Estrutura sacrificial no Israel Antigo: um diálogo entre a Antropologia e a Teologia

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DIOGO VERCELINO DA HORA


















A ESTRUTURA SACRIFICIAL NO ISRAEL ANTIGO: UM DIÁLOGO ENTRE A ANTROPOLOGIA E A TEOLOGIA




Trabalho de monografia apresentado como requisito final da disciplina História e Sociedade do Israel Antigo, ministrada pelo professor Lucas Merlo, do curso de Bacharel em Teologia, da Faculdade Teológica Batista de São Paulo.
















SÃO PAULO
2012
UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA DO SACRIFÍCIO
A questão do sacrifício percorre todo o período do Israel Antigo. Desde Abraão até os profetas do exílio, o sacrifício aparece como elemento fundamental do culto no Antigo Testamento. Entretanto o sacrifício não é uma exclusividade do povo de Israel ou da lei judaica. Em muitas outras culturas, de toda parte do mundo, o sacrifício aparece de formas distintas, com suas peculiaridades. Este trabalho visa uma tentativa de leitura do sacrifício do Israel Antigo, em sentido amplo, a partir de uma análise antropológica da questão do sacrifício.
Adota-se aqui como base para esta análise o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, considerado internacionalmente um dos principais estudiosos das etnias brasileiras. De sua ampla obra, o ensaio denominado "Xamanismo e sacrifício" é interessante para a proposta deste trabalho. Neste ensaio, Viveiros de Castro visa uma breve evocação, como ele mesmo define, do conceito de sacrifício, o qual ele está tão habituado a lidar em seus estudos e experiências com a etnografia tupi-guarani, mais especificamente os Araweté da Amazônia oriental.
Viveiros de Castro parte de uma perspectiva onde a noção de sacrifício nesses povos amazônicos é muito mais relacionada a um discurso escatológico do que as leituras tradicionais, que relacionam com o xamanismo. Nesta perspectiva, Viveiros de Castro entende que a condição sobrenatural não era o mais importante no sacrifício, mas sim uma translação de perspectivas, onde o sobrenatural é apenas uma delas. Em outras palavras, o sacrifício age como um modificador da natureza dos elementos envolvidos no sacrifício através de uma transmutação. O sacrificador e a vítima se confundem em uma zona de indiscernibilidade criada pelo sacrifício para, então, serem capazes de se diferenciar.
Dentro destes parâmetros, viveiros de Castro denomina de "perspectivismo" a semelhança entre o sacrificador e a vítima, onde cada um se identifica como indivíduo e o outro como não-indivíduo. É nesta questão que Viveiros de Castro define e difere o xamã e o sacerdote. Enquanto o xamã é, ao mesmo tempo, o sacrificador e a vítima, conseguindo exercer em si mesmo as duas perspectivas envolvidas da relação sacrificial, o sacerdote a exterioriza. No contexto amazônico, o xamanismo tem dois eixos de transformação: o horizontal, que impede a confluência do poder político e a potência cósmica, passando por uma transformação profética; e o vertical é fruto de uma sociedade hierarquizada e pacífica, onde o sistema sacrificial sofre uma institucionalização e o xamanismo passa por uma transformação sacerdotal. Para Viveiro de Castro, a instituição do sacrifício é a captura do xamanismo pelo Estado.
Tendo considerado a exposição geral do trabalho de Viveiro de Castro, cabe realçar o que é válido à avaliação do sacrifício no Israel Antigo. Viveiros de Castro introduz o sacrifício como um conceito, mas não um conceito homogêneo. Ele se mostra múltiplo, amplo, através de uma estrutura com características que, quando correspondidas por algum modelo, pode enquadrá-las em si. O sacrifício se torna, na visão de Viveiros de Castro, algo mais subjetivo do que a simples prática de sacrificar. Neste sistema que ele estrutura, a prática é apenas o ápice. Enquanto estrutura sistemática, o sacrifício deve, então, ser instituído pela institucionalização de suas potencialidades através do Estado. Nestes âmbitos, Eduardo Viveiros de Castro excede os parâmetros analíticos do sacrifício, conformando-o em uma verdadeira estrutura sacrificial. É este o quesito adotado neste trabalho para análise da instituição do sacrifício no Israel Antigo.
Antes disso, ainda é preciso notar a pretensão de Viveiros de Castro ao analisar e estruturar o sacrifício. Ele deu os primeiros passos para uma generalização do sacrifício de forma semelhante ao que Levi-Strauss fez com o totemismo (em "O totemismo hoje"). Assim, ele visa dissolver este conceito para ser aplicado a uma esfera de análise muito maior do que a limitação atual dada, sobretudo, pelo xamanismo. Como Viveiros de Castro mesmo diz, o totemismo "deixou de ser visto como uma instituição, e passou a um método de classificação e um sistema de significação". Em ltima instância, seu objetivo acerca da estrutura sacrificial é impedido justamente por causa de sua institucionalização atual.

A ESTRUTURA SACRIFICIAL NO ISRAEL ANTIGO
Como já foi dito, o sacrifício ocupa lugar fundamental no culto do Israel Antigo, sendo seu ato principal. Os parâmetros e instruções melhor definidos acerca do sacrifício são encontrados em Lv 1-7. Este código sacrificial de caráter legislativo é o código que vigorará até mesmo no período do Segundo Templo, sendo seguido desde sua instituição no deserto por Moisés. Este é um cenário de prática sacrificial a muito institucionalizado e dinâmico que, segundo a Teoria Crítica, teria se desenvolvido ao longo da História de Israel. Tem-se assim, uma estrutura sacrificial institucionalizada por um Estado que se fortalece com o passar dos séculos.
As formas de sacrifício no Israel Antigo são diversas e variadas em suas peculiaridades, de forma que se propõe, a princípio, uma análise segmentada de cada uma delas. A primeira delas é o holocausto, cuja característica é que a vítima é queimada e que nada sobra para o ofertante nem para o sacerdote. Tanto a vítima quanto o ofertante precisam estar em estado de pureza – no caso da vítima, considera-se sua perfeição. Nota-se a imposição de mãos no momento do sacrifício e a degolação feita por parte do ofertante e não do sacerdote. Este apenas conclui o ritual sobre o altar. A boa prática deste sacrifício acarretava no antropomorfismo da sentença "cheiro agradável a Iahvé".
Talvez esta forma de sacrifício seja a mais próxima da qual Eduardo Viveiros de Castro trabalho no contexto amazônico, isto é, destruição total da vítima. A própria descrição do ritual já abre possibilidades para o diálogo com a estrutura sacrificial definida pelo antropólogo em questão. A começar pela imposição de mãos, que como Roland de Vaux define:
"não é um gesto mágico que estabelece um contato entre Deus e o homem, não é tampouco o símbolo de uma substituição do ofertante pela vítima de quem ela tomaria os pecados para os expiar; (...) tampouco uma simples manumissio, um abandono da vítima a Deus, ela é a atestação solene de que esta vítima vem dele, ofertante, que o sacrifício que vai ser apresentado pelo sacerdote é oferecido em seu nome e que os frutos serão dele."
A imposição de mãos não mostra a substituição ou assimilação da vítima pelo sacrificador, mas sim a indistinção dos dois perante Deus, uma vez que a vítima passa a representar o ofertante para, então, identificar o que lhe é próprio, isto é, os frutos do sacrifício. Confunde-se para então diferenciar. A necessidade de pureza ritual, tanto do ofertante quanto da vítima, apresenta uma necessidade de adequação com o receptor do sacrifício, o qual, no momento do rito, sofre antropomorfização, marcado pela reação que se confunde com a reação do ofertante, isto é, o cheiro decorrente da queima se torna algo propício ao ofertante e ao receptor. É notável que somente a boa prática deste ritual de sacrifício gera o antropomorfismo.
Outro tipo de sacrifício, o de comunhão, se mostra ainda mais propício a este tipo de análise. Seu traço característico é que a vítima é repartida entre Deus, o sacerdote e o ofertante, que a come como uma coisa santa. A imposição de mãos, a degola e o trabalho do sacerdote sobre o altar são feitos como no holocausto. Cada dos aprticipantes tem uma parte específica e pré-determinada da vítima. Dentre estes detalhes, é curioso notar a interação dos participantes. A vítima não precisa mais ser perfeita, são aceitos defeitos menores e fêmeas, indicando uma concessão divina ao estado humano do ofertante. O ofertante, por sua vez, consome sua parte como algo divino, repartindo-o com sua família e convidados, conquanto todos estejam em estado de pureza ritual. A zona de indiscernibilidade aqui se torna mais clara e mais ampla, demonstrando um esforço não apenas do sacrificador, mas também do receptor – considerando a instrução do ritual como lei divina – para o sacrifício ser efetivo, gerando a confusão e subsequente distinção, a qual se mostra enfática na repartição da vítima.
Os sacrifícios expiatórios, divididos em sacrifício pelo pecado – em prol do povo ou do sumo sacerdote – e sacrifício de reparação – em prol de um indivíduo –, acrescentam a noção de interação entre os participantes do ritual de sacrifício. No caso do sacrifício pelo pecado do sumo sacerdote, tal ritual funciona como um preparativo do sacerdote a executar o sacrifício pelo pecado do povo. Nota-se, então a participação maior do sacerdote como intermediário e elemento institucional no sacrifício – visto que se considera um povo definido – além de elementos que ressaltam as figuras do ofertante e do receptor. No caso do ofertante, este é o único caso de sacrifício de animais em que alguma coisa da vítima é levada para o interior do Templo. Considerando-se a representatividade do ofertante pela vítima, tem-se uma intensificação de sua participação. No caso do receptor, é notável a centralidade da função do sangue da vítima, enquanto paradigma da vida, em relação ao Deus criador que há de receber o sacrifício. A expiação visada por estes sacrifícios marca a interação ao passo que há uma dívida, um pecado por parte do ofertante contra o receptor e, com o sacrifício, os pecados do indivíduo são apagados. Vê-se nesta interação uma associação intensa com sucessiva distinção, onde tanto o ofertante como o receptor retornaria a um estado neutro de harmonia.
As ofertas de vegetais, oblação e incenso tem pouco a acrescentar no diálogo entre o sacrifício institucionalizado do Antigo Testamento e a estrutura sacrificial proposta por Eduardo Viveiros de Castro feito até aqui. O que estes tipos de sacrifício poderiam ressaltar é a figura do sacerdote como participante ativo do sacrifício protagonizado pelo ofertante e por Deus. No caso dos pães da oblação, por exemplo, seu consumo era dirigido aos sacerdotes.
No processo de desenvolvimento desta forma cultual e ritual do sacrifício no Israel Antigo, é importante ressaltar a evolução que houve no intervalo da monarquia e do pós-exílio. Roland de Vaux identifica que "o holocausto tomou mais importância que o sacrifício de comunhão que era primeiro o mais frequente, os sacrifícios especiais de expiação se desenvolveram e um valor expiatório finalmente foi dado ao próprio holocausto". A convergência de formas de sacrifício ao longo da história de Israel pode ser visto como um indício de complementação de cada um dos rituais para a formulação de uma estrutura sacrificial mais ampla e completa, respondendo às necessidades do povo.


UM DIÁLOGO LOCALIZADO
Roland de Vaux diz que o sacrifício é um ato completo e por isso se deve evitar explicações simples. Não se pode limitar o sacrifício a um dom, ou a um meio de união, nem a um meio de expiação. Segundo Vaux, ele é motivado simultaneamente por muitas causas e responde a muitos imperativos da consciência religiosa. O diálogo proposto aqui não pode cair neste erro que Vaux aponta, isto é, limitar-se a sintetizar o sacrifício no Israel Antigo a um sistema conceitual desenvolvido a partir de uma realidade distinta.
Abordar o Israel Antigo com a estrutura sacrificial de Viveiros de Castro parece ter sido produtivo. Com este diálogo, foi possível identificar uma profundidade e interação dos participantes dos diversos rituais de sacrifício vigentes no Israel Antigo. Isto é apenas um diálogo inicial, que se poderia aprofundar muito mais, mas a pretensão aqui era apenas inicia-lo. Apesar disso, é preciso notar que a estrutura sacrificial elaborada por Eduardo Viveiros de Castro se mostrou adequada para sociedades em vias da institucionalização, onde a figura do xamã ainda prevalecia sobre uma figura sacerdotal, e a análise do sacrifício no Israel Antigo proposta aqui partiu de um sistema legislativo estruturado sob a égide da institucionalização do culto e sacerdócio definido.
Diante deste apontamento, vale recordar que este tema já foi abordado por metodologia semelhante. Segundo Vaux, este tema do sacrifício já foi lido à luz dos pressupostos do totemismo. Nesta relação com o totemismo, o sacrifício teria por objetivo participar da vida do deus comendo seu animal sagrado. Apesar de ter passado a moda do totemismo, como diz Vaux, e os traços do totemismo primitivo entre os israelitas são indiscerníveis, é curioso pensar neste padrão como essencial para algumas civilizações ao redor do Israel Antigo, como os antigos povos árabes. Poder-se-ia ver o sacrifício israelita como uma forma evoluída deste padrão totêmico. Apesar disso tudo não ser provado ainda, esta experiência com o totemismo é produtiva para a análise deste trabalho.
Não se pode esquecer que a ambição de Viveiros de Castro é fazer do sacrifício um sistema amplo como foi feito com o totemismo. Tomando, então este exemplo como alerta, não se pode esquecer que, apesar do diálogo ter sido produtivo, não se pode tomar todas estas evidências apontadas aqui como verdades até que sejam provadas. Por outro lado, assim como se identificou certa semelhança com o totemismo e possível relação histórica, o mesmo parece mais propício a confirmação na questão do sacrifício. Especialmente porque o Israel Antigo praticou explicitamente e institucionalmente o sacrifício.
Diante destas questões, como concluir este diálogo? A voz da antropologia prevaleceu nesta análise, uma vez que tal ciência tem se aprofundado mais nas questões do sacrifício. Entretanto, sendo uma análise da estrutura sacrificial no Israel Antigo, a ciência que mais se aprofundou nas temáticas do Israel Antigo foi a teologia. Assim, cabe nesta conclusão permitir que a voz da teologia ecoe e alimente este debate considerando três explicações ao sacrifício, levando em conta a necessidade de considera-los em conjunto para acrescentar a análise presente.
Primeiramente, o dom. Mais que um tributo pago ao Deus que é senhor soberano sobre tudo, o sacrifício como dom ganha valor ético na medida em que o homem se priva de algo que precisa para dar e, ao fazê-lo, ele ganha. Nesta aparente relação de troca, ressalta-se o fato de Deus se obrigar, aceitando a dádiva, uma vez que ele não precisa disso. Nesta explicação, tem-se a destruição da vítima como resposta à necessidade de tirar a oferta do meio profano.
A segunda explicação é a comunhão. Não que se esperava pela união física com Deus pelo consumo de uma vítima pertencente a Deus, mas esperava-se uma união pela partilha dos mesmos bens, de uma comunidade de vida, de relações de hospitalidade. No sacrifício, não se consome algo de Deus, mas algo com Deus, como uma refeição que sela um pacto entre contratantes humanos. Essa refeição sacrificial estabelecia ou reforçava a aliança entre o fiel e Deus. A terceira explicação proposta pela teologia é a expiação. Sendo dádiva de privação humana e estabelecimento de boas relações entre o ofertante e Deus, o sacrifício já tem um caráter expiatório. Entretanto, em casos em que a expiação se faz sentir mais forte, agindo com os ritos de sangue em lugar da refeição sacrificial, a fim de reestabelecer a aliança, podendo reatar a comunhão com Deus.
Estas três explicações corroboram com a análise feita aqui. O sacrifício enquanto dom ressalta o esforço de ambos os lados para o contato no momento do sacrifício, permitindo gerar a zona de indiscernibilidade – no caso do ofertante, a privação, e no caso de Deus, o obrigar-se para aceitar, mesmo não precisando. O sacrifício como comunhão demarca o momento em que ofertante e receptor confundem-se através da representatividade da vítima, permitindo ao homem estabelecer um relacionamento humano – refeição sacrificial – com o próprio Deus. Por fim, o sacrifício como expiação aponta para o resultado do sacrifício, que é a distinção após os participantes confundirem-se e comungarem, onde o estado humano é contrastado com o estado divino – a própria necessidade de expiação.
Conclui-se que a análise antropológica do sacrifício é frutífera quando posta em diálogo com a teologia. Para isso, é preciso levar em consideração que é uma estrutura importada de outra realidade social e aplicada numa perspectiva histórica de transformação cultual do sacrifício. Seguindo estes preceitos e estabelecendo o diálogo, este trabalho chegou a três possibilidades importantes acerca do sacrifício: primeiro, o sacrifício marca um esforço tanto do homem quanto de Deus para estabelecer contato harmonioso; segundo, o sacrifício marca um momento de identificação entre o homem e Deus; terceiro, o sacrifício marca as diferenças entre homem e Deus e ressalta a dependência daquele para este.
BIBLIOGRAFIA
CASTRO, Eduardo Viveiros de. "Xamanismo e sacrifício". In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, pp. 458-472.
VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2004.


VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2004, p.453.
COSACNAIFY – EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO. Disponível em: http://editora.cosacnaify.com.br/Autor/452/Eduardo-Viveiros-de-Castro.aspx > Acesso em 07/06/12
CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 458.
Ibid., p.464
Ibid., p.472.
Ibid., p.472.
Ibid., p.466.
Vaux, Instituições de Israel no Antigo Testamento, p.453.
Ibid., p.462.
Ibid., pp.462-463.
Ibid. p.455.
Ibid., p.454.
Ibid., p.455.
Ibid., p.456.
Ibid., p.457.
Ibid., p.458.
Ibid., p.469.
Ibid., p.489.
Ibid., p.486.
Ibid., p.489.
Ibid., p.490.
Ibid., p.491.


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