Estruturação e precariedade das vias de comunicação na Idade Moderna em Portugal Continental e a sua influência no modelo concelhio de autossuficiência

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Tiago Josué Garcês Ferreira

FLUP 2014

História Moderna de Portugal

Estruturação e precariedade das vias de comunicação na Idade Moderna em Portugal Continental e a sua influência no modelo concelhio de autossuficiência

No âmbito da unidade curricular de História Moderna de Portugal, lecionada na Faculdade de Letras da Universidade do Porto pela Professora Doutora Maria Helena Cardoso Osswald, foram-nos propostos três exercícios ao longo do semestre para posterior avalização dos mesmos. Estes poderiam, ou não, seguir uma problemática única e inalterada ao longo do semestre. Desde logo quisemos trabalhar o tema das vias de comunicação em Portugal na Idade Moderna, tenho os nossos primeiros exercícios recaído logo nessa questão. Depois de no primeiro e segundo trabalho termos focado a nossa atenção num artigo intitulado de As Feiras de Estremoz: uma primeira contribuição para o estudo dos mercados regionais no antigo regime1, presente na revista de História de Social e Económica nº 11, não abordando o tema principal do assunto, mas sim, uma tentativa de extrair e analisar informações sobre como as vias de comunicação se estruturavam à volta destas feiras e a forma como se dava a afluência de produtos e mercadores, bem como a sua proveniência, fez com que quiséssemos prosseguir a direção da investigação mas alarga-la às influencias das feiras e dos mercados na estruturação e criação de vias de comunicação na Idade Moderna e a dualidade de mercados existente, criado pela falta destas vias de comunicação e pelas dificuldades geográficas muitas das vezes encontradas 2 . No primeiro exercício - o de leitura orientada - pudemos tecer algumas considerações sobre o tema mas foi só no segundo exercício - o de avaliação das fontes - que pudemos, de forma mais aprofundada perceber preferentemente o assunto ou, pelo menos, criar um ponto de partida, visto que este se refere só e exclusivamente à

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JUSTINO, David; CUNHA, Mafalda Soares da; SILVA, João Gonçalves da (col.) – As feiras de Estremoz: uma primeira contribuição para o estudo dos mercados regionais no Antigo Regime. Revista de História Económica e Social – nº11, Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, Janeiro-Junho 1983 2 MAGALHÃES, Joaquim Romero de (coord.) - No Alvorecer da Modernidade (1480-1620). In MATTOSO, José (dir.) - História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1997. ISBN 972-33-1334-0 vol. 3. p.290-91

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zona de Estremoz e, por consequência, Beja e a capital Lisboa. Este terceiro exercício insere-se, como os dois anteriores, no ponto 2.2: As trocas e as comunicações. Para a realização deste ensaio começámos, como não poderia deixar de ser, por ler alguma bibliografia mais generalista 3 , passando depois a uma pesquisa mais pormenorizada. Encontramos a dissertação de doutoramento de Teodoro de Matos4 que nos serviu quase como uma bíblia por ter as temáticas que aqui estudamos extremamente bem estruturadas. 1 – As estradas romanas como principal legado; Pensamos ser notória a influencia, legado e herança romana de que ainda hoje somos herdeiros. As estradas da Idade Moderna não eram exceção – ou melhor, “a estrada boa, por onde passavam carros, é «obra que parece dos Romanos», ainda em fins do séc. XVI” (Mattoso v.3 p.288). Teodoro de Matos, na sua dissertação de doutoramento, diznos ainda que a rede viária portuguesa aparece, ou vai aparecendo, como consequência de fatores físicos, económicos e políticos. Diz-nos ainda que estas redes de comunicação terrestre, de herança romana, só muito tardiamente, quase nos nossos dias, vai usufruir de desenvolvimento tecnológico (p.15). É sabido que os romanos eram extremamente desenvolvidos e muitas das tecnologias por eles inventadas ou adotadas ainda persistem no nosso quotidiano em pleno séc. XXI. As redes viárias não são exceção – nem que seja só o traçado da via. No tempo de Antonino, no séc. II da nossa era, existiam em Portugal um total e 11 itinerários principais que ligavam as principais cidades da época e outras dezenas de estradas e rotas mais secundárias que certamente contariam com grande qualidade. O mais caricato era, sem qualquer dúvida, a mancha viária que cobria todos os limites geográficos do nosso território. Repare-se, por exemplo, no itinerário que ligava Castro Marim - no Algarve - e Mértola, passando por Beja. Ou, por exemplo, na rede viária na Guarda, perto da outrora famosa Coriscada. Foi este legado que se manteve ao longo dos séculos e permitiu alguma maior mobilidade na Idade Média, Moderna e até Contemporânea e que tanto levam os Historiadores a referir. A carência de estradas e o mau estado das existentes foram uma constante na história portuguesa. Temos vários testemunhos escritos de militares, monges e estudantes que por cá passaram e escreveram as suas crónicas5. Há até relatos de estrangeiros que 3

Interessa-nos particularmente, entre outras, a História de Portugal de Serrão vols. III, IV, V e VI MATOS, Artur Teodoro de - Transportes e Comunicações em Portugal, Açores e Madeira (1750-1850). Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1980 5 SERRÃO, Joaquim Veríssimo - História de Portugal. Lisboa: Verbo, vol. III; 1988 pp. 294-95 4

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acreditavam que algumas vilas e comarcas eram reinos separados, tendo em conta o isolamento em que se encontravam. Outros escreviam sobre os perigos de viajar nestas estradas devido às mas condições e a falta de pontes, especialmente no sul (Matos, 29). Até ao Séc. XVIII a preocupação com a construção e reabilitação de estradas é mínima, o que nos faz questionar o porquê. Só a partir de D. Maria I, em 1780, é que se assiste a um primeiro período de construção de estradas e pontes. É só nesta altura que se dá a construção da estrada de Lisboa a Coimbra e as estradas no Douro interior. Esta falta de preocupação aparente com a construção de estradas até tão tarde fez-nos questionar o porque de tal ter acontecido. Pensamos ter encontrado a resposta que, após alguma leitura, pareceu ser unanime. Como poderemos ver mais à frente, a rede fluvial e marítima teve uma grande importância na mobilidade mas sobretudo nas trocas comerciais, sobretudo no interior6 2- O transporte fluvial e marítimo como alternativa às vias terrestres Antes de abordar este tema em específico, devemos deixar claro que esta alternativa de comunicação não era no fundo uma alternativa, mas sim “o” meio de comunicação. Dizemos isto pois repara-se em vários documentos e fontes que estas vias eram sempre preferidas às terrestres7, ainda para mais numa altura em que a via-férrea e o transporte motorizado era inexistente. Isto verificava-se tanto a Norte como a Sul. A diferença estava na distância de léguas que eram navegáveis em cada rio e a facilidade de se contruir estradas que ligassem esses limites às populações. É natural que alguns pontos mais a interior, não permitiam a navegação em todo o rio, nesses locais específicos, continuava-se a preferir as vias fluviais, irradiando-se assim, a partir dos pontos não mais navegáveis, comunicações terrestres que fariam ligação à população e postos comerciais. Como nos é mostrado na História de Portugal dirigida por José Mattoso8, grande parte das redes fluviais em Portugal eram navegáveis. Começando pelo Norte, o rio Minho era, na parte portuguesa, todo ele navegável, o Lima permitia a circulação quase até Ponte de Lima, já o Cávado e outros rios mais pequenos entre Douro e Minho, não permitiam uma grande circulação, embora em alguns troços se mostrasse possível. O

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DIAS, João; SERRÃO, Oliveira (dir.); MARQUES, Oliveira (dir.) – Portugal do renascimento à crise dinástica in Nova História de Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1998 7 Os maiores exemplos disto são as crónicas de monges, estudiosos, freis, etc. que se deslocavam a Portugal pelas mais diversas razões e que relatavam as suas passagens e estadias, bem como alguns retratos paisagísticos, alguns dos quais chegaram até aos dias de hoje. 8 Vol. III, p. 290-292;

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Douro, segundo rio maior a desaguar em Portugal, era navegável até São João da Pesqueira, a partir daí era demasiado estreito – o que é um exemplo do isolamento inerente do interior do país. Ainda em Mattoso9, “As tentativas de transformar o rio numa grande via de comunicação com o interior, nomeadamente com Castela, implicavam capitais e vontades que não se conjugavam”. Em casos como este, onde porventura o rio era uma solução até uma parte avançada do território, denominavam-se e investia-se numa ou noutra determinada cidade que iria funcionar como escala para com as regiões onde as vias fluviais não chegavam, para a partir daí se proceder ao abastecimento, por terra, das regiões mais isoladas. No caso do rio Douro, Lamego era a cidade indicada para fazer a “ponte” de suporte alimentar para Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes e a Beira10. Abaixo do rio Douro, o rio Vouga, alvo de muito menos esforço e atividade, era pouco navegável. Já o rio Mondego era motivo de interesse particular, muito devido a encomendas diretamente para a capital de materiais de construção e pela sua facilidade em escoar barcas maiores. A bacia do Tejo por sua vez é, como esperado, navegável e extremamente útil ao comércio da capital. O Tejo é ainda o grande motor e eixo mercantil do interior do reino. Uma das provas disso são os acrescidos núcleos populacionais que se vão estabelecendo em torno dele para abraçarem esta atividade. O Sado, muito pela rápida ligação ao mar e sua localização é a melhor forma de escoamento dos produtos alentejanos. Após esta zona mais centralizada social e politicamente que coincide com a boa navegabilidade, no sul por sua vez a precariedade das vias fluviais volta a acontecer. No Algarve são poucos os rios navegáveis e usados para fins mercantis com exceção do Guadiana que fazia uma boa ligação entre Mértola e o Atlântico. Escusado será referir, desde logo, a grande importância que teve o transporte marítimo para trocas comerciais e transporte de passageiros. Não entrando no tema nas grandes travessias marítimas como a Carreira da India, a Carreira do Brasil, as armadas da costa e a das ilhas 11 , o transporte marítimo permitiu uma grande mobilidade nos transportes ao longo da costa, como por exemplo na travessia Porto-Lisboa até porque “em muitos casos, se tornava a alternativa mais rápida, económica e cómoda”12. Contudo deveremos dizer que este transporte ao longo da costa portuguesa, ou seja, desde Caminha a Vila Real de Santo António, só começou a ganhar grande destaque no final da idade

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Id. Id. 11 Matos, p449. 12 Id. 10

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moderna, daí não ser o nosso maior foco de atenção na realização deste ensaio, até porque achamos mais importante e concretizador focarmos a nossa linha de investigação no espaço geográfico limitado pelas fronteiras terrestres portuguesas. Em suma, nota-se largamente a importância das redes fluviais. Além do papel importantíssimo que tinham no transporte de mercadorias e pessoas como alternativa mais do que válida à má condução das vias terrestes, estas vias por meio aquático, tornaram-se um meio de transporte essencial. Isso via-se não só no mercado e nas cidades do Litoral, mas também nos dois grandes rios que cortam Portugal: O Douro e o Tejo. Ambos cruzam Portugal, provenientes de Espanha e acabam por desaguar nas duas maiores cidades da época, Porto e Lisboa, respetivamente. Mas para o que aqui estudamos isso não é o mais relevante, o mais notório é a forma como este era usado numa tentativa de solucionar o escoamento e a ligação não só económica mas também social das cidades e regiões no interior do reino. Pensamos ainda ser claro que a solução encontrada com cidades da fazer de eixo como “ponte” entre o fim da parte navegável e as regiões mais isoladas (como o caso de Lamego) são um grande exemplo da necessidade existente do transporte de materiais e pessoas e que dá uma perspetiva sobre a dificuldade em se viajar por terra.

3 – As vias terrestres: estruturação e limitações J. Gorani conta-nos que no final da Idade Moderna “era mais fácil encontrar em Portugal um navio para Goa ou para o Brasil, do que uma carruagem para Coimbra ou para Braga”13. Apesar de esta citação ser alusiva ao final da época cronológica a que aqui nos propomos a estudar, temos em crer que, antes disso, certamente as coisas não estariam melhor. Porém esta citação serve para dar uma perspetiva basilar da quantidade de transportes existentes em Portugal e a importância que tinham. Testemunhos desta constante precariedade são abundantes nos relatos de viajantes, nacionais e estrangeiros, nos escritos de políticos e economistas, nos diários de Cortes, documentação do Ministério do Reino, publicações periódicas, itinerários, memórias, reconhecimentos militares, etc. Era de tal forma contingente que Adrien Balbi e Marugán y Martin consideram as comarcas e vilas como reinos separados, alegando que algumas estradas

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GORANI, J; Portugal, A Corte e o País nos anos de 1765 a 1767, Lisboa, 1945, p. 99.

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punham mesmo em risco a vida dos viajantes14. Para começarmos a perceber a qualidade das estradas e dos trajetos, J. A. García de Cortázar indica-nos logo que a construção das estradas acompanhava o mesmo modelo que na idade média “a la medida del hombre y a la medida que el hombre las transita”15. Por aqui só podemos ter a ideia que não havia uma construção de estradas planeada e regular, mas sim algo que era feito à medida das necessidades e sem recurso a muitos métodos ou tecnologia. Isso era naturalmente aliado à não reabilitação das estradas, à não consideração das curvas de nível ou quaisquer tipografia, mau pavimento, dificuldades em transpor o território mais hostil e/ou montanhoso entre outras coisas que levaram as pessoas que visitavam Portugal a relatar as nossas péssimas condições no que toca a vias de comunicação terrestre na grande maioria do país, especialmente no interior e em localidades mais pequenas ou isoladas. Contudo esta não é a única condicionante, existindo muito relatos queixosos sobre a falta de pontes – especialmente a sul - que impedia, por vezes, a travessia pedonal de algum rio, principalmente durante o inverno16. Como se pode ver no, Mappa de Portugal antigo e Moderno de João Bautista de Castro (img1), disponível na História de Portugal 17 , as ligações mais importantes do Reino em meados do século XVIII não se adivinhavam muito melhores do que nos séculos passados.

Img. 1 – Principais ligações no Reino, em meados do Séc. XVIII

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Teodoro de Matos, p. 29. CORTÁZAR, A. García de; “Viajeros, Peregrinos, Mercadores en Europa Medieval” – Viajeros, Peregrinos, Mercadores en el Occidente Medieval, Pamplona, 1992 p. 40. 16 Teodoro de Matos, p.29-30. 17 Mattoso, Vol III, p. 289. 15

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Os problemas para já aqui enunciados, adivinham-se bastante notórios da dificuldade de transição de pessoas e bens de uma para outra localidade, por terra. No entanto, Joaquim Romero Magalhães no Historia de Portugal diz-nos que se desconfia profundamente de uma tentativa de melhorar as vias de comunicação em algumas zonas – naturalmente as mais movimentadas do país (Porto-Braga-Guimarães; Coimbra-Lisboa, etc.) – onde “os vereadores levam a sério as suas funções de fiscalização do estudo de calçadas, caminhos e pontes que permitem a circulação (…) e fique-se com uma forte suspeita de que se melhoraram as vias de comunicação terreste entre fins do século XV e princípios do século XVII”18. No entanto, como se pode verificar parcialmente na imagem um, com o traçado das principais vias, repara-se numa contínua dificuldade de fazer uma ligação mais fluida entre o Norte e o Sul do reino, no Interior e no Sul. Estes problemas eram muita das vezes causado pela própria disposição do terreno, mas também pela intenção do poderes locais tentarem obrigar os almocreves e arrieiros a passar por pontos onde os pudessem vigiar19. Já aqui passamos a ideia que a rede vial era extremamente uniforme ao longo do Reino, e isso é transversal desde pelo menos a fundação do Reino até meados do Séc. XIX. Como tal, pensamos ser importante dar uma perspetiva geral dos aglomerados viários ao longo do país. Para isso encontramos na dissertação de doutoramento de Teodoro de Matos, já aqui citado, um complemento bastante significativo para esta questão em específico. Relativamente às estradas do Douro, sabe-se que eram especialmente importantes devido à agricultura provinda das vinhas do Alto Douro, por isso, desde logo se tentou estabelecer uma boa ligação com a principal cidade da região, o Porto. Um aumento significativo na região da Régua e Mesão Frio, por exemplo, é datado de 1788, por onde começava a ser difícil a navegação fluvial. Para se ter noção, por alturas do fim da Idade Moderna, os fundos do erário público dispendidos na construção de estradas e pontes ultrapassavam já os três milhões de cruzados, sem contar com alargamentos e recuperações. No entanto, Teodoro de Matos diz-nos que “apesar das medidas de fomento de construção e reconstrução das estradas do Douro, da contribuição permanente cobrada pela Companhia Geral da Agricultura e Vinhos do Alto Douro, do regime a que estiveram sujeitas e dos pedidos constantes para a sua construção, o Alto Douro não terá sido a região tão justamente favorecida no respeitante às vias de acesso

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Id. p. 290. Id.

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ao rio Douro, apesar das exigências que o transporte do vinho exigia”20. Em semelhança ao esforço da realização de estradas no Alto Douro, outras zonas que também detinham excelentes produtos e mercadorias, tiveram presente, de forma semelhante a construção de estradas e o melhoramento significativo da rede vial. Por exemplo, a estrada que ligava Alcácer do Sal a Beja e Évora data de meados de 1800 e a que ligava Lisboa a Sintra, ao Porto e a Elvas em 1835. Ainda nesse mesmo ano é criada a Comissão dos melhoramentos de comunicação interior, após os triunfo do liberalismo, tendo como grande objetivo traçar um plano geral de estradas, pontes, encanamentos e portos de forma a melhorar de forma significativa as redes de comunicação21. Note-se porém, uma vez mais, que foi necessário chegar ao Séc. XIX para haver uma real preocupação com esta problemática. Um dos maiores avanços da época em questões relativas a vias de comunicação foi a ligação terrestre entre os dois principais centros urbanos, problema que se arrastava desde o Séc. XVIII. Cláudio Adriano Costa diz-nos, em 1840, que “de Coimbra para o Porto ha mais frequencia mas não a que deveria haver. Logo que se estabeleça a estrada [Lisboa-Porto] ha diversos pontos nella que hão de sentir o seu beneficio influxo.” Adriano Costa explica-nos ainda, no mesmo documento, algo que revela algo sobre a importância desta – como de outras – estrada para o comércio que até lá via-se obrigatoriamente isolado e restrito aos limites das vias de comunicação. Ainda no mesmo documento que fala da importância da ligação Lisboa-Porto este refere que “a Mealhada, ponto de recovagem entre as províncias do Norte, a Beira Baixa, e Alentejo póde sem milagre nenhum, vir a tomar grande incremento, levando em ponto maior os aristes e produções do Sul para Norte e trasendo do Norte para Sul, os panos de linho, chapeos, pregos e fasendas do Porto, comestiveis de fora etc.”22. Até a existência deste novo troço, que até então só ligava Lisboa a Coimbra, havia a instável via que ligava Porto-Lisboa mas de forma demasiado lenta e dispendiosa. Fora estas, Teodoro de Matos dá-nos alguma perspetiva da Estrada de Sinta, criada com intuito meramente turístico, por ser um “ponto obrigatório” para estrangeiros e portugueses que se movessem até Lisboa e as estradas do Minho, estruturadas já no período liberal que vão acabar de ligar pequenas cidades não só no Minho, mas entre Douro e Minho.

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Teodoro de Matos, p.34-36. Teodoro de Matos, p.38-39 22 Teodoro de Matos, p. 39-40 21

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Embora tenhamos aqui mostrado a forma como, em algumas regiões e em algum período histórico houve algum avanço no que toca à construção e estruturação da rede vial, nunca é demais repetir que este processo, além de lento é extremamente uniforme. Onde no Séc. XVI algumas cidades já tinham ligações meramente satisfatórias, outras que hoje em dia detém alguma importância económica e social, só tiveram ligações com a capital em meados do Séc. XVIII ou XIX. Pensamos ser importante frisar a diminuta rede viária até ao fim da Idade Moderna, principalmente em regiões no interior do Reino ou em zonas geograficamente mais isoladas. Claramente tudo isso era um fator determinante para o escoamento de produtos e mercadorias de umas regiões para as outras, ou até mesmo em questões relativas em fazer - ou tentar, as mercadorias importadas, como as especiarias e bens alimentícios, chegarem aos recantos mais resguardados to território. É claro que esta condicionante será determinante em várias limitações, principalmente quando se está perante um reino que, nesta época cronológica, está muito mais virado para o exterior do que para o interior.

4 – A influência das vias de comunicação na “dualidade” de mercados existentes Após uma exposição da forma como se encontravam as vias de comunicação na Idade Moderna, pensamos ser possível dar uma perspetiva clarificadora da forma como a estruturação destas influenciava e condicionava as feiras e mercados. Primeiro de tudo é importante esclarecer a importância das feiras e mercados e em segundo, a diferença entre os dois. Para estas e outras questões relativas às trocas comerciais um pouco por todo o Reino, sustivemos a nossa maior pesquisa na obra Feiras Medievais Portuguesas: subsídios para o seu estudo, de Virgínia Rau 23. Para Rau as estruturas de trocas comerciais eram um dos principais pilares na organização medieval portuguesa, devido à particularidade de juntarem, num determinado lugar e tempo, produtores, consumidores e distribuidores de produtos24. As trocas comerciais nasciam sempre que se mostrava a necessidade de tal, ou seja, sempre que havia necessidade de trocar ou escoar certos produtos numa região que se mostrava carente. Esta necessidade de criar feiras e mercados em inúmeras regiões é mais uma prova da má circulação que RAU, Virgínia – Feiras Medievais Portuguesas: Subsídios para o seu estudo. 2ªed. Lisboa: Editorial Presença, 1983 23

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Virgínia Rau, p. 33

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se vivia – de pessoas e bens. Mas, ainda não esclarecemos a diferença entre feiras e mercados. Segundo Rau, que se apoia em Henri Pirenne e Huvelin, “entre feira e o mercado local a oposição não é, portanto, uma simples diferença de grandeza, é também uma diferença de natureza 25 ”. Portanto, e analisando as palavras de Rau, pode-se esclarecer que há uma diferença avulta entre feiras e mercados: Os mercados teriam uma realização semanal e uma influência diminuta em relação às feiras, quase limitados por barreiras geográficas muito restritas, enquanto as feiras são centros de atração de mercadores de outras partes do Reino26 onde se realizavam outro tipo de negócios e se comercializavam bens muito mais diversos. Como aqui não estamos a estudar os mercados ou as feiras em si, mas a forma como as vias de comunicação as condicionavam, vamos ignorar os mercados e trabalhar só e unicamente nas feiras, por serem estas o grande ponto de atração de mercadores mais distantes, até por, ao contrário dos mercados, as feiras serem feitas com menos regularidade 27 , apesar de, segundo Romero de Magalhães os mercados é que são os verdadeiros responsáveis pelo abastecimento direto das populações, muito também por serem feitos com bastante regularidade e terem uma atuação camarária constante 28 . Convém ainda não esquecer, que como existem esses mercados, locais e mais constantes, existem, em alguns locais, feiras desse mesmo âmbito, mais uma razão que nos leva a crer a influência que a dificuldade de mobilidade de pessoas e mercadorias resultava. A dificuldade de mobilidade já constatada, principalmente no Sul e no Interior do país, levava, como já constatado à criação de vários pontos e de trocas comerciais que sofriam de um apertado controlo camarário. A autarquia era responsável por legislar a atividade comercial da sua concelhia, já no Séc. XVI. Este controlo sentia-se principalmente no abastecimento das populações, proibição de venda de alguns bens e de certa forma na circulação de alguns produtos e bens, permitindo a venda só do excedente29. Isto é a prova que havia desde logo uma ideia de autossuficiência de cada autarquia e região, que já estavam acostumados à má circulação que dispunham, o que levava a um Reino

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Virgínia Rau, p. 57 Como nos mostra, por exemplo, o artigo que havíamos estudado para os dois primeiros exercícios desta Unidade Curricular, Feiras de Estremoz, já aqui citado, chegavam a Estremoz comerciantes provenientes das mais variadas zonas do País como Porto, Guarda, Minho, Lisboa, Odemira, etc. 27 Temos o conhecimento de Feiras que se realizavam mensalmente, semestralmente ou até anualmente. 28 Mattoso, vol III, p. 283-284 29 Mattoso, vol III p. 287 26

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totalmente desunificado a nível das trocas comerciais. A História não é linear e o sistema de trocas comerciais não é exceção. Drumond Braga, revela-nos que este ideal se vai alterando aos poucos, embora a partir de meio do Séc. XVII muitos dos municípios tenham voltado a esta realidade30. Algo que também se vai verificando é a tentativa de criação de feiras em certas regiões mais isoladas que aglomeram várias concelhias, numa tentativa de se elevarem aos concelhos vizinhos. Por isso não nos devemos deixar, muitas das vezes, iludir e levar pela grande quantidade de feiras realizadas em certa parte ou região, alerta-nos para isso Inês Amorim, na sua obra sobre A formação da rede de feiras e mercados31. Se formos tentar perceber a localização geográfica das feiras portuguesas na Idade Média, acreditando que não se alteraram radicalmente até finais da Idade Modera, alicerçandonos, uma vez mais, no trabalho de Virgínia Rua, podemos identificar que a maioria das feiras portuguesas se realizavam a norte do Douro e iam, incisivamente, penetrar a Beira Interior. Só entre Douro e Minho são apresentadas 21 feiras, o que é um número bastante significativo – a grande maioria em zonas mais isoladas, com exceção de Trás-osMontes32. No que toca às feiras noutras regiões, é-nos difícil responder muito devido à pouca informação existente e ao facto da bibliografia ao nosso alcance não tratar este tema de forma exaustiva. Contudo, fora as feiras na região ainda agora referida, encontramos referências para a Estremadura e Alentejo, onde novas feiras abundam e complementam regiões menos abastecidas daquelas regiões 33 , aliadas às já existentes como a de Évora, Faro, Leiria, Estremoz, Moura, Portel, etc. Convém ainda referir, que o período turbulento vivido em 1640, com a guerra da restauração, agravou ainda mais o ideal de autossubsistência – mesmo sendo algo idealista - dos concelhos e o egoísmo por estas realizado com a aplicação de maiores taxas, aumento da proibição de compra-venda e a reserva da terça – não só aos cereais.

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BRAGA, Isabel Drumond – A circulação e a distribuição dos produtos. In. DIAS, João José Alves

(coord.) – Portugal do Renascimento à Crise Dinástica. In. SERRÃO, Joel e MARQUES, A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1998. Vol. V. p. 209-211. AMORIM, Inês – A formação da rede de feiras e mercados: ideologias, estratégias e práticas – indicadores do comércio interno na Época Moderna. In. ACTAS DO 3º, p. 38-39. 32 Virgínia Rau, p. 305-307. 33 Isabel Braga, p. 212-213. 31

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Conclusão

Após tudo o que aqui referimos, acerca das vias de comunicação e das feiras e mercados, tendo abordado primeiro as vias de comunicação e só depois o sistema de trocas comerciais internas, inter-concelhias ou inter-regionais pensamos ser clara a forma como a precária rede viária condiciona toda a mobilidade ao longo do Reino, numa altura em que não havia qualquer tipo de veículo elétrico ou a vapor. Deparámo-nos com um Reino absolutamente centralizado na sua capital, e uma sociedade muito virada para o comércio exterior, para o Atlântico, numa altura em que florescem os descobrimentos e Portugal se torna um Império. Como é natural, um reino tão virado para o exterior, acaba por se vocacionar para essas vias, em detrimento das vias que dizem respeito a Portugal Continental. Quando analisamos o mappa de João Batista, presente na imagem 1, podemos perceber isso mesmo. Além de se tratar de um documento que foi editado e reeditado ao longo de um século, tamanha era a sua importância devido à falta de cartografia neste período, mostranos que as principais vias de comunicação, já no século XVIII eram demasiado reduzidas em alguns locais do país para que se pudesse fazer um tipo de comércio e troca comercial que não tivesse como pilar basilar a autossuficiência. Ao contrário de alguns concelhos que estavam no interior do país mas nas imediações dos rios Tejo, Douro e, de forma menos notória, Mondego e Minho, e conseguiam receber e exceder, por via fluvial mercadorias, algumas regiões estavam absolutamente isoladas. Temos vários casos, no Algarve conseguimos identificar bastantes. Havia apenas um itinerário principal, que provinha do Alentejo e ligava a Faro, por rio tínhamos o guadiana que, na sua zona navegável mais importante, ligava Mérida ao Atlântico. Fora isso, grande parte do Algarve, separado da zona alentejana por serras e colinas, estava demasiado isolado e sem uma rede fluvial navegável. Outros exemplos é Trás-os-Montes, ou a serra de Ansiães que foi dos principais entraves à ligação entre o Norte e o Sul. Condicionantes físicas como estas, aliadas ao preceito dos concelhos de se salvaguardarem e à sua subsistência é, segundo nosso entender, um fator crucial para a criação de feiras e mercados em tantos concelhos e regiões. Chegamos a esta conclusão parcial com a análise do artigo sobre As feiras de Estremoz e tentamos aqui aprofunda-la. Apesar da bibliografia que fomos encontrando não ser a mais exaustiva, nem haver 12

alguma que trabalhe diretamente esta problemática que aqui investigamos, temos em crer que, compilando a informação disponível, conseguimos alcançar um bom ponto de partida para o estudo deste efeito-causa que é a Estruturação e precariedade das vias de comunicação na Idade Moderna em Portugal Continental e a sua influência no modelo concelhio de autossuficiência.

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Bibliografia o AMORIM, Inês – A formação da rede de feiras e mercados: ideologias, estratégias e práticas – indicadores do comércio interno na Época Moderna. In. Actas do 3º Encontro de História – Vectores de Desenvolvimento Económico: As Feiras – da Idade Média à Época Contemporânea. Vila do Conde: Câmara Municipal de Vila do Conde, 2004. ISBN 972-9453-75-6 o BRAGA, Isabel Drumond – A circulação e a distribuição dos produtos. In. DIAS, João José Alves (coord.) – Portugal do Renascimento à Crise Dinástica. In. SERRÃO, Joel e MARQUES, A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1998. Vol. V.

o

CORTÁZAR, A. García de; “Viajeros, Peregrinos, Mercadores en Europa Medieval” – Viajeros, Peregrinos, Mercadores en el Occidente Medieval, Pamplona, 1992.

o JUSTINO, David; CUNHA, Mafalda Soares da; SILVA, João Gonçalves da (col.) – As feiras de Estremoz: uma primeira contribuição para o estudo dos mercados regionais no Antigo Regime. Revista de História Económica e Social – nº11, Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, Janeiro-Junho 1983 o MAGALHÃES, Joaquim Romero de (coord.) - No Alvorecer da Modernidade (1480-1620). In MATTOSO, José (dir.) - História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1997. ISBN 972-33-1334-0 vol. III.

o

MATOS, Artur Teodoro de - Transportes e Comunicações em Portugal, Açores e Madeira (1750-1850). Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1980

o RAU, Virgínia – Feiras Medievais Portuguesas: Subsídios para o seu estudo. 2ªed. Lisboa: Editorial Presença, 1983 o SERRÃO, Joaquim Veríssimo – O Século de Ouro (1495-1580). In História de Portugal. [Lisboa]: Verbo, 1978. vol. III. o SERRÃO, Joaquim Veríssimo – Governo dos Reis Espanhóis (1580-1640) In História de Portugal. [Lisboa]: Verbo, 1979. vol. IV o SERRÃO, Joaquim Veríssimo – A Restauração e a Monarquia Absoluta (16401750) In História de Portugal. [Lisboa]: Verbo, 1979. vol. V o SERRÃO, Joaquim Veríssimo – O Despotismo Iluminado (1750-1807). In História de Portugal. [Lisboa]: Verbo, 1982 v. VI

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