Estratégias e desafios dos grupos socioprofissionais da área das tecnologias da saúde

May 27, 2017 | Autor: Flávia Oliveira | Categoria: Sociologia das profissões, ANATOMIA PATOLÓGICA, Tecnologias da saúde
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Instituto Politécnico de Lisboa Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa

Licenciatura em Anatomia Patológica, Citológica e Tanatológica

ALÍNEA 2.3)

“Estratégias e desafios dos grupos socioprofissionais da área das tecnologias da saúde”

Discentes Catarina Pardelha Flávia Oliveira Mafalda Barroso Sandra Ribeiro

Unidade Curricular: Sociologia das Profissões

Docente responsável: Prof. Hélder Raposo

Junho de 2015

Considerações iniciais NÃO OBSTANTE a preocupação em incluir os aspectos referentes à regulamentação estatal na sistematização sociológica das profissões, o próprio Estado desconsidera, em grande medida, as conceções teóricas da sociologia acerca do termo profissão, especialmente à luz das ideias preconizadas por Eliot Freidson e Harold Wilensky1. Embora esta constatação não seja surpreendente, não deixa de ser curioso constatar que os Decretos-Lei que, em Portugal, regulam o exercício profissional dos técnicos de diagnóstico e terapêutica (TDT), não hesitam em atribuir-lhes a designação de “profissionais”, e à sua ocupação o nome de “profissões”2,3. Facto é que, independentemente do uso que os textos legais fazem deste conceito, o processo de profissionalização dos TDT permanece em curso até à presente data, não se encontrando concluído nem à data da elaboração deste trabalho, nem, muito menos, à data da publicação do supracitado Decreto-Lei. Até que este processo atinja um patamar mais efetivo (o que não equivale a dizer “definitivo”), será mais correto, no âmbito desta breve dissertação,

referir

as

ocupações

desempenhadas

pelos

TDT

como

“grupos

socioprofissionais”, se bem que, à falta de melhor palavra, os próprios TDT serão referidos como “profissionais”.

Estratégias e desafios dos grupos socioprofissionais da área das tecnologias da saúde NESTA ALÍNEA convergem vários conceitos abordados previamente no decurso da unidade curricular. Por exemplo, o tema das estratégias de profissionalização já não é novo, mas agora tem, oportunamente, um foco sobre o caso particular das tecnologias da saúde – novos grupos ocupacionais no campo da saúde que, devido aos contextos que lhes deram origem (nomeadamente, “atividades estritamente práticas e auxiliares”), se encontram ainda numa trajetória de profissionalização4. O grupo socioprofissional das tecnologias da saúde inclui, em Portugal, 18 denominações profissionais2,3,5. Embora as saídas profissionais dos detentores destes títulos sejam flexíveis, estes encontrarão, na sua maioria, posicionamento laboral a nível dos cuidados de saúde, o que pressupõe que irão trabalhar, em maior ou menor proximidade, com os profissionais médicos. A coexistência entre médicos – a “profissão dominante” tão minuciosamente defendida por Freidson6,7 – e técnicos de diagnóstico e terapêutica torna quase inevitável que se estabeleçam comparações e relações entre a posição social destes dois grupos durante o exercício das respetivas atividades. É verdade que os TDT contactam não apenas com médicos, mas também com enfermeiros, técnicos superiores e pessoal administrativo, entre outros. Contudo, há que 1

notar que o trabalho desempenhado por um TDT não resulta do pedido nem se destina à apreciação de um enfermeiro, nem de um dirigente, mas sim de um ou mais médicos(a). Ao nível dos saberes, podemos encontrar diferenças que ainda justificam algumas assimetrias entre profissionais médicos e não médicos no campo da saúde, especialmente falando de hierarquia profissional, na qual os médicos se encontram virtualmente acima de todos os outros profissionais de saúde. Para além de os médicos serem uma força de trabalho mais numerosa que os TDT (numa proporção de 3,2 médicos por cada técnico8), também o facto de estas ocupações serem de desenvolvimento recente e génese estritamente auxiliar lhes valeu o nome “atividades paramédicas”, que remete para um exercício profissional que gravita em torno do ato médico. Embora esta designação tenha caído em desuso com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 320/99, alguns autores insistem que o termo não perdeu o seu poder explicativo, porque: 1) estas áreas existem devido à evolução técnico-científica da medicina, e 2) a sua ligação é indissociável da medicina, uma vez que a base teórica (anatomia, fisiologia, patologia, etc., etc.) é a mesma, não incorporando uma tradição explicativa diferente da lógica médica (ao contrário das terapêuticas alternativas, que procuram explicar e “tratar” a doença por quadros de referência diferentes). Na génese destes grupos socioprofissionais, esteve uma progressiva delegação do trabalho médico ou protocolização de atos de trabalho que se tornaram delegáveis, o que significa que não são o resultado da construção de um campo de atividade autónomo, mas sim o resultado do desenvolvimento intrínseco do campo médico4, do qual foram herdados, transferidos ou mesmo recolhidos conhecimentos pelos TDT (saberes delegados, por oposição a saberes endógenos). Num serviço de Anatomia Patológica – que simultaneamente designa uma licenciatura em tecnologias da saúde e uma especialidade médica – exemplos claros são o exame macroscópico e o screening citológico, atividades que até há poucas décadas atrás eram realizadas exclusivamente por patologistas com diferenciação adequada. Estabelecido então que as ocupações socioprofissionais dos TDT tiveram origem no seio do conhecimento médico, alguns momentos temporais são de salientar na distinção e formalização destes grupos socioprofissionais9: 

Década de 1970: primeira legislação que regulamenta estas atividades (carreira de Técnico Auxiliar dos Serviços Complementares de Diagnóstico e Terapêutica). A “reforma Gonçalves Ferreira” (1971) introduz profundas modificações conceptuais e organizacionais, sendo reestruturados os serviços centrais, regionais, distritais e locais de saúde8,10–12.

(a) No caso da Anatomia Patológica, por exemplo, os procedimentos elaborados pelo técnico visam dar resposta a uma questão colocada, normalmente, por um médico assistente ou um cirurgião; porém, o produto final do trabalho dos técnicos não é remetido para o médico que requisitou o exame, mas sim para um patologista que integra a equipa de serviço. 2



Década de 1980: instituição de um novo sistema de credenciação ocupacional (Escolas Técnicas dos Serviços de Saúde), havendo, porém, manutenção de um lugar de subordinação técnica e social.



Década de 1990: publicação de legislação para regular estas ocupações, e não apenas a sua carreira. Investimento na autorregulação (poder organizacional emergente, mas estritamente tutelado4). Integração destas áreas no Ensino Superior Politécnico. Foi neste período que começou realmente o investimento na formação dos TDT (uma vez que as Escolas Técnicas não conferiam qualquer grau superior). Os novos enquadramentos legais deste período foram reforçados pela reforma curricular e esforço na formação científica.



Década de 2000: novo enquadramento do ensino das Tecnologias da Saúde (grau académico de licenciatura num formato de ensino bietápico) e reformulação curricular das componentes teórico-práticas da formação.

Embora posterior à regulação conseguida pelos médicos (sempre mais céleres na reivindicação do seu poder profissional) a partir de 1961, por iniciativa da Ordem dos Médicos e com aval de dois Ministros da Saúde e da Assistência12,13, é de salientar que a primeira regulamentação das carreiras dos futuros TDT precede a instituição do Sistema Nacional de Saúde em 1979, cujo propósito em assegurar cuidados de saúde equitativos à população portuguesa14 providenciou uma fortificação do papel do Estado na instituição de políticas de saúde. Tal como a inescapável origem na Medicina dificulta aos grupos socioprofissionais das tecnologias da saúde a sua autonomização da profissão médica, também a intervenção precoce do “Estado-providência”15 na definição do contexto profissional onde os TDT achariam enquadramento, representou um entrave a uma autorregulação paralela ao seu desenvolvimento profissional, em vez disso prevalecendo, até ao momento, um modelo de heteroregulação. Mesmo com um raio de ação limitado pela profissão médica e pela heteroregulação que lhes era exercida pelo Estado, estes grupos socioprofissionais conseguiram algum fechamento social – o “conjunto de estratégias desenvolvidas pelos grupos profissionais, visando alcançar e manter o monopólio da prática, e consequentemente, visando as prerrogativas sociais de autorregulação que tal monopólio pressupõe”9. As mais relevantes estratégias de fechamento social aplicadas por estes grupos socioprofissionais foram o investimento na especialização dos saberes e competências e a credenciação formal, que funcionam como mecanismo de interdição do exercício profissional a quem não detém as respetivas credenciais4. Contudo, terá isso resultado na conquista de autonomia profissional? Como já referido, estas estratégias, embora importantes na manutenção de um monopólio de mercado, não tiveram reflexo direto e linear no sentido de estabelecer a autonomização 3

destas áreas. Ainda que a autonomia não seja o único fator a definir uma profissão, é um aspecto importante e que não pode ser ignorado, referindo-se à capacidade, ou falta dela, de negociar politicamente aspectos vários de uma profissão. Para isso, seria importante concretizar uma Ordem profissional, na ausência da qual se está sujeito à inoperância do Estado sobre questões como a progressão de carreiras, especialmente no campo privado (se bem que o Estado permanece, a par de maior regulador, o maior empregador em Saúde9,16). Estes dois contextos situacionais (domínio científico e tecnológico e domínio das políticas públicas) têm assim grande peso na explicação de várias limitações das ocupações dos TDT. Mesmo considerando estas duas conjunturas, a breve cronologia apresentada leva-nos a reconhecer que se deram grandes alterações em muito pouco tempo, passando-se de uma ocupação estritamente auxiliar para uma formação enquadrada no Ensino Superior. Assim sendo, coloca-se a questão: porque é que ainda não há resultados tão satisfatórios como os desejados, nomeadamente a nível da profissionalização? Analisando os saberes profissionais enquanto recursos estratégicos para as trajetórias de fechamento social dos grupos ocupacionais, constata-se que o reforço de conhecimentos e competências não se tem traduzido, necessariamente, em reconhecimento dessas competências: o investimento em novos graus académicos não supera outros condicionalismos estruturais ligados à própria natureza dos saberes e à sua transformação em recursos de poder. Por outras palavras, os graus académicos são importantes, mas não chegam para ultrapassar o desfasamento profissional na saúde. Mas, porquê? É (cada vez mais) falacioso pensar que os técnicos só operam saberes técnicos e que os médicos detêm todos os saberes clínicos e científicos. De facto, os técnicos operam conhecimento técnico e tecnológico, mas têm capacidade para fazer a leitura crítica das suas próprias funções, que muito poucos outros profissionais são capazes de avaliar. Além disso, os médicos também têm trabalho rotinizado/automatizado. Há, porém, que considerar: em que proporção e com que visibilidade? O trabalho “técnico” dos médicos é oculto, enquanto o trabalho “técnico” dos técnicos é evidenciado, o que se traduz numa falsa dicotomia: “os técnicos são competentes na técnica e os médicos na clínica, e é tudo”. Uma das principais justificações para esta dicotomia pode ser encontrada nos conceitos de “saberes indeterminados” e “saberes técnicos”. Os primeiros, associados primariamente à profissão médica, estão «associados a uma matriz de especialização teórico-científica, da qual deriva uma componente interpretativa na articulação entre o abstrato e o concreto, e que confere um carácter casuístico às modalidades de operacionalização prática desses mesmo saberes»; já os segundos, atribuídos aos técnicos, «decorrem de um processo de codificação do conhecimento teórico-científico, que permite padronizar as modalidades da sua operacionalização nas situações concretas de trabalho»4. O desenvolvimento tecnológico, porque pode ser protocolizado, aumenta a ideia de trabalho padronizado, do qual é difícil 4

conseguir emancipação e entrada na vertente intelectual e analítica (sendo difícil a libertação desta ideia porque esta é uma base fundadora da identidade profissional dos técnicos). Os médicos, pelo contrário, têm quase total autonomia para agir fora de protocolos e guidelines, apenas porque são médicos e está-lhes prevista esta possibilidade. Posto doutra forma, os médicos têm alta discricionariedade (quase o oposto da padronização), ao contrário dos TDT, de quem é esperada observância total ou quase total de protocolos (baixa discricionariedade). Como já referido, não quer isto dizer que os técnicos não são dotados de saberes indeterminados, mas é notória a existência de discrepâncias entre os conhecimentos que a formação confere aos técnicos, e os saberes que estes têm oportunidade de efetivar nos seus quotidianos de trabalho (mantendo-se assim distinção entre trabalho de conceção e trabalho de execução)4: «as dimensões indeterminadas do trabalho, com maior apelo a competências teórico-interpretativas, mantêm-se formalmente no domínio da jurisdição médica». Contudo, considerando a integração dos TDT nas equipas de saúde no presente, dificilmente se encontrará alguém disposto a defender a ideia de que os serviços de saúde seriam concretizáveis sem a intervenção dos TDT, tal como seria inconcebível dizer que se poderiam prestar cuidados de saúde sem os saberes e competências dos médicos. A atuação dos TDT é de tal modo complexa que, se não forem este profissionais a desempenhá-la, dificilmente qualquer outra pessoa poderá fazê-lo (inclusive os médicos), mesmo sendo poucas as oportunidades para executar conhecimento indeterminado ou intelectual. Não é inevitável e obrigatório que as áreas das tecnologias da saúde estejam reféns do seu carácter técnico. No caso particular da Anatomia Patológica, ainda não tem grande peso a recuperação do discurso humanista que evoca “o doente do médico” e o “doente do técnico”; porém, a inserção desta especialidade num campo da Medicina onde, cada vez mais, a investigação é manifesta e urgentemente necessária, permite frisar que o conhecimento médico, científico e tecnológico se tem expandido inexoravelmente, continuando longe de responder às necessidades atuais. Não parece descabido assumir que os profissionais médicos serão insuficientes para desempenhar o papel de detentores exclusivos de tão grande volume de conhecimento; e assim sendo, é razoável assumir que uma

crescente

insubstituibilidade

do

profissional

técnico

venha

a

aumentar

a

discricionariedade da sua Profissão. O passado, o presente e o porvir conjugam-se continuamente em linhas de ação intertemporais, de cuja interação os resultados já são notórios: já hoje nos encontramos perante uma nova articulação interprofissional, onde a interdependência é cada vez mais patente, ainda que, saliente-se, (ainda) não altere a estrutura da hierarquia profissional. Não obstante, esta é uma nova conjuntura que certamente terá o seu peso no processo de profissionalização dos técnicos de diagnóstico e terapêutica, e que muito provavelmente será poderá ser alvo do escrutínio de dissertações semelhantes à presente, num futuro que se quer não muito distante. 5

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