Estratégias discursivas na cronística machadiana

June 4, 2017 | Autor: Luís Ribeiro | Categoria: Machado de Assis, Crónica, Crónicas
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Universidade de São Paulo
Instituto de Estudos Brasileiros





Estratégias discursivas na cronística machadiana:
dois breves estudos de caso







IEB0263 - Arte da Crônica e do Conto
Luís Guilherme Marques Ribeiro – nº USP: 8544335
Professor Fernando Paixão



INTRODUÇÃO

O presente trabalho propõe uma breve análise sobre as estratégias discursivas de duas crônicas de Machado de Assis, a de 5 de abril de 1888 e a de 19 de maio de 1888, ambas pertencentes à série Bons Dias!
O método adotado é o proposto por Moisés (1972), segundo o qual o estudo microestrutural deve preceder e servir de sinal para as suposições acerca da macroestrutura: no presente estudo, tem-se em vista a peculiaridade do gênero crônica.
As crônicas publicada na Gazeta de Notícias nos dias 5 de abril e 19 de maio de 1888 são, respectivamente, a primeira e a quarta da série Bons Dias!, considerada "uma das séries mais interessantes e individualizadas que Machado escreveu" (GLEDSON, 2013, p. 24). Tendo em vista que o autor escrevia para o público carioca de sua época, é imprescindível que o contexto histórico e social específico na data de sua publicação seja considerado, bem como o suporte, enquanto produtor de sentido.
John Gledson – um dos estudiosos que mais têm se debruçado sobre a cronística machadiana nas últimas décadas – elaborou, em sua seleção Crônicas Escolhidas (ASSIS, 2013), notas introdutórias e notas de rodapé que pretendem fornecer as informações que o leitor de hoje não saberia interpretar. Segundo o estudioso, sem esse aparato paratextual, "as crônicas são, em boa medida, ilegíveis" (GLEDSON, 2013, p. 11). Todavia, para os fins do presente estudo, foram selecionadas duas crônicas em que o número dessas referências específicas é reduzido, em comparação com a média das crônicas de Bons Dias!
Tendo em mira a economia de espaço, a linearidade da análise e a comodidade para a conferência dos textos, as crônicas estão citadas no corpo do trabalho, parágrafo por parágrafo, em vez de anexadas ao final.


Estudo de caso 1
Crônica publicada em 5 de abril de 1888

Na data da publicação desta crônica, a aproximadamente um mês da aprovação da Lei Áurea, pairava um clima de tensão política, devido tanto às pressões e demandas abolicionistas, em choque com as reivindicações dos latifundiários donos de escravos, quanto à iminência de uma revolução republicana. Após a demissão do primeiro-ministro escravagista Barão de Cotegipe, sucede-o o também conservador João Alfredo Correia de Oliveira, em vez de um dos dois candidatos do Partido Liberal (Dantas e Saraiva). É neste clima político em que a crônica se insere.

[1] Hão de reconhecer que sou bem criado. Podia entrar aqui, chapéu à banda, e ir logo dizendo o que me parecesse; depois ia-me embora, para voltar na outra semana. Mas, não senhor; chego à porta, e o meu primeiro cuidado é dar-lhe os bons dias. Agora, se o leitor não me disser a mesma coisa, em resposta, é porque é um grande malcriado, um grosseirão de borla e capelo; ficando, todavia, entendido que há leitor e leitor, e que eu, explicando-me com tão nobre franqueza, não me refiro ao leitor, que está agora com este papel na mão, mas ao seu vizinho. Ora bem!

O primeiro parágrafo consiste em uma apresentação do narrador, que parece pretender captar a benevolência do leitor chamando a atenção para o fato de ser "bem-criado"; o autoelogio, de certa forma, contradiz a própria afirmação, o que confere, de saída, um tom ambíguo sobre o caráter do cronista. O parágrafo em si é uma imagem: pinta-se diante do leitor a dimensão física do enunciador ("Podia entrar aqui, chapéu à banda, [...] chego à porta, e meu primeiro cuidado é dar-lhe os bons dias"), induzindo o leitor a uma interação dialógica com o texto. O narrador afirma esperar uma resposta; inclusive, põe à prova o próprio caráter do leitor, acusando de "malcriado" e "grosseirão" aquele que não responder. Todavia, em seguida, elogiando a própria "nobre franqueza", afirma haver "leitores e leitores", e transfere a acusação ao vizinho de quem está lendo, nunca ao leitor: afirmação paradoxal em si. A ambiguidade sobre o caráter do autor agora já se estabelece como um tom irônico evidente, uma espécie de paródia da captatio benevolentiæ. A exclamação "Ora bem!", rematando o parágrafo, ratifica o tom prosaico da apresentação.

[2] Feito esse cumprimento, que não é do estilo, mas é honesto, declaro que não apresento programa. Depois de um recente discurso proferido no Beethoven, acho perigoso que uma pessoa diga claramente o que é que vai fazer; o melhor é fazer calado. Nisto pareço-me com o príncipe (sempre é bom parecer-se a gente com príncipes, em alguma coisa, dá certa dignidade, e faz lembrar um sujeito muito alto e louro, parecidíssimo com o Imperador, que há cerca de trinta anos ia a todas as festas da Capela Imperial, pour étonner de bourgeois; os fiéis levavam a olhar para um e para outro, e a compará-los, admirados, e ele teso, grave, movendo a cabeça à maneira de Sua Majestade. São gostos) de Bismark. O príncipe de Bismark tem feito tudo sem programa público; a única orelha que o ouviu, foi a do finado Imperador, — e talvez só a direita, com ordem de o não repetir à esquerda. O Parlamento e o país viram só o resto.

No primeiro período do segundo parágrafo o narrador desculpa-se pela apresentação, creditando a falta de estilo à honestidade — o que consiste, evidentemente, em uma dupla mentira —, e declara "não apresentar programa", i.e., não ter um assunto para tratar na crônica. O segundo período faz menção a um "discurso proferido no Beethoven" (clube que promovia concertos de música clássica, do qual Machado era membro), onde "Antônio Ferreira Viana, ministro da Justiça no novo governo, dissera que a Abolição era iminente, gerando protestos veementes dos escravagistas" (GLEDSON apud ASSIS, 2013, p. 87). A referência a este evento pretende servir de justificativa para a falta de tema: "o melhor é fazer calado".
O restante do parágrafo é uma digressão, em que faz um curioso jogo com o leitor: parece que irá fazer referência à monarquia brasileira, quando abre um enorme parêntese e conclui a frase referindo-se a Bismarck, criador do Império Alemão. O artifício de fazer referência ao sujeito apenas após um longo parêntese induz o leitor a erro, até chegar ao fim do parágrafo, quando fica claro a qual o príncipe referido. Dessa forma, deixa-se a impressão de dizer que quem está "calado" é Pedro II (fato coerente à postura do Imperador diante das disputas políticas da época), mas em seguida a impressão desfaz-se. Seria essa uma forma do narrador insinuar algo isentando-se da culpa?

[3] Deus fez programa, é verdade ("E Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, para que presida", etc. Gênesis, I, 26); mas é preciso ler esse programa com muita cautela. Rigorosamente, era um modo de persuadir ao homem a alta linhagem de seu nariz. Sem aquele texto, nunca o homem atribuiria ao Criador, nem a sua gaforinha, nem a sua fraude. É certo que a fraude, e, a rigor, a gaforinha são obras do Diabo, segundo as melhores interpretações; mas não é menos certo que essa opinião é só dos homens bons; os maus creem-se filhos do Céu — tudo por causa do versículo da Escritura.

O terceiro parágrafo é ainda um rodeio, mais uma justificativa para a falta de assunto e mais uma digressão, desta vez de ordem teológica. A citação bíblica é seguida de uma advertência ("mas é preciso ler esse programa com cautela") que põe o leitor diante de um conceito estranho. A "gaforinha" (aparência em desalinho) e a "fraude", características humanas negativas, são obra do diabo ("segundo as melhores interpretações"), e os homens bons têm consciência deste fato. Porém, sem o programa divino, os homens maus jamais suspeitariam de sua imagem e semelhança com o criador. Com isso o narrador pretende dizer que teria sido melhor Deus não ter "feito programa", para que nenhum homem mal considerasse a si mesmo imagem e semelhança do criador.

[4] Portanto, bico calado. No mais é o que se está vendo; cá virei uma vez por semana, com o meu chapéu na mão, e os bons dias na boca. Se lhes disser desde já, que não tenho papas na língua, não me tomem por homem despachado, que vem dizer coisas amargas aos outros. Não, senhor; não tenho papas na língua, e é para vir a tê-las que escrevo. Se as tivesse, engolia-as e estava acabado. Mas aqui está o que é; eu sou um pobre relojoeiro, que, cansado de ver que os relógios deste mundo não marcam a mesma hora, descri do ofício. A única explicação dos relógios era serem iguaizinhos, sem discrepância; desde que discrepam, fica-se sem saber nada, porque tão certo pode ser o meu relógio, como o do meu barbeiro.

No primeiro período do quarto parágrafo o narrador repete que é melhor manter o "bico calado". Contrastando a afirmação, em tom de advertência, afirma que não possui "papas na língua", destoando da imagem de polidez construída até então ("se não tenho papas na língua, não me tomem por homem despachado"). Logo a seguir, elabora uma alegoria para comentar a situação política do momento: afirma-se um relojoeiro que condena a discrepância entre os horários nos relógios.

[5] Um exemplo. O Partido Liberal, segundo li, estava encasacado e pronto para sair, com o relógio na mão, porque a hora pingava. Faltava-lhe só o chapéu, que seria o chapéu Dantas, ou o chapéu Saraiva (ambos da Chapelaria Aristocrata); era só pô-lo na cabeça, e sair. Nisto passa o carro do paço com outra pessoa, e ele descobre que ou o seu relógio está adiantado, ou o de Sua Alteza é que se atrasara. Quem os porá de acordo?

O parágrafo dá sequência à alegoria, concluindo-a: o Partido Liberal, representado por Dantas ou por Saraiva, não é eleito, por desinteresse do Império. O parêntese "(ambos da Chapelaria Aristocrata)" constitui uma crítica à posição social dos liberais, tendo em vista que Machado era contra uma revolução republicana, alegando o risco da subida da oligarquia alinhada ao Partido Liberal ao poder. Não podemos deixar de notar que este é o primeiro e único parágrafo em que o narrador aborda enfim o assunto da crônica. Após justificar a falta de "programa", acaba encontrando um, e mostrando um posicionamento diante da questão.

[6] Foi por essas e outras que descri do oficio; e, na alternativa de ir à fava ou ser escritor, preferi o segundo alvitre; é mais fácil e vexa menos. Aqui me terão, portanto, com certeza até à chegada do Bendegó, mas provavelmente até à escolha do Sr. Guaí, e talvez mais tarde. Não digo mais nada para os não aborrecer, e porque já me chamaram para o almoço.

Reiterando a descrença citada, o narrador faz referência a seu ofício, mas por meio de uma estratégia de autodepreciação: entre "ir à fava" (ir embora) ou ser escritor, prefere a segunda opção, pois "vexa menos". Com tal argumento o enunciador rebaixa-se, como quem pretende não ser levado a sério. O Bandegó e ao Sr. Guaí são referências a acontecimentos contemporâneos à redação da crônica: Bandegó foi um meteorito que caiu no sertão da Bahia no século XVIII, e na época estava sendo levado para o Rio de Janeiro, com muita dificuldade; Barão de Guaí foi um político baiano, provavelmente mencionado por ter patrocinado o transporte do meteorito e ser um possível candidato para algum ministério (GLEDSON apud ASSIS, 2013, p. 90). O último período do parágrafo reitera a estratégia de rebaixamento do narrador: quer passar a ideia de quem escreve ao acaso, um texto qualquer, inscrito na temporalidade cotidiana, em que um convite para o almoço interrompe a redação.

[7] Talvez o que aí fica, saia muito curtinho depois de impresso. Como eu não tenho hábito de periódicos, não posso calcular entre a letra de mão e a letra de forma. Se aqui estivesse o meu amigo Fulano (não ponho o nome, para que cada um tome para si esta lembrança delicada), diria logo que ele só pode calcular com letras de câmbio — trocadilho que fede como o Diabo. Já falei três vezes no Diabo em tão poucas linhas; e mais esta, quatro; é demais.

Todo o último parágrafo não passa de uma metalinguagem para, aparentemente, preencher o espaço restante, ou apenas passar essa impressão. Sabe-se que em 1888 Machado já acumulava uma grande experiência como cronista, logo, a afirmação "eu não tenho hábito de periódicos" evidencia mais uma encenação discursiva. O trocadilho com "letras de câmbio" e o chiste autorreferencial com a palavra "diabo" não guardam nenhuma conexão lógica com o restante do texto, e justamente por isso provocam o efeito de blague.




Estudo de caso 2
Crônica publicada em 19 de maio de 1888

Esta é a primeira crônica escrita por Machado após a assinatura da Lei Áurea (13 de maio). Nela, o narrador não expõe diretamente sua opinião sobre o fato, mas articula um discurso em uma narração com tipos sociais, numa espécie de miniconto.

[1] Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário for, que toda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.

O primeiro parágrafo fornece-nos de saída informações sobre a dubiedade de caráter do narrador/personagem: a frase "Eu pertenço a uma família de profetas après coup" põe em suspenso a validade de toda a construção persuasiva do restante do parágrafo, baseada na "previsão" do narrador, "antes mesmo dos debates". O último período parte da premissa de que o narrador já tem o escravo como perdido.

[2] Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.
[3] No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as ideias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.

As hipérboles reforçam o perfil caricatural que está sendo traçado. A expressão coup de milieu (literalmente "gole do meio", bebida tradicionalmente brindada no meio dos banquetes) foi mal traduzida: a palavra francesa coup tem mais de uma acepção, entre elas, "golpe". Tal erro corrobora com a imagem do tipo social pedante iletrado da alta sociedade. As referências a Cristo fornecem um forte argumento de autoridade para conferir validade ao discurso: "as ideias pregadas por Cristo [...] que a liberdade era um dom de Deus". É razoável supor que se trata de uma estratégia do enunciador para demonstrar uma falácia argumentativa, uma vez que é patente a incompatibilidade entre o caráter do narrador construído discursivamente pelo cronista e o mostrado por ele nas entrelinhas.

[4] Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembleia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.

Os treze verbos de ação do quarto parágrafo conferem à crônica, além de um enredo, um páthos ridiculamente sentimental (e.g.: "entrou na sala, como um furacão", "Ouvi cabisbaixo", "os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração"). O efeito de blague da situação atinge seu ponto alto no absurdo do último período: "Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo".

[5] No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
[6] -- Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que...
[7] -- Oh! meu senhô! fico.
[8] -- ...Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...
[9] -- Artura não qué dizê nada, não, senhô...
[10] -- Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
[11] -- Eu vaio um galo sim, senhô.
[12] -- Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.

O diálogo do parágrafo 5 a 12 dá continuidade ao enredo, simbolizando uma relação entre classes por meio de dois personagens estereotipados, dois tipos sociais, delineados tanto por suas volições quanto por seus traços linguísticos. Fica mais nítido neste ponto que o mote da crônica é denunciar a astúcia com que o patrão ilude o escravo com uma suposta liberdade e uma promessa de aumento salarial. Todavia, não é possível saber ainda qual a posição ideológica do cronista em relação à abolição, se a favor (lamentando a permanência da exploração) ou se contra (denunciando a inutilidade da alforria), tendo em vista a ironia que perfaz toda a construção do caráter desse narrador.

[13] Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
[14] Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.

Os parágrafos 13 e 14 marcam um ponto de virada na narrativa, pois as intenções até então veladas do narrador/personagem agora ficam claras, em especial pelas tentativas de justificar (jurídica, moral e teologicamente) as agressões físicas e humilhações verbais. Além de mostrar uma profunda hipocrisia no discurso ("chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo"; "Deus me perdoe!"), o narrador demonstra um sadismo reificante em relação a Pancrácio.

[15] O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposições) é então professor de Filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.

O último parágrafo lança luz sobre a verdadeira intensão do cronista: por meio de estratégias argumentativas, cria o tipo social de um narrador/personagem escravocrata, inventa uma pequena cena que simbolize a relação entre duas classes antagônicas (ex-carrascos e negros recém-libertos), protagonistas de um episódio histórico (assinatura da Lei Áurea) e procura persuadir o leitor sobre a naturalidade com que a relação de submissão do negro recém-liberto se reconfigura em um novo contexto econômico. Ao referir-se metonimicamente à alforria (Lei Áurea) como a "justiça na terra, para satisfação do céu", o cronista está se valendo de uma redução ao absurdo, um artifício retórico que pretende engendrar uma crítica mordaz e sarcástica, embora sem comprometer-se a alguma ideologia específica.


Conclusões

A partir dessa aproximação dos textos, sem perder de vista a brevidade do estudo, é possível tirar conclusões sobre alguns traços marcantes da cronística machadiana, a começar pelos contrastes entre as duas crônicas analisadas. A principal diferença no que diz respeito à forma textual é o caráter dissertativo de uma em oposição ao caráter narrativo de outra.
A de 5 de abril é uma crônica que abre uma série, e nota-se que o autor dedica boa parte do seu espaço apresentando-se, desculpando-se, dando voltas sobre o tema central, que acaba ocupando pouco mais de um parágrafo; ainda assim, o assunto é abordado de maneira metafórica, indireta. Um assunto se conecta ao outro sem uma relação de necessidade lógica ou verossimilhança, brincando com a percepção do leitor, passeando sobre divagações.
Por sua vez, a crônica de 19 de maio apresenta-se-nos como uma espécie de conto curto, em que encontramos marcações de tempo, espaço, personagens, enredo, diálogo e foco narrativo. O discurso dissertativo perpassa alguns parágrafos, num expediente híbrido, orbitando sobre um conjunto de ideias centrais.
Uma outra diferença entre as duas crônicas, decorrente do acima exposto, refere-se à inteligibilidade do texto, a despeito de uma contextualização histórica. Apesar de uma nota introdutória clarear alguns pontos na crônica de 19 de maio, boa parte da crônica de 5 de abril não faz sentido se estiver descolada do contexto (e do suporte) em que foi produzida e publicada.
Observa-se, todavia, um aspecto importante comum nos dois textos: o amplo uso de figuras retóricas e estratégias discursivas que suspendem o sentido, abrindo para duplas interpretações, em função do emprego constante do tom irônico e dúbio na construção da instância enunciativa. Tal estratégia acaba cumprindo a função de desidentificar o autor do narrador, permitindo que a crônica mova-se com desenvoltura por diversas dimensões do pensamento, elaborando críticas a diversas situações sociais e políticas, sem comprometer pessoalmente o status social do autor, protegido dentro de sua ironia.


Bibliografia
ASSIS, Machado. Crônicas Escolhidas. São Paulo: Penguim Classics Companhia das Letras, 2013.
GLEDSON, John. "Introdução". In: ASSIS, Machado. Crônicas Escolhidas. São Paulo: Penguim Classics Companhia das Letras, 2013.
MOISÉS, Massaud. Guia prático de análise literária. 3a ed. São Paulo: Cultrix, 1972.




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