Estrutura e coerência atonal no primeiro movimento da Segunda Sonata para violino e piano de José Siqueira

July 25, 2017 | Autor: Liduino Pitombeira | Categoria: Music analysis
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XX Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música - Florianópolis - 2010

Estrutura e coerência atonal no primeiro movimento da Segunda Sonata para violino e piano de José Siqueira Renata Simões Borges da Fonseca Universidade Federal da Paraíba – [email protected]

Liduino José Pitombeira de Oliveira Universidade Federal de Campina Grande/ PPGM-UFPB – [email protected] Resumo: A Segunda Sonata para violino e piano de José Siqueira foi composta com base em um sistema composicional desenvolvido por ele, denominado Sistema Trimodal. Neste artigo, buscase examinar a coerência estrutural do primeiro movimento dessa obra a partir da teoria dos conjuntos de classes de notas. Após uma breve fundamentação histórico-musicológica, o primeiro movimento da obra é analisado em seus aspectos macro- e micro-estruturais com o objetivo de detectar elementos fundamentais. Palavras-chave: Sistema trimodal, José Siqueira, Segunda Sonata para violino e piano, Teoria dos conjuntos.

1. Introdução José de Lima Siqueira (1907-1985), compositor nacionalista (MARIZ, 2000, p.271-276), foi um estudioso da música do Nordeste do Brasil, dedicando-se quase que exclusivamente a ela em suas obras. Compôs várias obras para violino incluindo um concerto, duas sonatas para violino e piano e diversas peças avulsas. Sua Segunda Sonata para violino e piano, cujo primeiro movimento é objeto de nosso estudo, foi composta no ano de 1952 e faz parte de um conjunto de obras estruturadas a partir de um sistema composicional criado pelo próprio Siqueira, ao qual deu o nome de Trimodal. 2. A herança nordestina Paraibano de Conceição do Piancó, Siqueira teve sua vida marcada pela luta em prol da valorização e divulgação da música e dos músicos brasileiros. O clima cultural da Região Nordeste foi o primeiro palco do aprendizado musical de Siqueira, deixando-lhe profundas marcas. Como ressalta Vieira, a forte herança cultural nordestina acompanhará Siqueira que procurou encontrar e divisar caminhos técnicos para aplicar, na composição musical, os materiais de procedência popular ou folclórica, isto é, manter adubado o solo do nacionalismo. Mais tarde chegará ao sul do país e se tornará um importante representante do nacionalismo, utilizando amplamente na sua obra, recursos da cultura popular nordestina (VIEIRA, 2006, p.20)

Conceição também deixou em Siqueira outras marcas: esta cidade era rota de cangaceiros, tendo vivido o menino José em contato com esse grupo. Em um Brasil nacionalista, José Siqueira encontra seu estilo na tradição oral nordestina. Seu nacionalismo, como ele próprio diz, segue duas linhas estéticas: a do nacionalismo folclórico e a do nacionalismo essencial. No primeiro, utiliza elementos puros do folclore, com citações

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literais, e no segundo o folclore serve apenas como fonte de inspiração, dando à música uma sensação de brasilidade (CAVALCANTE FILHO, 2004, p. 26-28). Seguidor dos ideais do início do século XX, Siqueira busca em suas obras, além de um sentido brasileiro, a quebra dos padrões tradicionais da música tonal, e o faz através de uma forma de compor inovadora baseada nas escalas existentes no folclore nordestino e suas combinações. Isso é o que ele defende em seu livro O Sistema Modal na Música Folclórica Brasileira. 3. O Sistema Trimodal Segundo Vieira, “O Sistema trimodal brasileiro lançado originalmente em 1946, está vinculado às pesquisas para composição empreitadas por Siqueira no nordeste brasileiro”. (VIEIRA, 2006, p. 32). Siqueira, ao se referir à Região Nordeste em seu livro O Sistema Modal na música Folclórica do Brasil, ressalta que Observa-se, naquela região do Brasil, quer no Folclore vocal, quer no instrumental, a constância de três modos diferentes, de quantos existem no Universo. Esses modos, usados sistematicamente, dão, à melodia, uma cor própria, alterando, por inteiro, o sistema harmônico, base da tonalidade moderna em que se apóia a música erudita, desde o século XVII. A Harmonia utilizada, tomando por base êsses novos modos, nos transportará ao atonalismo, sem recorrer a processos violentos, às vezes inaceitáveis, comuns a certos sistemas, ora em voga. Não tenho a pretensão de haver criado algo novo, nem de desfazer o que existe de concreto sobre a matéria. O que fiz foi apenas ordenar o emprego desses três modos brasileiros, tão comuns dos povos do Nordeste, a quem presto esta singela homenagem, ao mesmo tempo em que espero haver contribuído para a fixação de algumas normas que serão definitivas à formação da Música Brasileira. (SIQUEIRA, 1981, p.1/2, grifos do autor)

Figura 1. Modos reais e derivados do Sistema Trimodal de Siqueira

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Mais adiante ele coloca que este sistema “destruiu por completo o princípio da Tonalidade Clássica” (SIQUEIRA, 1981, p. 9) e sugere que os conceitos da linguagem tonal sejam modificados. Passa então a adotar uma estrutura modal constituída de três modos reais e três modos derivados. Os modos derivados têm o âmbito situado uma terça menor abaixo. Esses seis modos foram a base composicional nas obras de Siqueira (Figura 1). Siqueira era um forte opositor do movimento Música Viva. Mesmo afirmando que não tinha pretensão de criar algo novo, torna-se claro, por suas palavras, que pretendia mostrar a possibilidade de ter uma linguagem própria dentro do movimento musical contemporâneo, cujo expoente no Brasil era Koellreutter, sem tender, como este, à prática do dodecafonismo. Acredita-se que Siqueira busca unir atonalismo e nacionalismo através de seu Sistema Trimodal. A Segunda Sonata para violino pertence justamente a essa fase de Siqueira. Parte de sua partitura, inclusive, encontra-se no livro O Sistema Modal na Música Folclórica Brasileira como demonstração prática de uma obra em que ele emprega seu Sistema. No entanto, embora se saiba que Siqueira usou nessa obra o Sistema Trimodal e seria talvez mais adequado analisá-la à luz desse sistema, procuraremos desvendar sua estrutura com base na teoria dos conjuntos de classes de notas de Allen Forte, que é uma ferramenta analítica utilizada no estudo de obras pós-tonais. Com isso poderemos perceber a potencionalidade do Sistema Trimodal em criar estruturas atonais coerentes. O ato de ver a obra sob outra perspectiva, independente da intenção do autor, nos permitirá apreciar outros níveis do trabalho ou, como diz Vieira, “há de se ter em mente que diferentes métodos de análise esclarecem facetas diversas de uma mesma obra” (VIEIRA, 2006, p.46). 4. Macro-estrutura do primeiro movimento A Segunda Sonata para violino e piano de José Siqueira é uma obra em três movimentos (Allegro brillante, Andantino com sentimento e Allegro vivo). Analisaremos aqui apenas o primeiro deles, com 150 compassos, que tem a estrutura de uma forma sonata (Tabela 1). A exposição, com 67 compassos, é articulada em seis unidades estruturais. A primeira (a1) expõe o tema A no violino, com intervenções cromáticas pontuais do piano, seguida da segunda (a2), onde o tema aparece no piano em uníssono com o violino. O material temático de A tem centricidade em Lá, que é uma classe de nota saliente, considerando-se os critérios de registro (grave e agudo) e número de ocorrências, como será detalhado adiante; a terceira unidade estrutural (a3) funciona como uma transição entre o primeiro e o segundo tema. A quarta unidade estrutural (b1) expõe o tema B no piano, seguida de b2, que mostra o mesmo material no violino. A exposição conclui com uma codeta (b3),

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que leva ao desenvolvimento. A centricidade de B é a classe de nota Dó. O desenvolvimento é articulado em 56 compassos e pode ser dividido em três unidades estruturais: a primeira desenvolve basicamente os materiais apresentados no primeiro tema com centricidades diferentes da original (Lá), a segunda funciona como uma espécie de conector, apresentando resíduos de material do primeiro tema, e a terceira sobrepõe os materiais do primeiro e segundo temas (o primeiro no violino e o segundo no piano) dando finalmente lugar à reexposição. Essa seção final, com 27 compassos, reexpõe os temas principais de maneira invertida (iniciando com o segundo tema no violino) e com alteração na centricidade do tema B para Mi. Detalharemos, a seguir, alguns aspectos micro-estruturais da obra.

Tabela 1. Estrutura do primeiro movimento da Segunda Sonata para Violino de Siqueira

5. Alguns aspectos micro-estruturais Como foi mencionado, a obra se inicia com a exposição do primeiro tema no violino e o piano realizando apenas três pequenas intervenções: o ataque inicial com Lá em oitavas e duas células cromáticas (012) de caráter imitativo. Como pode ser observado na Figura 2, esse primeiro tema utiliza todas as 12 notas da escala cromática, com repetições, e enfatiza as classes intervalares 1, 2, 3, 4, já que é quase totalmente construído a partir dos intervalos de 2ª maior e menor e de 3ª maior e menor. A classe de nota Lá tem o maior número de ocorrências e é utilizada no registro mais grave da passagem. Esses dois fatores garantem uma centricidade em torno dessa classe de nota.

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Figura 2. Tema A

Ainda sobre o primeiro tema, podemos perceber, ao agruparmos as classes de notas de forma contígua, uma grande ocorrência das classes 013 e 014, que constantemente se intercalam. Outras classes que aparecem nesse primeiro tema são o 036 (usado no momento em que aparece o trítono) e o 016, formado pelas notas inicial, central e final, emoldurando, portanto, todo o tema A. Além dessas classes de conjuntos, podemos encontrar ocorrências de 025, 015 e 037, que terão sua importância na composição de outras partes desse movimento. Siqueira usa nesse movimento alguns elementos próprios do tonalismo como melodias (no sentido tradicional do termo), centros de referência sonora (Lá, Dó e Mi) e ainda tríades que, por momentos, se conectam funcionalmente. Mas todos esses elementos são suficientemente frágeis para que possamos classificar essa obra como tonal. Na unidade estrutural transicional (a2) ocorre ênfase no intervalo de trítono, introduzido no final do primeiro tema. É importante ressaltar o aparecimento da classe de conjuntos 026, que será bastante importante no desenvolvimento. A exposição do tema B se inicia no compasso 30. Também nesse tema José Siqueira utiliza as doze notas da escala cromática e enfatiza as classes intervalares 1, 2 e 3 pelo uso de intervalos de 2ª, 3ª, 6ª e 7ª.

Figura 3. Início do tema B

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O segundo tema é apresentado primeiramente no piano e, sob o ponto de vista de classes de notas, suas sete ocorrências iniciais (Mi-Sol-Lá-Si-Lá-Sol-Mi) formam um palíndrome com simetria em torno do trítono Mi-Si. Simultaneamente, o acompanhamento do violino enfatiza o intervalo de 2ª maior (gesto inicial da obra) e logo depois o de 2ª menor para formar um conjunto de forma prima 012 (Dó-Ré-Ré). Esses dois elementos ocorrem sobre uma base feita pela mão esquerda do piano com as notas Dó-Sol, o que garante uma centricidade na classe de nota Dó. Esse movimento de quintas e quartas é rapidamente dissipado e dá lugar, mais a frente, a uma escala cromática incompleta (como uma expansão temporal da classe de conjuntos 012). O segundo tema é apresentado em seguida pelo violino e o piano realiza um acompanhamento que confirma a centricidade em Dó. Observa-se, no final da exposição uma ênfase na classe de conjuntos 014, mais especificamente nas classes de notas Ré-Dó-Fá, que aparecem nos dois últimos compassos no violino, e que, juntamente com tétrades de Dó maior com sétima e nona executadas pelo piano, realizam a transição para o desenvolvimento. Pode-se dizer que o desenvolvimento tem como característica marcante o uso de tríades maiores e menores que, introduzidas já no final da seção anterior, permeiam o desenvolvimento se conectando funcionalmente. Essa característica vai aos poucos se dissipando até que as tríades passam a ser acordes sem nenhuma conexão funcional. É interessante notar que as tríades têm forma prima 037, presente no primeiro tema e que ainda não tinha tido sua importância no movimento. Outra característica específica do desenvolvimento é uma modificação na textura, que fica, em alguns pontos, momentaneamente mais densa. A reexposição inicia com tema B em uma atmosfera tonal de Mi Maior, claramente sugerida pelo movimento arpejado do piano na mão esquerda (isso acontece durante seis compassos). Logo em seguida, no compasso 130, o movimento arpejado passa a estabelecer a tonalidade de Ré Maior, o que continua por quatro compassos. Finalmente, no compasso 134, perde-se a sensação de tonalidade em um arpejo de Mib aumentado com sétima menor (sonoridade de tons inteiros) que atua como um ostinato de ligação para a reexposição do tema A. A reexposição do primeiro tema inicia com a retomada literal de a1’, isto é, com o tema tocado em uníssono pelo violino e pelo piano, mas esta retomada é interrompida antes de sua conclusão integral. Um novo bloco em uníssono dos dois instrumentos finaliza a reexposição de A, alterando, no entanto, o movimento em direção ao Ré, que agora se faz de

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forma descendente. O movimento termina com com a nota Lá tocada em oitavas por ambos os instrumentos. 6. Conclusão Segundo Straus, um compositor pode unificar uma composição pelo uso de um conjunto de classes de notas (ou um pequeno número de diferentes conjuntos de classes de notas) como uma unidade estrutural básica. Ao mesmo tempo, ele pode criar uma superfície musical variada pela transformação daquela unidade básica de diferentes maneiras. Quando ouvimos ou analisamos música, procuramos por coerência. Numa grande quantidade de música pós-tonal, a coerência é garantida pelo uso de conjuntos de classes de notas. (STRAUS, 2000, p. 30)

Assim, podemos concluir que é possível encontrar coerência e unidade na estrutura interna do primeiro movimento da Segunda Sonata para violino e piano de José Siqueira através de uma análise a partir da teoria dos conjuntos de classes de notas. Essa coerência se dá pela recorrência, durante todo o movimento, dos conjuntos estabelecidos logo na melodia do primeiro tema, tornando-se cada um deles um elemento estrutural importante em uma ou mais seções do movimento. Destacamos dois importantes elementos unificadores usados por Siqueira no movimento: o intervalo de trítono e a classe de conjuntos 012 (utilizados pelo compositor em todas as seções), ambas sonoridades características da música pós-tonal do início do século XX. A hierarquização de algumas classes de conjuntos (como o 014 no tema A) também garantem coerência composicional à obra. Referências: CAVALCANTE FILHO, José Moura. As múltiplas facetas de José Siqueira e suas orientações estéticas com base no seu primeiro concerto para piano e orquestra. Dissertação (Mestrado em Música) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004. MARIZ, Vasco. História da Música no Brasil. 5.ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. SIQUEIRA, José de Lima. Sistema modal na música folclórica do Brasil. João Pessoa: Secretaria de Educação e Cultura, 1981. STRAUS, Joseph N. Introduction to Post-Tonal Theory, 2nd Ed. Upper Saddle River: Prentice Hall, 2000. VIEIRA, Josélia Ramalho. José Siqueira e a “Suíte Sertaneja para Violoncelo e Piano” sob a Ótica Tripartite. Dissertação (Mestrado em Práticas Interpretativas – piano) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2006.

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