Estratégias e Segurança dos Estados Unidos da América na Relação Transatlântica: a concertação necessária

May 26, 2017 | Autor: P. Pereira de Alm... | Categoria: International Security
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Estratégias e Segurança dos Estados Unidos da América na Relação Transatlântica: a concertação necessária PAULO PEREIRA DE ALMEIDA – Professor Universitário

A visão da relação transatlântica – ou seja, a relação histórica, cultural, económica e social que une os Estados Unidos da América aos outros países democráticos do Atlântico – foi, na segunda metade da década de 2000, significativamente marcada pela guerra no Iraque e pela atitude da Administração de George Bush (filho) nessa crise, em particular em relação à chamada comunidade internacional. Mas a verdade é que uma tal percepção das relações internacionais não pode – nem deve – obnubilar um processo de construção de uma aliança com quase 100 anos de história, uma aposta na qual o Partido Democrata norte-americano continua empenhado desde o início da década de 2000. Veja-se, por exemplo, o conceito de “realismo democrático” (democratic realism) que – nas palavras de Will Marshall, Presidente do Progressive Policy Institute, um Think-tank ligado aos democratas – deve equilibrar a utilização do poderio militar norte-americano com uma acção diplomática eficaz.

A relação transatlântica: uma construção lenta, com hesitações Ab initio a relação dos Estados Unidos da América com a Europa ficou marcada por alguma dualidade. A Europa, recorde-se, foi simultaneamente a sua “colonizadora” e, mais tarde, a sua “libertadora” tendo sido Portugal um dos primeiros países a reconhecer o estatuto de País independente aos EUA. Um facto, saliente-se, a que não foi alheia a amizade do Abade Correia da Serra com Thomas Jefferson, o terceiro

presidente

dos

Estados

Unidos

da

América,

que

o

convidava

frequentemente a juntar-se à família na sua residência de Monticello, no Estado da Virgínia. Contudo, não foi seguramente este facto peculiar da história dos dois países – ocorrido no já longínquo início do século XIX – que marcaria as relações transatlânticas. Por isso mesmo, importa avançar até ao início do século XX e relembrar que o debate sobre o papel dos EUA na política externa e nas relações internacionais era, já na altura, aceso e controverso.

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A este propósito vale a pena acompanhar-se o raciocínio de James Lindsay e Ivo Daalder (em América Unbound: the Bush revolution in foreign policy, obra de 2003) que evocam um facto incontroverso: a relação da América com a Europa permaneceu sempre como um dos principais tópicos das Presidências NorteAmericana. E se a guerra hispano-americana de 1898 forneceu um dos primeiros pretextos para os EUA intervirem de forma armada fora do seu território, quando Woodrow Wilson assumiu a Presidência em 1913 foi confrontado com uma sucessão de acontecimentos que, a seu tempo, vieram a dar razão aos chamados “internacionalistas” e a retirá-la aos seus opositores políticos, os chamados “isolacionistas”. Wilson acreditava no carácter “excepcional” da democracia norteamericana e na sua linha de desenvolvimento nacional: o então Presidente confiava seriamente na democracia enquanto sistema político capaz de trazer a paz e a prosperidade aos povos. E também não deve, portanto, esquecer-se o papel de Woodrow Wilson na construção, ainda que perene, da Aliança Transatlântica. Eleito Presidente dos Estados Unidos da América por duas vezes seguidas (de 1912 a 1921), Woodrow Wilson foi Prémio Nobel da Paz em 1919, tendo fundado nesse mesmo ano a Sociedade das Nações, criada pelo Tratado de Versalhes em 28 de Julho. Com a II Guerra Mundial a Europa mergulhou, de novo, num período negro da sua história, do qual saiu devastada, embora livre. Assim, e curiosamente, os EUA viram-se emergir como a única nação a dominar o mundo, mas o sentimento dos “isolacionistas” em Washington era relativamente simples: bring the boys back one and go on with a normal life (James Lindsay e Ivo Daalder, América Unbound: the Bush revolution in foreign policy, 2003). Contudo, as vozes dos internacionalistas não deixaram de se fazer ouvir, e foi ao Presidente Harry Truman que coube a tarefa de (re)definir a doutrina de segurança dos EUA. Num célebre discurso de 1947, e perante o Congresso, Truman identificou claramente a posição norteamericana, afirmando categoricamente ser um dever dos Estados Unidos apoiar os povos livres que fossem vítimas de quaisquer tentativas de pressão ou de submissão não democrática. E foi também – importa recordá-lo sem complexos – na saída de uma situação de deserto económico e de caos social no final da II Guerra Mundial que a Europa pôde contar com a “mão amiga” dos EUA. O então presidente dos Estados Unidos da América, Franklin Roosevelt, sugeriu o nome de “Nações Unidas” para a formação de uma comunidade de povos livres, e a

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25 de Abril de 1945 celebrou-se a primeira conferência em São Francisco. Mas, como é da História Mundial, os apoios dos EUA foram mais além e, perante a fragilidade das nações europeias depois desta guerra violenta, o então Secretário de Estado dos EUA George Marshall propôs a criação de um amplo plano económico – o famoso Plano Marshall – que possibilitou a reconstrução da Europa Ocidental e, paralelamente, afastou a ameaça comunismo. Depois, e quando os norte americanos e os países europeus – incluindo Portugal – fundaram a NATO não tiveram, logo à partida, uma formula mágica para conter a União Soviética. Mas tiveram o bom senso de, com base numa percepção de ameaça comum, desenvolver os mecanismos de cooperação necessários à identificação de uma resposta a essa ameaça. À distância de mais de meio século, esses mecanismos foram eficazes e cumpriram plenamente a sua função. Contudo, a verdade é que as relações entre a Alemanha, a Grã-Bretanha e a França, as três principais potências europeias, se transformaram consideravelmente depois do fim da II Guerra Mundial, sendo que a queda do muro de Berlim em 1989 (também chamada o 11/9, por oposição ao 9/11) e o fim do bloco comunista tiveram repercussões relevantes na relação interna entre os países europeus e, mutatis mutandis, na geopolítica internacional.

A relação transatlântica: entre um indesejável conflito e uma concertação necessária Isso não impediu, naturalmente, que um dia após os atentados de 11 de Setembro, a NATO reafirmasse a solidariedade transatlântica e agisse em defesa de um aliado invocando, pela primeira e única vez na sua história, o artigo V do Tratado de Washington (activando assim o sistema transatlântico de defesa colectiva). No fundo, trata-se de um tipo idêntico de desafio que no século passado, só que agora com outros actores e um cenário internacional diferente. E se hoje em dia os riscos e as ameaças – donde se destacam o terrorismo e a proliferação de armas com grande capacidade de destruição – continuam a ser comuns à Europa e aos Estados Unidos, importará então identificar, desenvolver e executar respostas também elas comuns. Foi tendo em mente esta necessidade de encontro de plataformas de entendimento que – entre 2004 e 2005 – se multiplicaram as iniciativas para evitar um indesejável conflito de visões entre os Estados Unidos da América e a Europa,

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procurando uma via de concertação de posições e de estratégias. Tudo isto, note-se bem, num momento em que o Transatlantic Trends 2005, projecto do The German Marshall Fund of the United States e da Compagnia di San Paolo de Turim, Itália, com o apoio da Fundação Luso-Americana (Portugal) e da Fundación BBVA (Espanha) – e cujo objectivo é medir a opinião pública nos Estados Unidos e em 10 países europeus, avaliando o estado das relações transatlânticas – constatava que 72% dos europeus não aprovavam a forma como o Presidente Bush estava a conduzir as políticas internacionais. Além disso, e numa escala de 0 a 100, a simpatia em relação aos Estados Unidos mantinha-se em 50 valores (51 em 2004) mas, por outro lado, os americanos continuavam a desejar um estreitamento das relações com a União Europeia e uma forte liderança da UE nos assuntos mundiais. Foi justamente neste contexto que surgiu o “Compacto entre os Estados Unidos e a Europa” (Compact Between the United States and Europe) um documento que mereceu relativamente pouca atenção mediática mas que, em nosso entender, não se esgota no período em que foi publicado, ou seja, na semana que antecedeu a visita de 22 a 24 de Fevereiro de 2005 do Presidente George W. Bush à Europa. E o Compacto – um documento de 11 páginas assinado por mais de 50 reconhecidos especialistas em política externa e políticas de segurança – inicia justamente com uma ideia de força: a de que é possível aos EUA e à Europa encontrar uma estratégia de segurança comum para lidar com as ameaças globais que ambos enfrentam. "The partnership between Europe and the United States must endure because our common future depends on it" pode ler-se no preâmbulo. Além disso, o Compacto apresentava ainda propostas muito concretas em matérias mais delicadas na relação transatlântica tradicional, das quais se podem destacar cinco que nos parecem essenciais no actual momento político: - Sobre o Iraque: os Estados Unidos iniciarão um diálogo estratégico com os seus aliados europeus sobre o futuro do Iraque através de um novo grupo de contacto. A União Europeia (UE) compromete-se a treinar 5.000 funcionários civis seniores e 25.000 elementos das forças iraquianas de segurança e da polícia por ano. A UE concederá $1 bilião de dólares em fundos do reconstrução e perdoará 50% da divida externa iraquiana. - Sobre o Irão: os Estados Unidos e a UE insistirão para que o Irão termine definitivamente o seu programa para produção de combustível nuclear. Os Estados

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Unidos declaram o seu apoio ao diálogo nuclear da UE mas os países da União devem declarar a sua prontidão para impor sanções significativas se o Irão recusar uma paragem no seu Programa Nuclear ou se retirar do Tratado de NãoProliferação Nuclear (NPT - Non Proliferation Treaty). - Sobre a China: a UE declara que se levantar o seu embargo ao fornecimento de armas à China, substituirá esse embargo com um código de conduta reforçado em matéria de venda de armas, incluindo tecnologias de dualuse com aplicações militares significativas. A UE convidará os Estados Unidos, Japão, e outros actores relevantes para fornecer uma lista específica das armas e das tecnologias que consideram que afectariam negativamente a segurança e a estabilidade na região. Os Estados Unidos reiteram a sua oposição no levantamento ao embargo de armas, mas conter-se-ão no que respeito a uma acção mais firme se essas medidas não forem violadas. - Sobre o Tribunal Penal Internacional (TPI): os Estados Unidos reafirmam as suas preocupações acerca da jurisdição do TPI, mas não imporão medidas punitivas a qualquer país que reconheça e sustente o TPI. A UE e os EUA participarão num acordo sob o artigo 98º do Tratado do TPI que fornece imunidade aos oficiais dos Estados Unidos e ao pessoal militar que agem em missão oficial. Os Estados Unidos não se devem opor a uma consulta ao Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre a situação em Darfur, no Sudão. E, por fim, - Sobre as Convenções de Genebra: os Estados Unidos e os países da UE aplicarão as Convenções de Genebra a todos os combatentes que capturarem na guerra contra o terrorismo, incluindo os prisioneiros capturados no Afeganistão e que estão presos na baía de Guantanamo. Existem, seguramente, outras matérias de notável interesse para o futuro da relação transatlântica, como será o caso das que foram destacadas por Robert Zoellick num relatório da Trilateral Commision, datado de 1999 e intitulado 21st Century Strategies of the Trilateral Countries, ou ainda das que o relatório de uma Task Force independente do Council on Foreign Relations – sugestivamente intitulado Renewing the Atlantic Partnership e datado de 2004 – dão conta. Mas a verdade é que em todas elas se pode ler uma vontade (não apenas aparente, mas seguramente real) para dar continuidade a uma relação de amizade e de partilha

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de valores fraternos e democráticos. Afinal, tem sido esta a suportar a liberdade durante o século XX; não há, pois, razão para que não continue no século XXI… Lisboa, 31 de Maio de 2006

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