como mostra o peso relativo de .068, extremamente baixo. Os valores expressivos dos pesos relativos confirmam a importância desse fator, que está relacionado a uma questão comunicativa: os usos de NEG2 e NEG3 estão ligados à negação não de uma declaração simples, mas de uma pressuposição do interlocutor em uma situação dialógica, conforme aponta Givón (GIVÓN, 1979; RONCARATI, 1996).

Tabela 3: Tipo de frase TIPO DE FRASE

NEG1

NEG2

NEG3

Resposta a yes / no question

.149 29%

.306 37%

.545 35%

Não-resposta

.613 77%

.320 21%

.068 2%

Pergunta

.227 53%

.212 23%

.562 20%

Nível de significância: .000 para NEG1 e NEG3

3.1.2. Tipo de oração

Esse fator analisa a distribuição das variantes em função dos tipos de oração em que a negação ocorre. O primeiro ponto a se destacar é que NEG3 não ocorre no corpus em sentenças subordinadas de nenhum tipo, sejam subjetivas, adverbiais ou relativas, enquanto NEG2 ocorre nesses contextos com freqüência de apenas 10%, conforme mostra a tabela 4:

7

Note-se que, para o peso relativo, em virtude de se tratar de um fenômeno com três variantes, favorece a realização aquele fator que apresentar peso superior a .333.

Tabela 4: distribuição das variantes com relação ao tipo de oração TIPO DE ORAÇÃO

NEG1

NEG2

NEG3

TOTAL

Absoluta

27 38%

27 38%

17 24%

71

Principal

70 64%

30 28%

9 8%

109

Independente

356 70%

127 25%

27 5%

510

Subjetiva

38 88%

5 12%

-----

Adverbial

94 91%

9 9%

-----

103

Relativa

33 89%

4 11%

-----

37

TOTAL

618 71%

202 23%

53 6%

873 100%

43

Além da ausência de tais casos no corpus, NEG3 parece ser agramatical ou pelo menos marginal em sentenças subordinadas, mesmo em dialetos urbanos, conforme mostra o juízo de falantes consultados. Veja-se (2): (2)

* Ele disse [que cantou não] 8.

A impossibilidade de NEG3 nesse contexto diante da possibilidade de NEG2, mesmo que com baixa freqüência, exige uma explicação que relacione as variantes com uma análise estrutural da oração negativa em português, que não é o objetivo desse trabalho. Devido à ausência de dados de NEG3, para o levantamento dos pesos relativos foi necessário retirar as sentenças subordinadas. O programa Varbrul selecionou o tipo de oração como o segundo fator mais importante para a realização de NEG1 e de NEG2 e como o quinto mais importante para NEG3. A tabela 5 apresenta a porcentagem e o peso relativo das variantes em relação ao tipo de oração, mostrando que sentenças principais favorecem NEG1, com peso de .373; enquanto absolutas favorecem NEG2, com peso de .352 e independentes favorecem NEG3, com .376.

8

A aceitabilidade da sentença por parte de alguns informantes consultados parece estar relacionada a uma interpretação em que a negação recai sobre o verbo dizer, na oração principal, e não sobre o verbo da subordinada: Ele disse [que cantou] não = Ele disse (isso) não.

Tabela 5: Peso relativo das variantes em relação ao tipo de oração TIPO DE ORAÇÃO

NEG1

NEG2

NEG3

Absoluta

.337 38%

.352 38%

.311 24%

Principal

.373 64%

.314 28%

.313 8%

Independente

.292 70%

.332 25%

.376 5%

Nível de significância: .000 para NEG1 e NEG3 e .026 para NEG2

3.1.3. Realização do complemento pós-verbal

Apesar de descartado para NEG2, o tipo de realização do complemento verbal foi selecionado como terceiro fator mais importante para a realização de NEG1 e como o quarto mais importante para NEG3. A codificação inicial desse fator previu a diferença entre a realização do complemento in situ e a sua realização anteposta ou deslocada (topicalizado), como em (3): (3)

Só que eu num lembro assim, uns eu lembro os nome dos artista, ôtos eu num lembro...

O levantamento dos dados mostrou, entretanto, que NEG3 não ocorre em sentenças com o complemento anteposto, o que resultou em knockout no programa. Isso pode estar relacionado ao fato de que, em NEG3, é toda a sentença que funciona com um tópico discursivo sobre o qual recai a negação, o que poderia não deixar espaço para a topicalização do complemento9. Para o levantamento dos pesos relativos, foi necessário juntar sob o mesmo rótulo os casos do complemento anteposto e in situ. Os dados apresentados na tabelo 6 mostram que o complemento realizado favorece a ocorrência de NEG1, com peso de .451, já o complemento elíptico desfavorece a variante, como mostra o peso de .244. NEG3 é favorecida pelo complemento não realizado e por complementos inexistentes, com os pesos relativos de .451 e .366, respectivamente. Por outro lado, desfavorece a variante a realização do complemento, que tem peso de .206.

9

Tal idéia será explorada em Araújo (no prelo).

Tabela 6: Realização do constituinte pós-verbal TIPO DE CONSTITUINTE PÓS-VERBAL

NEG1

NEG2

NEG3

Realizado

.451 78%

.343 20%

.206 2%

Não-realizado (pro)

.244 58%

.305 29%

.451 13%

Inexistente (verbo intransitivo)

.309 69%

.326 26%

.366 6%

Nível de significância: .000 para NEG1 e NEG3

Também é possível observar que a realização do complemento também favorece NEG2, como mostra o peso relativo de .343, embora o valor seja pouco expressivo e, mais importante, esse fator tenha sido descartado para NEG2 pelo Varbrul.

3.1.4. Realização do sujeito

Esse fator foi selecionado como relevante apenas para a realização de NEG3, sendo descartado para NEG1 e NEG2. De modo semelhante ao fator anterior, a codificação inicial separou os casos de sujeito realizado antecedendo o verbo dos casos em que o sujeito ocorre em posição pós-verbal. Os resultados mostraram que NEG3 não ocorre quando o sujeito está posposto, o que levou à junção dos dois casos sob o mesmo rótulo. A tabela 7 mostra que NEG3 é favorecido pelo sujeito nulo, que tem peso relativo de . 486, e pelo sujeito inexistente, com peso de .371. A realização plena do sujeito desfavorece NEG3, com peso relativo de .179. Esses resultados, iguais aos encontrados para o fator anterior (realização do objeto), confirmam a impressão subjetiva e os resultados de outros trabalhos, que ligam NEG3 a contextos de respostas curtas, em contexto de elipse de argumentos verbais (RONCARATTI, 1999). Tabela 7: Realização do sujeito TIPO DE REALIZAÇÃO DO SUJEITO

NEG1

NEG2

NEG3

Realizado

.372 73%

.449 25%

.179 2%

Não-realizado (pro)

.230 66%

.284 23%

.486 11%

Inexistente (expletivo)

.377 79%

.252 23%

.371 7%

Nível de significância: .000 para NEG3

Pelos dados, também é possível observar que NEG1 é favorecido pelo sujeito inexistente e realizado, com pesos de .377 e .372, respectivamente; e que NEG2 é favorecido pelo sujeito realizado, com peso de .449. Tais considerações, contudo, ficam comprometidas, uma vez que o fator foi descartado para essas duas variantes.

3.2. Variáveis sociais

Enquanto os fatores lingüísticos permitem a identificação de contextos estruturais que atuam na realização das formas em variação, não raramente possibilitando o reconhecimento de regras ou restrições categóricas, os fatores sociais podem apontar como as variantes se difundem entre grupos da comunidade, adquirindo valores sociais diferentes e entrando em relações de variação estável ou mudança em progresso, a depender da distribuição entre diferentes gerações. Entretanto, a identificação dessa difusão encontra dificuldades quando o fenômeno com que se lida não apresenta uma valoração social forte, com clara delimitação de variantes de prestígio e / ou estigmatizadas, que é o caso da negação. Com relação a fenômenos de concordância verbal ou nominal, por exemplo, o valor social da forma padrão é bastante nítido e isso se reflete na comunidade através de um fenômeno de aproximação do dialeto urbano, liderado pelos grupos mais jovens, com maior contato com a escolarização e com experiência de deslocamento para outras áreas. Quando, porém, um fenômeno não apresenta uma valoração social tão forte, como o caso da realização do sujeito nulo (LUCCHESI, 2004) ou mesmo da negação, a difusão entre os grupos sociais pode ser mais difusa, com uma maior dificuldade para a delimitação de padrões de comportamento.

3.2.1. Estada fora da localidade

Esse fator está relacionado à importância que o contato com outros dialetos pode ter para uma maior implementação de alguma variante lingüística. Note-se que não se trata de empréstimo lingüístico, com a aquisição de uma variante a partir de uma situação de contato, uma vez que a forma já existe no interior da comunidade. O contato com um dialeto de maior prestígio pode impulsionar uma variante, aumentando-lhe a freqüência. O fator foi selecionado tão somente para a realização de NEG2, como o quinto mais importante, e foi descartado para NEG1 e NEG3. Contudo, além de apresentar nível de significância de .000, igual ao do fator mais importante para NEG2, que é a escolaridade, os

resultados desse fator são os que apresentam uma distribuição mais nítida, conforme mostra a tabela 8:

Tabela 8: Estadia de mais de 6 meses fora da localidade ESTADA FORA DA LOCALIDADE

NEG1

NEG2

NEG3

SIM

.424 75%

.291 18%

.285 6%

NÃO

.253 66%

.369 28%

.378 6%

Nível de significância: .000 para NEG2 e .005 para NEG1

Os resultados mostram que a estadia de mais de 6 meses fora da comunidade favorece a variante NEG1, com peso de .424, enquanto a permanência na localidade favorece as variantes NEG2 e NEG3, com peso relativo de .369 e de .378, respectivamente. Esses dados entram em concordância com a maior freqüência que NEG1 tem em comunidades não marcadas, conforme apontado na seção 3, e com a hipótese de que a origem das variantes inovadoras está relacionada a situações de contato lingüístico e aquisição defectiva do português.

3.2.2. Sexo

Esse fator foi considerado pelo Varbrul como o sexto mais importante para NEG1 e o quinto para NEG2, sendo descartado para NEG3. Em geral, no estudo dessas comunidades, a variável sexo se comporta de modo oposto ao previsto dentro da literatura sociolingüística para áreas urbanas, em que geralmente as mulheres estão mais próximas ao padrão normativo. Por saírem com mais freqüência da comunidade, por questões de trabalho e terem, assim, maior contato com outros dialetos, os homens de localidades como Cinzento é que costumam estar mais próximos do padrão, e a variante “sexo masculino” tem um desempenho relativamente próximo ao da variante estada fora da localidade. Contudo, como se pode notar na tabela 8, apesar de as mulheres apresentarem uma freqüência de uso de NEG1 inferior ao uso dos homens, com 69% contra 73%, os pesos relativos indicam que o sexo feminino favorece essa variante, com peso de .405, ao passo que o sexo masculino favorece NEG2, com peso de .423. A mesma situação ocorre com NEG2, já que os homens apresentam uma freqüência de uso inferior ao uso das mulheres, com apenas 19& contra 26%.

Tabela 8: Distribuição das variantes em função do sexo do informante SEXO

NEG1

NEG2

NEG3

Masculino

.264 73%

.423 19%

.313 5%

Feminino

.405 69%

.253 26%

.342 5%

Nível de significância: .019 para NEG2 e .076 para NEG1

Os resultados desse fator estariam indo, portanto, na direção oposta aos resultados para estadia fora da localidade10. O sexo feminino como favorecedor da variante padrão é ainda mais estranho se atentarmos para dois fatos: i) das três mulheres informantes do corpus, duas ao mesmo tempo são analfabetas e não estiveram fora da localidade por mais de 6 meses, dois fatores que favorecem NEG2 contra NEG111. ii) todos os três homens do corpus são semi-alfabetizados, e dois deles passaram mais de seis meses fora da localidade, fatores que favorecem NEG1 contra NEG2. Por outro lado, tais resultados devem ser relativizados, pois o nível de significância para NEG1 é de .076, superior ao que costuma ser tomado como limite para a confiabilidade dos dados, ou seja, .050. Até mesmo o valor de .019 para o nível de significância de NEG2, se não chega perto de .050, é elevado para os registrados nesse estudo, em que, para muitos fatores, o valor fica em .000 ou bem próximo disso.

3.2.3. Escolaridade

Esse fator foi selecionado pelo Varbrul como o mais importante para a realização de NEG2 e como o quarto mais importante para NEG1. Foi, por outro lado, descartado para NEG3. É importante ter em mente que, devido às características sociais da comunidade, o fator escolaridade não representa uma diferença tão nítida entre os informantes, uma vez que se reduz à identificação de dois grupos: os analfabetos e os que tiveram alguma experiência com a escolarização, que é, em geral, pouca. Dentro desse panorama, os dados apresentados na tabela 9 mostram que a probabilidade de realização de NEG2 é maior no grupo dos analfabetos, como mostra o peso

10

O mesmo ocorreu no estudo de Lucchesi (2004) sobre a realização do sujeito nulo, outro fenômeno em que as variantes não têm um valor social claro. 11

Tal perfil explica porque as porcentagens e os pesos relativos caminham em direções diferentes: mesmo com a grande influência desses outros fatores, que inflam as porcentagens de NEG2, o sexo feminino ainda favorece bastante NEG1.

relativo de .487, ao passo que o contato com a escolarização favorece a variante canônica, NEG1, de acordo com o peso relativo de .435.

Tabela 8: Distribuição das variantes em função da escolaridade do informante ESCOLARIDADE

NEG1

NEG2

NEG3

Analfabetos

.232 64%

.487 31%

.281 4%

Semi-alfabetizados

.435 74%

.207 19%

.359 7%

Nível de significância: .000 para NEG2 e .003 para NEG1

Os resultados desse fator são, assim, coerentes com o esperado, com a escolarização servindo como força impulsionadora da variante considerada padrão, e com a hipótese esboçada inicialmente.

3.2.4. Faixa etária

Esse fator, que tem como objetivo identificar se a alternância entre as formas é um fenômeno de variação estável ou de mudança em progresso, foi selecionado como o segundo mais relevantes para a realização de NEG3, constituindo o único fator social selecionado pelo Varbrul para essa variante. A faixa etária foi, também, o quinto fator mais relevante para NEG1 e o terceiro para NEG2. Os dados, porém, parecem não ser muito confiáveis para NEG2, uma vez que o nível de significância aparece com o valor de .973, que é extremamente alto. Independentemente disso, os pesos relativos não revelam uma distribuição nítida das variantes, conforme mostra a tabela 9.

Tabela 9: Distribuição das variantes em função da faixa etária FAIXA ETÁRIA

NEG1

NEG2

NEG3

Jovens

.145 67%

.389 24%

.466 9%

Intermediários

.543 75%

.318 22%

.139 2%

Velhos

.351 67%

.223 24%

.426 9%

Nível de significância: .005 para NEG1, .973 para NEG2 e .000 para NEG3

Segundo os valores, NEG1 teria como principal fator condicionador a faixa etária intermediária, com peso de .543. O segundo fator condicionador seria a faixa mais velha, com .351. A faixa mais jovem aparece como fator desfavorecedor da variante, com peso de apenas .145. Tal resultado iria de encontro à hipótese, por apresentar a faixa mais jovem como a que menos favoreceria a variante, o que indicaria não uma aquisição de NEG1 motivada pelo contado com outras áreas, mas uma perda da variante. Mas os resultados são mais complexos do que isso, pois delimitam uma situação em que NEG1 aparece com força já na faixa mais velha (.351) e, depois, adquiriria mais força ainda na faixa intermediária (.543), para se deparar com uma queda substancial na faixa mais jovem (.145). Tal perfil não mostra uma situação de mudança em progresso, seja em direção à aquisição ou à perda da variante, mas sim um caso de variação estável, com uma distribuição difusa pelas faixas etárias. Favorece tal interpretação a análise dos valores para NEG3, cujos pesos relativos indicam como fatores condicionantes ao mesmo tempo a faixa mais jovem, com peso de .466, e a faixa mais velha, com peso de .426, e como fator desfavorecedor a faixa intermediária, com .139. Mesmo com relação a NEG2, que apresenta números mais claros, com nítida elevação dos valores dos pesos relativos da faixa mais velha em direção à mais jovem, existe o problema do nível de significância se situar muito acima do considerado confiável para estudos dessa natureza. E até mesmo com relação aos valores percentuais, a distribuição difusa permanece, como se pode notar pelo gráfico 1. A freqüência de NEG1 e de NEG3 se eleva da faixa mais velha para a intermediária e depois cai na faixa mais jovem, ao passo que ocorre o inverso com NEG2: seu uso se eleva na faixa intermediária e regride na faixa mais jovem. Tal distribuição corrobora a interpretação de variação estável.

Gráfico 1: variantes no tempo 80% 70% 60%

67%

75% 67%

50%

NEG1

40%

NEG2

30% 20% 10%

24% 9%

22% 24%

24% 9%

0% Faixa 3

Faixa 2

Faixa 1

NEG3

Conclusões

Os resultados obtidos mostram que a variante NEG1 é favorecida pelas variáveis lingüísticas não-resposta (.613), por orações principais (.373) e subordinadas e pelo complemento verbal realizado (.451), sendo desfavorecida por respostas (.149) e perguntas (.227) e pelo complemento verbal não-realizado (.244). Já a variante NEG2 é favorecida por orações absolutas (.352), sendo desfavorecido por orações subordinadas. Outros fatores lingüísticos não foram selecionados para a estrutura, embora o complemento e o sujeito realizados apareçam como prováveis favorecedores. A variante NEG3 é favorecida por perguntas (.562), por respostas a yes / no question (.545), por orações independentes (.376), pelo complemento não realizado (.451) e inexistente (.366) e pelo sujeito não realizado (.486) e inexistente (.179). Desfavorecem NEG3 os contextos de não-resposta (.068), o complemento realizado (.206) e pelo sujeito realizado (.179). Além disso, NEG3 não ocorre em sentenças subordinadas, como objeto topicalizado e com sujeito posposto ao verbo. Esses resultados confirmam NEG1 como uma estrutura de negação neutra, que ocorre em contextos não marcados (RONCARATI, 1999), ao passo em que NEG3 está ligada a situações de negação de um tópico existente numa situação de diálogo, o que associa a estrutura a contextos de apagamento de argumentos verbais, podendo também bloquear a topicalização de elementos da sentença (vide 3.1.3). Com relação aos fatores sociais, apesar de os resultados apontarem para uma distribuição não tão estruturada pelos grupos sociais, favorecem NEG1 o deslocamento para outras comunidades (.424) e o contato com a escolarização (.435). Os dados sobre sexo apresentam o nível de significância acima do confiável. Já NEG2 tem como fatores condicionantes o não deslocamento (.369) e a ausência de escolarização (.487), além do sexo masculino (.423). E NEG3 teve como único fator social selecionado a faixa etária, fator que apresenta uma distribuição difusa, indicando variação estável. Pode-se depreender, então, que na realização de NEG3 só entram em jogo os fatores lingüísticos. Os valores para a faixa etária não permitem, como já foi dito, concluir que há mudança em progresso na comunidade, com alguma das variantes se impondo e suprimindo as demais. Embora tal resultado, a princípio, vá contra os dados que mostram que a variante canônica é favorecida pelo deslocamento e pela escolarização, o fato de o deslocamento não ter sido selecionado pelo Varbrul como relevante para NEG1 reforça a interpretação de variação estável, que também é compatível com um fenômeno que não apresenta valoração social nitidamente estabelecida. Mesmo que o contato com outros dialetos influencie de algum modo

a maior realização de NEG1, não tem sido suficiente para disparar um processo em direção à mudança, com a supressão das demais variantes. Os resultados encontrados exigem a continuação das pesquisas, preferencialmente com a inclusão de outras variáveis lingüísticas, como o traço semântico do verbo e paralelismo formal. Está prevista também a investigação em outras comunidades rurais com perfil semelhante, para uma caracterização mais abrangente do português afro-brasileiro. Tal comparação também poderá confirmar ou refutar os dados sobre a menor ocorrência de NEG1 em tais localidades em relação a dialetos urbanos.

Referências ALKMIN, Mônica G. R. (1999). Ação de dois fatores externos no processo de mudança em negativas sentenciais no dialeto mineiro. In: Anais do II Congresso Nacional da ABRALIN, Florianópolis. LABOV, William. (1983 [1972]). Modelos sociolingüísticos. Madrid: Cátedra. LUCCHESI, Dante. (2003). O conceito de transmissão lingüística irregular e o processo de mudança do portugues do Brasil. In: RONCARATI, Cláudia; ABRAÇADO, Jussara. (orgs). Português brasileiro: contato lingüístico, heterogeneidade e história. Rio de Janeiro: 7Letras, p. 272-84. LUCCHESI, Dante. (2004). Contato entre línguas e variação paramétrica: o sujeito nulo no português afro-brasileiro. In: Lingua(gem). Macapá: ILAPEC, Vol. 1, nº 2. NARO, Anthony; SCHERRE, Marta. (1993). Sobre as origens do português popular do Brasil. D.E.L.T.A. 9 (especial). São Paulo: PUC, p. 437-454. RONCARATI, Cláudia. (1996). A negação no português falado. IN: MACEDO, Alzira Tavares de; RONCARATI, Cláudia; MOLLICA, Maria Cecília. (orgs). Variação e discurso. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 97-112. SCHEWEGLER, A. (1983). Predicate negation and word-order change: a problem of multiple causation. North-Holland, Lingua 61, p. 297-334. SOUSA, Arivaldo Sacramento. (2004). As estruturas de negação em uma comunidade rural afro-brasileira: Helvécia-BA. Comunicação apresentada no I Seminário Estudantil de Pesquisa do Instituto de Letras da UFBA.

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